(Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História – MAIA et. al (HE)

MAIA, Tatyana de Amaral; ALVES, Luís Alberto Marques; HERMETO, Miriam; RIBEIRO, Cláudia Sofia Pinto (Org.). (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História. Porto Alegre: EdiPUCRS; Porto: CITCEM, 2016. 286 p. Resenha de: CARMO, Maria Andréa Angelotti. A responsabilidade social do ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 231-237, jul./dez. 2017.

Historicamente, uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades está no controle sobre a memória, o esquecimento e os silêncios na História, conforme argumenta Le Goff (2003). Nessa perspectiva, as batalhas entre os registros e a hegemonia sobre determinada memória são marcadas pelos silêncios, esquecimentos e confrontos que compõem a história das sociedades humanas e, em especial, das democracias atuais. As sociedades, cujas histórias encontram-se inseridas em processos ditatoriais, têm enfrentado seus passados recentes a partir de temas e conteúdos compreendidos como sensíveis, dolorosos e de difícil consenso.

É o caso das sociedades ibéricas e sul-americanas. Qual, então, o papel do ensino de História no processo de construção, reelaboração, manutenção, mediação, e outros tratamentos da memória, nessas sociedades? Um olhar atento sobre esses passados, e seu ensino, nas sociedades ibéricas e sul-americanas, constitui a feliz contribuição que se apresenta na coletânea (Re)Construindo o Passado: o papel insubstituível do ensino de História, publicada pela Editora da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul em parceria com o Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) da Universidade do Porto, Portugal.

A obra é organizada pelas professoras brasileiras Tatyana de Amaral Maia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Miriam Hermeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pelos professores portugueses Luís Alberto Marques Alves e Cláudia Sofia Pinto Ribeiro, ambos da Universidade do Porto. A coletânea conta com análises e pesquisas da temática no Brasil e em Portugal e traz, ainda, a participação de pesquisadores espanhóis e argentinos num exercício em que compreendem a necessidade contínua de reflexão sobre os usos do passado, e de como eles se apresentam, e são tratados, no ensino. Os artigos resultam de distintas pesquisas que envolvem perspectivas de alunos, professores, propostas curriculares e manuais didáticos de ensino de História. Ainda, abordam a forma como memórias, narrativas, percepções do passado são eleitas para comporem, ou não, o quadro dos conteúdos, formas de apresentação e abordagens históricas.

A coletânea está dividida em duas partes, de modo a contemplar os estudos sobre as sociedades ibéricas e sul-americanas em suas peculiaridades e particularidades: Os passados dolorosos na Europa e Os passados dolorosos na América Latina são compostas por quatro artigos cada uma, o que disponibiliza, ao leitor, um amplo panorama da temática nos diferentes países e contextos, a partir de análises de um rico e diverso leque de fontes e do emprego das mais diversas metodologias.

Na primeira parte, Luís Alberto Alves e Cláudia Ribeiro refletem sobre o que temos feito dos “nossos passados históricos”, dos quais não queremos lembrar. Ensinar passados dolorosos, aprender com o uso pedagógico da história apresenta os resultados e análises de uma longa pesquisa realizada com estudantes do 9º. e do 12º. anos da Educação Básica, e professores de História, em Portugal. Os autores compreendem que o passado, por mais doloroso que seja, deve transformar-se “num conhecimento inteligível e, a partir daí, acreditar num devir de melhoria (esperança) que seja suportado na inteligibilidade” (p. 28). Os passados dolorosos precisariam ser trabalhados por docentes “preparados cientificamente e intelectualmente honestos”, a fim de fornecer “recursos variados, perspectivas heterogêneas, sínteses consensuais englobando contributos dos seus interlocutores” (p. 27). Por meio das análises de entrevistas com professores e alunos, os autores tratam as “questões socialmente vivas” e remanescentes da Guerra Colonial, consideradas, pela maioria dos entrevistados, como o ápice do passado doloroso da sociedade portuguesa.

Na análise de Aprendizagem histórica dos passados dolorosos: as “guerras coloniais” nas narrativas de jovens portugueses, Marçal de Menezes Paredes e Tatyana de Amaral Maia refletem acerca da aprendizagem e educação histórica como campo de pesquisa em que se busca “investigar os processos pelos quais alunos constroem o seu conhecimento histórico e como aprendem os conceitos estruturantes da disciplina” (p. 51). Em um segundo momento, os autores analisam as maneiras de compreender a história da Guerra Colonial dos alunos portugueses, considerando os passados dolorosos circunscritos às experiências traumáticas e “passados que ameaçaram romper com a cultura histórica moderna que inclui a defesa de valores considerados universais e intrínsecos aos indivíduos” (p. 63). Nessa pesquisa, a apreciação das narrativas de estudantes leva os autores a entenderem que a História ensinada ainda exerce um papel tido por essencial na compreensão da experiência vivida. No entanto, revelam, também, os desejos de esquecimento, o silêncio sobre esse passado ou mesmo o tratamento superficial das questões na forma como são abordadas no ensino ou pela opinião pública.

Beatriz de Las Heras, no artigo (Re)construindo a história a partir da (re)presentação visual: memória da Guerra Civil espanhola em Madrid por meio da fotografia, argumenta que a fotografia não mostra a realidade, mas mostra realidades (p. 82). A autora trabalha quatro conceitos chaves considerados relevantes para a compreensão do processo de (re)construção da história a partir das imagens: memória, fragmento, saber lateral e (re)presentação.

As formas como trabalharam os fotógrafos na cidade de Madrid, bem como as estratégias de propaganda mais utilizadas durante a guerra, também são consideradas ao longo do texto. Apresentando um conjunto de fotografias e tecendo profundas análises, Las Heras aponta as estratégias de mostrar, ocultar, reter e reconduzir, utilizadas pelas autoridades durante a guerra civil espanhola. Neste texto, a fotografia e todo seu processo de “fabricação” são compreendidos como um processo de criação de um discurso que finda por se converter na memória do acontecimento. A leitura nos apresenta a inquietação e preocupação quanto aos usos, produção e emprego das imagens, especialmente na sociedade contemporânea, em que a chegada da tecnologia se converteu em um grande programador de olhares, e registros, de memórias.

No artigo Abordagem ao ensino da Guerra Civil e da ditadura de Franco na Espanha contemporânea, Claire Magill observa as “diferenças nas abordagens dos professores no que respeita à relação explícita entre o passado e o presente” (p. 116), e analisa as metodologias adotadas pelos profissionais do ensino ao ministrarem os temas da Guerra Civil e da Ditadura de Franco. As investigações da autora levam-na a deparar-se com cinco grupos/categorias de professores, assim descritos: aqueles que não se privaram de ensinar o tema potencialmente polêmico, mas também não criaram oportunidades para abordar tais questões (p. 120); aqueles que enfrentam verdades desconfortáveis, mitos e preconceitos, e procuram sensibilizar seus alunos para os perigos de reduzir questões históricas e complexas a explicações simplistas e maniqueístas da História (p. 122); aqueles que em vez de apresentar múltiplas perspectivas e incentivar seus alunos a fazerem suas próprias escolhas, tendem a apresentar suas próprias opiniões, sem incentivar o debate ou a discussão (p. 126); aqueles que mostram clara preferência por manterem-se afastados de questões polêmicas ou controversas; aqueles que relutam em abordar o tema ou relacionar o passado e o presente; aqueles que tratam a questão, mas não conseguem explorar o tema em profundidade.

Não se trata apenas de nomear uma ou outra atuação docente, tampouco culpar os docentes e sua atuação, mas busca-se refletir acerca das dificuldades encontradas para trabalhar questões não amplamente consensuais e conflituosas na sociedade contemporânea. Ressalta-se a necessidade de desenvolver programas de formação profissional, adequados e pertinentes, no contexto espanhol e em outros contextos.

Na segunda parte da obra temos O ensino de história e os “passados dolorosos”: a questão das ditaduras na América Latina, texto no qual Marcos Napolitano e Mariana Villaça apresentam o debate historiográfico sobre a temática, propondo oferecer alguns subsídios para que o professor possa abordar o tema, instigando os alunos a compreendê-lo historicamente (p. 155). Após apresentar um panorama das ditaduras na América Latina e suas principais questões, os autores indicam um conjunto de temas, conteúdos, materiais, e atividades didáticas, que podem auxiliar os professores no tratamento dessas questões, além de indicarem bibliografias sobre os golpes e regimes militares.

Por sua vez, Maria Paula Gonzáles debruça-se sobre a última ditadura na Argentina e a observa como “um passado que não passa” perpetua-se em um grande desafio para a escola habituada e convencida de seu caráter neutro. O Ensino da História e passados sensíveis: olhares sobre o caso argentino provoca-nos ao trazer uma abordagem acerca das narrativas, dos regulamentos educativos e, principalmente, das práticas e desafios que se apresentam aos professores de história no ensino de uma temática histórica do tempo presente. Após mergulhar na documentação, e analisar as práticas de ensino como estratégias e táticas construídas no tempo e no contexto, a autora aponta que o tratamento da história nas escolas está “tensionado pela natureza recente e polêmica, a condição aberta e inacabada, o caráter traumático, as questões éticas e políticas, o privilégio da memória sobre a história” (p. 219). A autora destaca, ainda, a relevância de se reconhecer os problemas acarretados pelo tratamento dado ao passado, oportuniza a revisão das maneiras pelas quais pensamos a história como reelaboração do passado, e os significados que damos ao seu ensino.

Com o título de Justa memória, dívida ética e passados-presentes dolorosos: questões a partir da análise de interpretações sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) em livros didáticos de História, o penúltimo artigo da obra apresenta a reflexão de Mateus Henrique de Faria Pereira e Miriam Hermeto, que versa sobre a “tensão entre as práticas do dever de memória e do trabalho de memória” (p. 228). Os autores discorrem sobre os temas da arte engajada e do Golpe de 1964, e de como eles são abordados e dispostos nos 46 manuais didáticos analisados. Os livros didáticos são compreendidos como produtos culturais e instrumentos pedagógicos que se tornaram guardiões e construtores da memória e do saber escolar (p. 243), e o ensino de história pode contribuir para o exercício de superação de uma história “puramente traumática” em direção à transformações no e do presente. O texto encoraja a discussão de maneira crítica e sistemática da escrita da produção didática e a reflexão sobre o dever e o trabalho de memória, cuja incumbência parece incidir sobre ensino de História, de modo a contribuir para que processos históricos não voltem a ocorrer.

O empenho contido no último artigo da obra, Os passados dolorosos no ensino de História: trauma, memória e direitos humanos, de Tatyana de Amaral Maia, é compreender como a legislação e os documentos curriculares que orientam o ensino de História tratam do tema e expõem a ação oblíqua do Estado brasileiro, quanto ao dever de memória e à ampliação da justiça de transição (p. 264). Após profundas análises acerca da instituição e atuação da Comissão Nacional da Verdade e seus contextos, bem como dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a autora provoca quanto à naturalização da seleção de determinados conteúdos históricos, e sobre o discurso meramente retórico de defesa dos direitos humanos, apontando que é preciso integrar os currículos dedicados ao ensino de História e à Educação em Direitos Humanos, de modo a favorecer a superação dos legados autoritários na sociedade. Para a autora, o ensino de História pode ser um espaço privilegiado para a reflexão sobre a ditadura militar e seus legados, e pode romper com a “política do esquecimento” que teria sido implantada junto com a “transição negociada” experimentada pela sociedade brasileira (p. 263).

A obra (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História instaura a oportunidade de olhar para os passados dolorosos sob a perspectiva do ensino, mas também possibilita ampliar o olhar para além de materiais didáticos e conteúdos curriculares, apresentando diferentes fontes, linguagens, e contextos, em que se pesam elementos como o compromisso e a honestidade intelectual para com a sociedade e seus enfrentamentos sociais e históricos, bem como para com as populações, e grupos, diretamente marcados pela violência, cujas memórias parecem manter-se sob a “sombra” dos registros e discursos hegemônicos.

A coletânea oportuniza rememorar o privilégio e o dever do ensino de História no processo de (re)construção de passados recentes, reconhecimentos e esclarecimentos de usos e abusos. (Re)construção de sua força no combate aos “esquecimentos” e de sua possibilidade de contribuição na formação de uma sociedade nas quais suas histórias não repitam os processos cingidos pela dor.

Maria Andréa Angelotti Carmo –  Professora Adjunta no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutoranda em História pela Universidade do Porto, Portugal.