Flores, votos e balas – ALONSO (RH-SP) Tornando-se livre – MACHADO e CASTILHO (RH-USP)

ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 529p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T.; CASTILHO, Celso Thomas(org.). Tornando-se livre. Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 480p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A abolição revisitada: entre continuidades e rupturas. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

O objetivo dessa resenha é apresentar, nos limites desse formato, uma apreciação crítica de duas obras recentes que recolocaram, em termos gerais, a abolição da escravidão no Brasil como tema de peso da história e da historiografia brasileiras.

A abolição da escravidão foi um fato central da história brasileira. Comparável à Independência, à Proclamação da República e à Revolução de 1930. Na verdade, nenhum destes três últimos eventos teve semelhante impacto transformador da vida social. A Abolição destruiu uma instituição e uma prática centenárias que moldaram a história, a sociedade, a política e a cultura brasileiras. A escravidão moldou a colônia por praticamente três séculos, mas também esteve na base da construção do Estado e da nação por 80 anos – se tomarmos como marco dessa construção a vinda da família real em 1808 – e, mesmo depois de mais de um século de sua extinção, ainda lança seus efeitos sobre os dias de hoje. Na época de sua abolição, a escravidão ainda estava no centro dos interesses da classe dominante do Império e, apesar do relato estabelecido em contrário, há muito desmentido pela historiografia, não era vista como um obstáculo central pelos novos grupos de proprietários rurais que emergiam no oeste paulista. Com tudo isso, é evidente que o processo histórico de derrubada – a Abolição – também deva merecer uma grande atenção por parte de historiadores. O que foi a Abolição? Quando começou? Foi um movimento conscientemente deflagrado? Por quem? Quando? Com quais objetivos mais específicos, além do genérico fim da escravidão? Quais seus êxitos e fracassos? Quais foram suas principais fases? Quem foram seus principais sujeitos históricos? Qual seu legado?

Muitas dessas perguntas foram formuladas nas décadas que se seguiram à Abolição e à Proclamação da República. Com a consolidação da República oligárquica e sua crise dos anos 1920, essas perguntas sobre a abolição diluíram-se em questionamentos mais abrangentes sobre a formação do Brasil e, eventualmente, sobre o lugar da escravidão em geral nessa formação. No final dos anos 1960 e início da década seguinte, contudo, as perguntas sobre a abolição voltaram a ser formuladas por historiadores, em especial por dois brasilianistas. São de 1972 as duas grandes histórias da abolição brasileira: The destruction of Brazilian slavery, de Robert Conrad, publicada em português em 1975, com o título de Os últimos anos da escravatura no Brasil, e The abolition of slavery in Brazil, de Robert Toplin, infelizmente, nunca traduzido. Em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, Emilia Viotti da Costa que, em 1966, havia publicado Da senzala à colônia, trabalho mais abrangente sobre a escravidão e sua crise no século XIX, publicou A Abolição, pequeno livro de síntese e divulgação.

Tais obras, entretanto, não frutificaram. É certo que, desde os anos de 1980, com a multiplicação dos programas de pós-graduação, particularmente em História, uma quantidade imensa de dissertações de mestrado e teses de doutorado foi produzida sobre o assunto, muitas delas ganhando, posteriormente, a forma de livros. A maioria esmagadora dessas investigações foi e continua sendo de caráter monográfico, sobre aspectos particulares da escravidão ou mesmo sobre o evento de sua abolição, nesta ou naquela região, sob este ou aquele ponto de vista. Tais abordagens são muito importantes e ajudam a levantar novas questões, esclarecer temas e aspectos negligenciados. O lugar e o papel das lutas de escravos e libertos no processo de abolição foram a dimensão mais ressaltada em contraposição a uma historiografia mais estrutural da escravidão e da abolição, mais característica da década de 1960.

As duas obras aqui resenhadas buscam escapar dessa fragmentação historiográfica e só por isso já seriam muito bem-vindas. O livro de Ângela Alonso – Flores, votos e balas – é explicitamente uma síntese histórica e uma interpretação de conjunto. Por isso servirá como eixo desta resenha. Tornando-se livres é uma coletânea organizada por Maria Helena P. T. Machado e Celso Thomas Castilho que, em parte, baseia-se e tem como ponto de partida a mesma fragmentação temática acima apontada. Entretanto, em seu título e em alguns capítulos específicos busca também uma interpretação abrangente, ainda que não uma síntese, dos acontecimentos que marcaram a abolição da escravidão no Brasil. Por isso, serão estes os capítulos e a tese expressada pelo título da obra que serão avaliados com vagar nessa resenha.1

Tornando-se livre, de uma maneira geral, ressalta o papel do escravo – e também do liberto – como elemento ativo na sociedade escravista e, eventualmente, na moldagem de um clima de deslegitimação da escravidão, que se pode perceber principalmente a partir da segunda metade da década de 1860. É verdade que essa deslegitimação foi proveniente de eventos mais amplos, que não foram deflagrados pela participação ativa dos cativos e que não merecem uma atenção maior por parte dos autores da obra. Em primeiro lugar, foi efeito do desfecho da Guerra da Secessão (1861-1865) e da consequente percepção, por parte do imperador e de alguns de seus estadistas, de que o Brasil estava agora isolado no cenário internacional como nação escravista. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a libertação de escravos para seu recrutamento para a guerra com o Paraguai tornou evidente a fragilidade das bases sociais do Império, em época de crescente mobilização nacionalista. Mesmo assim, o pleno significado desses eventos é incompleto caso não se leve em conta o lugar e o papel dos escravos, libertos e suas lutas naquela sociedade, e é principalmente disso que os 21 capítulos da obra tratam. O livro é dividido em quatro partes. A primeira – “Disputando liberdades” – aborda as lutas de “homens e mulheres escravos, libertos e libertandos em busca da aquisição da liberdade”, problematizando “os horizontes dessa almejada liberdade no contexto da escravidão e de seu afrouxamento na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir de 1870” (p. 13). A segunda parte – “Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos” – retoma o tema “do acesso à liberdade e à autonomia,” enfocando o papel das escravas e libertandas como mulheres e mães (p. 14). Os capítulos da terceira parte – “Mobilização: dimensões e prática” – abordam a questão dos movimentos emancipacionistas e abolicionistas da segunda metade do século XIX e do pós-abolição, com o objetivo “de aproximar a movimentação em torno da abolição aos movimentos sociais deste período e dos seguintes, propondo elos e continuidades” (idem). A última parte – “Abolição em dimensão transnacional” – reúne textos que refletem sobre a “questão ainda pouco explorada por nossa historiografia, que é a dimensão internacional e atlântica do processo da abolição da escravatura no Brasil” (p. 15).

Já no que diz respeito a Flores, votos e balas, seu ponto forte é o destaque dado ao papel dos ativistas abolicionistas na formação, estruturação, desenvolvimento e direção do abolicionismo em quatro conjunturas que a autora distingue no movimento pela abolição: a conjuntura pré-Lei do Ventre Livre, a partir de meados da década de 1860; a ascensão do partido Liberal em 1878; o gabinete Dantas, de junho 1884 a maio do ano seguinte; e o gabinete Cotegipe, de 1885 a 1888. Essas diferentes conjunturas, por sua vez, corresponderiam a três fases do abolicionismo brasileiro expressas no título do livro, que operou inicialmente no espaço público: momento das flores, na esfera político-institucional; momento dos votos; e, na clandestinidade, momento das balas (p. 19).

Tanto Flores, votos e balas quanto a maior parte dos capítulos de Tornando-se livres acentuam as continuidades entre o que seriam lutas, movimentos e iniciativas abolicionistas ou contra a escravidão antes de 1879, especialmente a partir da metade da década de 1860, e depois dessa data. Este ano (1879) é tomado por muitos, entre eles o autor dessa resenha, como marco inicial do movimento abolicionista, em contraposição ao que se convencionou chamar de emancipacionismo. Foi nele que o deputado liberal Jerônimo Sodré proferiu seu discurso no Parlamento demandando a abolição, pura e simplesmente, da escravidão. A demanda ecoava, é certo, outras vozes na imprensa e na sociedade civil que se manifestavam pelo mesmo objetivo. Contudo, as iniciativas e lutas anteriores que de alguma forma golpearam a escravidão, como a proibição efetiva do tráfico internacional de escravos, a lei de 28 de setembro de 1871, que declarou livre o ventre da mulher escrava, a ação de associações civis que promoviam a alforria de cativos, as ações judiciais impetradas pela libertação de escravos – as ações de liberdade – e as próprias lutas e revoltas de escravos, tanto individuais quanto coletivas, não haviam, até então, colocado explicitamente no horizonte político imediato a questão da abolição. Esta era vislumbrada em futuro não predizível e seria conseguida de uma forma ou de outra, pelo acúmulo de efeitos dessas leis, das ações de alforria e liberdade, das lutas e revoltas escravas. O discurso de Sodré desdobrou-se imediatamente em apoios e, em um crescendo, ganhou mais nitidez – abolição imediata e sem indenizações – transformando-se em um movimento político e social que resultaria vitorioso nove anos mais tarde.

Entretanto, nenhuma das duas obras coloca grande ênfase nessa novidade. Essa é a tese explícita de Flores, votos e balas e é também a tese esgrimida em mais de um dos capítulos de Tornando-se livres. Para ambos os livros, haveria uma continuidade entre antes e depois de 1879. Ângela Alonso assinala que essa continuidade existiria entre o que ela designa como abolicionismo de elite, característico das décadas de 1860 e 1870, e abolicionismo como movimento social, marca da década de 1880. A corroboração da tese vem pelo acompanhamento de algumas lideranças abolicionistas com atuação expressiva nos dois momentos, entre eles e principalmente, André Rebouças, mas também, como veremos abaixo, Abílio César Borges, educador e ativista abolicionista de segunda grandeza, se é que assim se pode considerá-lo.

Em Tornando-se livres, como colocado na apresentação do volume assinada pelos organizadores, a continuidade seria dada pelas experiências de busca de liberdade. Essas experiências, muitas vezes precárias e provisórias, principalmente na segunda metade do século XIX, “fizeram parte de um grande esforço social que redundou no processo de abolição” e que ainda se estendeu ao período da pós-abolição (p. 11-12). Para os autores, mesmo que as lutas de escravos, libertos e libertandos e os movimentos sociais da abolição não tenham andado sempre juntos, “a movimentação da abolição deve ser compreendida em sua ligação profunda com a realidade das senzalas e dos esforços dos escravos e dos pobres em geral de se livrarem do cativeiro e suas mazelas” (p. 14-15). No primeiro capítulo, intitulado “Da abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos”, assinado por Flávio Gomes e Maria Helena P. T. Machado e que funciona como uma espécie de direção geral da obra, essa perspectiva fica ainda mais explicitada. O capítulo visa destacar as possibilidades de se estabelecer as conexões analíticas entre expectativas e percepções de liberdade e autonomia por parte de escravos, roceiros, quilombolas e forros, antes e depois da abolição. Os anseios de escravos e libertos “em busca de autonomia e liberdade” integrariam um amplo movimento social que circundou a abolição no Brasil. Assim, os autores querem apontar as possíveis conexões analíticas “entre movimentos abolicionistas e atuação de escravos, libertandos e libertos, como partes integrantes de um amplo movimento social e político de superação da escravidão” (p. 20). Reconhecendo que a palavra “abolicionismo” adquiriu uso mais extensivo na década de 1880, em detrimento de “emancipacionismo”, mais comum até aquele momento, os estudos sobre a abolição teriam supervalorizado esse momento, assim como os espaços urbanos, os debates parlamentares e a imprensa. Os estudos sobre escravidão, abolição e pós-emancipação sofreriam, até hoje, de uma segmentação, resultando em narrativas lineares desses fenômenos. No caso específico da abolição, essas narrativas reduziriam em demasia os recortes e os atores, “aprisionando suas análises no espaço urbano e na última década da escravidão” (p. 19-20).

Tal perspectiva tem o mérito de salientar a importância do contexto das lutas e atuações sociais de escravos, libertos e livres para a compreensão mais geral do momento abolicionista. Mas a afirmação permanece em um plano genérico. Lutas e atuações de escravos, libertos e livres sempre existiram na sociedade escravista brasileira, tanto ao longo da história colonial quanto no decorrer da história imperial. Em que momento e como essas lutas e atuações influíram ou incidiram na formação de um movimento abolicionista? Toda a busca por liberdade, em uma sociedade escravista como a brasileira que comportava a alforria e a inserção social, econômica, cultural, jurídica e política do liberto, integrava “um amplo movimento social e político de superação da escravidão”? A permanência e a força históricas da escravidão brasileira atestam que não. Em que momento, por quais razões e como a liberdade deixou de ser uma condição individual de não ser mais escravo, e de eventualmente poder mesmo usufruir do direito de ser proprietário de escravos, para se tornar uma condição social, jurídica e política frontalmente contraposta à existência de qualquer escravidão? Inversamente, é preciso esclarecer como as lutas políticas abolicionistas ressignificaram, condensando, repercutindo, amplificando, as lutas de escravos, livres e libertos. Essa é uma questão de fundo que não pode ser enfrentada somente pela multiplicação e enumeração de “casos” de embates particulares entre senhores e o Estado, de um lado, e escravos, libertos e livres, de outro. Da mesma forma, se o movimento abolicionista não pode ser completamente seccionado das propostas anteriores, genericamente designadas como emancipacionismo, de abolição em um futuro incerto, de forma gradual e preservando os direitos de propriedade, não pode, tampouco, ser confundido com elas. O preço é uma diluição da singularidade da luta abolicionista, ao mesmo tempo em que não fica claro em que, e se é que, “as expectativas e percepções de liberdade e autonomia” da população escrava, liberta e livre seria diferente, no período da abolição, das expectativas de liberdade e autonomia que tinham antes.

Flores, votos e balas dá grande ênfase à movimentação abolicionista. Em uma nota à apresentação do livro, Ângela Alonso explicita o que ele traz de novidade em relação a uma longa série de obras anteriores sobre a abolição da escravidão no Brasil: uma visão de conjunto da mobilização abolicionista, considerando a dinâmica intra e extraparlamentar, a partir de sua periodização própria, salientando quatro conjunturas. Em termos metodológicos, seu levantamento sistemático das associações abolicionistas e eventos de mobilização a partir de notícias de imprensa também é original. Finalmente, haveria ainda o papel destacado por ela conferido à organização política do “contramovimento”, em oposição aos abolicionistas, que teria um papel importante “para a intelecção das estratégias abolicionista” (p. 373-4). No decorrer do livro, as lutas escravas só aparecem na conjuntura de acirramento do movimento abolicionista, no penúltimo capítulo, quando a autora, seguindo definição de sua principal referência teórica, o sociólogo norte-americano Charles Tilly, vê o ano de 1887 como uma situação revolucionária. Se é verdade que, neste ano, a situação desandou de vez, com a desorganização da produção e o caos social instaurado pelas fugas e rebeliões escravas, muitas delas incentivadas ou acobertadas pelos abolicionistas, é fato também que agitações entre escravos, variando dos casos de rebeldia individual, fugas, assassinatos de proprietários e seus feitores e capatazes a fugas e movimentações coletivas, intensificavam-se desde pelo menos 1882.

Aqui, a crítica a ser feita é quase inversa àquela em relação a Tornando-se livres. O papel de escravos e libertos na luta contra a escravidão surge quase como um subproduto do movimento abolicionista. Essas lutas não têm passado, tradições e condicionamentos socioeconômicos e culturais particulares, tanto aqueles inseridos em sua longa duração, remontando ao período colonial, quanto aqueles mais específicos, característicos de sua reconfiguração e expansão no período imperial. Ângela Alonso detém-se sobre a escravidão do XIX, mas o faz em busca dos fundamentos de uma retórica de defesa da escravidão que remontaria, por sua vez, a linhagens de defesa da instituição identificadas por David Brion Davis no pensamento ocidental. Aqui a escravidão não teria as mesmas características de racialização presentes na sociedade estadunidense. Em uma “sociedade aristocrática, a estratificação estamental garantia a ordem sem exigir argumentos raciais explícitos, embora nem por isso ausentes” (p. 57-8), e “era a base de um estilo de vida, compartilhado por todo o estamento senhorial, cujos eflúvios se espalhavam pela sociedade em círculos concêntricos, como pedra na água” (p. 53). Essa situação, por sua vez, propiciava uma argumentação de defesa da escravidão caracterizada pela autora como “escravismo de circunstância”, uma defesa enrustida, não racializada e justificada pelas condições específicas da economia nacional (p. 56 e ss.).

Essa linha de defesa da escravidão teve como campeão Paulino José Soares de Sousa, filho homônimo do visconde do Uruguai. Não há espaço aqui para debater essa ideia de escravismo de circunstância, fundamentado em uma sociedade aristocrática e estamental. É fato que a defesa da escravidão no Brasil seguiu uma linha de argumentação principal que a considerava um mal necessário, uma necessidade histórica, prescindindo ou minimizando sua defesa moral ou abrigada em razões raciais, tidas então como científicas. Já o argumento de que essa linha de defesa correspondia a uma sociedade estamental e aristocrática parece mais problemático. A aristocracia brasileira era meritocrática e não hereditária, não correspondendo, assim, a uma sociedade estamental. Por outro lado, uma linha de defesa mais pragmática que programática da escravidão era mais adequada ao caráter elástico da escravidão brasileira, como notou Joaquim Nabuco em O abolicionismo. A escravidão aqui estava presente em todos os cantos do território nacional, tanto no campo quanto nas cidades. Era um privilégio que podia se estender, e muitas vezes se estendia, a pequenos proprietários rurais e a setores médios e remediados nas cidades. Era um privilégio de brancos, mas podia abarcar – e às vezes abarcava – mestiços e negros, dos quais muitos tinham acabado de adquirir sua própria liberdade.

Flores, votos e balas compartilha a tese da continuidade entre o abolicionismo em sua fase do que se convencionou chamar de emancipacionismo e sua fase propriamente abolicionista, ainda que não calcada, como em Tornando-se livres, nas lutas de escravos e libertos. Ela assinala, é certo, a incidência dessas lutas, mas somente a partir de 1883 e sob o estímulo direto do movimento abolicionista, que então ingressava em sua fase de “balas”. Para Ângela Alonso, essa continuidade viria pela indistinção entre as propostas emancipacionistas e aquelas abolicionistas, corroborada pelo protagonismo de determinadas lideranças em ambos os momentos. Para tanto, ela acompanha as figuras de André Rebouças, um dos “papas” da luta pela abolição, e o menos conhecido educador Abílio César Borges. A tese é problemática. É verdade que Rebouças já batalhava pela abolição, mais como um objetivo vago, a ser alcançado por reformas, antes mesmo do movimento abolicionista ganhar seu contorno de luta pela abolição imediata, o que ocorreu a partir de 1879. Entretanto, essa continuidade do personagem não autoriza a interpretação da continuidade do movimento. A partir de 1879, Rebouças lançou-se resolutamente na luta pela abolição imediata e sem indenizações, distinguindo – assim como outros abolicionistas – essa nova luta das bandeiras emancipacionistas de abolição gradual que haviam culminado na lei de 1871. No final da década de 1870, estava claro que o emancipacionismo era insuficiente, com o fim da escravidão previsto para um futuro distante e indeterminado, além de deixar intacto o poder da “landocracia”, termo que ele utilizava para designar o poder dos grandes senhores de escravos e de terras que deveria ser quebrado. Rebouças era o mesmo, mas suas opiniões e práticas haviam mudado radicalmente.

No caso de Abílio Borges, enxergar neste personagem continuidades em uma pretensa cruzada abolicionista é ainda mais complicado. É verdade que ele considerava que a escravidão deveria ser extinta a bem do futuro da nação, e também que foi um dos fundadores, em 1869, da Sociedade Libertadora Sete de Setembro na Bahia. Entretanto, no capítulo do livro Tornando-se livres, de Ricardo Tadeu Caires Silva, que trata da mesma Sociedade Libertadora Sete de Setembro, ficamos conhecendo como pensava o dr. Abílio Borges. Em carta de 1870 a um correligionário, ele considerava que a substituição do trabalho escravo pela via da colonização só seria feita muito lentamente, por meio de uma lei do ventre livre. Os que tivessem nascido escravos que se sujeitassem à lei do seu destino, “porque a libertação em massa, além de não ser um bem para os próprios escravos, seria para o Brasil um mal imenso e de consequências funestíssimas” (citação à p. 304). Nada mais distante do ideário abolicionista que começa a ser construído em 1879, pregando a abolição imediata, sem indenizações, acompanhada pela destruição da “obra da escravidão”, com a distribuição de terras para os antigos escravos e seus descendentes e a tributação do latifúndio. Do ponto de vista das “formas de luta”, se é que assim se pode chamar as ações de compras de alforrias por sociedades emancipadoras, a mudança também foi radical. A atuação dessas sociedades e de novas que surgiram continuou, mas estas passaram a conviver com outras manifestações, ações e entidades, essas sim de luta, que demandavam a abolição imediata, e que acobertavam – quando não promoviam – fugas de escravos.

Essa radicalidade e essa novidade do movimento abolicionista são percebidas e valorizadas por Cláudia Santos em seu capítulo de Tornando-se livre, intitulado “Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro antes e depois da abolição”. A partir da década de 1880, teria surgido um novo ativismo político conflitante com as estruturas dominantes do Império. A Confederação Abolicionista, fundada em 1883, teve um protagonismo destacado na conformação deste novo ativismo. De modo mais amplo, o movimento abolicionista foi um marco desse processo “não apenas porque foi determinante para a extinção da escravatura, mas porque organizou um novo tipo de atuação política, estruturada em torno da participação dos setores populares, da imprensa, das associações e dos meetings” (p. 338).

A importância das associações no abolicionismo é dos pontos centrais da argumentação de Ângela Alonso. Para a autora, haveria uma constante e crescente fundação de sociedades emancipadoras entre 1850 e 1888. Essa constatação é feita pelo levantamento na imprensa, no que é um dos pontos fortes de seu livro. De modo distinto de Cláudia Santos, esse fenômeno seria uma outra indicação da continuidade da mobilização pela abolição ao longo desse extenso período. É certo que a multiplicação de associações beneficentes e corporativas, e não apenas das destinadas a promover emancipação de cativos, foi uma característica geral da segunda metade do nosso século XIX. Entretanto, pelos próprios dados levantados, o que se nota é que, até 1869, a fundação dessas entidades foi esporádica. Fundaram-se duas em 1850 e outra em 1852. Apenas em 1857 uma nova associação foi fundada, assim como em 1859, 1860, 1864 e 1867. Somente em 1869 esse patamar deu um salto, com a fundação de sete associações emancipadoras, seguidas por 11 no ano seguinte. O número voltou a cair na sequência: cinco em 1871, três em 1872, uma por ano em 1873, 1874, 1877 e 1878. Em 1879, o número subiu com a fundação de três entidades, dando um salto nos quatro anos seguintes: 10 em 1880, 23 em 1881, 19 em 1882, e 103 em 1883! Não sabemos quais as diferenças de propósito entre essas diversas associações e se alguma mudança significativa pode ser percebida a esse respeito a partir de um dado momento. O que, no entanto, transparece desses dados é uma clara mudança de patamar na mobilização que corresponde a determinados momentos da conjuntura política. Assim, as associações surgiram no ambiente de discussão da abolição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850. Patinaram na média de menos que uma associação por ano até 1868. Em 1869, quando se dava a discussão sobre a emancipação do ventre da mulher escrava no contexto da guerra do Paraguai e da pós-abolição nos Estados Unidos, houve um salto de patamar na quantidade de associações fundadas. Esse número, entretanto, minguou nos anos seguintes, até 1879, quando voltou a subir. Esse minguar parece corroborar a tese já defendida por alguns abolicionistas e corroborada por historiadores de hoje de que a Lei do Ventre Livre apaziguou o que poderia ter sido um incipiente movimento abolicionista no Brasil. A fundação de 10 associações em 1880 indica, claramente, a propagação do movimento abolicionista, e não mais apenas pela emancipação por ações individuais, de caráter privado ou associativo, dentro dos parâmetros definidos pela lei de 28 de setembro de 1871. Em 1883, como se leu acima, o movimento abolicionista simplesmente explodiu, com a fundação de mais de uma centena associações.

Tornando-se livres e Flores, voto e balas são, em certa medida, obras complementares; a primeira enfatizando as lutas populares de libertos e escravos, a segunda, o movimento abolicionista como movimento social de caráter político. Essa é, no entanto, uma complementaridade por justaposição. Importante, sem dúvida, mas que ainda não compõe uma narrativa que mostre como, a partir de quando principalmente e em que medida as resistências e lutas escravas, o movimento social abolicionista e o movimento político se interpenetraram. A partir de perspectivas que, em larga medida, isolam essas dimensões, os dois livros propõem-se a realizar uma interpretação da Abolição. De forma mais explícita e integrada no caso de Flores, votos e balas, obra autoral, e como norte interpretativo mais geral, que guiou a organização do trabalho e a escolha dos autores em Tornando-se livres. Nesse sentido, são um grande passo na direção de ampliar as discussões sobre o significado da Abolição. As críticas aqui expostas não apontam falhas nas obras consideradas; são críticas de interpretação. Dessa forma, vêm no sentido de enriquecer o debate que Flores, votos e balas e Tornando-se livres, em boa hora, reabrem.

1Essa escolha não implica em qualquer juízo de valor sobre a qualidade dos capítulos omitidos, apenas a avaliação, evidentemente sempre sujeita a contestações, de que esses capítulos são menos sujeitos à comparação aqui proposta entre as duas obras.

Ricardo Salles – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: [email protected].

As quatro partes do mundo – GRUZINSKI (RH-USP)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Tradução de , Mourão, Cleonice Paes Barreto; Santiago, Consuelo Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. Resenha de: VELLOSO, Gustavo. O tempo e o mundo: defesa de uma história planetária. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.

A edição brasileira do livro As quatro partes do mundo: história de uma mundialização (no original: Les quatre parties du monde: histoire d’une mondialisation) do historiador francês Serge Gruzinski, por associação da Editora UFMG com a Edusp, chega em boa hora. A aceleração do fluxo de pessoas, mercadorias e informações em um contexto de crise sistêmica do capitalismo, o surgimento de novas tensões políticas em fronteiras nacionais de todo o mundo, bem como a austeridade das políticas de imigração nos países centrais (e os diferentes tipos de reação a elas) são fenômenos que têm exigido dos historiadores novos esclarecimentos sobre a dinâmica das transformações originadas mundialmente no contexto das navegações marítimas do século XVI e ainda hoje processadas. A obra de Gruzinski representa um passo significativo nessa direção.

I

A mundialização a que se refere o subtítulo é aquela associada ao poderio da monarquia ibérica – expressão empregada pelo autor sempre na forma singular, realçando a época de unidade das coroas portuguesa e espanhola, entre os anos 1580 e 1640. Todavia, sua análise não se limita aos quadros cronológicos dessa união, pois mobiliza materiais e informações que dizem respeito a outros anos, incluindo anos recentes e contemporâneos à primeira edição do texto (2004). Gruzinski principia, em seu prólogo, chamando atenção para a repercussão que houve da notícia do ataque às torres gêmeas norte-americanas, em 2001, em um restaurante situado em Buenos Aires, cujo garçom lamentou não ter apostado na combinação numérica referente àquele fato, e nas ruas de Belém do Pará, onde a multidão local transformou sua tradicional procissão à Virgem de Nazaré em um verdadeiro protesto contra o atentado. E encerra o livro, em epílogo, problematizando a ideologia contida nas produções cinematográficas da globalização hollywoodiana. Com isso, destaca a multiplicidade e a sincronia dos diferentes tempos históricos, as mestiçagens e a espontaneidade das reações travadas contra as dominações mundiais de ontem e de hoje.

O autor cuida, no entanto, para que o leitor não identifique na mundialização ibérica a origem imediata da mundialização americana, pois se trataria antes de um antecedente remoto. A razão do paralelo consiste em “mostrar que a história permanece uma maravilhosa caixa de ferramentas para compreender o que está em jogo, há vários séculos, entre ocidentalização, mestiçagem e mundialização” (p. 23). Em outras palavras, a história da monarquia ibérica serve-nos como um admirável “teatro de observação” (p. 45) do mundo presente. Comprometido criticamente com o seu próprio tempo, recusando instrumentalizar a disciplina histórica apenas para a mera fruição erudita, Gruzinski não deixa por isso de respeitar as particularidades e a historicidade do seu objeto principal, isto é, o estreitamento dos laços entre as “quatro partes do mundo”, operado sob o domínio da monarquia católica durante os séculos XVI e XVII.

II

A obra se divide em quatro partes. Na primeira (“A mundialização ibérica”, capítulos 1 a 3), o autor precisa os contornos da categoria “mundialização”, em uma conceituação intimamente associada a uma certa noção de “modernidade”. No seu entendimento, “mundialização” se refere à escala planetária dos horizontes de atuação e às interconexões humanas, materiais e simbólicas que se construíram sob o marco da dominação colonial da monarquia católica nos continentes europeu, africano, asiático e americano. A modernidade desse processo consiste no fato de que teria então aflorado nos diferentes agentes históricos “um estado de espírito, uma sensibilidade, um saber sobre o mundo nascidos da confrontação de uma dominação de visão planetária com outras sociedades e outras civilizações” (p. 32). Uma modernidade marcada pela geração de mediadores sociais e espaços intermediários de convergência do “local” com o “global”, além de choques culturais, dominação, adaptações, mestiçagem e resistências.

A repercussão, no México, de notícias como a da morte de um rei francês em 1610, o interesse de um escritor mestiço da Nova Espanha pelas coisas do Japão, os deslocamentos de homens e mulheres pelos mares, a busca e o translado de relíquias provenientes dos mais exóticos lugares, a difusão das línguas europeias, a circulação transoceânica de livros que muitas vezes propagandeavam saberes adquiridos por viajantes nas fronteiras do mercado mundial, o alargamento dos limites geográficos, o compartilhamento global de novos hábitos e formas de consumo: eis os indícios daquilo que Gruzinski caracterizou como “mobilização”. Esse conceito, emprestado do filósofo alemão Peter Sloterdijk, permite ao autor superar o caráter mecânico e eurocêntrico do vocábulo “expansão”, à medida que considera, além do mero deslocamento territorial, a expressão dos movimentos subjetivos, entusiasmos e precipitações de seres humanos, coisas materiais e saberes cambiados entre os hemisférios.

Na segunda parte do livro (“A cadeia dos mundos”, capítulos 4 a 6) encontramos o exame detido e aprofundado das conexões entre os continentes, bem como os choques e o caráter mestiço das formações sociais e culturais resultantes daquele movimento. Focalizando inicialmente a Cidade do México – “onde se modelam os liames entre as quatro partes do mundo”, cenário privilegiado “de coexistência, de afrontamentos e de mestiçagens” (p. 99) -, o autor realiza uma breve incursão sobre o mundo do trabalho para enfatizar o papel da tradição artesanal indígena no favorecimento da absorção pelos nativos dos ofícios europeus. Em seguida, narra a mestiçagem linguística operada no interior dos obrajes e dos ateliês, graças à atuação de mediadores sociais como espanhóis falantes do náuatle, religiosos, elites indígenas hispanizadas, mestiços e índios trabalhadores manuais. A heterogeneidade étnica e a porosidade social não foram capazes de evitar, no entanto, as “vias tortuosas” da mudança. Ora, à maior parte dos nativos foram vedados os meios de participação na estrutura monárquica que não fosse pelo oferecimento de força de trabalho. E a nova plebe constituída no interior das grandes cidades se envolveu, por vezes, em revoltas e motins de grande dimensão, contra o fisco e/ou mudanças na organização da monarquia.

No quadro da mundialização/mobilização ibérica, argumenta Gruzinski, a visão de mundo que orienta os esforços humanos vai progressivamente perdendo sua configuração “estritamente europeia para se tornar ocidental” (p. 126). Em outras palavras, a Europa deixa de ser o núcleo exclusivo da monarquia para se somar (na condição de dominante, não resta dúvida) a tantos outros centros globais então em franco crescimento: “[Pode-se] perguntar se a capacidade de multiplicar as centralidades meio reais, meio virtuais não é uma das molas da mundialização ibérica” (p. 127). Cidade do México, Lima, Potosí e Goa aparecem como espacialidades mestiças que sintetizam em seus interiores a totalidade dos nexos que unificam o planeta debaixo do poder dos reis Felipes, pois abrigam redes humanas, mercantis, de notícias, livros e espetáculos. Nela se evocam lembranças da África, fascinam-se pelos objetos e fábulas da Ásia, colam-se imaginários provenientes de toda parte, enfim, entrelaçam-se perspectivas de mundialização com referenciais advindos dos mais diferentes ideários pré-hispânicos.

Como uma ponte que atravessa de uma única vez todos os oceanos, o caráter compósito dessas ligações era “ao mesmo tempo físico, material, psicológico e conceitual” (p. 156). Instituições, práticas e crenças foram transferidas juntamente aos seus representantes para materializar o catolicismo no mundo extra europeu, mas não sem antes sofrer transformações e ajustes conforme as especificidades locais de cada região. Histórias, trajetórias, ritmos de vida, memórias e riquezas, à medida que sincronizados, fizeram-se modernos.

Os agentes privilegiados da mundialização são objeto da terceira parte da obra (“As coisas do mundo”, capítulos 7 a 11). Homens como o médico Garcia de Orta e o dominicano Gaspar da Cruz, ambos portugueses, funcionários da Igreja ou da Coroa, assim como administradores, militares, cosmógrafos, engenheiros e literatos, instrumentalizaram suas experiências vivenciadas em locais como Goa e Nova Espanha para cumprir objetivos ao mesmo tempo práticos e políticos. As informações e os conhecimentos feitos circular por esses hombres expertos, de um lado, serviam como denúncia da idolatria e dos maus costumes das diversas castas de gentio, e fortaleciam os poderes real e eclesiástico sobre as localidades fronteiriças. Unir os mundos, diz-nos o autor, era antes de mais nada “fazê-los comunicar” (p. 235). Inventariando as características das sociedades e da natureza (americanas, africanas e asiáticas), recolhendo informações sobre as culturas humanas, as condições geográficas, os animais, as plantas, as religiões e as medicinas locais, por exemplo, os saberes se convertiam em verdadeiras ferramentas de poder.

Com a autoridade dos escritores clássicos, ademais, os experts rivalizavam entre si pela defesa da credibilidade da própria experiência e se esforçavam para interpretar a diversidade das fontes, das escritas e das histórias indígenas com as quais deparavam. É certo que esse movimento demonstra ter existido um certo grau de receptividade frente aos “outros mundos”, mas havia limites quase nunca transpostos, expressos sobremaneira no tom crítico com o qual tais observadores se posicionavam diante daquelas outras realidades. Sua tarefa era dupla, “pois lhes é preciso tanto conectar-se com o passado autóctone, quanto com a história cristã e europeia” (p. 280). Eram, acima de tudo, servidores da monarquia, em cujo interior se situavam e para a qual dominação direcionavam primordialmente os seus esforços e a sua sempre enfatizada fidelidade. Especialmente quando se tratasse de elites católicas, à maneira de gente como Martín Ignacio de Loyola, Rodrigo de Vivero, Salvador Correia de Sá e Benevides e os poetas Bernardo de Balbuena e Luís de Camões.

Gruzinski delineia com perfeição as mestiçagens, acomodações e resistências indígenas travadas no contexto da colonização ibérica, trabalhando com a justa dosagem entre o apontamento desse tipo de fenômeno e o reconhecimento do processo de dominação mundial levado a cabo concretamente pela monarquia. Na verdade, trata-se para o autor de esferas indistintas, pois a perspectiva metodológica que adota é a da totalidade, distanciando-se da tendência historiográfica contemporânea para descrever “resistências” desconexas de processos históricos mais amplos, isto é, concretos ou totais. A quarta e última parte do livro (“A esfera de cristal”, capítulos 12 a 16), tem por princípio enfatizar os filtros e bloqueios aos cruzamentos, as impermeabilidades sociais da realidade observada e demonstrar que, afinal: “Toda mestiçagem tem limites” (p. 352). Os objetos nativos, quando absorvidos pelo universo europeu, modificavam-se para satisfazer o gosto e o interesse da sociedade europeia. A arte indígena, tornada cristã e/ou inserida nos circuitos modernos de valorização, era neutralizada e reelaborada com traços e formas de matriz europeia, transformando-se em arte ocidental. “A mundialização ibérica mestiça-se ocidentalizando-se, e ocidentaliza-se mestiçando-se” (p. 349). Os pintores europeus que viveram na Nova Espanha fizeram questão de destacar a fidelidade à tradição europeia em suas telas, assim como as elites urbanas (por vezes até mesmo as indígenas) procuraram convencer de que foram europeizadas por meio de suas produções, o que não excluiria uma certa apropriação criativa dos recursos locais. O latim, a gramática e os emblemas europeus teriam sido apenas pontualmente tocados pelas influências léxicas indígenas, ao menos no que tange àquele momento histórico particular. O aristotelismo – “a arma de uma fortaleza letrada que ataca em todas as direções” (p. 434) -percorreu os continentes e permaneceu grosso modo impenetrável pelas filosofias e sistemas de pensamento locais, por mais admiráveis que estes tenham parecido a determinados observadores estrangeiros.

A análise toda culmina ainda em uma nova demarcação conceitual, que consiste na distinção entre “globalização” e “ocidentalização”. Como uma “águia de duas cabeças”, a mundialização ibérica gestou e abraçou esses dois processos simultâneos, na prática indissociáveis, mas ainda assim com dimensões e escalas diferenciadas. De um lado, a globalização, “fundamentalmente política” (p. 426), diria respeito à projeção para o exterior dos instrumentos intelectuais e comunicativos europeus, ignorando as temporalidades sociais distintas e “cuidando para que nada de essencial fosse contaminado pelo exterior” (p. 425). De outro, a ocidentalização se manifestaria no caminho da dominação colonial propriamente dita, esta sim amplamente permeada tanto pela mestiçagem quanto pela aculturação.

III

O autor se posiciona favoravelmente à perspectiva das connected histories, conforme proposta pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. Na sua interpretação, “trata-se de apreender ou restabelecer as conexões surgidas entre os mundos e as sociedades, um pouco à maneira de um eletricista que viria reparar o que o tempo e os historiadores desuniram” (p. 45). E, uma vez assumida essa ótica, posiciona-se de maneira crítica frente às principais tendências historiográficas hoje vigentes. O pós-modernismo, ou “retóricas da alteridade”, para ele, ignora as continuidades e correspondências concretas entre os seres e as sociedades, e com isso se soma à chamada micro-história na sua incapacidade de alargamento dos horizontes de observação. A história comparada lhe parece reduzir-se às aproximações e ser excessivamente carregada de pressupostos vazios. Sobre a world history, apesar do importante legado que deixou para o olhar sobre a transposição dos oceanos, julga ser ainda permeada pelo etnocentrismo, sacrificando a profundidade das situações particulares e se mantendo demasiadamente presa aos horizontes próprios da Europa ocidental. A este defeito tampouco fugiriam os cultural studies, os subalternal studies e os postcolonial studies estadunidenses da década de 1980. Ao marxismo, não dedicou mais que uma tímida nota (p. 464, nota 97), ainda que simpática, apontando a existência de uma releitura de Marx aplicada ao fenômeno da mundialização. O alvo principal de Gruzinski, todavia, contra o qual direcionou com maior vigor o potencial crítico do seu estudo, é o reducionismo das histórias nacionais em suas diferentes manifestações. Contra estas, não hesitou em reconhecer, ademais, a contribuição de pesquisadores de renome, como Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein, cujas obras abriram as vias para o reconhecimento de que a história da época moderna é a história das múltiplas conexões entre o local e o global; não é uma história nacional, mas planetária.

Os méritos de “As quatro partes do mundo” ultrapassam as próprias conclusões do livro e o fato de se travar ali um debate historiográfico amplo. Sua maneira de dispor e mobilizar as fontes primárias é igualmente digna de reconhecimento. Gruzinski soube equilibrar com perfeição e harmonia, de um lado, a erudição empírica e, de outro, o ímpeto pelo rigor conceitual e pelas interpretações de maior alcance. Apresenta um olhar permanentemente atento ao detalhamento dos materiais examinados, que comportam desde crônicas, relações e outros testemunhos escritos, até a poesia, os quadros, tratados, objetos de museu, códices, planos, painéis, biombos, inscrições, vasos, gravuras e afrescos. De leitura fluente e agradável, a edição presente conta ainda com a reprodução de uma iconografia cuidadosamente selecionada e distribuída entre os capítulos, grande parte dela problematizada e discutida no próprio texto onde se coloca.

Além disso, do ponto de vista metodológico, o leitor encontrará uma visão rica de processo histórico e uma sensibilidade extraordinária para o conflito. Sua narrativa não é a de uma estrutura estática, mas sim de uma totalidade em permanente formação e mudança, em processo contínuo (mas não linear), o que fica ilustrado na repetição do sufixo indicativo de ação nos seus mais importantes conceitos e categorias: mobilização, mundialização, globalização, ocidentalização. A continuidade dos referidos processos não exclui que eles fossem também, ao mesmo tempo, pluridimensionais e repletos de tensões. Assim, o fenômeno da mestiçagem do qual dão conta os numerosos eventos levantados por Gruzinski (tocantes a cada um dos quatro continentes) não seria menos que a ebulição dos complexos antagonismos entre expectativas, lugares e papéis sociais gerados no seio da mundialização ibérica. Expressava, pois, não qualquer tipo de harmonia ou conformidade social entre dominados e dominadores, mas as contradições inerentes ao processo mesmo de dominação, que envolviam toda a variedade de agentes governados pela monarquia, fossem eles europeus, nativos ou crioulos.

É verdade, porém, que de uma obra que se apresenta como a “história de uma mundialização” poderíamos esperar uma incursão mais aprofundada sobre determinados domínios que parecem-nos tão fundamentais para a compreensão da época quanto aqueles dos quais tratou Gruzinski com efetivo zelo. Por exemplo, não há mais que breves pinceladas sobre alguns dos diferentes regimes de exploração do trabalho compulsório em maior ou menor medida relacionados àquela mundialização (escravidão, encomiendamita, administração particular, repartimiento, assalariamento, “segunda servidão” etc.). Ou então se poderia alegar que, entre todas as áreas americanas tocadas pela monarquia dos Felipes, o autor claramente privilegiou a Nova Espanha em suas remissões (ofuscando territórios de menor relevância econômica para os reis ibéricos, onde as conexões globais eram decerto menos visíveis), o que pode ser explicado pela maior familiaridade com os materiais empíricos que lhe correspondem, dada sua experiência anterior com as investigações daquela região.

Mas o que torna as teses de Gruzinski provocantes é justamente o fato de o autor tê-las apresentado como propostas abertas, porventura incompletas, dispostas à complementação e ao aperfeiçoamento. Abertura esta que, por fim, se estende para o âmbito do tempo imediato, sendo impressionante a atualidade do livro (editado primeiramente em 2004, já o dissemos) em um estágio da globalização em que, se ainda não presenciamos um novo ataque a edifícios norte-americanos, temos sido alarmados diante de explosões e fuzilamentos em lugares como a sede de um jornal, um teatro e as proximidades de um estádio de futebol, todos na França. Para não falar, obviamente, nas irrupções menos midiáticas sobre Gaza e Iêmen, sobre os territórios dos Mapuche e dos Guarani Kaiowá ou, quem sabe, sobre a Rocinha e o Morro do Alemão.

Gustavo Velloso – Mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. E-mails: [email protected]; [email protected].

Assim na terra como no céu: … Paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Alta Idade Média ibérica (séculos IV-VIII) – BASTOS (Topoi)

BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na terra como no céu… Paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Alta Idade Média ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo: EdUSP, 2013. 264 p. Resenha de: COELHO, Maria Filomena Pinto da Costa. Assim na terra como no céu. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Eis um livro que tem uma grande contribuição a dar: é um belo exercício de história. Seu autor, Mário Jorge da Motta Bastos, é professor de História Medieval na Universidade Federal Fluminense e desenvolveu sua trajetória como pesquisador sobre a Idade Média ibérica. Mas, para este historiador, mais importante do que o tempo e o espaço sobre os quais se debruça é a perspectiva da qual se parte. Neste sentido, ele deixa as coisas claras desde o início: a história só é possível a partir do presente, como um problema que se coloca ao passado, no intuito de dar sentido à vida dos homens e mulheres em sociedade. Mário Jorge Bastos aparece em cada palavra que escreve – não apenas nas entrelinhas -, assumindo o protagonismo do texto, e fazendo jus à tradição marxista, com a qual se alinha. Portanto, trata-se de um livro de história que expressa com muita clareza de onde se parte, os caminhos que se pretende percorrer e de que forma se fará esse percurso.

Nos tempos que correm, em que nos vamos acostumando com o “mais ou menos”, não deve passar despercebido o trabalho acadêmico realizado com seriedade e competência e, no que tange à disciplina da História, dentro de parâmetros que permitem acompanhar a construção do objeto de estudo, as interpretações que se tecem sobre o passado e, finalmente, as conclusões a que se chega. Creio que é somente sobre essa base que o trabalho do historiador pode, ou não, ser considerado (julgado?) legítimo. Assim, o livro é um exercício de história, cuja extrema transparência permite ao leitor acessar de forma segura os fundamentos teóricos e os problemas que se entrelaçam no texto e que conduziram o autor em sua leitura dos documentos.

No intuito de prestar tributo à franqueza acadêmica que Mário Jorge Bastos derrama em sua obra, devo dizer que não sou marxista. Entretanto, li Assim na terra como no céu… com o prazer do historiador que encontra um bom livro de história. Na forma como o texto é redigido, todos os aspectos são importantes: desde os desafios de ser marxista no mundo de hoje – com todas as idiossincrasias que a palavra encerra -, passando pelas dificuldades que o historiador enfrenta ao sistematizar de forma compreensível aquilo que desejaria que fosse apreendido por um só golpe de vista, até o hermetismo de algumas fontes primárias. O autor põe tudo a descoberto.

Assim na terra como no céu… parte de um problema que a historiografia dedicada à alta Idade Média do Ocidente entende como fundamental: a conversão ao cristianismo. Portanto, trata-se de um tema que já foi esmiuçado por muitos autores, apoiado por um leque de explicações e de abordagens igualmente vasto. A proposta de Mário Jorge Bastos desenvolve-se em seis capítulos: 1) O processo de senhorialização da sociedade ibérica; 2) A Igreja no quadro da sociedade senhorial; 3) A revelação divina; 4) Continuidade ou transformação?; 5) Caráter, relações e campos de intervenção do poder divino; 6) Os santos e a liturgia. É por meio deste plano que o autor pretende explicar de que maneira se entrelaçam paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Península Ibérica, entre os séculos IV e VIII.

Diferentemente de muitas das interpretações já clássicas da historiografia que versam sobre a temática, o livro apoia-se numa premissa basilar: o estudo do passado só faz sentido se ancorado na vida em sociedade. Portanto, para que a “conversão ao cristianismo” alcance o patamar de um problema de história, na sua totalidade, precisa ser entendido em sociedade, revelando, de uma só vez, suas implicações culturais, políticas e econômicas. São as transformações ocorridas nas relações sociais que explicam a conversão e as características de que ela se reveste. De forma mais ampla,

Qualquer tentativa de enfrentamento, prático e/ou teórico, do “núcleo duro” das abstrações religiosas deve orientar-se pela apreensão da lógica social em meio à qual essas se inscrevem, considerando-se a articulação das abstrações com as relações sociais e os modos de produção historicamente específicos. (p. 19)

Fazer história é desvendar a essência da articulação das globalidades sociais historicamente dadas, nível fundamental de seu conhecimento porque capaz de explicar, num mesmo movimento, o funcionamento real da sociedade e a aparência que a mesma assume para seus integrantes (…), porque permite inscrever a religião nos fluxos históricos globais nos quais a mesma se insere, e não como um elemento secundário, reflexivo ou “epifenomênico” em relação aos processos mais essenciais, porque “mais materiais”, mas como um elemento primário essencial à articulação das sociedades, em especial daquelas historicamente anteriores ao advento do capitalismo. (p. 20)

De um só golpe, Mário Jorge Bastos critica “gregos e troianos”. A religião não pode ser entendida pelos historiadores numa dimensão mágica, capaz de por si mudar a sociedade, nem tampouco como uma manifestação de somenos importância, mais adequada aos estudos sobre a cultura. Ambas as posições, tão comuns na historiografia, e que travaram ruidosas batalhas acadêmicas, fazem exatamente a mesma coisa: retiram a religião da história. O desafio de trazer a religião para dentro da história é complexo, uma vez que, para além de exigir o estudo e interpretação da própria sociedade em análise, supõe ainda o diálogo crítico com os grandes temas da síntese historiográfica, como é o caso da transição/passagem da Antiguidade à Idade Média, na qual os historiadores entendem que a conversão ao cristianismo teve um papel fundamental. Neste caso, o livro apresenta já na introdução a maneira como se pretende enfrentar o problema, além de resumir brevemente as principais correntes e suas implicações. A velha dicotomia “cristianismo × paganismo” ainda é considerada pelo autor como um aspecto importante a ser discutido, uma vez que as soluções propostas nos últimos tempos pelos historiadores não ajudam a explicar a religião em sociedade (“no âmago das relações sociais”). Ora se afirma a vitória do cristianismo, ora a resistência do paganismo, numa lógica de forças monolíticas que se enfrentam, e cujos resultados são interpretados às vezes como virtude, às vezes como desvio. Mensuram-se, até mesmo, os níveis de paganismo e de cristianismo!

A saída, para o autor, encontra-se na possibilidade de atribuir à cultura a dimensão de amálgama, como resultado do sentido que a sociedade constrói sobre suas mudanças na história. Assim, reconhece-se uma aproximação às propostas do historiador inglês marxista Edward P. Thompson, para quem a cultura representava um nível de análise fundamental. Daí deriva também a defesa da utilização do conceito de classe para se estudar a sociedade ibérica, uma vez que não se trataria de “uma categoria estática, o que supõe uma derivação mecânica de classes que surgiriam, imediatamente, das próprias relações de produção, desconsiderando-se as relações sociais de mais amplo teor nas quais estas se inserem” (p. 46). Seguindo a Thompson, consistiria em compreender que “as classes ‘acontecem’ ao viverem, os homens e as mulheres, suas relações de produção, e ao experimentarem suas situações determinantes, dentro de um conjunto de relações sociais com uma cultura e expectativas herdadas, e ao modelarem estas expe­riências em formas culturais” (p. 46).

Para atingir o objetivo proposto, Mário Jorge Bastos parte, então, da sociedade ibérica. Em seus primórdios, identifica as transformações cruciais que explicam o sentido que o cristianismo alcançou, encontrando-as na constituição da família. Com base num corpus documental rico e variado, e já muito trilhado pelos historiadores, o autor desvela as mudanças que se operaram no seio das famílias senhoriais e camponesas, cujo resultado mais evidente foi a nucleação, em detrimento do modelo da família extensa, acompanhada de um sistema de inter-relações sociais verticais do parentesco, que coloca a aristocracia no vértice dessa relação.

A Igreja, como instituição basilar do período, somente poderá ser compreendida a partir do papel que aquela aristocracia assume, sobretudo ao nível local, na reelaboração social dessas estruturas de parentesco. Portanto, a Igreja, com seu inegável crescimento, é fruto dessa aristocracia e do campesinato, e não uma espécie de guardiã da virtude institucional, que a duras penas sobrevive à ignorância da sociedade e das superstições pagãs. O título do segundo capítulo, “A igreja no quadro da sociedade senhorial”, não deixa dúvidas quanto à posição do autor com relação ao imponente legado jurídico que essa instituição nos deixou para o período visigodo, e que costuma influenciar os historiadores:

É totalmente outra a perspectiva que assumo, tendo em vista que o objeto deste estudo não é a doutrina jurídica da igreja, mas são as práticas e relações sociais efetivas que estruturaram a instituição e a sociedade global na qual a mesma estava inserida. Nesse sentido, a recorrência da afirmação, o ajuste e a ampliação daquele conjunto de normas expressam as tensões e os conflitos característicos do funcionamento contraditório da realidade social ibérica do período, o que explica a incapacidade dos legisladores de promover a sua plena resolução. (p. 104-105)

No que se refere aos níveis inferiores da sociedade, a Igreja faz-se representar nos párocos, cujas condições jurídicas não diferem muito daquelas que atam os camponeses aos senhores. São, portanto, clérigos dependentes no âmbito do senhorio. Neste sentido, a conclusão do autor aponta para o papel primordial que a Igreja alcançou na qualidade de fruto mais visível da sociedade senhorial.

Como dito, as fontes documentais que embasam o livro são aquelas já conhecidas pela historiografia. No quarto capítulo, Mário Jorge Bastos apoia-se num desses famosos documentos, De corretione rusticorum, de Martinho de Braga, no intuito de desvelar os eixos centrais da argumentação cristã, sem deixar de destacar as formas como a historiografia costuma interpretar esse tipo de discurso. Com relação ao primeiro aspecto, é importante compreender que a ortodoxia era atravessada por uma infinidade de interpretações e de disputas eclesiásticas em torno da verdade. Os concílios são reveladores desse ambiente de multiplicidades teológicas, que devem ser explicados também na perspectiva da luta pelo reconhecimento de uma única autoridade que exercesse o poder, e que preservasse a Igreja da total entropia que os particularismos supunham. Assim, é imprescindível que o historiador não perca de vista a fragilidade da fronteira entre heresia e ortodoxia, que se estabelecia ao sabor dessas disputas. O autor sugere que é justamente sobre essa elasticidade que se vai construindo a unidade da Igreja, muito embora se deva afastar completamente aquela surrada ideia de que a instituição virtuosa cede, de forma inteligente e calculada, frente à ignorância e ao paganismo para não perder demasiado terreno, ou, então, aquela outra interpretação de que a Igreja se desvirtua, devido à “paganização” de seus membros. A mensagem mais importante de Martinho de Braga, em seu sermão, incide sobre a forma (súmula) como “vincula os crentes ao projeto global de ordenação social deliberado pelas elites clericais” (p. 123), revelada pela divindade. Ignorar a vontade de Deus é o caminho para a perdição, que só pode ser evitado por meio da submissão àqueles que poderão conduzir à verdade: o clero ortodoxo. Somente este pode identificar o que é sagrado, bem como as práticas corretas de devoção, as quais necessariamente devem ter a sua intermediação. Caso contrário, trata-se de manifestações demoníacas e pagãs que devem ser suprimidas, sob a pena de condenação eterna. A estratégia do discurso de Martinho, para impossibilitar que essas manifestações possam ser vistas como parte de um “sistema religioso concorrente”, é retirar-lhes qualquer conteúdo sagrado, e apresentá-las como práticas laicas e históricas. Trata-se, portanto, de uma proposta religiosa que quer abarcar a realidade total e colocar a Igreja como a única capaz de realizar plenamente a história humana, de acordo com os desígnios de Deus, e a elite clerical como a autoridade cognitiva cristã que interpreta corretamente o mundo.

Do que se disse até aqui, depreende-se um projeto político de hegemonia. Este conceito será apresentado pelo autor de maneira a ressaltar a necessidade de entendê-lo numa perspectiva dinâmica, de constantes transformações, coisa que de resto fez a elite cristã ibérica. Se para os historiadores parece importante decidir se a época era mais de continuidades ou de rupturas, para esses medievais era na tradição que se ancorava o movimento da história. As mudanças que eles propunham eram “uma versão do passado que deve ligar-se ao presente e ratificá-lo, inclusive pelas transformações que se impõem à sua plena adequação” (p. 138). A hegemonia assenta-se no passado, na tradição, e mesmo que o historiador decida tratar-se de ‘reminiscência/sobrevivência’, ela é vivida com o significado que o presente lhe atribui. Ao mesmo tempo, é preciso não esquecer que a hegemonia eficaz precisa contar com o ‘consentimento dos dominados’ – conceito de Maurice Godelier -, o qual se obtém graças à constante reafirmação dos sentidos do poder, que se assenta na “partilha das representações do mundo” (p. 152). Ao desenvolver os argumentos, Mário Jorge Bastos deixa bastante clara a inutilidade das medições sobre o que há de continuidade ou de ruptura; o importante é que o historiador não deixe de explicar de que forma esses aspectos se amalgamam no cotidiano da sociedade. A chave reside em ampliar os horizontes do que se entende por economia na Idade Média, o que permitirá concluir que “toda naturalização das relações sociais de produção desemboca, necessariamente, em sua sobrenaturalização” (p. 158). Portanto, o fenômeno alcança senhores e camponeses que elaboram e dão sentido às relações que estabelecem entre si e com a natureza, por meio da religião. Tal proposta afasta-se daquelas que reduzem a religião ao nível das ideias, como se fosse possível partir unicamente do pensamento para desvendar seu significado. Apoiado em Marx, o autor sublinha que “a religião remete ao quadro geral da estrutura social e a processos sociais concretos (…) isto é, a uma apreensão global da sociedade, uma vez que constitui e expressa suas hierarquias e desigualdades, imiscuindo-se aos processos de dominação e resistência” (p. 164).

A proposta que o cristianismo oferece à sociedade nos primeiros séculos da Idade Média é englobante, de acordo com a máxima de que o poder divino tudo abarca. Tal capacidade de intervenção de Deus na vida dos homens é visível nos escritos de Ambrósio, Agostinho, Isidoro de Sevilha, Aurélio Prudêncio, Ildefonso de Toledo e outros autores a quem recorre Mário Jorge Bastos para fundamentar sua reflexão. Assim, as relações sociais são também uma preocupação da divindade, que se manifesta por meio da sacralização dos laços de dependência, da fidelidade e dos vínculos pessoais. A retórica do cristianismo revela uma profunda interligação entre o plano terrestre e o celestial, não como simples estratégia de legitimação da ordem social, mas como resultado da profunda imbricação entre as relações sociais de produção e o plano religioso. A própria monarquia visigoda constrói-se, como prática e discurso, sobre a concepção do ungido de Deus, senhor de terras e de homens, coisa que não o diferenciava qualitativamente do tipo de poder que era exercido pela aristocracia.

A difusão dos valores sociais da aristocracia cristã assume especial visibilidade com o culto aos santos e às suas relíquias. Criam-se ambientes onde se materializa o modelo e difundem-se narrativas. Por um lado, os lugares de culto povoam-se de provas que avalizam a existência histórica dessas virtudes (os santos) e as hagiografias encarregam-se de disseminar a sua fama. Os mosteiros e as igrejas são os lugares ideais para esse fim, aos quais a própria aristocracia se associa, por meio das fundações, da participação direta no corpo eclesiástico, e dos enterramentos, que compartilham o mesmo espaço físico dos santos. Ao analisar as famosas hagiografias ibéricas do período, o autor mostra como o discurso que lhes dá sentido assenta-se nas relações de patrocínio, fidelidade e dependência, bem como na afirmação da Igreja como a única ordo capaz de guiar os cristãos à salvação. Da mesma forma, os rituais propiciatórios (oferendas) afirmam e revitalizam a “concepção senhorial das relações sociais fundadas na munificência, na liberalidade característica da aristocracia, mas que atuam em prol do fortalecimento de seu prestígio social, de seu poder e, em última análise, de capacidade de impor-se aos seus dependentes” (p. 229). Oferece-se ao senhor (Deus) não porque ele precise, mas para que ele restitua os dons, abençoados e multiplicados.

Mas, ficaria ainda uma pergunta: como interpretar a pertinácia daquilo que a autoridade classificava como heresia?

Ora, a contumácia manifesta nessas concepções e práticas dissonantes, renitentes e heterodoxas parece-nos revelar um processo muito mais complexo, em seu curso, do que o da suposta unificação religiosa atingida com a “conversão do Ocidente ao cristianismo”, complexidade intimamente articulada às contradições sociais intrínsecas à implantação da sociedade senhorial no período, e manifestação vigorosa dos conflitos que matizaram todo seu processo! (p. 233)

Enfim, Mário Jorge Bastos mostrou que assim como as coisas se organizavam na terra, refletiam-se no céu. Para tanto, foi necessário entender que as relações de produção organizavam-se de maneira complexa, sob formas jurídicas, políticas e culturais específicas (tipos de dominação, de coerção, de propriedade e de organização social), presentes desde o início do processo como parte constitutiva e primordial. Portanto, não se trata de apresentar essa dimensão como secundária, ou mero reflexo, o que se afasta completamente da ideia de que a base econômica se reflete mecanicamente na superestrutura. Um exercício de história que permite repensar as maneiras como a historiografia tem explicado a “conversão do Ocidente ao cristianismo”, bem como acompanhar a renovação da abordagem marxista da História. Mas, diante das dificuldades que a Academia tem para conviver com a pluralidade, talvez o livro seja marxista demais para gregos e marxista de menos para troianos…

Maria Filomena Pinto da Costa Coelho – Doutora em História Medieval pela Universidad Complutense de Madri (Espanha) e professora da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected].

Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII) – ANDRADE FILHO (H-Unesp)

ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012, p. 256. Resenha de: ESTEVES, Germano Miguel Favaro. História [Unesp] v.33 no.1 Franca Jan./June 2014.

Nos últimos decênios, mais precisamente a partir dos anos oitenta, vimos o aumento e consolidação dos estudos relativos à antiguidade e ao medievo no Brasil. Temas que eram tão distantes de nossos pesquisadores, agora eles tomam corpo em grupos de estudos, congressos e encontros internacionais, na formação de profissionais antiquistas e medievalistas que compõem o quadro docente das universidades brasileiras.

Nesse percurso se insere a produção de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor de História Medieval na UNESP. Seu livro, resultado de seu doutoramento na USP em 1997, revisto e agora publicado pela Editora da USP, traz uma significativa contribuição, ao lado de artigos e capítulos de livros que o próprio autor vinha publicando, para o debate de uma estimulante temática: a íntima relação entre religião e poder.

Já na introdução, Andrade Filho, com uma linguagem clara, trata da progressiva aproximação entre as estruturas do reino visigodo e as da Igreja, o que resultaria na elaboração de uma teoria da realeza, em que o rei é considerado o “ungido do Senhor”. Havia, portanto, um profundo sentido teocrático da realeza, que encontraria sua legitimidade na sanção divina à autoridade do rei. A monarquia, assim, revestia-se de um caráter sobrenatural fornecido e legitimado pela Igreja.

Como ferramentas para sua análise, o autor faz uso de uma gama de fontes que englobam hagiografias, leis civis e conciliares e um corpus de textos litúrgicos, dialogando diretamente com várias pesquisas sobre o reino visigodo. Esse corpus documental é utilizado de forma dinâmica para explicar a religiosidade e a montagem da monarquia católica com a conversão de Recaredo.

No primeiro capítulo da obra, intitulado “Uma Hispânia Convertida?”, a indagação logo no caput mostra-nos os problemas suscitados pela cristianização da Península Ibérica na Antiguidade Tardia. O paganismo explicitado por meio de cultos e práticas religiosas que, segundo Andrade Filho, são “difíceis de desenraizar” mostra a oposição entre o mundo urbano e o mundo rural. Este último representava um desafio maior para a penetração do Cristianismo; porém, após a conversão/cristianização, a verdadeira ortodoxia católica não teria grandes problemas no combate às heresias, era o ambiente em que existia maior severidade dos cristãos contra o paganismo. Em contrapartida, o mundo urbano, no que tange à religião, é o lugar do bispado, que se torna, em muitos casos, um mecanismo de ascensão social em que o grupo nobiliárquico dominante, a elite hispano-romana e visigoda, disputa esse tão almejado posto de poder.

No segundo capítulo da obra, intitulado “Cultura e Religião no Reino de Toledo”, o autor trata diretamente das consequências da conversão de Recaredo e da formação da Societas Fidelium Christi, quando supõe a composição do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma só fé e regido por uma cabeça cuja autoridade provinha do próprio Deus, e no qual os segmentos eclesiásticos tentavam disseminar uma nova concepção do sagrado, centrada em uma pretensa distinção entre os fatos religiosos e não religiosos. Porém, o mundo rural, pouco tocado pelo cristianismo católico, continuava a se alimentar dos velhos fundos de crenças ancestrais, tornando-se um meio que exigia da Igreja e de seus clérigos um movimento inverso, “de cima para baixo”, na tentativa de reordenar a sociedade segundo as finalidades religiosas.

Por meio do debate entre historiografia e fontes primárias, o autor busca desde o Baixo Império Romano a justificativa para a montagem da “Societas Fidelium Christi“, centrada na questão da “analogia antropomórfica”, expressa em leis civis, cânones conciliares e outros textos da Hispânia visigótica. Nos procedimentos de cristianização impostos pelo clero à população pagã, articulavam-se diversas relações e interpenetrações entre a “religiosidade popular” e a “oficial”. O Cristianismo veiculava a ideia de que as práticas pagãs estavam sob o jugo dos espíritos do Mal, unindo-se de forma íntima a idolatria, a magia e a heresia, fato que oferece ao pesquisador um vasto campo de possibilidades para a análise de tais temas.

No capítulo seguinte, intitulado “Religiosidade ou Religiosidades?”, o autor ressalta o costume de chamar de paganismo as manifestações relativas à religiosidade popular e mostra as dificuldades de uma sociedade mista em relação à religiosidade pretendida. Instiga-nos a pensar sobre a profundidade alcançada pelo Cristianismo e sobre a efetiva conversão e/ou cristianização produzida no reino visigodo. Segundo Andrade Filho, “a expressão religiosidade popular produz os efeitos mais diversos” (p. 104), mostrando o problema de definição de tal expressão e apontando o caráter empobrecedor de uma análise que a aborda como se tratasse de meras “permanências ou resistências pagãs” dentro do contexto hispano-visigodo. O autor demonstra, ainda, como ocorre a relação entre as práticas cristãs e as pagãs em diversas fontes do período. As práticas pagãs eram condenadas em concílios, regras monásticas e hagiografias; entretanto, tal condenação resulta na assimilação de mitos e ritos pagãos pela teoria cristã, além da aquisição, por parte dos santos, de muitas características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Ou seja, produzem um Cristianismo que dá continuidade a crenças anteriores a ele. Dessa forma, a pergunta persiste: “haveria então, efetivamente, uma religiosidade popular?”.

No quarto capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, Andrade Filho toca em um dos pontos essenciais de sua tese: a formação da “analogia antropomórfica”. Para o autor, a conversão ao catolicismo torna-se fundamento ideológico do reino de Toledo, e o Cristianismo é o elemento de coesão social. A conversão de Recaredo seria interpretada como um novo princípio, e a aliança entre Deus e a monarquia seria expressa na junção “rex-regnum“, corroborada pelo rito da unção régia: aproximava-se o posto do monarca com o da realeza judaica e, assim, o legitimava. O Deus cristão seria, antes de tudo, um Deus de vitória, do qual se poderia solicitar o triunfo, pois o monarca era escolhido pela gratia Dei. Segundo o autor, “de forma mais ampla, todos os habitantes do reino, enquanto cristãos, faziam parte de um corpo maior: da Igreja, do corpus Christi” (p. 162).

Em seu quinto e último capítulo, “Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo”, Andrade Filho demonstra a necessidade de novas análises documentais, indica como o Cristianismo criou uma cosmologia que, apesar das críticas, englobou diversos componentes do esquema pagão e que seria adotada e desenvolvida por Isidoro de Sevilha, na concepção dualista do homem integral, dotado de corpo e alma. Segundo o autor, é com base nesse pensamento hierofânico que se articula a metáfora da analogia antropomórfica, com suas correspondentes ligações entre o reino/corpo e a Igreja/alma, os quais deveriam compor um todo, isto é, a sociedade cristã.

Com uma análise minuciosa das fontes literárias do período, principalmente os documentos hagiográficos, que expressam os momentos de angústia em que vivia a sociedade visigoda cristã, Andrade Filho toca a questão do monopólio da intermediação do sagrado por parte do ordo clericorum, relação complexa diante das realidades cotidianas, pois, se para o mundo culto a leitura do “corpo místico” parecia plausível como sinal divino, tal ideia seria difícil de ser assimilada pela “religiosidade popular”, que ficava restrita ao destino de sua gente, de sua terra e de seus bens locais. Sendo assim, configuram-se dois tipos de paganismo: aquele praticado pelas elites, oficial e essencialmente urbano, e o dos humildes do campo, reduzido em grande medida, pela Igreja da época e pela historiografia tradicional, à condição conjunto de meros hábitos e usos sociais.

Observa-se, portanto, que o autor instiga o leitor à medida que aborda o tema de forma aberta e com metodologias não convencionais aos textos. Além disso, o autor deixa de lado as teorias prontas e as análises superficiais, demonstrando grande sensibilidade com relação à produção de um material científico valioso para a interpretação da sociedade do período. Ao abordar a monarquia visigoda, mostra-nos como esta se comporta e se contempla em um espelho ideal, ao transcender o elemento institucional da Igreja e colocar a religiosidade e a monarquia em meio a um processo em que novos valores são incorporados. Enfim, a obra de Andrade Filho, de forma clara e ao mesmo tempo erudita, incita-nos a pensar as relações entre religião e religiosidade, o catolicismo pós-conversão e a religiosidade partilhada dentro e fora do reino visigodo de Toledo. Constitui, pois, valiosa contribuição para os estudos referentes ao reino visigodo e à Antiguidade Tardia.

Germano Miguel Favaro Esteves – Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da UNESP /Assis.

Mitos do Estado arcaico: evolução dos primeiros Estados, cidades e civilizações – YOUFFEE (H-Unesp)

YOFFEE. Norman. Mitos do Estado arcaicoevolução dos primeiros Estados, cidades e civilizações. Trad. Carlos Eugenio Marcondes de Moura. São Paulo: EDUSP, 2103, 352 p. Resenha de: ROCHA, Ivan ESperança. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

Apesar de utilizar um título infeliz, por se referir a mito com um significado negativo que denigre sua densidade e importância cultural, Yoffee compensa amplamente esse deslize com um texto que traz novas e importantes contribuições sobre a origem e formação do Estado e que leva em consideração não apenas suas próprias pesquisas, mas importantes discussões acadêmicas sobre o tema. Além disso, sua publicação preenche uma grande lacuna relativa a obras em língua portuguesa sobre história antiga oriental.

Professor de antropologia na Universidade de Michigan e especialista em arqueologia mesopotâmica, Yoffee propõe uma ruptura com uma perspectiva unilinear de compreensão do processo de surgimento e desenvolvimento dos Estados, cidades e civilizações, em defesa de vias multilineares e menos rígidas de abordagem. Se por um lado ele dispensa uma especial atenção às sociedades mesopotâmicas, encontra em outras experiências sociais, situadas inclusive no âmbito das Américas, dados comparativos que contribuem para alicerçar suas propostas interpretativas e para indicar diferentes tipos de estruturas de estado que nem sempre se pautam por padrões únicos de organização. Apresenta evidências de uma grande variedade de sistemas sociais e de tipos de poder entre os primeiros Estados.

Yoffee critica muitos arqueólogos – talvez com excessivo rigor – que, influenciados pelo darwinismo social, interpretaram o passado em termos evolutivos, considerando o Estado o ponto de chegada de um progressivo e controlado sistema de organização e aperfeiçoamento das sociedades antigas. Cabe lembrar que o darwinismo, aliado ao eugenismo, também causou sérios desvios na interpretação do desenvolvimento socioeconômico brasileiro no final do século XIX e início do século XX.

Este tipo de interpretação considera os Estados antigos regimes totalitários e estáveis, governados por déspotas que monopolizavam o fluxo de bens, serviços e informações, impondo-se ao resto da população, o que, segundo Yoffee, deixa de levar em conta outros papéis sociais para além daquele do líder, tais como os assumidos por escravos, soldados, sacerdotes e sacerdotisas, camponeses, prostitutas, mercadores e artesãos – que constituem atores importantes nos Estados mais antigos.

Apresenta como suporte à sua crítica as novas informações trazidas pela arqueologia sobre as sociedades antigas, que permitem rever a compreensão sobre as ascensões e colapsos ocorridos nos primeiros Estados. Como exemplo de mudanças no conhecimento do mundo antigo, diz que a influência do helenismo sobre a Mesopotâmia foi redimensionada; atualmente, defende-se que os gregos mais que helenizarem, orientalizaram-se em seu contato com os povos da região.

Yoffee não nega cabalmente a ideia de evolução social nem a contribuição dos neoevolucionistas para o estudo das mudanças sociais, mas o que rejeita nestes é um enfoque tendencioso que, segundo ele, se concentra em heróis ou numa elite dirigente como responsáveis únicos pelo planejamento e construção de monumentos e cidades, pela conquista e pela sua submissão inerte de seus vizinhos. Segundo Yoffee, a compreensão da evolução dos primeiros Estados exige uma reformulação de modelos restritivos e excludentes. Destaca que a pior consequência da visão neoevolucionária é considerar de segunda categoria as sociedades modernas que não são Estado.

Nos dois primeiros capítulos, Yoffee apresenta e discute as teorias que foram empregadas para compreender a evolução dos primeiros Estados e as mudanças ocorridas em relação a elas. No terceiro capítulo, descreve as diferentes trajetórias das cidades e Estados antigos; no quarto, o processo de simplificação das formas assumidas pelo poder nos primeiros Estados. No quinto, discute os papéis desempenhados pelas mulheres da Mesopotâmia; no sexto, avalia os processos de “colapso” que atingiram os primeiros Estados e civilizações; no sétimo, apresenta experiências de socialização alternativas à do Estado, indicando que a evolução social não foi uma via de mão única e que houve resistência e negociações em relação ao controle totalitário; no oitavo, discute as contribuições e limites da analogia e do método comparativo por parte dos arqueólogos. No último capítulo, entrando no campo de sua especialização, avalia os caminhos da evolução dos Estados e da civilização mesopotâmica.

A teoria neoevolucionária retratou o surgimento dos Estados como uma série de mudanças extremamente rápidas de um estágio de sociedade para outro. Essa teoria defende que em cada estágio todas as instituições sociais – política, economia, organização social, sistema de crenças – estavam de tal modo interligadas que a mudança tinha de ocorrer em todas elas ao mesmo tempo, no mesmo ritmo e na mesma direção. Segundo este modelo, as civilizações antigas teriam passado pelos mesmos estágios de desenvolvimento e declínio.

Yoffee defende a evolução dos antigos Estados como um processo de diferenciação social e de integração política, promovidos por meio de várias formas de poder e de diferentes relações no âmbito do poder. Ao longo da evolução dos primeiros Estados, diferentes grupos concorrem no processo de criação, transformação e domínio dos recursos simbólicos e cerimoniais que permitiam recombinações entre si na criação de novas coletividades sociais. Diz que se, de um lado, os primeiros Estados consistiam em um centro político com estrutura própria de liderança, com atividades especializadas, por outro, entravam em cena numerosos outros grupos que se distinguiam por mudanças contínuas em relação às necessidades e objetivos e à força e à debilidade do centro político. Deparamo-nos, assim, com diferentes formas de poder que não estão centradas apenas no governante principal.

Aproximando grupos étnicos da Mesopotâmia, de Teotihuacán, de Wari e Harappa, dentre outros, indica que seus líderes formaram elites, algumas vezes se tornaram funcionários dos Estados, mas também mantiveram um conjunto de poderes locais que ficavam fora do alcance dos Estados. Dentre esses líderes, destaca o papel dos anciãos das comunidades, que podiam convocar assembleias com forte poder de tomada de decisões, mas atuavam à margem da ação de reis e de suas cortes.

A evolução dos primeiros Estados e civilizações foi marcada pelo desenvolvimento de grupos sociais semiautônomos. Em cada um desses grupos havia patronos e clientes organizados em hierarquias, e lutas pelo poder se verificavam em seu interior e entre seus líderes. Os Estados surgiram como parte do processo no qual grupos sociais diferenciados e estratificados se recombinaram sob novos tipos de liderança centralizada.

Embora seu levantamento sobre cidades do Egito, América do Sul e Teotihuacán se refira a trajetórias históricas particulares daquelas regiões, ele também evidencia que, em cada região do mundo onde apareceram os primeiros Estados, as cidades coligiam e cristalizavam tendências de longo prazo que caminhavam em direção à diferenciação e à estratificação.

No início da história das primeiras cidades, Estados e civilizações, grupos sociais diferenciados recombinaram-se em cidades, as quais constituíam centros de peregrinações, trocas, armazenamento e redistribuição, além de concentrar ações de defesa e operações de guerra. Nessas urbes foram criadas novas identidades relativas à cidadania, mas que não substituíram integralmente as identidades existentes relacionadas a grupos econômicos, étnicos e de parentesco.

Não são apenas os poderosos que agem na antiguidade, mas qualquer indivíduo. Apesar de as mulheres não constituírem habitualmente temas de textos antigos e não serem temas costumeiros de análises arqueológicas, Yoffee destaca que nos primeiros Estados mulheres que pertenciam ou não à elite se envolviam em certas atividades diárias, que incluíam transações, litígios e rituais ocorridos nas cidades do período da Antiga Babilônia.

O autor considera a década de 1990 emblemática para o estudo arqueológico do “colapso” dos antigos estados e civilizações com importantes publicações sobre o tema, visto que os estudos evolucionários se preocuparam mais com o surgimento dos Estados do que com seus “colapsos”. O estudo dos colapsos garante a compreensão das inúmeras instabilidades ocorridas no interior dos Estados.

Voltando a sua área de especialização, Yoffee afirma que não existiu um antigo Estado mesopotâmico, como sistema político regional de longa duração, cujos governantes tenham estabelecido domínio sobre outras cidades e suas adjacências. Na Assíria ao norte e na Babilônia ao sul havia muitos grupos étnicos diferentes – a maioria deles com línguas e histórias próprias – que participaram e contribuíram para a teia da cultura mesopotâmica, mas sem uma tendência centralizadora.

O principal “mito” que permeia o estudo dos primeiros Estados é que existia algo que poderia ser denominado Estado arcaico e que todos os primeiros Estados eram simplesmente variações desse modelo. Yoffee critica este e outros mitos sobre o Estado arcaico enfatizando que existem maneiras úteis de comparar e contrastar histórias evolucionárias.

Em conclusão, em Mitos do Estado arcaico: evolução dos Primeiros Estados, Cidades e Civilizações, apesar de optar por generalizações em sua crítica ao viés neoevolucionista de abordagem do tema, Yoffee chama atenção, de forma enfática, para a necessidade de rever análises simplistas sobre as primeiras sociedades mesopotâmicas e de ampliar a compreensão do papel assumido por diferentes atores na construção e desenvolvimento dos primeiros Estados.

Ivan Esperança Rocha – Professor Livre-docente de História Antiga do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Campus de Assis.

Pelo prisma da escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial – TOMICH (Tempo)

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Edusp, 2011. 248 p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A segunda escravidão. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.

Escravidão, Trabalho e Capital, Economia mundial

Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial. Esse é o título do livro de Dale Tomich, recentemente traduzido e publicado em português pela Editora da Universidade de São Paulo. Trata-se de uma coletânea de textos do autor, professor de Sociologia e História da Universidade Estadual de Nova York, em Binghamton. Tomich é um velho conhecido e conhecedor do Brasil.1 Além disso, é envolvido com diversas pesquisas e pesquisadores brasileiros, vindo frequentemente ao país.

Pelo Prisma da Escravidão saiu em inglês, em 2004.2 O livro reúne artigos publicados entre 1987 e 1997 e está dividido em três partes. A primeira tem por título “A Escravidão na Economia Mundial” e subdivide-se em três capítulos. Esta resenha terá como foco os capítulos 1 e 3 dessa primeira parte. São eles que dão a perspectiva de análise que se desdobra nas duas outras partes da obra, “O Global no Local” e “Trabalho, Tempo e Resistência: Mudando os Termos da Comparação”, cujos seis capítulos analisam o Caribe francês, inglês e espanhol entre finais do século XVIII e a primeira metade do século XIX.

O conceito-chave que organiza o conjunto do livro, e que dá o título do terceiro capítulo, é o de segunda escravidão. Ele é uma versão revisada do capítulo da obra coletiva Rethinking the Nineteenth Century: Movements and Contradictions, de 1988.3 O argumento de Tomich é que a escravidão moderna não foi sempre a mesma entre os séculos XVI e XIX. Na virada do século XVIII para o XIX, um conjunto de acontecimentos e tendências históricos, principalmente o advento da Revolução Industrial na Inglaterra e a hegemonia internacional da Grã-Bretanha, levaram a reconfigurações profundas no mercado mundial. Houve um crescente desequilíbrio nos preços internacionais entre produtos industrializados e agrícolas; o incremento do consumo de determinados produtos, como o café e o açúcar, demandados pelo aumento da população de trabalhadores e da classe média nas cidades da Inglaterra e da Europa; a procura por novas matérias-primas, como o algodão. Se esse conjunto de transformações afetou determinadas áreas coloniais escravistas, implicando seu declínio, atuou sobre outras áreas escravistas quase que em sentido inverso. Em regiões como Cuba, o Sul dos Estados Unidos e o Brasil, antes em segundo plano, a escravidão “expandiu-se numa escala maciça para atender à crescente demanda mundial de algodão, café e açúcar” (p. 83). A escravidão foi refundida em uma nova constelação de forças políticas e econômicas […] O significado e o caráter sistêmicos da escravidão foram transformados (p. 87). Esses centros emergentes escravistas viram-se cada vez mais integrados e impelidos pela produção industrial. Essa ‘segunda escravidão’ se desenvolveu não como uma premissa histórica do capital produtivo, mas pressupondo sua existência como condição para sua reprodução (p. 87).

Estamos longe aqui da visão de uma escravidão moderna somente adstrita a um elemento subordinado do processo histórico de acumulação primitiva de capital. Uma escravidão que estaria fadada, em que pese todas as sobrevivências e resistências promovidas por grupos dominantes a ela apegados, ao desaparecimento. De tal modo que sua história ao longo do século XIX seria a história dessa morte dantesca, mas já de antemão anunciada. Antítese “das formas emergentes de Estado, sensibilidade moral e atividade econômica”, a escravidão seria “o padrão negativo contra o qual as novas formas de liberdade se definiam” (p. 81). Sua abolição seria inevitável. Ainda que quase um século tenha transcorrido entre a revolução dos escravos em Saint-Domingue, em 1791, e a abolição no Brasil, em 1888, e que muitos e diferentes caminhos nacionais e regionais tenham sido trilhados nesse percurso, seu destino já estaria traçado. Para uns, pelo avanço de forças morais; para outros, pelo desenvolvimento da produção industrial e do capitalismo.

Dale Tomich nega esse modelo. Ele indica como essa segunda escravidão integrou-se ao desenvolvimento do capitalismo industrial e do mercado mundial do século XIX sob a hegemonia britânica. E, por isso, mesmo que contraditoriamente, desenvolveu-se com ele, não a despeito dele. Neste ponto, ao traçar o objetivo do capítulo como sendo o de chamar a atenção para o caráter diverso da escravidão no século XIX, dada sua integração com o desenvolvimento do capitalismo, o autor adverte que não se propõe “explicar as causas da emancipação dos escravos, que permanecem diversas e conjunturais” (p. 82). Trata-se de chamar a atenção para a “formação e reformulação das relações escravistas dentro dos processos históricos da economia capitalista mundial” (p. 82). Assim, se

a escravidão foi ao fim e ao cabo abolida em todos os quadrantes do hemisfério, o ‘século antiescravista’ foi, não obstante, o apogeu de seu desenvolvimento (p. 82).

No primeiro capítulo da primeira parte do livro, “Capitalismo, Escravidão e Economia Mundial”, está exposta a visão teórica, que embasa o conceito de segunda escravidão, se complementa e se aprofunda. Cronologicamente, o capítulo, assim como o segundo, que não será tratado aqui, foi escrito em 1993, posteriormente ao terceiro capítulo.4 Entretanto, do ponto de vista teórico, da exposição e da unidade do livro, corretamente, ele aparece antes. O fato não é de menor importância e ressalta um ponto decisivo na obra, a centralidade do que Tomich chama de história teórica.

Para abrir sua argumentação, ele aponta as debilidades de três grandes interpretações sobre a escravidão moderna: a da Nova História Econômica, presente nas obras de John H. Conrad e John R. Meyer e de Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman; a marxista, de Eugene Genovese, e a do Moderno Sistema Mundo, de Immanuel Wallerstein.5 Resumida e esquematicamente, a Nova História Econômica presumiria a validade universal das categorias econômicas, aplicáveis tanto à economia capitalista quanto à economia escravista, deixando sem respostas as questões pertinentes à interpretação histórica e à formação das relações sociais. Já Genovese veria escravidão e capitalismo como sistemas incompatíveis, este mais moderno e aquele mais atrasado, envolvendo momentos diferentes do processo evolutivo histórico. Finalmente, para Wallerstein, o Moderno Sistema-Mundo, compreendendo relações de trabalho tanto assalariadas quanto coercitivas — dentre elas, a escravidão — , se constituiria em uma só estrutura histórica empírica, com múltiplas formas de trabalho, entretanto perdendo de vista as diferenças fundamentais entre as distintas relações sociais de produção.

Ao fim dessa digressão crítica sobre esses autores, Tomich propõe uma distinção fundamental entre teoria histórica, “preocupada em formular as categorias teóricas apropriadas para a compreensão de um objeto de investigação historicamente distinto”, e história teórica, “preocupada com o uso de tais categorias para reconstruir os processos de desenvolvimento histórico” (p. 37).

No primeiro caso, trata-se do que Marx fez em O Capital: construir um objeto teórico, o capital, assinalando sua especificidade “como uma forma histórica particular de relação social de produção e o trabalho como seu conteúdo” (p. 39, grifo no original). Apesar de dizer respeito a uma época particular da história e de fazer diversas referências a lugares — como a Inglaterra da Revolução Industrial — e a processos históricos concretos, como no caso de sua descrição do processo de acumulação original de capital, Marx concatena suas categorias logicamente. Essa tensão inerente a seu método, como crítica das categorias universais da economia política, entre sua proposta de assinalar a historicidade e o caráter relacional dessas categorias — capital e trabalho — e a exposição lógica de seus próprios conceitos, está na raiz dos equívocos das intepretações sobre a escravidão, criticadas por Tomich. Todas, de uma maneira ou de outra, tratariam capitalismo e escravidão como entidades abstratas e separadas, dotadas de atributos essenciais.

A implicação dessas concepções, pode-se dizer, é que a escravidão acaba ficando “fora do lugar”. Resumida a uma contingência histórica da fase de acumulação original de capital, ela é subsumida inteiramente à lógica do capitalismo, perdendo sua especificidade e sua história (como no caso das perspectivas da Nova História Econômica e do Moderno Sistema-Mundo). Ou, então, ela ganha contornos de um sistema, que teve uma função na fase de acumulação original, mas que se tornou crescentemente anacrônico e incompatível com o próprio capitalismo (marxismo).

Nesse ponto, o conceito de segunda escravidão, ao assinalar o recrudescimento sem precedentes das formas escravistas, exatamente no momento em que o mercado mundial se expande sob a hegemonia da Grã-Bretanha, onde se desenvolve o cerne da Revolução Industrial, mostra toda sua força. A escravidão não é mais vista como uma entidade abstrata, sempre igual a si mesma, e, sem se confundir em sua configuração com o capitalismo, integra com ele o mesmo mundo, ainda que de forma complexa e contraditória. Capitalismo e escravidão, do ponto de vista de uma história teórica, passam a ser encarados como “formas específicas de produção ou troca social”, que não são entendidas

como unidades autônomas com sua própria história, mas sim como sendo formadas por meio de sua relação com a totalidade político-econômica mais ampla (p. 50).

Totalidade essa que afetava diretamente a vida de senhores, escravos e de suas sociedades de uma maneira geral. Essa totalidade, da qual a segunda escravidão foi parte integrante e ativa fundamental, e não apenas um apêndice ou sobrevivência colonial ou do Antigo Regime, foi, por sua vez, afetada pelas ações e lutas de senhores, escravos e demais atores sociais, políticos e culturais das sociedades escravistas americanas. Uma e outra coisa não podem ser ignoradas pelo historiador, sob a pena de se fazer uma história capenga, reproduzindo ou deixando intocados estereótipos e tradições sobre noções como liberdade, trabalho livre, liberalismo, capitalismo e, é claro, escravidão.

Se a perspectiva proposta é para valer, é preciso repensar o significado das lutas escravas no contexto da segunda escravidão, quais eram suas condicionantes e quais foram suas consequências. Uma tal diferença entre situações históricas, como aquela experimentada entre a “primeira” e a segunda escravidão, sem falar das diferenças mais específicas de cada contexto e conjuntura particulares, não pode ser completamente compreendida sem remissão ao quadro mais global da economia-mundo capitalista e da segunda escravidão.

Uma palavra final sobre a elaboração e a recepção do conceito de segunda escravidão, que vem sendo crescentemente discutido por vários historiadores, no Brasil e fora daqui.6 Como vimos, ele foi elaborado originalmente em 1988, tendo reaparecido na primeira edição do livro, em inglês, em 2004. Essa reaparição não foi apenas editorial. Em 1988, no auge da voga da micro-história, da virada linguística, do individualismo metodológico e de tudo mais que, no apogeu do neoliberalismo, prometia sepultar o marxismo e outras visões totalizantes da história, o texto de Tomich passou despercebido. Parece que agora as coisas se dão de forma diferente. A começar pelo neoliberalismo, que, além de se ver reduzido a uma doutrina fomentadora das altas finanças, mergulhou o mundo em uma crise sem precedentes nos últimos 70 anos. No campo da historiografia, as descrições densas do particular, do cotidiano e do miúdo, precedidas de rápidas pinceladas de contexto, acrescidas de duas ou três generalizações superficiais que eludem a necessidade da análise mais abrangente, aprofundada e concreta dos objetos históricos, cedem espaço. Se elas ajudaram a superar a antiga abordagem dos sistemas, de matriz sociológica, abstrata e lógica, hoje, já não são suficientes.7 Trata-se, agora, de buscar análises que se voltem para as conexões, os nexos e as contradições que compõem esses objetos enquanto totalidades estruturadas, produzidas pelas ações humanas ao mesmo tempo em que as condicionam. Isso é o que Pelo Prisma da Escravidão busca, indicando caminhos para que seja feito e bem feito.

1 Entre o início da década de 1980 e os dias atuais, entre palestras, cursos e como professor visitante, Tomich passou temporadas na Unicamp, na UFF, na UFRJ (no Museu Nacional) e na USP. Publicou vários artigos em português e, com Rafael Marquese, escreveu o capítulo “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial de café no século XIX”, em Keila Grinberg e Ricardo Salles (orgs.), O Brasil Imperial, v. 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 341-383.         [ Links ] 2 Dale Tomich, Through the Prism of Slavery. Labor, Capital, and World Economy, Lanham, Rowman & Littlefield, 2004.         [ Links ] 3 Francisco O. Ramirez (ed.), Rethinking the Nineteenth Century: Movements and Contradictions, Westport, Greenwood Press, 1988.         [ Links ] 4 Dale Tomich, “World Market and American Slavery, Problems of Historical Method”, em Manuel Ceda (ed.), Els espais del mercat, Valência, Diputació de Valencia, 1933. pp. 213-240.         [ Links ] 5 John H. Conrad & John R. Meyer, The Economics of Slavery and Other Studies in Economic History, Chicago, Aldine, 1964;         [ Links ] Robert W. Fogel & Stanley L. Engerman, Time on the Cross. The Economics of American Slavery, Boston, Little Brown and Company, 1974, 2 v.         [ Links ]; Eugene D. Genovese, The Political Economy of Slavery, Nova York, Random House, 1967;         [ Links ] Immanuel Wallerstein, The Capitalist World-Economy, Nova York, Cambridge University Press, 1979.         [ Links ] 6 Cf. Christopher Schmidt-Nowara, Empire and Antislavery: Spain, Cuba and Puerto Rico, 1833 – 1874, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1999;         [ Links ] Rafael Marquese, Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860, São Paulo, Companhia das Letras, 2004;         [ Links ] Ricardo Salles, E o Vale era o escravo – Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no Coração do Império, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008;         [ Links ] Michael Zeuske, “Comparing or interlinking? Economic comparisons of early nineteenth-century slave systems in the Americas in historical perspective”, in Enrico dal Lago & Constantina Katsari (eds.), Slave Systems. Ancient and Modern, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 148-183;         [ Links ] José A. Piqueras (ed.), Trabajo Libre y Coactivo en Sociedades de Plantación, Madri, Siglo XXI, 2009;         [ Links ] Anthony Kaye, “The Second Slavery: Modernity in the Nineteenth-Century South and the Atlantic World”, Jornal of Southern History, vol. 73, n. 3, August 2009, p. 627-50;         [ Links ] Rafael Marquese, Márcia Berbel e Tâmis Parron, Escravidão e política. Brasil e Cuba, c.1790-1850, São Paulo, Hucitec, 2010;         [ Links ] Tâmis Parron, A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011;         [ Links ] Robin Blackburn, The American Crucible. Slavery, Emancipation and Human Rights, Londres, Verso, 2011;         [ Links ] Enrico Dal Lago, American Slavery, Atlantic Slavery, and Beyond. The U.S. “Peculiar Institution” in International Perspective, Boulder, Paradigm Publishers, 2012.         [ Links ] 7 A esse respeito, ver William Sewell Jr., Logics of History: Social Theory and Social Transformation, Chicago, University of Chicago Press, 2005.         [ Links ]

Ricardo Salles – Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ) – Brasil.. E-mail[email protected].

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 – MARSON; OLIVEIRA (H-Unesp)

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: EDUSP, 2013, 348 p. Resenha de: PEREIRA, Milena da Silveira. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Monarquia constitucional, liberalismo, negócios e escravidão foram temas caros ao século XIX e a toda uma historiografia brasileira, que passou boa parte do século XX ressignificando tais conceitos e categorias com mais vigor, por vezes, que o próprio Oitocentos. Tomados por Izabel Andrade Marson, Cecília Helena L. de Salles Oliveira e outros colaboradores da obra como uma espécie de guia para se entender a formação e a constituição do Império do Brasil, tais conceitos são explorados a partir da constatação e negação de três assertivas que, como defendem as organizadoras da coletânea, estão no cerne de uma determinada leitura teórica e interpretativa da história imperial.

Dialogando diretamente com parte da historiografia brasileira produzida no século XX, as pesquisas que compõem Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 (publicação da EDUSP, com financiamento da Capes, CNPq e Museu Paulista) problematizam, debatem e refutam esses três paradigmas. O primeiro desses modelos questionado é aquele que afirma ter a sociedade brasileira do século XIX conservado uma herança colonial retrógrada, caracterizada pela inexistência de cidadãos conscientes de seus direitos e, consequentemente, impossibilitados de uma vivência revolucionária. O segundo é o que afirma que o período imperial foi concebido como uma fase de transição entre o Brasil Colônia, marcado por instituições ultrapassadas, e o Brasil República, caracterizado por uma experiência nacional “autêntica” e pela presença de instituições “modernas”, como a república, a cidadania burguesa, o trabalho livre, a vida urbana, a industrialização. O terceiro e último paradigma problematizado e rebatido nesta obra é o que defende a falta de cadência entre as vivências brasileiras e europeias e o comportamento e pensamento “imitativos” e “desprendidos” da realidade social brasileira.

A obra, retomando e realimentando um debate das décadas de 60 e 70 acerca da incompatibilidade entre liberalismo e escravidão no Oitocentos brasileiro e do descompasso histórico do Brasil em relação à Europa, pretende, pois, problematizar e revisar criticamente a denominada “tese do atraso” da sociedade brasileira – ou seja, “o inacabamento, a inorganicidade e a intangibilidade da nação brasileira” naquele tempo – a partir de diversificadas perspectivas do fazer histórico, como as de E. P Thompson, Hannah Arendth, Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, Pierre Rosanvallon, Reinhart Koselleck, Quentin Skinner e John Pocock.

Assumindo tal propósito, esta reunião de escritos produzidos por pesquisadores do Museu Paulista, da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas está articulada em duas partes. A primeira, intitulada (Re)configuração de pactos e negociações na (re)fundação do Império, abarca trabalhos que exploram questões relacionadas: às negociações dos impostos, honrarias e cargos administrativos entre Portugal e Brasil; à análise dos festejos públicos da Monarquia e da arquitetura recriada por integrantes da missão artística francesa no Rio de Janeiro. Abarca também estudos que passam pelo mapeamento dos diferentes pronunciamentos e posicionamentos da Câmara do Império (1826-1827) sobre o tráfico e os significados da escravidão para o país; e, por fim, os “incidentes” ocorridos, em 21 de abril de 1821, na Praça do Comércio – centro de muitas e importantes negociações – , e seus desdobramentos políticos. Este primeiro momento tem como colaboradores Ana Paula Medicci, Cecília Helena de Salles Oliveira, Emílio Carlos Rodriguez Lopez, Vera Lúcia Nagib Bittencourt e João Eduardo Finardi Álvares Scanavini.

Compõe a segunda parte da coletânea os estudos de Erik Hörner, Izabel Andrade Marson, Maria Cristina Nunes Ferreira Neto e Eide Sandra Azevêdo Abrêu. Denominado Revoluções e conciliações: fluidez do jogo político, dos partidos e dos empreendimentos, este conjunto de textos inclui um trabalho que relaciona os princípios do liberalismo e do comércio à formação do Partido Liberal e do Partido Conservador e à participação política no Brasil da primeira metade do século XIX. Outro estudo trata da relação entre monarquia, empreendedorismo – voltado ao “livre-cambismo” e à defesa da “indústria nacional” – e Revolução Praieira (1842-1848). Compreende ainda esta segunda parte um artigo sobre a trajetória pessoal e pública do importante político liberal e negociante mineiro Theophilo Ottoni e um último que explora a proximidade dos embates entre orientações político-econômicas liberais e o fracasso da Liga Progressista, grupo formado por membros “moderados” do partido conservados e do partido liberal.

Em todas essas pesquisas, o leitor notará a preocupação dos autores em apresentar novas perspectivas sobre a história política, do ponto de vista de sua cultura, da formação da opinião pública, da atuação dos estadistas e dos grupos sociais. Notará igualmente a preocupação de perceber o político no cotidiano ou, como destacam as organizadoras, “nas ruas e praças, nas estradas, nas fazendas, nos festejos, nas manifestações, na imprensa, nos ambientes públicos e privados”. Todos esses espaços, como o próprio título da obra sugere, são analisados à luz das “imbricações entre política e negócios”. Aquele leitor interessado em revisitar a formação e a consolidação do Império brasileiro a partir das mediações entre monarquia constitucional, liberalismo, negócios e escravidão, encontrará, portanto, nesta coletânea um bom caminho.

Milena da Silveira Pereira – Doutora em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, e professora substituta nos cursos de História e de Relações Internacionais, da UNESP/Franca. E-mail: [email protected].

 

Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide – AMARAL (B-RED)

AMARAL, Glória Carneiro do. Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide. São Paulo: EDUSP, 2010, Tomo I, 259 p; Tomo II, 1084p. Resenha de: ATIK, Maria Luiza Guarnieri. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.6 n.1, São Paulo, Aug./Dec. 2011.

Pierre Verger destaca que uma das características das obras de Roger Bastide é o espírito de diálogo. As obras “geralmente se baseiam na aproximação de dois temas complementares, um valorizando o outro. Quer se trate de religiões afro-brasileiras, de interpenetração de civilizações, de dupla herança, de dois catolicismos ou de aculturações recíprocas, são sempre dois temas fundados na complementaridade. […]. Há sempre diálogo, compreensão mútua e não incompatibilidade e agressividade” (LÜHNING, A. (org.). Verger – Bastide: dimensões de uma amizade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.256-257).

A contribuição do estudo de Glória Carneiro do Amaral consiste exatamente em nos revelar essa estrutura dialógica dos textos bastidianos, em sua obra Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide, publicada em 2010 pela EDUSP.

O primeiro mérito da autora é debruçar-se corajosamente sobre uma obra alicerçada sobre “inquietantes areias movediças, de intrínseca vocação interdisciplinar”. Assim, para abarcar as vertentes da crítica bastidiana, lança-se numa análise cuidadosa e percuciente, destacando os procedimentos discursivos dos artigos publicados em diferente periódicos, na França e no Brasil.

O primeiro volume consiste num estudo do percurso de Bastide no universo da literatura, da sociologia e da religião. E o segundo, abarca mais de 200 títulos escritos entre 1920 e 1974, apresentados cronologicamente.

Para compor a antologia do segundo volume, a pesquisadora contou com o material de dois arquivos: “em São Paulo, o arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, e, na França, os arquivos do Imec (Institut de la Mémoire de l’ Édition Contemporaine)”, resgatado, para os estudiosos de Bastide, um vasto material que traz à luz textos sobre a literatura brasileira, a literatura francesa, sobre as relações entre poesia e sociologia, literatura e protestantismo, questões de estética, dentre outros.

A partir de uma análise extremamente refinada, ao mesmo tempo em que nos dá a conhecer alguns dados biográficos do crítico francês, a pesquisadora examina os textos críticos sob uma perspectiva ampla e abrangente, apontando as contradições, os exageros e a desigualdade entre eles, que oscilam desde rápidas resenhas sobre os mais diferentes autores, muitas de interesse duvidoso, até textos fundamentais sobre literatura francesa e brasileira.

Roger Bastide escreveu sobre todos os grandes escritores mas, como atesta Glória do Amaral, o crítico concedeu pouca atenção aos cânones da literatura francesa. Exceção feita a Gide, único escritor pelo qual Bastide se interessou ao longo de toda a sua vida, publicando a obra Anatomie d’André Gide. Escreveu também sobre Marcel Proust e François Mauriac. O seu interesse, contudo, não era o objeto estético enquanto produto literário, e sim o viés religioso presente em suas obras. O judaísmo de Proust, o catolicismo de Mauriac e o protestantismo de Gide são os aspectos fundamentais dos ensaios bastidianos.

Em relação aos escritores brasileiros, a autora percebe no conjunto de artigos analisados que a crítica bastidiana não se fixa no côté exotique, nas imagens estereotipadas do Brasil difundidas na França. Sua crítica “inscreve-se na diferença, como a de um intelectual francês interessado em entender a cultura, a arte e a literatura brasileiras” (p.242). Ressalta, ainda, que muito antes de chegar ao nosso país, Bastide já estava interessado na relação dos escritores brasileiros com a terra e procurou entendêlos de uma perspectiva antietnocêntrica. Sua intensa produção, livros e artigos publicados em revistas e em jornais, mostra sua integração ao nosso meio social e a preocupação em desvelar as especificidades e os contrastes da realidade brasileira. Como assinala Glória do Amaral, Roger Bastide produziu muito material na literatura em geral e na poesia em particular. Dentre as obras analisadas, destacam-se a de Cruz e Sousa, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Mário de Andrade e Machado de Assis.

Concomitantemente à análise cuidadosa e perspicaz do crítico literário, a autora nos revela as preocupações de Bastide como filósofo e sociólogo e o seu interesse maior pelo homem do que pelo escritor, destacando que a idéia de uma alma ancestral, espécie de alma arquetípica, persistia em seu pensamento.

Glória do Amaral dedica um capítulo do primeiro volume de Navette Literária França-Brasil às contribuições de Bastide para as revistas Mercure de France e Anhembi, a primeira francesa e a segunda brasileira. Entre 1948 e 1965, Bastide publicou na revista Mercure de France vinte crônicas sobre a literatura brasileira para um público francês. A composição de suas crônicas, segundo a autora, obedece ao padrão comum da seção “Lettres brésiliennes” da revista: “um pequeno texto crítico, cujo tema varia, seguido de várias resenhas de poucas linhas, com uma apresentação gráfica diferente do texto principal” (p.213). Lançando mão do recurso comparativo, Bastide procura manter o leitor francês a par da vida literária brasileira, apontando aspectos do processo formativo da nossa literatura.

Na revista Anhembi, a colaboração de Bastide se estendeu de 1950 a 1962. E mesmo quando retornou à França continuou a sua atuação como uma espécie de correspondente. Fazendo um balanço de sua produção no referido periódico, Glória do Amaral aponta que os artigos abarcam estudos sobre sociologia, literatura, cinema e teatro, diversidade que contribui para o adensamento de sua crítica. Os textos, “em princípio de caráter informativo, acabam por se transformar em espaço para o desenvolvimento de conceitos e reflexões sobre a vida cultural francesa”.

Navette Literária França-Brasil traz uma importante contribuição para o conhecimento da obra de Roger Bastide, onde o diálogo não é apenas um traço formal. Mostra o percurso de sua reflexão sobre a literatura, bem como o seu interesse por diversas áreas do saber: sociologia, filosofia, religião, artes, estudos culturais. Trata-se de um livro de referência para todos os que se interessam pelas relações França-Brasil, pelas relações entre o eu e o outro.

Maria Luiza Guarnieri Atik – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930) – SILVA (RBH)

SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008. 216p. Resenha de: ABRAHÃO, Eliane Morelli. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009.

O fogão a lenha, utensílio obrigatório nas casas até meados da década de 1930, estava presente nas cozinhas e não raras vezes tinha sobre si o grande tacho de cobre a cozer vagarosamente os doces de abóbora, de mamão ou cidra, dentre as muitas iguarias preparadas pelas famílias. Esse cômodo da casa traz à tona nossas lembranças de infância e desvenda nossa memória gustativa repleta de aromas e sabores.

João Luiz Máximo da Silva no livro Cozinha modelo, originário de sua dissertação de mestrado, instiga-nos a pensar sobre os hábitos cotidianos desempenhados pelas senhoras, suas escravas e, posteriormente, suas empregadas no preparo dos alimentos que seriam servidos à família no dia a dia ou em ocasiões especiais. É um livro sobre história da cultura material e revela-nos aspectos interessantes dos impactos trazidos às cozinhas das casas paulistanas pela introdução do gás e da eletricidade. Mostra, também, como as donas de casa aderiram a essas novidades. Mas seu interesse vai além dos artefatos e procura entender a dimensão física, sensorial, “que perpassa todos os domínios do existir humano”, segundo as palavras do prefaciador, Ulpiano Bezerra de Menezes.

O autor percorre vasta quantidade de documentos – relatórios de diretoria das empresas concessionárias de gás e eletricidade, relatórios técnicos, notícias de jornal, legislação e normas –, focando três grandes temas: história das empresas concessionárias de energia, tecnologia doméstica e habitação. Silva aborda questões de natureza política, sanitária, econômica, tecnológica, cultural e social, além de temáticas diversas, como a arquitetura e o urbanismo, a administração pública e a legislação, os investimentos estrangeiros, os novos equipamentos integrados às redes de fornecimento de energia e ainda os serviços técnicos, as relações de gênero e a publicidade.

Ao tratar da introdução das empresas de energia e das inovações proporcionadas pela eletricidade, Silva tece um amplo discurso sobre os avanços tecnológicos e econômicos e resgata todo o processo de instalação e os mecanismos de expansão das duas redes de infraestrutura urbana: o gás e a eletricidade. O autor relata a atuação da empresa de capital estrangeiro The São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited (Light), com concessão pública para a exploração da energia pública e doméstica e do transporte urbano, desde finais do século XIX. Em 1912, essa empresa também passaria a controlar a distribuição do gás ao incorporar a The San Paulo Gás Company.

Silva faz uma abordagem atraente dos avanços proporcionados pela introdução da energia elétrica e do gás à paisagem da cidade de São Paulo, descreve o incremento da indústria e do comércio e sua repercussão no dia a dia dos moradores, sobretudo o impacto do uso do gás pelas famílias paulistanas.

Quanto à urbanização, nesse período a administração pública implantou um novo Código de Postura que disciplinava a abertura de ruas, os alinhamentos das construções etc. Porém, com o crescimento demográfico e econômico vivido por São Paulo, essas medidas públicas não foram seguidas. A demanda por habitação para todas as camadas da população fez crescer a malha urbana consideravelmente. As redes de fornecimento de iluminação e gás não atenderam a todos os novos bairros, percebendo-se então uma segregação espacial na cidade.

Nesse cenário de transformações urbanas as companhias de gás anunciavam seu produto nas revistas femininas com o intuito de conquistar as famílias para as novas tecnologias. Esses anúncios ofereciam ‘progresso e civilização’ e combatiam a antiga tradição da cozinha brasileira – os fogões a lenha –, impondo a mecanização da área de serviço e colocando como ator principal o fogão a gás, símbolo de cozinha moderna, limpa, ordenada e arejada.

Em busca de seu público consumidor – as donas de casa –, as empresas ofereciam cursos especialmente destinados às cozinheiras, ensinando culinária e o manejo dos fogões. Na década de 1910, as revistas femininas publicavam artigos que orientavam as donas de casa na escolha correta da alimentação e na forma de seu preparo, tendo em vista as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias – fogão a gás, panelas de ágata e de ferro –, todas as vantagens que o novo modelo de cozinha representava.

Contribuíram com os anseios das companhias distribuidoras de gás as questões sanitárias implantadas pelo poder público. Em 1918, o Código Sani tário focalizou a questão da higiene e da salubridade dos cortiços e discutiu explicitamente o papel da cozinha na casa e, mais ainda, de seus principais equipamentos, como o fogão. Pouco depois o Padrão Municipal de 1920 dedicou todo um item à organização da cozinha. Antes espaço da casa desprestigiado porque vinculado aos trabalhos braçais, a cozinha passou a ser o alvo principal das autoridades escudadas pelo saber médico. Este a considerava espaço essencial, que deveria ser agregado ao corpo principal do lar e à lógica imposta pelos ideais de urbanização e consumo.

Essas alterações sanitárias não mudaram a realidade, e, por muitos anos os fogões a lenha conviveram com os fogões a gás, não só pelo hábito e pelo conhecimento empírico adquirido no seu manuseio – acendimento, tempo e formas de cozimento –, mas também pela questão econômica, uma vez que a lenha era muito menos onerosa que o gás.

O aparecimento deste novo equipamento, o fogão, é exaustivamente analisado pelo autor de Cozinha modelo, que aborda a sua evolução, de meados do século XIX até a década de 1930, e também a forma de funcionar desse aparelho doméstico. Silva é minucioso em suas descrições e aponta as diferenças entre os fogões tradicionais e os de ferro fundido – estes também conhecidos como ‘econômicos’ –, os quais usavam lenha, carvão vegetal ou coque e cujo modo de funcionamento e combustão os diferenciava completamente dos fogões a gás.

Os espaços domésticos mereceram atenção do autor em questões que ultrapassam as alterações arquitetônicas e chegam às diferentes formas de moradias, divididas por ele em quatro categorias – os palacetes, as casas médias (com mais de três cômodos), as casas populares e os cortiços. Suas análises sobre a cozinha recaem não só em sua localização – no caso dos cortiços, por exemplo, ela inexistia ou era improvisada –, mas também em sua preconizada modernização. Substituía-se a imagem da cozinha bandeirista, que sugeria trabalho pesado e sujo, desenvolvido longe das áreas de estar em razão de fumaça, cheiro e fuligem, por um modelo limpo, com novo mobiliário, visando eficiência no trabalho.

As novas relações que se tramam entre o espaço privado e o espaço público por intermédio da cozinha criam uma articulação inédita com o espaço urbano. Nas palavras do autor: “A viabilização e comercialização de uma nova tecnologia, aplicada ao trabalho doméstico e distribuída por meio de redes, trouxe um grau de dependência da casa a novas relações, que extrapolaram os antigos limites desse espaço” (p.94).

A difusão do uso de novas práticas e técnicas domésticas estava fortemen te associada aos novos padrões urbanos de embelezamento e sanitarização. Para isso, era necessário romper com o passado colonial e com tudo o que ele representava. A nova cozinha higiênica exigia a participação efetiva da mulher, com novas formas de organizar o tempo e o espaço doméstico, a racionalização de seu espaço e seu gerenciamento econômico. Silva entende que essa ‘importância’ da dona de casa relegou a empregada ao papel de mera executora, cabendo à mulher a administração do lar num sentido mais amplo. Estudos de gênero recentes têm revelado que as mulheres nas primeiras décadas do século XX já controlavam o orçamento e as despesas familiares, e esses estudos apontam para uma tendência ao consumo de novidades tecnológicas que facilitassem os afazeres cotidianos do lar, o que sem dúvida satisfazia os anseios das companhias de gás.

No que tange à cultura material, a descrição dos novos artefatos à disposição das donas de casa foi pouco explorado pelo autor. Para apreender os objetos, as novidades tecnológicas que compunham o arsenal de utensílios existentes nas casas paulistanas, faz-se necessária uma pesquisa aos inventários post mortem do período, uma vez que são fonte documental essencial para esses estudos por seu caráter descritivo. Os inventários registram todos os bens da pessoa falecida e que foram objetos da partilha. Nos autos de avaliação, por exemplo, são discriminados os ‘bens móveis’ – utensílios domésticos, móveis, objetos de decoração e de trabalho – e os ‘bens imóveis’, ou ‘de raiz’ – casas, terrenos e plantações. Os aparelhos introduzidos com o advento da eletricidade – torradeiras, cafeteiras e chaleiras, por exemplo – poderiam ter sido mais bem explorados se o autor não se houvesse detido apenas nos anúncios publicitários e na lista de leilões, porque nessas fontes há apenas a indicação dos objetos disponíveis no mercado.

Com narrativa clara e convidativa, Silva nos estimula a percorrer os caminhos da passagem do fogão a lenha para o fogão a gás. Expõe os sentimentos contraditórios em relação à nova tecnologia – crença em seus poderes curativos e terapêuticos, ao lado do medo de intoxicação – e a ideologia de progresso subjacente à propaganda do gás e da eletricidade para o interior das casas. E, sobretudo, revela como a cozinha foi redesenhada em torno do fogão ‘moderno’, transformando as relações entre patroas e empregadas e a dinâmica no preparo e na escolha dos alimentos. O autor fornece pistas sobre uma possível ligação entre essa nova cozinha e o desenvolvimento da gastronomia e, de forma pontual, aborda a alteração do cardápio que deveria atender aos novos ritmos urbanos, com refeições rápidas e subordinadas a horários específicos. Algumas deficiências podem ser observadas neste trabalho, relaciona das às próprias escolhas temáticas e das fontes, uma vez que o autor se deteve muito na história das empresas concessionárias e pouco nas transformações dos aparelhos elétricos e no surgimento de novos utensílios domésticos.

Eliane Morelli Abrahão – Doutoranda em História Cultural. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Universidade Estadual de Campinas (CLE/Unicamp). Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251, Barão Geraldo. (Caixa Postal 6133). 13083-970 Campinas – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

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Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras – SIMIONI (H-Unesp)

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2008, 360p., ISBN 8531410754. Resenha de: FANINI, Michele Asmar. Nem excepcionais, nem amadoras: Artistas Profissionais. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Tese de doutorado elaborada por Ana Paula Cavalcanti Simioni, ora convertida em livro, Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras preenche uma importante lacuna nos estudos sobre a sociologia da arte brasileira, e não apenas em virtude do original recorte estabelecido pela autora mas, sobretudo, pela riqueza das fontes compulsadas, que garantiram seu criterioso encaminhamento.

Como o próprio título sugere, o livro apresenta como fio condutor a investigação acerca das possibilidades de profissionalização feminina na esfera das “belas artes” brasileira, em sua fase acadêmica, mais precisamente, durante o período que enfeixa os anos de 1884 e 1922. De saída, é possível notar que o recorte temporal se define como um contraponto à “tendência a se desqualificar tudo o que fosse anterior ao modernismo paulista” (p.23), i.e., à artificialidade daquelas disposições responsáveis pela transformação do entresséculos em alvo privilegiado de um processo intenso de deslegitimação encetadas, por sua fase subseqüente, a saber, a modernista (MICELI, 1977; PASSIANI, 2003). Além disso, as datas que delimitam o intervalo em tela correspondem a acontecimentos em nada fortuitos: o ponto de partida, 1884, é o ano em que a artista plástica Abigail de Andrade é agraciada com a medalha de ouro em duas, das cinco obras que exibe na Exposição Geral (p. 206), enquanto o ano de 1922 não apenas representa, simbolicamente, o ocaso do academicismo, com a Semana de Arte Moderna, como assiste à consagração de Georgina de Albuquerque no gênero artístico que ocupava o topo da escala hierárquica acadêmica, até então marcadamente masculino, qual seja, a pintura de história (p.286-287).

Mais propriamente, a construção do objeto de investigação se processa a partir da constatação da existência de uma incongruência entre, de um lado, as canônicas presenças de artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral em nosso “panteão estético” e, de outro, a aparente ausência de antecessoras de semelhante “quilate” na história da arte brasileira imediatamente pregressa, tanto na pintura quanto na escultura. Uma vez diagnosticada tal “descontinuidade”, Ana Paula Cavalcanti Simioni considera improcedente a existência de tão celebrados nomes em nosso cenário modernista, sem que houvesse uma tradição anterior de mulheres artistas que os justificasse. Portanto, a hipótese da autora erige-se sobre tal desconfiança, e acena para a necessidade de problematização da presença destas renomadas artistas como “casos isolados”: elas seriam, antes disso, parte de uma memória pouco conhecida e, tal como comprova, artificialmente obnubilada pelos sujeitos responsáveis por sua “escrita” (críticos e historiadores da arte, museólogos, curadores).

A acertada aposta em tal incoerência conduz Simioni a desbravar aqueles espaços “intencionalmente esquecidos” pela história da pintura no Brasil, procedendo à desconstrução da imagem de “mulheres excepcionais”, que as artistas modernistas em questão exemplarmente recendem. A problematização desta “terminologia de supervalorização de uma minoria” deixa evidente a existência de uma pronunciada relação entre seu estratégico manejo e a enviesada construção do cânone artístico, edificado sobre grandes “lacunas historiográficas” (p.36), ficando relegadas à sombra importantes presenças femininas da tradição artística anterior ao modernismo, encobertas pelo cintilante véu da autoritária excepcionalidade.

O cenário, por excelência, da análise, não poderia ser outro, senão o Rio de Janeiro, e por fatores multifários, relacionados à posição privilegiada que a cidade ocupava no circuito da produção estética nacional, o que se deve ao fato de ter sediado a Imperial Academia de Belas Artes e sua sucessora republicana, a Escola Nacional de Belas Artes, espaço de formação artística prestigiado, que não só monopolizava o principal canal de exposição de arte acadêmica, o salão anual, como atuava na subvenção de artistas, na promoção de cerimônias de premiação etc. Contudo, a influência da França, principal pólo de difusão cultural do período, não haveria de ser negligenciada em um estudo desta envergadura. Levando isto em conta, e sem perder de vista seu foco de interesse, Simioni expande seu recorte, de modo a contemplar o impacto da Académie Julian, escola privada inaugurada em 1867 por Rodolf Julian (1839-1907), internacionalmente reconhecida, no processo de formação das artistas brasileiras.

Conciliando um ambiente “bem freqüentado”, ou seja, exclusivamente composto por mulheres de recursos, a um rigor técnico comparável ao da EBA [École de Beaux-Arts], a escola [Académie Julian] tornou-se um sucesso universal, atraindo jovens de todo o mundo para seus quadros. E as mulheres eram um excelente negócio na medida em que pagavam o dobro para uma formação quase equivalente à dos colegas (p. 156).

Para comprovar e fundamentar suas suposições iniciais, a autora recorre a acervos públicos e particulares do Brasil e da França, detendo-se especialmente em dicionários e nos catálogos de Exposições Gerais de Belas-Artes e dos Salões Nacionais de Belas-Artes, vindo a identificar entre eles uma notável dissonância. Com efeito, o mergulho nos “desvãos” documentais lhe revelou a não-correspondência entre os nomes registrados nos dicionários, que atestavam a quase ausência de artistas brasileiras no período estudado, e os referidos catálogos, que bradavam a impressionante cifra de mais de duzentas expositoras. O acesso a tais fontes lhe facultou a elaboração de um “Campo das Mulheres”, formado por um contingente significativo de artistas do sexo feminino, que expuseram seus trabalhos e obtiveram algum tipo de reconhecimento nas artes plásticas. Tal empreitada deixa evidente que a “ausência” de artistas plásticas profissionais no entresséculos passava ao largo de sua inexistência de fato.

Com o intuito de iluminar os modos pelos quais os obstáculos à profissionalização artística foram enfrentados por “mulheres concretas“, que “conseguiram driblar tais impeditivos e se afirmarem como artistas no pleno sentido do termo” (p. 197), a autora dedica um dos capítulos a um conjunto emblemático de pintoras e escultoras, selecionado em função da densidade da documentação que sobre elas encontrou. São elas: Abigail de Andrade, Berthe Worms, Julieta de França, Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto e Georgina de Albuquerque. Aliás, o critério adotado pela pesquisadora para a escolha das artistas evidencia, por si só, se tratar apenas da “ponta de um iceberg”, i.e., de uma amostra, em meio a tantas outras trajetórias artísticas eclipsadas pelos registros historiográficos.

Para além das idiossincrasias que individualizam cada percurso analisado, todos eles convergem, ao traduzirem “formas surdas de transgressão” e de reação às impossibilitações concretas de profissionalização artística experimentadas pelas mulheres do entresséculos. Tais reconstruções evidenciam, paradigmaticamente, as incursões destas pintoras e escultoras no campo artístico como uma espécie de resposta às práticas culturais e ao ramerrão teórico de apelo cientificista embebido em correntes teóricas deterministas e positivistas então em voga, detidamente analisadas pela autora no capítulo inaugural, que apreendiam as mulheres como seres “essencialmente inferiores aos homens“. Simioni mostra que esta assimetria, ao se espraiar para o campo artístico, aparecia cristalizada em certo “rótulo de convenção”, mais propriamente em uma classificação que não apenas estabelecia uma hierarquia entre os artistas em função do sexo ao qual pertenciam mas, e sobretudo, situava as mulheres em uma posição desvantajosa neste “sistema de reputações“, arbitrariamente as desautorizando: trata-se da pecha de “amadora”, que “assombrava como um fantasma a produção artística das mulheres em sua totalidade” (p. 43), opondo-se frontalmente ao termo “profissional”, qualificativo este recorrentemente empregado para nomear os artistas do sexo masculino (p.37).

A simples menção de amadoras englobava vários significados: como o de que se tratava de pessoas sem um adequado conhecimento das regras do ofício, carentes de formação; além disso, acreditava-se que elas não buscavam na arte um modo de sustento, mas um simples passatempo. Evidentemente essa era uma categoria relacional, cujo uso presumia uma comparação, nem sempre explícita, mas sempre presente, com os artistas homens. Eles, os profissionais, detinham a formação adequada, o conhecimento suficiente, o respaldo institucional para, com as artes, exercerem o ofício de modo a conquistarem dinheiro, fama e glória. Para eles a arte era um empreendimento sério, uma profissão; para elas, um refinamento do espírito (p. 301).

Afigurando-se, pois, como uma “regalia” masculina, a profissionalização nas artes plásticas traduzia um processo marcadamente excludente, do qual inúmeras artistas foram deixadas de fora, seja porque tiveram suas obras inadvertidamente inscritas nos tímidos limites do amadorismo ou, o que dá no mesmo, rebaixadas à categoria de prática diletante. Neste espaço perpassado por categorias impregnadas pelas lógicas de gênero, às artistas não “agraciadas” com o epíteto de “excepcionais”, portanto, à grande e esmagadora maioria, era reservada como inescapável fortuna “a vala comum do esquecimento coletivo”.

Simioni ilustra muito bem esta situação, ao pôr em tela uma das mais contundentes barreiras com as quais as mulheres do período se deparavam ao objetivarem a profissionalização artística: o acesso às aulas de pintura a partir de modelo vivo que, no Brasil, apenas lhes foi autorizada em 1897 (embora tardia, esta data antecede o acesso feminino ao nu, se comparada às academias de arte européias). Sendo o domínio das representações do corpo humano exigência fundamental para uma formação consistente – em conformidade com os moldes academicistas – e, por conseguinte, para a obtenção de renome artístico, as mulheres que, durante séculos, foram alijadas desta modalidade essencial de conhecimento (vale dizer, por questões morais que recaíam sobre a pudicícia), encontraram-se não apenas em indiscutível desvantagem se comparadas a seus pares, como esteticamente desautorizadas. Tendo isto em vista, não é de se estranhar a exígua presença das mesmas em um espaço cujas formas de obtenção de prestígio apareciam atreladas às prerrogativas de gênero. Nas palavras da autora,

o acesso ao modelo vivo era absolutamente indispensável à formação de um artista acadêmico. A ênfase da discussão feminista em torno da exclusão do mundo artístico está, justamente, neste ponto: as artistas mulheres foram impedidas de conhecer e dominar, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as principais etapas de formação do ‘gênio’ artístico na medida em que o acesso ao nu lhes foi vetado por ser considerado imoral. Afirmam as historiadoras que sem o controle dos meios de expressão simbólicos característicos daquele fazer artístico, as mulheres foram relegadas a toda sorte de pinturas vistas como ‘menores’, as quais não exigiam o completo domínio da representação do corpo humano e, também demandavam menos preparo físico e intelectual. De sorte que se montava um círculo vicioso: as artes menores passavam a ser vistas como adequadas às inábeis mulheres e, toda a arte feita por mulheres, era colocada entre aspas, rotulada como menor (p. 110).

Em linhas gerais, Profissão Artista nos brinda com uma rica e minuciosa exploração dos mais variados óbices que se impunham àquelas mulheres que almejavam fazer carreira no restrito “espaço dos possíveis” do universo acadêmico brasileiro, em um período duramente refratário à presença feminina. Em uma abordagem despida de qualquer ar triunfalista, o livro todo revela a preocupação da autora com a “arte produzida por mulheres”, sem ceder à tentação de enxergá-la pela lente reducionista e simplificadora de um “feminino universal” que, na análise, é substituído pela apreensão da “feminilidade” como discurso produzido social e historicamente. Neste processo de desmistificação de essencializações, nos são apresentados os mais diversos mecanismos por meio dos quais

as artistas acadêmicas permaneceram por muito tempo nas sombras e suas obras sofreram uma dupla desvalorização. Como muitas produções do período, inclusive as masculinas, padeceram das conseqüências do legado modernista, que com seu crivo impiedoso desmereceu tudo o que lhe era anterior, salvo o Barroco, cujas obras foram por eles alçadas como genuinamente nacionais. Além disso, por serem vistas em sua época como artistas “menores”, deixaram menos rastros do que os colegas masculinos bem-sucedidos; a pecha do amadorismo, essa invenção do século XIX, inibiu por muito tempo estudos sobre suas produções (p.303).

As discussões encaminhadas e também ilustradas por meio de trajetórias concretas evidenciam, para além das formas possíveis de superação da sina reservada às mulheres que aventuravam seguir carreira naqueles espaços tradicionalmente androcêntricos, a porção individual das “ousadias discretas” (p.287) por elas agenciadas, para que conseguissem subverter as posições desvantajosas em que se encontravam, tirando partido de adequadas conjugações entre “o nível educacional, a habilidade técnica, o capital social, as parcerias afetivas, a sagacidade pessoal” (p. 26), elementos capazes de lhes facultar maiores ou menores possibilidades de êxito no exercício da “profissão artista”.

Um trabalho de restituição de “ausências” como este não pode passar despercebido!

Michele Asmar Fanini – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – FFLCH – Universidade de São Paulo – USP – 05508-030 – São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected].