Construtores do Império – defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais 1823-1834

Dentre os estudos mais recentes que se debruçam sobre o processo de construção do Estado nacional no Brasil, a obra de Carlos Eduardo França de Oliveira – vencedora do 5º Prêmio de Teses da Anpuh – se destaca como inovadora e polêmica. Resultado de Doutorado defendido em 2014, ela desconfia, como escreve Cecília Helena Salles de Oliveira no prefácio, do “saber já sabido” e das certezas prévias. Isso pelo motivo de se inscrever em um movimento de renovação historiográfica que, sobretudo nas últimas duas décadas, amparando-se em exaustiva exploração de fontes e referenciais teórico-metodológicos diversos, tem contribuído para o esclarecimento de aspectos fundamentais da sociedade brasileira no século XIX.

Durante muitas décadas, a história do período imperial brasileiro foi pensada a partir de duas temáticas essenciais: a revolução liberal como projeto inacabado e a escravidão. Resguardadas suas especificidades, as leituras tradicionais sobre as origens, as instituições e o percurso do Brasil independente, baseando-se em paradigmas do ideário liberal formulados no Oitocentos e (re)configurados à luz das interpretações posteriores, apontavam ao menos para três grandes assertivas: a conservação de uma incômoda herança colonial que impossibilitou o efetivo desenvolvimento de cidadãos; o profundo desarranjo das ideias e práticas políticas europeia e estadunidense aplicadas à dinâmica do liberalismo brasileiro, marcado pelo cativeiro de africanos; e, por último, porém não menos importante, a fase imperial do Brasil como momento desprovido de perfil próprio, sendo mera etapa entre a época colonial e a republicana de sua história.[3]

Ao propor uma análise da ascensão de políticos paulistas e mineiros no processo de formação do Estado nacional brasileiro entre 1823 a 1834, enfatizando-se a criação das esferas do poder provincial em São Paulo e Minas Gerais, bem como a projeção desses agentes no cenário político da Corte fluminense, Oliveira vincula-se a um conjunto maior de estudos renovados sobre a formação do Império do Brasil. Essas interpretações, inspiradas por questões contemporâneas e pelas crescentes análises desenvolvidas nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras a partir da segunda metade do século XX, vêm repensando a supremacia do “econômico” sobre as práticas e o imaginário dos agentes históricos, fazendo cair por terra conclusões que sublinham o suposto “atraso” da sociedade brasileira em relação à modernidade, sua intangibilidade e inconsistência no século XIX, como também a incompatibilidade entre liberalismo e a lógica escravista.[4]

Desse modo, unindo-se ao rol de análises que revalorizaram os estudos políticos em uma ampla variedade de temas, da cultura política ao constitucionalismo, da formação dos espaços públicos e formas de sociabilidades às identidades e às transformações das mentalidades dos agentes que experienciaram as rupturas entre os séculos XVIII e XIX, [5] o autor coloca em outra ordem de importância o papel da cultura e das iniciativas dos indivíduos, especialmente de paulistas e mineiros, na formação da sociedade brasileira e consolidação do projeto liberal moderado. Baseando-se em repertório amplo de fontes variadas, como documentos oficiais e periódicos, assim como em uma bibliografia abrangente e atualizada, Oliveira joga luz sobre o arranjo de relações que envolveram instituições e homens, marcando a consolidação da província como novo lócus de poder.

No primeiro capítulo, Oliveira explora os vínculos entre política e economia nas províncias de São Paulo e Minas Gerais nos primeiros anos do Império, chamando a atenção para os grupos e sua incorporação no processo de construção da nova ordem monárquica-constitucional com sede no Rio de Janeiro. Esse processo, de um lado, assumiu lugar primordial ao assegurar a integridade do novo Estado e, de outro, permitiu a esses mesmos círculos a conquista de participação política na Corte. Problematizando a tese decadentista (segundo a qual as dinâmicas das duas províncias estagnou após o declínio da produção aurífera mineira), o autor defende que, mais do que redutos de nomes consagrados no processo de Independência, São Paulo e Ouro Preto foram importantes arenas de disputa e articulação política em que parcelas socioeconômicas plurais, vindas de variadas partes das províncias, batalhavam pelo poder.

Evitando intepretações rígidas que unem segmentos socioeconômicos específicos a orientações políticas particulares seguindo um fio único de interesses, o autor convida o leitor a olhar para a diversidade de situações e fidelidades que coloriam um quadro mais amplo de relações políticas, econômicas e sociais da época. Assim, como contraponto à vertente mais tradicional, Oliveira implode categorias como “centro” e “província”, “interesse nacional” e “interesse local”, enfocando as formas negociadas com que mineiros e paulistas foram concebendo suas províncias como espaços essenciais de articulação política e poder.

No segundo capítulo, o autor detém-se na exposição pormenorizada dos principais aspectos dos conselhos provinciais – Conselho da Presidência e Conselho Geral – em São Paulo e Minas Gerais, principalmente seu funcionamento, ação política e participação na composição do poder nessas regiões. Oliveira trata, primeiro, da dinâmica do Conselho da Presidência e da atuação dos presidentes de província, relativizando a historiografia que caracteriza o Primeiro Reinado como momento “centralizador”, no qual os chefes do Executivo provincial seriam meros “delegados” a serviço de D. Pedro. O autor tece sua problematização com perícia, apontando como a atuação dos vice-presidentes – sujeitos escolhidos nas próprias localidades – e do Conselho da Presidência serviram de contrapeso ao poder dos presidentes. Ademais, o autor afirma que os Conselhos da Presidência paulista e mineiro, ultrapassando o papel de órgãos consultivos a serviço dos presidentes de província, se elevaram a âmbito privilegiado de prática política, seguindo os moldes de um regime representativo preocupado com a defesa dos preceitos monárquico-constitucionais.

Na segunda parte, Oliveira apresenta o processo de instalação dos Conselhos Gerais nas províncias de Minas Gerais e São Paulo, conforme previsto na Carta de 1824. A partir da exposição da relação entre esses órgãos, câmaras municipais e finanças provinciais, o autor delineia um panorama em que aponta como o aparelhamento político-administrativo das províncias, ligado às realidades locais e certa margem de autonomia para geri-lo, foi chave para a manutenção e consolidação do Estado monárquico-constitucional.

Para dar conta das formas como políticos paulistas e mineiros ocuparam o Legislativo do Império a partir de 1826, Oliveira apresenta e discute os aspectos fundamentais da representação e do encaminhamento dos assuntos provinciais na Câmara dos Deputados e no Senado. Na primeira parte, ele aborda a composição das bancadas mineira e paulista na Câmara dos Deputados. Explanando uma temática pouco explorada, o autor matiza o enfrentamento que ocorreu no Parlamento, especialmente na câmara baixa, como simples embate entre os herdeiros de um suposto conflito entre “portugueses” e “brasileiros” na Independência. Afirma que o âmbito da Câmara dos Deputados se configurou como espaço de matizes e nuances, no qual a distinção entre os grupos políticos não pode ser compreendida como elemento preexistente à luta política. Tampouco havia uma simetria entre inserção econômica e posicionamento político, como também uma dicotomia entre províncias e Corte.

Há que mencionar ainda que o autor aborda um dado importante não desenvolvido por muitos estudos: o de como os grupos políticos parlamentares teriam se inserido no sistema eleitoral das províncias paulista e mineira, forjando-se no espaço local para, a partir dele, se rearticular na Câmara dos Deputados. Longe de estabelecer uma simplificadora correspondência entre fidelidades de origem, representação e aprovação de pautas provinciais, baseada em uma relação de causa e efeito, Oliveira põe em exibição uma realidade mais cambiante, em que a composição das bancadas paulista e mineira nas três legislaturas da câmara baixa dependeram da convergência de um emaranhado de fatores como distintas concepções de representação e projeto de Estado, questões político-institucionais, alianças (inter)provinciais, rivalidades entre os grupos políticos, tensões sobre perspectivas diversas a respeito dos negócios e de ocupações dos espaços administrativos. Portanto, conclui que o encaminhamento das necessidades provinciais na Câmara dos Deputados foi um processo complexo que não se diluía na transposição automática das demandas das províncias para o Legislativo.

Dando prosseguimento à discussão sobre a maneira como os representantes provinciais deram vazão às demandas das suas províncias, um segundo movimento, ainda relacionado à primeira parte, dá conta da análise do engajamento do Senado no tocante às demandas que partiam de São Paulo e Minas Gerais. De novo, o autor rompe com afirmações prévias, relativizando a ideia de um Senado fechado em si mesmo, atento apenas às estratégias de contenção da câmara baixa. Pelo contrário, Oliveira assume que tais assertivas desembocaram em deduções simplistas e perigosas. Apesar do envolvimento menor do Senado com as propostas dos Conselhos Gerais, não se pode dizer que a casa vitalícia era desalinhada das causas provinciais. Mesmo diante da sua maior autonomia frente às bases eleitorais das províncias, perceber o Senado superficialmente como instrumento político em prol do monarca e de seus ministros, provoca o autor, seria cair no jogo retórico dos liberais, produzido especialmente pelos moderados da época.

Na segunda parte, o autor tematiza a questão do comprometimento dos deputados com as propostas dos Conselhos Gerais, sobretudo daqueles que ocuparam as duas instituições, a fim de encarar se eles eram “homens da província”, ou seja, seus representantes no Parlamento. No fim da análise, o autor conclui que as pautas dos Conselhos Gerais serviram para os parlamentares como instrumento de luta e negociação política, no qual assegurar os interesses provinciais nem sempre foi o objetivo final. Além do mais, essa dinâmica teria sido permeada por um encadeamento complexo de relações entre os eleitores, conselheiros-gerais, deputados e senadores, perpassado por outros fatores como enfrentamentos políticos, heterogeneidade das bancadas provinciais, autonomia dos legisladores em relação às bases eleitorais e existência de tópicos considerados mais relevantes do ponto de vista nacional. Nesse sentido, Oliveira esvazia categorias como “interesse local” e “interesse nacional”, já que para esses legisladores ao fazer política provincial, direta ou indiretamente, eles estavam dando conta também da política nacional e vice-versa.

Dividido em cinco partes, o quarto e último capítulo é o maior do livro. Na primeira parte, o autor apresenta em linhas gerais o clima de tensão e redefinição de forças que caracterizou o contexto político após a saída de D. Pedro, um quadro marcado pelas discussões em torno de uma reforma constitucional do país nascente. O autor faz uma ponderação metodológica relevante, recomendando ao especialista que evite descrições estanques, tendo em vista a fluidez que os termos “moderados”, “exaltados” e “caramurus” possuem. A coerência programática desses grupos, forjada pelos próprios coevos, pesava menos do que sua função política influenciada pelas tensões em jogo.

Na segunda parte, Oliveira sugere que a elaboração de um movimento de reforma constitucional atrelou-se à intensificação da investida liberal contra o governo pedrino no Primeiro Reinado, o que também gerou uma fratura entre os grupos liberais, particularmente acerca das relações entre Legislativo e Executivo. Nessa lógica, os debates sobre a reforma da Carta de 1824 travados depois da abdicação de D. Pedro I, em 1831, retomariam, sob nova luz, questões já presentes no triênio de 1821 a 1823, sobretudo as relações entre centro e província, as atribuições que caberiam ao Poder Moderador, a existência do Conselho de Estado e a vitaliciedade dos senadores, solapadas com o fechamento da Constituinte por D. Pedro. Toda essa discussão não se restringiu só aos setores oficiais da luta política. Ela alargou o espectro social de ação política, como aponta o autor na terceira parte, percebida nos debates levados a cabo pelos círculos dos alunos do Curso Jurídico de São Paulo e vários periódicos mineiros e paulistas. Toda a tensão em torno da reforma constitucional desencadeou uma restruturação do campo de luta política.

Na penúltima parte, o autor não economiza esforços para demonstrar que as discussões em torno do projeto de reforma constitucional propunham mudanças radicais na estrutura política do Império, permeada pelas ideias de federação que seriam exploradas a fundo pela imprensa e pelos heterogêneos grupos políticos. Com o adensamento da inevitabilidade da reforma, tanto ela quanto o sistema federativo em si acabaram ganhando uma conotação positiva em meio à então resistente ala moderada, que via na ampliação dos poderes provinciais, especialmente de cunho legislativo e fiscal, uma maneira para se garantir no poder, resguardando a continuidade da monarquia-constitucional. Na última parte, o autor apresenta as discussões que culminaram no Ato Adicional, apontando que as maiores polêmicas em relação à reforma constitucional repousaram nas atribuições das Assembleias Legislativas. Aqui o pesquisador, mais uma vez, assume uma postura revisionista, amparando-se em autoras como Miriam Dolhnikoff e Maria de Fátima Gouvêa, encarando a execução da reforma como parte de um arcabouço legal maior que vinha sendo gestado anteriormente.

Baseado em uma bibliografia vasta e atualizada, como também em variedade de fontes de natureza diversas, Carlos Eduardo França de Oliveira tece apontamentos e questionamentos pertinentes sobre um momento complexo da história do estabelecimento do Estado nacional brasileiro. Sem se deter em um único segmento social em São Paulo e Minas Gerais e, muitas vezes, apontando o que acontecia em outras províncias do Império, o autor esboça o emaranhado de relações múltiplas e cambiantes que esses indivíduos teceram, sem que tal dinâmica se restringisse à cooptação de forças pelo poder central na Corte ou outras associações unilaterais. Desse modo, ancorado nesse processo de ampla complexidade, o autor ressignifica episódios importantes do período, fazendo cair por terra ideias pouco fluídas como “centro” vs. “província” e “interesse nacional” vs. “interesse provincial”.

Notas

1. Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos – São Paulo.

2. Graduada em História e mestranda do Departamento de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP, processo nº 2018/11696-0. E-mail: [email protected]

3. MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: ______ (orgs.) Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 10-11.

4. Ibidem, p. 11.

5. GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 183, 2. Semestre 2013.

Referências

GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 183, 2. Semestre 2013.

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (orgs.) Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017.

Claudia de Andrade1-2 – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos – São Paulo. Graduada em História e mestranda do Departamento de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP, processo nº 2018/11696-0. E-mail: [email protected]


OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017. Resenha de: ANDRADE, Claudia de. O império negociado: agentes provinciais no ajuste da ordem no Brasil independente. Almanack, Guarulhos, n.22, p. 619-626, maio/ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

(Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História – MAIA et. al (HE)

MAIA, Tatyana de Amaral; ALVES, Luís Alberto Marques; HERMETO, Miriam; RIBEIRO, Cláudia Sofia Pinto (Org.). (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História. Porto Alegre: EdiPUCRS; Porto: CITCEM, 2016. 286 p. Resenha de: CARMO, Maria Andréa Angelotti. A responsabilidade social do ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 231-237, jul./dez. 2017.

Historicamente, uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades está no controle sobre a memória, o esquecimento e os silêncios na História, conforme argumenta Le Goff (2003). Nessa perspectiva, as batalhas entre os registros e a hegemonia sobre determinada memória são marcadas pelos silêncios, esquecimentos e confrontos que compõem a história das sociedades humanas e, em especial, das democracias atuais. As sociedades, cujas histórias encontram-se inseridas em processos ditatoriais, têm enfrentado seus passados recentes a partir de temas e conteúdos compreendidos como sensíveis, dolorosos e de difícil consenso.

É o caso das sociedades ibéricas e sul-americanas. Qual, então, o papel do ensino de História no processo de construção, reelaboração, manutenção, mediação, e outros tratamentos da memória, nessas sociedades? Um olhar atento sobre esses passados, e seu ensino, nas sociedades ibéricas e sul-americanas, constitui a feliz contribuição que se apresenta na coletânea (Re)Construindo o Passado: o papel insubstituível do ensino de História, publicada pela Editora da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul em parceria com o Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) da Universidade do Porto, Portugal.

A obra é organizada pelas professoras brasileiras Tatyana de Amaral Maia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Miriam Hermeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pelos professores portugueses Luís Alberto Marques Alves e Cláudia Sofia Pinto Ribeiro, ambos da Universidade do Porto. A coletânea conta com análises e pesquisas da temática no Brasil e em Portugal e traz, ainda, a participação de pesquisadores espanhóis e argentinos num exercício em que compreendem a necessidade contínua de reflexão sobre os usos do passado, e de como eles se apresentam, e são tratados, no ensino. Os artigos resultam de distintas pesquisas que envolvem perspectivas de alunos, professores, propostas curriculares e manuais didáticos de ensino de História. Ainda, abordam a forma como memórias, narrativas, percepções do passado são eleitas para comporem, ou não, o quadro dos conteúdos, formas de apresentação e abordagens históricas.

A coletânea está dividida em duas partes, de modo a contemplar os estudos sobre as sociedades ibéricas e sul-americanas em suas peculiaridades e particularidades: Os passados dolorosos na Europa e Os passados dolorosos na América Latina são compostas por quatro artigos cada uma, o que disponibiliza, ao leitor, um amplo panorama da temática nos diferentes países e contextos, a partir de análises de um rico e diverso leque de fontes e do emprego das mais diversas metodologias.

Na primeira parte, Luís Alberto Alves e Cláudia Ribeiro refletem sobre o que temos feito dos “nossos passados históricos”, dos quais não queremos lembrar. Ensinar passados dolorosos, aprender com o uso pedagógico da história apresenta os resultados e análises de uma longa pesquisa realizada com estudantes do 9º. e do 12º. anos da Educação Básica, e professores de História, em Portugal. Os autores compreendem que o passado, por mais doloroso que seja, deve transformar-se “num conhecimento inteligível e, a partir daí, acreditar num devir de melhoria (esperança) que seja suportado na inteligibilidade” (p. 28). Os passados dolorosos precisariam ser trabalhados por docentes “preparados cientificamente e intelectualmente honestos”, a fim de fornecer “recursos variados, perspectivas heterogêneas, sínteses consensuais englobando contributos dos seus interlocutores” (p. 27). Por meio das análises de entrevistas com professores e alunos, os autores tratam as “questões socialmente vivas” e remanescentes da Guerra Colonial, consideradas, pela maioria dos entrevistados, como o ápice do passado doloroso da sociedade portuguesa.

Na análise de Aprendizagem histórica dos passados dolorosos: as “guerras coloniais” nas narrativas de jovens portugueses, Marçal de Menezes Paredes e Tatyana de Amaral Maia refletem acerca da aprendizagem e educação histórica como campo de pesquisa em que se busca “investigar os processos pelos quais alunos constroem o seu conhecimento histórico e como aprendem os conceitos estruturantes da disciplina” (p. 51). Em um segundo momento, os autores analisam as maneiras de compreender a história da Guerra Colonial dos alunos portugueses, considerando os passados dolorosos circunscritos às experiências traumáticas e “passados que ameaçaram romper com a cultura histórica moderna que inclui a defesa de valores considerados universais e intrínsecos aos indivíduos” (p. 63). Nessa pesquisa, a apreciação das narrativas de estudantes leva os autores a entenderem que a História ensinada ainda exerce um papel tido por essencial na compreensão da experiência vivida. No entanto, revelam, também, os desejos de esquecimento, o silêncio sobre esse passado ou mesmo o tratamento superficial das questões na forma como são abordadas no ensino ou pela opinião pública.

Beatriz de Las Heras, no artigo (Re)construindo a história a partir da (re)presentação visual: memória da Guerra Civil espanhola em Madrid por meio da fotografia, argumenta que a fotografia não mostra a realidade, mas mostra realidades (p. 82). A autora trabalha quatro conceitos chaves considerados relevantes para a compreensão do processo de (re)construção da história a partir das imagens: memória, fragmento, saber lateral e (re)presentação.

As formas como trabalharam os fotógrafos na cidade de Madrid, bem como as estratégias de propaganda mais utilizadas durante a guerra, também são consideradas ao longo do texto. Apresentando um conjunto de fotografias e tecendo profundas análises, Las Heras aponta as estratégias de mostrar, ocultar, reter e reconduzir, utilizadas pelas autoridades durante a guerra civil espanhola. Neste texto, a fotografia e todo seu processo de “fabricação” são compreendidos como um processo de criação de um discurso que finda por se converter na memória do acontecimento. A leitura nos apresenta a inquietação e preocupação quanto aos usos, produção e emprego das imagens, especialmente na sociedade contemporânea, em que a chegada da tecnologia se converteu em um grande programador de olhares, e registros, de memórias.

No artigo Abordagem ao ensino da Guerra Civil e da ditadura de Franco na Espanha contemporânea, Claire Magill observa as “diferenças nas abordagens dos professores no que respeita à relação explícita entre o passado e o presente” (p. 116), e analisa as metodologias adotadas pelos profissionais do ensino ao ministrarem os temas da Guerra Civil e da Ditadura de Franco. As investigações da autora levam-na a deparar-se com cinco grupos/categorias de professores, assim descritos: aqueles que não se privaram de ensinar o tema potencialmente polêmico, mas também não criaram oportunidades para abordar tais questões (p. 120); aqueles que enfrentam verdades desconfortáveis, mitos e preconceitos, e procuram sensibilizar seus alunos para os perigos de reduzir questões históricas e complexas a explicações simplistas e maniqueístas da História (p. 122); aqueles que em vez de apresentar múltiplas perspectivas e incentivar seus alunos a fazerem suas próprias escolhas, tendem a apresentar suas próprias opiniões, sem incentivar o debate ou a discussão (p. 126); aqueles que mostram clara preferência por manterem-se afastados de questões polêmicas ou controversas; aqueles que relutam em abordar o tema ou relacionar o passado e o presente; aqueles que tratam a questão, mas não conseguem explorar o tema em profundidade.

Não se trata apenas de nomear uma ou outra atuação docente, tampouco culpar os docentes e sua atuação, mas busca-se refletir acerca das dificuldades encontradas para trabalhar questões não amplamente consensuais e conflituosas na sociedade contemporânea. Ressalta-se a necessidade de desenvolver programas de formação profissional, adequados e pertinentes, no contexto espanhol e em outros contextos.

Na segunda parte da obra temos O ensino de história e os “passados dolorosos”: a questão das ditaduras na América Latina, texto no qual Marcos Napolitano e Mariana Villaça apresentam o debate historiográfico sobre a temática, propondo oferecer alguns subsídios para que o professor possa abordar o tema, instigando os alunos a compreendê-lo historicamente (p. 155). Após apresentar um panorama das ditaduras na América Latina e suas principais questões, os autores indicam um conjunto de temas, conteúdos, materiais, e atividades didáticas, que podem auxiliar os professores no tratamento dessas questões, além de indicarem bibliografias sobre os golpes e regimes militares.

Por sua vez, Maria Paula Gonzáles debruça-se sobre a última ditadura na Argentina e a observa como “um passado que não passa” perpetua-se em um grande desafio para a escola habituada e convencida de seu caráter neutro. O Ensino da História e passados sensíveis: olhares sobre o caso argentino provoca-nos ao trazer uma abordagem acerca das narrativas, dos regulamentos educativos e, principalmente, das práticas e desafios que se apresentam aos professores de história no ensino de uma temática histórica do tempo presente. Após mergulhar na documentação, e analisar as práticas de ensino como estratégias e táticas construídas no tempo e no contexto, a autora aponta que o tratamento da história nas escolas está “tensionado pela natureza recente e polêmica, a condição aberta e inacabada, o caráter traumático, as questões éticas e políticas, o privilégio da memória sobre a história” (p. 219). A autora destaca, ainda, a relevância de se reconhecer os problemas acarretados pelo tratamento dado ao passado, oportuniza a revisão das maneiras pelas quais pensamos a história como reelaboração do passado, e os significados que damos ao seu ensino.

Com o título de Justa memória, dívida ética e passados-presentes dolorosos: questões a partir da análise de interpretações sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) em livros didáticos de História, o penúltimo artigo da obra apresenta a reflexão de Mateus Henrique de Faria Pereira e Miriam Hermeto, que versa sobre a “tensão entre as práticas do dever de memória e do trabalho de memória” (p. 228). Os autores discorrem sobre os temas da arte engajada e do Golpe de 1964, e de como eles são abordados e dispostos nos 46 manuais didáticos analisados. Os livros didáticos são compreendidos como produtos culturais e instrumentos pedagógicos que se tornaram guardiões e construtores da memória e do saber escolar (p. 243), e o ensino de história pode contribuir para o exercício de superação de uma história “puramente traumática” em direção à transformações no e do presente. O texto encoraja a discussão de maneira crítica e sistemática da escrita da produção didática e a reflexão sobre o dever e o trabalho de memória, cuja incumbência parece incidir sobre ensino de História, de modo a contribuir para que processos históricos não voltem a ocorrer.

O empenho contido no último artigo da obra, Os passados dolorosos no ensino de História: trauma, memória e direitos humanos, de Tatyana de Amaral Maia, é compreender como a legislação e os documentos curriculares que orientam o ensino de História tratam do tema e expõem a ação oblíqua do Estado brasileiro, quanto ao dever de memória e à ampliação da justiça de transição (p. 264). Após profundas análises acerca da instituição e atuação da Comissão Nacional da Verdade e seus contextos, bem como dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a autora provoca quanto à naturalização da seleção de determinados conteúdos históricos, e sobre o discurso meramente retórico de defesa dos direitos humanos, apontando que é preciso integrar os currículos dedicados ao ensino de História e à Educação em Direitos Humanos, de modo a favorecer a superação dos legados autoritários na sociedade. Para a autora, o ensino de História pode ser um espaço privilegiado para a reflexão sobre a ditadura militar e seus legados, e pode romper com a “política do esquecimento” que teria sido implantada junto com a “transição negociada” experimentada pela sociedade brasileira (p. 263).

A obra (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História instaura a oportunidade de olhar para os passados dolorosos sob a perspectiva do ensino, mas também possibilita ampliar o olhar para além de materiais didáticos e conteúdos curriculares, apresentando diferentes fontes, linguagens, e contextos, em que se pesam elementos como o compromisso e a honestidade intelectual para com a sociedade e seus enfrentamentos sociais e históricos, bem como para com as populações, e grupos, diretamente marcados pela violência, cujas memórias parecem manter-se sob a “sombra” dos registros e discursos hegemônicos.

A coletânea oportuniza rememorar o privilégio e o dever do ensino de História no processo de (re)construção de passados recentes, reconhecimentos e esclarecimentos de usos e abusos. (Re)construção de sua força no combate aos “esquecimentos” e de sua possibilidade de contribuição na formação de uma sociedade nas quais suas histórias não repitam os processos cingidos pela dor.

Maria Andréa Angelotti Carmo –  Professora Adjunta no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutoranda em História pela Universidade do Porto, Portugal.

Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia Heynemann e Maria do Carmo Teixeira Rainho

Em 1965, Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau cantaram, em samba-enredo do Império Serrano, uma história dos grandes bailes da história da cidade do Rio de Janeiro.[1]2 Um dos destacados pelos compositores, o último d'”Os cinco bailes da história do Rio”, era o baile da Ilha Fiscal, que o governo da monarquia promoveu em 9 de novembro de 1889 em homenagem à visita de oficiais chilenos ao país – poucos dias antes, portanto, do fim do regime. O tema não era novidade para a escola: em 1953 o Império ficou na segunda colocação no desfile com o samba “O último baile da Corte imperial”, assinado por Silas de Oliveira e Waldir Medeiros. Em 1957, foi a vez da Unidos de Vila Isabel relembrar a efeméride, indo para a avenida com o samba “O Último Baile da Ilha Fiscal”, de Paulo Brandão, ainda que sem tanto sucesso. A presença do baile da Ilha Fiscal nos três sambas sugere sua força como marco para a memória urbana do Rio de Janeiro.

O último e nababesco baile da monarquia brasileira ressurge no livro Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império (EdiPUCRS, 2014), organizado por Jurandir Malerba, Cláudia Heynemman e Maria do Carmo Rainho. O livro reúne artigos de especialistas nas mais diversas áreas (moda, música, gastronomia, esportes e política) sobre uma notável coleção de documentos que o capitão de fragata José Egydio Garcez Palha organizou recolhendo menus, carnês de bailes, partituras musicais e comentários variados na imprensa sobre o baile, seus participantes e seus promotores. Recolhida entre 1889 e 1891, a coleção pertence desde 1930 ao Arquivo Nacional.

Um dos pontos destacados pelos organizadores na apresentação da obra reside no farto manancial de informações sobre diferentes aspectos do fazer cotidiano da cidade que se queria moderna. Desde nuances do fazer da mais alta política em suas recepções diplomáticas aos cochichos e maledicências sugeridas na imprensa, passando pelas preferências estéticas da elite imperial em sua frequência a casas da moda, cabeleireiros e confeitarias, a coleção realça a grandiosidade daquele baile sob a ótica dos personagens da própria época. Mesmo quem não esteve entre os aproximadamente 4 mil presentes à grandiosa festa pôde sentir de perto a grandeza do momento. Do Cais Pharoux dava para apreciar a suntuosidade da Ilha Fiscal fartamente iluminada por fogos de variadas cores, 700 lâmpadas elétricas e 60 mil velas. Do cais, ademais, partiam as damas e senhores da sociedade rumo ao baile.

A recepção aos chilenos se estendeu para além do baile, tendo durado dois meses. Nesse tempo, um interlúdio: a república fora proclamada bem no meio da visita dos convidados daquele país, chegados ao Rio em meados de outubro e partindo da cidade em finais de novembro. Em que pese a mudança de regime, mantiveram-se as variadas atividades propostas aos ilustres visitantes. Não fosse a república, teriam ainda as conversas sobre o baile rendido mais um tanto? Seja como for, o fato é que, 15 de novembro à parte, a grandeza do ultimo baile da monarquia imprimiu sua marca indelével na memória da cidade.

“Dê-me um pouco de magia, de perfume e fantasia e também de sedução”: impressões sobre as festas chilenas.

No livro, os capítulos de autoria de Victor Melo, Carlos Sandroni, Laurent Suaudeau, Carlos Ditadi e de Maria do Carmo Rainho apresentam por meio da análise da imprensa o que os organizadores chamam de “clima de opinião”. De fato, brotaram comentários os mais variados nos jornais da cidade, incluindo a observação de costumes e práticas de elite não tão bem assimiladas por alguns dos convidados presentes no baile. Algo a se estranhar, a princípio, pois segundo Melo, coordenador do Laboratório de História e do Esporte e Lazer da UFRJ, “a cidade já estava acostumada e apreciava atividades públicas” de monta, desde teatros ao turfe e ao remo, passando por festividades religiosas e sociedades dançantes (p. 118-119; 158).

De fato, se nos fiarmos no samba de Ivone, Silas e Bacalhau, a tradição festiva da cidade vem de longe. Segundo o musicólogo Carlos Sandroni, na ausência de formas de comunicação como o rádio, eram as bandas musicais, geralmente militares, que embalavam as festas, numa mobilidade impressionante que lhes permitia tocar em locais diferentes no mesmo dia. Sua onipresença não marcaria apenas a importância e formalidade de ocasiões solenes. Pelo contrário, elas botavam as pessoas para dançar. No baile de Ilha Fiscal tocou-se de tudo: quadrilhas, valsas, polcas e lanceiros animaram os presentes madrugada adentro, até quase o sol raiar, prática comum, aliás, em outros bailes frequentados pelos cariocas (p. 138-140).

Ao som da música, o detalhe das práticas ditas civilizadas – inclusive porte e vestimenta adequados para as danças – passava como forte signo de distinção, aspecto que apontava proximidades políticas e maneiras de inclusão no regime, tema que perpassa toda a obra. Victor Melo, em capítulo sobre as práticas esportivas, apresenta as disputas entre grupos de elite por receber a comissão chilena em seus clubes de remo e de turfe, preferência entre os cariocas mas que dividia as elites. Esses clubes serviam de ponto de encontro e aproximação entre grupos de preferência política comum, como republicanos ou monarquistas, respectivamente (p. 121; 129). Idem para o porte nessas ocasiões ou mesmo à mesa: estima-se que o refinadíssimo banquete oferecido aos chilenos no baile da Ilha Fiscal tenha custado aos cofres públicos 250 contos de Réis, segundo Suaudeau, que é chefe de cozinha, e Debati, pesquisador no Arquivo Nacional, quase 10% do orçamento da província do Rio (p. 162). Repleto de iguarias da culinária estrangeira, especialmente francesa, o banquete foi alvo de crítica de parte da imprensa pelos seus custos e também pelo pouco apreço às “iguarias puramente brasileiras”, segundo matéria n’O Paiz (p. 166). Convidados e garçons também foram alvo da crítica de jornalistas: homens fumando, conversando alto, acotovelando as senhoras, atirando restos de comida ao chão receberam comentários reprovadores. Assim como os criados, considerados desleixados e um tanto “esquecidos” (p. 107, 165). As senhoras não foram poupadas: entre os objetos encontrados após o baile, havia até mesmo espartilhos e “algodões em rama”, usados por debaixo dos espartilhos para dar corpo às mulheres (p. 107). Ao que parece, os algodões perdidos – e que demandavam o manejo, digamos, mais complexo da vestimenta feminina – não foram poucos, segundo Sandroni (p. 144). Não haveria ocasião melhor para manejos mais quentes. Afinal, a proximidade de corpos em danças regradas (ou nem tanto) realçava um tipo particular de experiência sensual que legava às senhoras assíduas frequentadoras de baile a “fama de assanhadas”.

A falta de civilidade pareceu quase geral, segundo observadores, incluindo a adequação da roupa à ocasião. Perder espartilhos não era pouca coisa: frequentada como foi por “senhoras e cavalheiros da fina flor fluminense” (p. 144), festas como a oferecida aos chilenos inscrevem-se, segundo Rainho, especialista em História da Moda, numa “cultura das aparências” que ganhava força entre a elite carioca especialmente nos anos finais do Império. O baile da Ilha Fiscal gerou um apagão no comércio de modas na cidade: não havia costureiras, maisons e cabeleireiros suficientes para tanta dama convidada. Ao mesmo tempo que manuais de etiqueta ensinavam cada vez mais a circunspecção feminina, as roupas atuavam como um poderoso meio de sedução que não cabia nesses manuais (p. 199).

“Algo acontecia, era o fim da monarquia”: aproximações entre cultura e política.

Segundo Rainho, além do mais, algo chamava a atenção nos comentários na imprensa sobre o grandioso baile: a ausência de comentários sobre a vestimenta dos oficiais chilenos (p. 201). Sebastião Uchoa Leite, poeta e ensaísta, em texto originalmente publicado em 2003 para o projeto que deu origem ao livro, apresenta um ponto interessante nesse sentido. Em grande parte dos comentários e reportagens sobre a recepção dos chilenos havia “um clima de oposição crítica ao próprio status quo reinante no país” (p. 101).

“Espécie de miragem”, ainda segundo Leite, o baile teria sido o ponto culminante do significado das “festas” para a monarquia. A observação não deixa de ser paradoxal, dado que a corte de Pedro II era avessa a grandes festividades. Jurandir Malerba, professor da PUCRS, lembra que o último baile no Paço Imperial ocorrera em 1852 após o encerramento das atividades do Parlamento (p. 39). Nesse ínterim, a família imperial teria se contentado com apresentações teatrais um tanto amadoras e para poucos convidados. No que Malerba lança uma hipótese interessante: considerando a destreza política de Dom Pedro II e sua saúde já frágil que cada vez mais servia como justificativa para seu distanciamento da condução direta da política nacional, o baile da Ilha Fiscal pode ter sido calculado para encenar “o grand finale de seu reinado” (p. 42-43).

Minuciosamente representado como signo de civilização em terras americanas, o Império do Brasil apresentava também seu lado moderno por meio de sua capital, o Rio de Janeiro. Cláudia Heynemann, supervisora de pesquisa no Arquivo Nacional, chama atenção para o vasto roteiro de visitas da comissão chilena, que em muito se aproximava daqueles propostos por livros de viagem do oitocentos (p. 57). Malgrado a presença de alguns problemas como calçamento e arborização, o processo de modernização pelo qual passava a cidade na segunda metade do XIX entrelaçava natureza e cultura por meio de obras como as do Passeio Público, do Campo da Aclamação e do Jardim Botânico (p. 65), uma modernidade ao mesmo tempo pedagógica e disciplinar (p. 70). Cidade já bastante grande, que contava com 226 mil pessoas livres e quase 5 mil escravos segundo o censo de 1872, o Rio de Janeiro se complexificava: novos bairros foram criados, acompanhados pela expansão do serviço de trens e bondes. Novas práticas de sociabilidade surgiam a seguir marcadas por hábitos europeizados, segundo Vivien Ishaq, doutora em história. A rua do Ouvidor mantinha o cetro de polo dos modismos e do bom gosto, mas cada vez a cidade também se dividia em várias se considerarmos os usos distintos dos espaços pelos grupos de diferentes camadas da sociedade (p. 81-84).

Em comum a todos os artigos de Festas Chilenas está o destaque para o baile como espaço de autorrepresentação tanto das elites imperiais quanto do próprio regime: esse ponto é especialmente destacado por Sebastião Uchoa Leite e Jurandir Malerba. Leite, ao sublinhar aspectos políticos de ocasiões festivas, neste caso por meio da imprensa através das críticas a usos e maneiras apresentados no baile, afasta o caráter “ameno” da ocasião. Houve encontros entre os aproximadamente 4 mil presentes mas havia também tensões (p. 109-110), presentes já no momento de seleção dos convidados. Malerba, ao realçar o baile como momento político, o faz invertendo o argumento recorrente de que a monarquia apostava, ali, no início de um esplendoroso terceiro Reinado, sob a batuta de Isabel e secundada por seu esposo, o conde d’Eu. Para o autor, o baile foi um último lance político mas com repercussões na esfera da cultura: era a memória da monarquia que estava em jogo.

Malerba distancia-se, assim, do argumento de José Murilo de Carvalho de que o baile teria sido um “golpe de publicidade” pró-continuidade monárquica, pensado por este autor em grande medida a partir de obras ficcionais de Machado de Assis. Em sua argumentação, Malerba oferece ao monarca (e ao regime como um todo) o papel de agente de sua história – e da representação da memória de seu reinado. Ainda que lançado como hipótese, o argumento é interessante na medida em que se aproxima de discussões mais recentes no campo da cultura acerca de sua percepção como manancial de estratégias referendadas pelo contexto, e não como um todo encerrado em si mesmo (segundo uma concepção vulgar e equivocada, porém corrente, de sistema).

Na esfera da historiografia contemporânea, a micro-história propõe um importante debate nesse sentido. Sua aproximação com a antropologia, especialmente aquela proposta por Clifford Geertz, promoveu o entendimento da cultura como um campo no qual o sentido dos símbolos deve ser entendido na análise de situações sociais específicas – é exemplar a “descrição densa” da briga de galos balinesa proposta por Geertz.[2] Mais especificamente, a micro-história investe seu esforço de análise nas ressignificações dos símbolos em situações de disputas sociais, tendo em vista a reflexividade dos sujeitos e sua capacidade de ação racional – como não se lembrar, por exemplo, do pensamento do moleiro Menocchio, estudado por Carlo Ginzburg?[3] Para Giovanni Levi, em artigo de revisão das tendências de análise na micro-história, “a abordagem micro-histórica dedica-se ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado [tomando o] particular como seu ponto de partida […] e prossegue, identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico”.[4] Longe da dicotomia que prevaleceu em discussões sobre agência e estrutura ou, de modo mais específico, entre cultura e política, Festas Chilenas lança um olhar sobre a esfera cultural que em muito se alimenta do próprio contexto político. Embora o imperador não ofertasse bailes de monta havia décadas, isso fazia parte do script do fazer monárquico. A suntuosidade da ocasião parecia acenar, assim, menos para o futuro que para o passado de grandiosidade da própria monarquia.

O samba do Império Serrano traz tais elementos para dentro da cena: “o luxo, a riqueza, imperou com imponência” ainda no baile da Independência. No baile da Ilha Fiscal se brindava “aquela linda valsa, já no amanhecer do dia”. “Iluminado estava o salão, na noite da coroação” de Pedro II. Acompanhando os cinco grandes bailes da cidade eleitos pelos compositores, dois localizam-se nos tempos do reinado de Pedro II. Ainda que o recurso ao fausto das festas apresentadas no samba tenha relação com a própria lógica de composição interna do samba-enredo, que ganhava novo formato especialmente nas mãos de Silas de Oliveira,[5] na memória urbana do Rio de Janeiro aquele momento parecia estar encravado como digno de rememoração. Não foi esse o único samba, aliás, a lembrar o baile: mesmo que o samba de 1953, também de Silas, tenha sugerido que nem imperador nem a corte esperavam o fim da monarquia, o esplendor do baile agradara a todos, inclusive os homenageados.[6]

Na esteira da hipótese de Malerba, que vê o baile como grand finale à luz do modus operandi do regime monárquico e de suas lógicas de formação de laços centralizados na figura de Pedro II (“não se faz políticas sem bolinhos”, lembrava o barão de Cotegipe), seria interessante perceber as inscrições desse último movimento do regime não apenas na memória da cidade, mas na memória popular urbana do Rio. Mesmo que todos os artigos da obra considerem, por exemplo, matérias em jornais como expressão de olhares algo debochados e um tanto críticos do baile, da elite imperial e do regime em si, a aproximação dessa perspectiva com outras do restante da população da cidade poderia iluminar mais o argumento central. Poucos anos mais tarde João do Rio chamaria a atenção para a forte presença de símbolos imperiais entre a população pobre e negra da capital da agora república.[7] Os grupos de capoeiras que desmantelavam conferências de republicanos e, após a abolição, a própria guarda negra suscitavam temor frequente entre os grupos aderentes ao novo regime instaurado enquanto os chilenos nos visitavam. Embora nossas fontes disponíveis não o expressem de maneira discursiva, alguns aspectos da cultura popular da cidade parecem ter alguma coisa a nos dizer sobre os significados não só do último baile da monarquia, mas do regime monárquico como um todo, mais tarde cantados “em sonho” na memória urbana carioca.

Notas

1. Vale escutar o áudio do samba-enredo da escola daquele ano, de autoria dos três, intitulado Os cinco bailes da história do Rio“. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=laEBlDSZQZc . Acesso em 10 de abril de 2016.

2. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: LTC, 2008.

3. GINZBURG, CarloO queijo e os vermes:o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

4. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In BURKE, Peter (org). A escrita da história:novas perspectivas. São Paulo: EdUNESP, 1992, p. 154-155.

5. VALENÇA, Rachel; VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.

6. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

7. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

Carlos Eduardo Dias Souza – Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]


MALERBA, Jurandir; HEYNEMANN, Cláudia; RAINHO, Maria do Carmo Teixeira (Orgs.). Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014. Resenha de: SOUZA, Carlos Eduardo Dias. O quinto baile da história do Rio. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 210-214, maio/ago., 2016.

Acessar publicação original [DR]

Festas Chilenas. Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no Ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia B. Heyneman e Maria do Carmo T. Rainho

Entre 09 de outubro e 19 de dezembro de 1889, o Brasil recebeu a visita diplomática chilena a bordo do encouraçado Almirante Cochrane. Este fato, além de ter causado um grande alvoroço político, econômico, social e cultural no país, e em especial na cidade do Rio de Janeiro, coincidiu com a transição do regime político imperial para república.

Atentos aos espaços visitados pelos chilenos, às comidas e bebidas servidas/degustadas, à programação destinada aos ilustres hóspedes, às práticas desportivas praticadas em sua homenagem, aos sons, bailes, músicas que deram o tom cordial entre os dois países, e toda a indumentária que acolheu os convidados, os organizadores de “Festas Chilenas. Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no Ocaso do Império” – Jurandir Malerba, Cláudia B. Heyneman e Maria C. T. Rainho – tiveram a felicidade de reunir em oito capítulos, os diversos modos de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro durante estes dois meses. Leia Mais

Hegelianismo/ Republicanismo e Modernidade – MOGGACH (D)

MOGGACH, Douglas. Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade.Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. Resenha de: BAVARESCO, Agemir; COSTA, Danilo Vaz-Curado R. M. Dissertatio, Pelotas, v.32, 2010.

A obra Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade é a versão revisada de uma série de conferências realizadas na Universidade Federal da Bahia UFBA, no ano de 2004, pelo professor Douglas Moggach e que, posteriormente, foram lançadas em inglês com o título Hegelianism, Republicanism, and Modernity, e vertidas ao português pelo trabalho sempre competente do professor Roberto Hofmeister Pich (PUCRS), que, na tradução, que ora se resenha, permite ao leitor apreciá-la sem dar-se conta de que se trata de um texto traduzido.

O professor Douglas Moggach, atualmente, leciona na Universidade de Ottawa na School of Political Studies, sendo um reconhecido especialista no pensamento hegeliano desde a vazante interpretativa conhecida pela alcunha de esquerda hegeliana. As pesquisas do estudioso notabilizam-se no plano propriamente historiográfico pelo resgate do papel e da contribuição de Bruno Bauer para a compreensão, tanto de Hegel em específico, como de todo o idealismo alemão em geral, e, pela apresentação de um novo conceito de republicanismo, que está ligado, segundo suas pesquisas, a Hegel e à exegese que é feita de seu pensamento pela esquerda hegeliana.

O livro estrutura-se em três capítulos, respectivamente, intitulados de: (a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade, (b) republicanismo hegeliano e por fim (c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana.

Dividiremos a presente resenha em dois momentos, primeiramente, se fará (i) revelar a estrutura temático-argumentativa do autor, apresentando, segundo a ordem do discurso, os principais temas e problemas desenvolvidos nos três capítulos de seu livro e, após esta fase, (ii) analisaremos as conclusões do autor, de modo a avaliar o potencial de produtividade estabelecido pelo livro e por suas conclusões.

  1. Desvelando a estrutura argumentativa de Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade

O projeto de reconstrução e resgate de conceitos como republicanismo, modernidade e liberdade desde o pensamento de Hegel, mas, com foco na exegese da esquerda hegeliana [Hegelsche Linke], vem sendo desenvolvido com muita percuciência pelo prof. Douglas Moggach1ao longo da sua trajetória acadêmica e que, agora, conforme se demonstrará, se expõe em toda a sua maturidade.2

(a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade: Por um novo conceito de liberdade

A tese de Moggach, neste primeiro capítulo, é conectar o significado do idealismo alemão com a sua concepção de liberdade, de modo a articular liberdade, história e modernidade.

A constatação do renovado interesse na atualidade pelo instrumento hegeliano resume-se, basicamente, a três eixos de abordagens e retomadas, respectivamente postas em: a leitura de Hegel, desde o sinal transcendental do projeto kantiano, a mudança de sentido do projeto político hegeliano, exposto na Filosofia do Direito a partir da publicação das Vorlesungen por Karl Heinz-Ilting e a reavaliação da concepção política da escola hegeliana.

O primeiro modo de retomada do hegelianismo constitui-se a partir de uma leitura aproximativa entre Hegel e Kant, em que o primeiro passa a ser lido desde os limites do projeto transcendental do segundo, iluminando assim uma legítima compreensão hegeliana da constituição objetiva da intersubjetividade,3enquanto unidade imanente entre determinação conceitual e objetividade.

A segunda frente situa-se em reavaliar o status acerca do qual repousa o intento exposto na Filosofia do Direito, pondo em cheque a tradicional concepção política hegeliana de uma monarquia constitucional em favor de uma compreensão de justificação estatal desde o primado da soberania popular, tal como exposto nas Vorlesungen.

E o terceiro desenvolvimento, que se dirige em torno da escola hegeliana, sinaliza o sentido da inclusão do republicanismo como a chave de compreensão do legado de Hegel e da esquerda hegeliana, focada principalmente na sua crítica ao estado da restauração ao invés da sempre mencionada crítica à religião.

Como forma de dar conta e posicionar-se acerca destas três novas formas de abordagem do pensamento hegeliano, Douglas Moggach (p.12) retoma os motivos e os fundamentos da corrente denominada idealismo alemão, de modo a recuperar o fio histórico que conduz a Hegel e que lhe orienta, para assim poder conectar estes novos vieses interpretativos à compreensão da contemporaneidade. Para tanto, Moggach (p.12), interpreta o idealismo alemão como “[…] uma reflexão extensa sobre a idéia de liberdade e as perspectivas para a sua realização no mundo moderno”, ao mesmo tempo em que diferencia o idealismo que se estruturou como alemão dos demais idealismos, em síntese, pôr não estabelecer uma ordem transcendente perfeita em detrimento da imperfeição do real (Platão), nem reduzir o ser ao pensamento, negando a existência do mundo exterior (Berkeley).

Moggach (p.14) afirma que o problema filosófico central do idealismo alemão é a pergunta pela racionalidade da objetividade e como podemos nos determinar de modo igualmente racional face ao mundo e a nós mesmos. O autor declara que o idealismo alemão pode nos conceder um grande legado com a introdução do conceito de espontaneidade kantiano, que consiste em

Agemir Bavaresco, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa 322 uma necessidade definível, segundo Moggach (p.18), em “a habilidade da vontade de se determinar somente pelas causas que ela mesma admite ou permite que operem”, proporcionando um meio conceitual de adequação, sem subsunção, entre a autonomia e a heteronomia, entre se dar normas (subjetividade) e viver comunitariamente sob normas (intersubjetividade).

Porém, para que a espontaneidade unisse, sem dissolução, autonomia e heteronomia, era preciso superar a concepção racionalista de Leibniz de uma harmonia pré-estabelecida, posto que esta se constitua unicamente por determinações internas pré-existentes, impedindo qualquer modo de reflexão exterior e a heterodeterminação; novamente Moggach (p. 20) nos acena que Kant, com a categoria da relação, estabelecera as condições para pensar e compreender a internalização da causalidade e, logo, do papel central da espontaneidade como operador entre o eu teórico em face do eu prático.

O conceito espontaneidade, legado do idealismo, é que permite a passagem, na modernidade, para uma concepção de polis fundada moralmente e não como em Locke e Hobbes, alicerçada no cálculo e no interesse.

Deste novo componente legado por Kant, a espontaneidade, e apropriado por Hegel, nos apresenta Moggach (p.21) uma tríplice estruturação do conceito de vontade, ancorada em sua Ciência da Lógica hegeliana e que se baseia em uma tentativa de deduzir do eu teórico as condições de explicitação lógica do eu prático, coordenando a autoreferência interna da apercepção com a determinação externa da vontade que deseja e quer.

Neste percurso de tríplice constituição da vontade, Moggach (p.23) considera que Hegel estrutura os níveis de universalização e realização da vontade em: vontade formalmente universal, particular e individual.4 A primeira esfera da vontade é a vontade universal, a qual se duplica em dois momentos, vontade como forma e um segundo, que pode ser designado de vontade universal, como conteúdo.

O primeiro estágio da vontade universal é aquele em que esta se figura como sendo imediatamente negativa,5 não determinada por nada que não por si mesma, ponto de partida de Hegel da ideia de liberdade, tal como exposta na sua Filosofia do Direito e claramente insuficiente para os padrões contemporâneos.6 O segundo momento do primeiro estágio de determinação da vontade universal hegeliana, consoante a leitura de Moggach (p.25), “[…] se refere à sua habilidade de assumir um conteúdo e fazer dele seu próprio” e é tematizada por Hegel na seção moralidade de sua Filosofia do Direito.

Neste estágio de determinação do eu prático pelo eu teórico, a vontade não é apenas abstração, negação formal, mas a capacidade negativa de discriminação e padronização da vontade como querer, historicamente situado e interacionalmente partilhado, e não como em Kant, atemporal, pois meramente formal A segunda esfera de autodeterminação da vontade é a particularidade, momento de determinação da vontade universal que possui forma e conteúdo, mas se depara em face de objetos (desejos, impulsos, outras vontades etc.) que lhe são exteriores e que, em face destes objetos, deve particularmente determinar-se.

Neste momento, de acordo com Moggach (p. 26), Hegel encontra-se com Fichte novamente, mas não com o Fichte que identifica o eu = eu, e, sim, com o Fichte que determina a autoconsciência como incisivamente sob o pálio do eu prático, logo, da intersubjetividade intrasubjetiva. Agora é o conteúdo empírico da autoconsciência que a obriga a se determinar, não exclusivamente de modo interno, mas prioritariamente sob o signo da alteridade e da diferença.

A universalidade da vontade percebe-se em relação com objetos e se objetualiza como um particular frente a outros particulares, passa-se da capacidade normativa da vontade à sua capacidade de determinação descritiva. Nesta figuração, Moggach (p. 27) demonstra como em Hegel encontra-se posta uma dura crítica tanto ao liberalismo como a Hobbes, consistente na incapacidade de sermos espontaneamente determinados apenas pela esfera da particularidade. Na esteira ainda desta crítica, Moggach (p. 27) afirma que “esse é o defeito de Hobbes e, muito também, do liberalismo subseqüente: ver a liberdade como a ausência de obstáculos entre os sujeitos e os objetos do seu desejo, mas em perguntar à luz de que padrões esses desejos são justificados”.

A terceira configuração ou esfera da vontade é a sua determinação como liberdade que decide ou da decisão, movimento de passagem na vontade do interior para o exterior, da liberação da forma no conteúdo, o decide7, expressa a vontade focada em um objeto por exclusão dos demais, momento através do qual a vontade individualiza-se pelo movimento de universalização particular de seu conteúdo, em face do universo de objetos e possibilidade frente às quais teve de se decidir.

Este terceiro estágio da vontade é descrito por Moggach como “o universal adquire substância e concretude pela seleção e representação de si mesmo num conteúdo particular, o qual, por isso mesmo, cessa de ser meramente dado, e é ‘posto’ ou conscientemente aceito” (p. 28).

Neste projeto de tríplice determinação da vontade, sua expressão concreta é a liberdade que escolhe se autolimitar e que, por isso, reconcilia subjetividade e objetividade.

Moggach define o idealismo alemão como expressão da razão prática e acentua que Hegel, com a Fenomenologia do Espírito, estabelece a forma de compreensão de uma história da razão prática, ancorada nas diversas formas de relacionamento entre o eu e o mundo pelas figurações históricas experienciadas, que, por seu turno, permitem a constituição da personalidade como um ato de liberdade, onde a vontade é exercida como modo de determinação para-si de seus fins e atributos (cf. p. 29).

Contudo, nos adverte Moggach que “a teoria de Hegel não é simplesmente um endosso da ordem liberal, mas um modernismo crítico ou alternativo” (p.32), centrado na irredutível diferença entre sociedade civil e estado, estabelecendo as condições de efetivação de uma concepção de cidadania focada em um modelo de comunidade racionalmente ordenado.

Certamente é esta unidade entre (i) idealismo alemão, compreendido como a totalidade histórica das configurações do pensar, (ii) modernidade, expressão temporal de realização desta totalidade que é o idealismo alemão (iii) e hegelianismo, apreensão conceitual da temporalidade à luz do discurso filosófico, tendo como centro explicativo a ideia de liberdade, que conduz, na análise de Moggach, a uma diferenciada concepção de republicanismo que será desenvolvida no capítulo seguinte.

(b) republicanismo hegeliano

No primeiro capítulo do livro, Douglas Moggach (p.11) nos afirma que, em linhas gerais, o republicanismo no idealismo alemão pode ser compreendido como uma teoria da liberdade positiva ou da autotranscendência, que alterna, motivos éticos e estéticos derivados de Kant e Hegel, na constituição do status de cidadão.

No segundo capítulo, Moggach (p. 37) afirma ser o estudo do republicanismo uma importante nuance do pensamento político contemporâneo, mas que, paradoxalmente, o republicanismo de origem alemã não tem sido amplamente recepcionado, em razão de que ele tem suas raízes em Hegel e sob este paira uma ‘suspeita’ acerca de uma suposta submissão da liberdade à metafísica.

Assim, insere-se o intento do presente capítulo em esclarecer este flanco aberto, constituído pela tentativa de superação desta negação de aproximação da teoria contemporânea à concepção republicana hegeliana, através da demonstração do seu potencial de diagnose e da atualidade deste específico tipo de republicanismo.

Para situar-nos preliminarmente em face do republicanismo, informanos Mogach que: “A idéia republicana central é que as práticas e instituições de cidadania são integrais à experiência da liberdade; elas não são meramente instrumentais aos propósitos econômicos, como no liberalismo, nem são elas indispensáveis em favor da administração econômica” (p. 37).

O autor (p.38-39) nos apresenta duas concepções que balizam o debate dentro desta renaissance do republicanismo, em um corte que os divide em uma versão moderada de republicanismo, pautada no postulado da nãodominação e compatível com uma concepção republicana de raiz nitidamente jurídica, centrada na defesa dos direitos e na divisão da concepção de liberdade em liberdade positiva e liberdade negativa.

Uma segunda forma de republicanismo tachada de rigorosa, apresentase com os mesmos postulados anteriores, mas os agudiza no sentido de formulação e justificação de uma distinção entre moralidade e direito, no intento de estabelecer correspondências entre as motivações internas (morais) como determinantes das pautas políticas (direito) e, inversamente, estabelecendo exigências estritas sobre os sujeitos como cidadãos mediante o primordial interesse na questão social.

Mogach (cf. p.39) associa esta concepção rigorosa de republicanismo à esquerda hegeliana, mais especificamente a Bruno Bauer e os debates sobre o republicanismo no período do Vormärz e seu projeto de um modelo republicano que assuma a liberdade positiva de feição hegeliana como forma de reordenar as instituições sociais tradicionais, dilaceradas pela divisão do trabalho e pelo predomínio dos interesses privados.

Nesta concepção de republicanismo de feição alemã, o interesse privado é preservado, porém submetido a uma autotransformação pelo recurso à luta por instituições políticas racionais como modo eficiente de uma dúplice reordenação social que incida nos indivíduos e nas próprias instituições.

Nesta leitura do republicanismo de base hegeliana, as instituições são racionais na medida em que resultam da atividade autotélica8 dos indivíduos e menos por realizarem um princípio metafísico ou fins substanciais prévios.

Moggach (p. 42), ao resgatar na esteira de Hegel, a concepção de Bruno Bauer,9a interpreta no sentido e marco das atuais correntes neohegelianas que se auto-intitulam de pós-metafísicas,10exatamente na medida em que assume as constatações da diagnose hegeliana, mas rompe a discursividade especulativa imanente que as desvelam como modo de evitar o compromisso discursivo com a integridade sistemática do pensamento hegeliano.

O republicanismo que Moggach (p.46-47) extrai da esquerda hegeliana, especificamente de Bruno Bauer, constitui-se pela dúplice raiz conceitual de Kant e Hegel. Em Kant, afirma Moggach (p.46), Bauer apropria-se da crítica transcendental às formas da heteronomia empírica e racional, mas se aproxima da heteronomia racional ancorada na ideia de perfecionismo, pois, mesmo sustentando que a subjetividade autodetermina-se quando repudia interesses privados e universais transcendentais, acredita Bauer que o papel da espontaneidade e da autonomia, quando assumidos conscientemente, devem conduzir ao progresso histórico.

Em Hegel, declara-nos Moggach (p.47), que Bauer encontra o diagnóstico da modernidade e o papel central atribuído a personalidade livre infinita, como os pilares restantes para a construção madura de seu republicanismo.

Dentro deste cenário, Bauer constrói sua concepção republicana adjudicando à modernidade a tarefa de incorporação na atuação dos sujeitos da autonomia e da razão como um esforço à construção racional da objetividade desde um regresso ao eu racional, ao contrário do propugnado por Hegel.

O republicanismo de Bauer propõe um modelo de estado laicizado, com intenso papel do indivíduo na vida pública, e dirige-se ferozmente em face da nascente sociedade de massas que obnubila o político, enclausurando os indivíduos na exclusividade de seus fins privados, impedindo a dupla reflexividade nascente com a modernidade e a percepção da racionalidade do curso histórico, tornando os indivíduos meros solipsistas práticos.

(c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana

Após as revoluções de 1848, a esquerda hegeliana conhece, através dos debates entre Bauer e Marx, em torno da questão judaica, uma cisão entre republicanismo e socialismo. Na esteira deste diálogo, Bauer enfatiza a crítica às concepções de liberdade constituídas desde a vaga pós-revolucionária, inclusive as de Marx e Hegel, e afirma a centralidade do projeto republicano na emancipação social e não somente na emancipação política, propugna a libertação do proletariado, o qual era por ele designado de helotas11 da sociedade civil [bürgerlichen Heloten].

Nesta tarefa de posicionar seu republicanismo como antípoda do socialismo, Bauer, consoante Moggach (p. 58), defende um modelo de sociedade civil que repudie o primado da liberdade de escolha exercida sob o.jugo do mercado, apelando a uma participação política em prol de um certo perfeccionismo social, por imputar ao modelo liberal a pecha de, em sua base formativa, transformar os indivíduos em massa, ao identificar autonomia individual e asserção individualista resultante da posse protegida pelo direito privado, instituindo um anacrônico individualismo possessivo.

Contudo, se o republicanismo de Bauer é contra o liberalismo e a favor de uma reordenação recíproca de liberdade negativa e positiva como forma do ser livre da modernidade, o mesmo Bauer filia-se à crítica liberal quando de sua repulsa ao socialismo, taxando-o unicamente de buscar a satisfação imediata do proletariado. Para Bauer, o projeto socialista de emancipação e generalização da classe proletária seria apenas a universalização da necessidade e da pobreza.

Nesta tensão entre republicanismo e socialismo ou entre as divergências da esquerda hegeliana, mais especificamente entre Bauer e Marx, Moggach (p. 65 e s) quer estruturar a concepção republicana oriunda do hegelianismo. No seio deste debate entre Bauer e Marx, ou entre republicanismo e socialismo, Marx constitui sua concepção de socialismo na crítica e ao mesmo tempo retomada da concepção de trabalho hegeliana e de sua correspondência com as determinações lógicas da Ciência da Lógica, na seção teleologia. Aduz ainda Moggach (p. 66) que a concepção de trabalho de Marx permite-nos visualizar uma nova concepção de democracia, mesmo que não explicitado diretamente por Marx, que englobe os processo de trabalho e as relações sociais que lhe são condicionantes, como modos de efetivação das pautas modernas por liberdade, igualdade e fraternidade. Nesta nova concepção de democracia, que estaria contida em Marx derivada da sua concepção de trabalho, dois são os fundamentos operantes: a autoadministração e o planejamento.

Para Bauer, a teoria socialista fetichiza o trabalho e sobrevaloriza o proletariado; para Marx o republicanismo é um modo ideológico que mascara as contradições da vida real e é impotente em face do capital.

  1. Conclusões

O livro do Prof. Moggach inscreve-se no marco de leituras da filosofia política da atualidade que buscam extrair de autores, consagrados ou não, seu potencial de compreensão do passado como modo de explicitação das dinâmicas e aflições contemporâneas, só por este ponto, o texto, que ora se resenha, merece ser lido e meditado.

Contudo, há outro motivo que instiga a leitura e a análise das conclusões inferidas e que se refere ao resgate de uma tradição filosófica, outrora muito conhecida e, atualmente, pouco estudada e relegada a um injusto ostracismo. Trata-se da vazante de pensadores que, na esteira do idealismo alemão em geral, e de Hegel em particular, movimentaram intensamente o debate pós-revolucionário de 1848 e de um certo modo polarizaram, por décadas, todo o debate da filosofia política e que poderíamos resumi-los a: Kuno Fischer, Karl Rosenkranz, Eduard Gans, F.W. Carové, H. F. W. Hinrichs, Carl L. Michelet, H. B. Oppenheim, John Eduard Erdmann, Carl Rössler, os assim denominados da direita hegeliana [Hegelsche Rechte] e Heinrich Heine, Arnold Ruge, Moses Hess, Max Stirner, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Karl Marx, que, no passado, foram denominados da esquerda hegeliana [Hegelsche linke]. Claro que o resgate, aqui, mencionado resume-se a Bauer e a Marx, porém estudos como este do Prof. Moggach incitam os jovens pesquisadores na busca de alternativas teóricas aos lugares comuns da atual ortodoxia da filosofia política.

Por fim, espera-se que esta não seja a única das publicações do Professor Moggach vertidas à flor do lácio, mas apenas a primeira de tantas a nos brindar com suas análises atuais e lúcidas sobre os problemas contemporâneos do republicanismo, liberalismo e do Estado de direito.

Notas

1 Pensa-se, mais especificamente, nos desenvolvimentos constituídos em The Philosophy and Politics of Bruno Bauer, Cambridge: ed. Cambridge University Press, 2003, em Reason, Universality, and History, Ottawa, Legas Press, 2004, 303 pp.(com Michael Buhr) e no volume organizado pelo autor intitulado de The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

2 O professor Douglas Moggach expôs, sob a forma de intuições no texto introdutório ao livro The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, os conceitos que, posteriormente, se encontram aqui desenvolvidos. Não por mera coincidência, o texto de abertura do referido volume intitula-se: Introduction: Hegelianism, Republicanism, and Modernity, pp.1-24.

3 Moggach, 2010, p. 9.

4 É usualmente utilizado na bibliografia hegeliana, especialmente na brasileira, o terceiro momento da vontade hegeliana com a expressão singularidade, mas, como fora optado pelo autor e pelo tradutor o termo individualidade, dele nos serviremos.

5 Moggach (p.23) nos diz que a vontade universal é idêntica à tese fichteana do eu=eu da Doutrina da Ciência.

6 Moggach (p.24-25) indica que Hegel crítica tal concepção de vontade abstratamente universal, mediante o recurso à três experiências históricas que demonstraram sua fragilidade, (a) a concepção estóica de liberdade, (b) a bela alma romântica e (c) o terror jacobino.

7 Do Latim: decido, -is, -ère, decidi, -cisum. Sent. próprio: 1) Separar cortando, cortar, reduzir (Tac. G.10) in. Farias, Dicionário Latino-Português. p. 280.

8 Para não cair no teleologismo de base hegeliana, Moggach afirma que a ação é autotélica [que se dá fins] e não portadora de um telos, que, lhe sendo imanente, pré-ordena sua atividade, determinando-a.

9 Principalmente o Bruno Bauer das obras: Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen, Geschichte Deutschlands und der französischen Revolution unter der Herrschaft Napoleons e Hegels Lehre von der Religion und Kunst von dem Standpunkte des Glaubens aus beurteilt.

10 Pensa-se aqui em Axel Honneth, Jean-François Kervègan, Paul Ricoeur entre outros

11 Também chamados de Hilotas, na Grécia, eram servos e propriedade do estado. Não se deve confundir os Hilotas [servos] com os escravos, pois estes eram de outro estrato social

Agemir Bavaresco – PUCRS.

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – PPGFIL-UFRGS.

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Textos sobre poder, conhecimento e contingência – SCOTUS (V)

SCOTUS, João Duns. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução, introdução e notas de Roberto H. Pich. Porto Alegre: Edipucrs/Edusf, 2008, 508 p. (col. Pensamento Franciscano, XI). Resenha de: LEITE, Thiago Soares. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 202-203, set./dez. 2009.

Inserindo-se nas celebrações do VII centenário de falecimento de João Duns Scotus, vem a lume a obra João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência, compondo o décimo primeiro volume da já tradicional coleção Pensamento Franciscano.

Após haver traduzido o Prólogo da Ordinatio (JOÃO Duns Scotus. Prólogo da Ordinatio. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, 456 p. – col. Pensamento Franciscano, V) e a questão 15 do livro IX das Quaestiones super libros metaphysicorum Aristotelis (Veritas 53/3 (2008), p. 118-57), o Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich (PUCRS) apresenta sua tradução das três versões dos textos de Duns Scotus sobre os temas “poder”, “contingência”, “conhecimento divino” e “liberdade”, a saber: Lectura I, d. 39-45; Ordinatio I, d. 38-48 (no lugar destinado à d. 39, encontra-se a tradução do apêndice A – Segunda parte da trigésima oitava distin203 ção e trigésima nona distinção) e Reportatio parisiensis examinata I, d. 38-44.

Como é sabido, Lectura I, d. 39-45 constitui-se na parte final do comentário ao livro primeiro das Sentenças de Pedro Lombardo, elaborado por Scotus com a finalidade de docência em Oxford. Já Ordinatio I, d. 38-48 representa a “ordenação” dos textos de Lectura com o objetivo, diríamos hoje, de publicação. Nesse sentido, os textos de Ordinatio seriam a revisão que Scotus iniciara em Oxford e continuara em Paris. Por fim, o terceiro bloco de textos traduzidos (Reportatio parisiensis examinata I, d. 38-44) reporta as anotações de aula de alunos e discípulos que ouviram as preleções de Scotus em Paris e, por ele, examinadas e aprovadas.

Tal coletânea consiste em um projeto único no mundo e tornar-se-ia um cânone no meio scotista mundial caso os textos latinos acompanhassem a tradução, o que caracteriza um primeiro demérito da edição. Pode ser considerado um segundo demérito a ausência de uma revisão mais detida.

Não obstante os problemas acima citados, o volume está repleto de méritos. O primeiro é o já citado fato de, nele, se encontrarem traduzidas as três versões dos textos de Scotus. O leitor que não esteja familiarizado com as obras da Scotus poderá se situar na coletânea de textos apresentada através do Prefácio, escrito por Pich.

Ao Prefácio, segue-se o segundo mérito do volume, a saber: um extenso estudo sobre os temas “contingência” e “liberdade”, no qual Pich, para explicar a tese do Doctor Subtilis sobre o indeterminismo da vontade, realiza uma descrição do que denomina “modo de causalidade do ato da vontade” e “modo de realidade do ato volitivo”. É também digno de nota a bibliografia apresentada ao fim do estudo por ser, ao que tudo indica, a mais atualizada sobre o tema.

Um terceiro mérito consiste na apresentação da estrutura de cada distinção traduzida. Tal modus operandi, que já se tornou característico das traduções de Pich, permite uma rápida visualização do modo como o assunto será desenvolvido por Duns Scotus.

Quanto à tradução, a competência de Pich é inegável. Seu conhecimento sobre os temas abordados por Scotus se faz ver ao longo da tradução, de modo que, por muitas vezes, o tradutor transfere uma clareza tal ao texto que seu original latino carecia. A fluidez da tradução é tamanha que um leitor sem acesso aos originais latinos dificilmente entenderá o porquê Scotus ser conhecido como o Doctor Subtilis.

Enfim, trata-se de uma excelente homenagem a esse filósofo tão pouco conhecido e estudado em nosso país.

Thiago Soares Leite

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Autores lusófonos – João Duns Scotus 1308-2008 – DE BONI (V)

DE BONI, L. A. (org.). Autores lusófonos – João Duns Scotus – 1308-2008. Porto Alegre/Bragança Paulista: EST/Edipucrs/Edusf, 2008, 382 p. Resenha de: DIAS, Cléber Eduardo dos Santos. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 193-196, set./dez. 2009.

No ano de 2008 celebrou-se o sétimo centenário da morte de João Duns Scotus, o mais brilhante dos pensadores franciscanos medievais.

Entre as muitas atividades acadêmicas, que aconteceram pelos mais diversos países, cabe mencionar o volume em tela, no qual 21 autores lusófonos se fazem presentes. Organizado pelo Prof. Luis Alberto De Boni, trata-se, sem dúvida, da obra mais importante sobre Duns Scotus redigida em língua portuguesa e, assim penso eu, haverá de decorrer muito tempo antes que algo semelhante venha a ser produzido. Trabalharam como co-organizadores: Cléber E. S. Dias, Joice B. da Costa, Roberto H. Pich e Thiago Soares Leite. Antes de prosseguir este comentário, cito o nome do autor e o título de todos os textos, seguindo sua sequência interna: – João Lupi (Florianópolis): Contexto cultural da primeira formação acadêmica de João Duns Scotus. – Guilherme Wyllie (Cuiabá): A falácia de petição de princípio em Duns Scotus. – Carlos Eduardo Loddo (Montreal): Duns Scotus e os universais lógicos nas Quaestiones in Porphyrii Isagogem. – Frei Sinivaldo Tavares (Petrópolis): A teologia e seu método no prólogo da Ordinatio de Duns Scotus. Carlos Arthur Nascimento (São Paulo): João Duns Scot e a subalternação das ciências. Roberto H. Pich (Porto Alegre): Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas nas Escrituras. – Maria Leonor Xavier (Lisboa): João Duns Escoto e o argumento anselmiano. – Joaquim Cerqueira Gonçalves (Lisboa): A questão da Onto-Teologia e a Metafísica de João Duns Escoto. – César Ribas Cezar (São Paulo): Teologia positiva e Teologia negativa em Duns Scotus. Pedro Leite (Porto Alegre): A crítica de Ockham à noção de natureza comum de Scotus. Thiago Soares Leite (Porto Alegre): Os transcendentais em Duns Scotus. Antonio Pérez-Estévez (Maracaibo): Duns Scotus e sua metafísica da natureza. Maria Manoela Brito Martins (Porto): A noção de individuação em São Tomás e Duns Escoto. – Pedro Parcerias (Porto): Duns Escoto e o conceito heterogeológico de Tempo. José Rosa (Beira-Baixa): Da relacional antropologia franciscana. Alfredo Culleton (Unisinos): A lei natural em Duns Scotus. Luis A. De Boni (Porto Alegre): Duns Scotus: a Política. – André Alonso (Niterói): Reditio iterata: Scotus e as bases antropológicas da ressurreição. José Meirinhos (Porto): Escotistas portugueses do século XIV. Mário Santiago de Carvalho (Coimbra): Duns Escoto na tradição portuguesa do século XVII.

Examinando a ordem dos textos, percebe-se que os organizadores seguiram, na medida do possível, os caminhos da obra de Scotus, colocando inicialmente os textos referentes à lógica e, a seguir, tomam a Ordinatio como guia. Todos os textos são importantes, e não cabe aqui tentar fazer uma classificação entre eles. Limito-me, apenas, a mencionar alguns, em parte pela forma de abordagem, em parte por chamarem ao debate o pensamento moderno e alguns pela relativa raridade do tema.

O artigo de Guilherme Wyllie, tratando da questão lógica conhecida como “falácia da petição de princípio”, parte da caracterização desta como sendo uma “falácia caracterizada como um argumento em que as premissas pressupõem a verdade ou admissibilidade da conclusão” (p. 15). O autor, valendo-se de inúmeros estudos contemporâneos, provenientes na maioria do mundo anglo-saxônico, mostra que, por vários motivos, tal definição não se sustenta, e passa, então, a analisar este tipo de falácia a partir de Aristóteles, o primeiro filósofo que a estudou detalhadamente. Este a examinou tanto sob o aspecto epistêmico, que postula o conhecimento das premissas independentemente do conhecimento da conclusão, quanto sob o aspecto dialético, o qual afirma que existe tal falácia quando são transgredidas certas regras do debate.

Passando do pensador grego para Duns Scotus, Wyllie afirma que Scotus não redigiu um tratado específico sobre a falácia, mas a conhece muito bem e, a partir dos textos dele, fica claro que a analisa sob o aspecto epistêmico, “segundo o qual, um argumento acometido pela presente falácia, é válido e pretende provar a respectiva conclusão, embora não o faça, por força da ausência de premissas necessárias e auto-evidentes”

Também na área de lógica é importante e, em parte, inovador, o artigo de Carlos Eduardo Loddo, que se ocupa com os universais lógicos nos comentários de Scotus a Porfírio. Loddo observa que há um consenso no modo de considerar os universais lógicos, ou segundas intenções, em Scotus, como entidades puramente semânticas. Para uns, diz ele, as intenções primeiras de Scotus são classificadas como as coisas reais, enquanto as intenções segundas são conceitos aplicáveis diretamente a estas coisas. Com isso, só as intenções primeiras se referem à metafísica, ficando as intenções segundas classificadas como tema de uma semântica pura. Para outros, já as intenções de primeira ordem são consideradas como conceitos aplicáveis às coisas naturais, ficando as de segunda ordem como conceitos aplicáveis aos conceitos de primeira ordem. Neste caso, os conceitos de ambas as ordens acabam transformados em representações subjetivas, que dispensam qualquer isomorfia entre os termos linguísticos e as coisas e acaba-se tendo uma semântica muito próxima ao nominalismo (p. 25-27). Em sua crítica, longamente desenvolvida, o autor propõe uma interpretação alternativa do texto escotista, mostrando que nele transparece o realismo do frade franciscano, inclusive e muito especificamente, com respeito aos universais lógicos. Para tanto, o jovem autor discorda, sem temor, de alguns dos mais célebres escotistas da atualidade, aos quais critica pelo fato de, em muitos casos, fazerem aproximações muito fáceis entre o pensamento medieval e o contemporâneo, principalmente aquele de proveniência analítica. Com isso ele não está negando a possibilidade e a importância de interfaces entre eles, mas é necessário ver quais delas são pertinentes e quais não passam de anacronismo, pois, “as comparações paralelas, tanto quanto as transversais, se operadas demasiado rapidamente na historiografia filosófica, conduzem ao erro” (p. 29).

Chama a atenção também o artigo de Sinivaldo Tavares a respeito da importância do Prólogo da Ordinatio. Esse texto, que não é apenas o prólogo de uma obra, mas uma espécie de Discurso sobre o Método de um teólogo medieval, podendo-se, se examinado a fundo, perceber que nesse texto recuperam-se elementos dos debates acadêmicos das décadas anteriores, principalmente os referentes à pergunta sobre o lugar da Teologia e das demais ciências no conjunto dos saberes. Scotus, como bem observa o autor, desce a minúcias, vai ao fundo nas distinções, mas não se perde nelas; pelo contrário, a cada passo vai brilhando sempre mais a originalidade e a profundidade do pensamento escotista. A conclusão que aqui mais interessa é de uma posição nova, entre teólogos, a respeito da posição da Teologia no conjunto dos saberes. “Duns Scotus se revela um autêntico defensor do pluralismo epistemológico. (…] Scotus propõe com traços firmes e claros a autonomia dos saberes em um ambiente cultural marcado por uma sadia pluralidade” (p.105). Isto era o oposto do que defendiam quase todos os teólogos de seu tempo, para os quais as demais ciências estavam subalternadas ou reduzidas à Teologia. Com razão o autor fala de algo como uma “epistemologia débil” escotista, que, por razões históricas diferentes, foi suprimida dos círculos académicos católicos, mas que hoje se abre para o diálogo com a sociedade contemporânea.

Entre os demais artigos, que percorrem praticamente todo o leque de interesses de Scotus, cabe recordar dois deles também por uma nota trágica: seus autores (António Pérez-Estévez e Pedro Parcerias) não estavam mais presentes entre nós quando o volume foi publicado.

Para brasileiros, mas também para portugueses, são importantes os textos de Mário Santiago de Carvalho e José Meirinhos, estudando o importante significado do escotismo em Portugal. O vigésimo primeiro artigo, de Cléber Eduardo dos Santos Dias, é um levantamento de tudo o que foi publicado por escotistas lusófonos durante cinco séculos.

Num trabalho de paciência, que poderia ser classificada de beneditina, Cléber Eduardo pesquisou as mais diferentes fontes, correspondeu-se com inúmeros especialistas e fez descobertas inesperadas, em cujo final surgiram 323 títulos.

Enfim, cabe uma palavra especial ao Prof. De Boni. Esse exímio medievalista definiu a ‘universidade como a casa da razão’. Sua organização teórico-metodológica dos artigos de Duns Scotus confirma, mais uma vez, sua crença no debate de idéias e aproximação de saberes.

Sílvia Contaldo

 

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Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI-XVIII) – PALAZZO (VH)

PALAZZO, Carmen Lícia. Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI-XVIII). Coleção Nova Vetera. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. Resenha de: PIERONI, Geraldo. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.26, p. 153-155, jan., 2002.

André Thevet, Jean de Léry, Claude d’Abbeville, Yves d’Evreux… Voilà les français! Estes são apenas alguns dos Messieurs que atravessaram o mar oceano e, deslumbrados, desembarcaram na costa brasileira. O que procuravam nesta imensa Terra Brasilis estes nossos cultos viajantes? Talvez poderíamos arriscar uma resposta comum a todos eles: conhecer o Novo Mundo: exótico, diferente, antítese da Europa civilizada.

Relatar o que eles observaram não é o objetivo primeiro de Carmen Lícia Palazzo ao escrever Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII). Sua intenção vai muito além do evidente. A autora, historiadora experiente, doutora em História pela Universidade de Brasília, com muita competência e domínio da historiografia, apresenta ao leitor um excelente trabalho. Sua investigação é criteriosa acerca dos múltiplos e matizados olhares que os viajantes franceses lançaram sobre o Brasil, desconhecido em muitos aspectos, porém fascinantemente atraente.

Os documentos utilizados foram, sobretudo, os registros de viagens e obras eruditas de pensadores que debruçaram, embora muitas vezes sem o contato direto, sobre estas novas terras d’além mar.

Com relação à idéia sobre o Brasil, há interrupção ou prosseguimento nos olhares dos franceses? Problematizou a autora! Sua conclusão foi que estes viajantes e pensadores dos séculos XVI ao XVIII deixaram registrados inúmeros comentários e obras onde se pode perceber pontos de vista que foram se transformando. Este movimento de mudanças, no entanto, não se dá no ritmo dos cortes cronológicos tradicionais. Uma leitura cuidadosa dos escritos e, a título complementar, da iconografia de cada época, permitiu à historiadora detectar continuidades relevantes inseridas no universo mental dos viajantes – continuidades estas que se mantêm até quase o final do século XVII. Somente a partir do século XVIII, particularmente com o iluminista La Condamine, é que se pode verificar uma efetiva mudança nas visões francesas do Brasil.

Recorrendo aos recursos da história comparativa, a historiadora aborda e confronta dois momentos específicos: o das permanências (séculos XVI-XVIII) e o da ruptura capturada pelas visões da modernidade (século XVIII).

A exemplo de Jacques Le Goff, defensor, entre outros, de uma “longa Idade Média” que se prolonga até quase às portas da Revolução Industrial, a autora utiliza semelhantes conceitos fixando-os no contexto das grandes viagens e mentalidades culturais dos séculos XVI e XVII. A própria iconografia corroborou a idéia das permanências. Gravuras e telas da época evidenciaram elementos que remetiam ao imaginário medieval. As narrativas e ilustrações dos viajantes assimilaram abundantemente figuras extraordinárias, demônios e monstros. Seus discursos são destoantes das características culturais e políticas da Idade Moderna. Neles prevalecem os componentes ainda amarrados ao imaginário Medievo. O espaço dedicado aos mitos e utopias é enorme: o fantástico predomina. Só a partir do século XVIII, com a razão iluminista, é que se evidenciam as rupturas da assim chamada modernidade. Daí para frente ciência e razão são os principais instrumentos para a leitura do Outro – distante e diferente – para buscar entendê-lo e, sobretudo, explicá-lo. E como conclui a autora: “Com o abandono de mitos e maravilhas, é o espaço do sonho que se retrai”.

O trabalho de base contido no livro permite melhor compreender os mecanismos das transformações que se tornam visíveis somente se inseridas no tempo longo. Foi exatamente este recurso teórico que Carmen Lícia utilizou para confeccionar a textura do seu livro. No prudente labor de perceber as mutações na longa duração, como já referido acima, foram estudadas iconografias da época e escritos de pensadores, como o abade Raynal, Voltaire e Buffon. Neste conjunto de representações é possível desvelar perfis de comportamentos e imagens que, prolongando ou alterando-se gradativamente no tempo, resultam novas e movediças nuanças das representações do Brasil.

Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI a XVIII) é uma obra profundamente instrutiva e sua cronologia é primorosa. Rupturas ou continuidades? Permanências medievais ou triunfo das Luzes? Neste caso a razão iluminista não foi mais aberta à alteridade do que o foram os viajantes anteriores que aceitaram o mítico e o maravilhoso como explicações para a diferença.

Geraldo Pieroni – Doutor em História pela Université Paris-Sorbonne (Paris IV). Professor na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Autor, entre outros, dos livros: Os Excluídos do Reino, editora UnB, Brasília: 2000 e Vadios, Ciganos, Heréticos e Bruxas: os degredados no Brasil colônia. Editora Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro: 2000.

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