Novos combates pela história: desafios, ensino | Carla Bassanezi Pinsky e Jaime Pinsky

[…] nossos adolescentes detestam a História. Votam-lhe ódio entranhado e dela se vingam como podem, ou decorando o mínimo de conhecimento que o “ponto” exige ou se valendo lestamente da “cola” para passar nos exames. Demos absolvição à juventude. A História que lhes é ensinada é, realmente, odiosa. (MENDES apud NADAI, 1992/1993, p. 143)

Ensinar História no Brasil é um ato desafiador. Perspectivas eurocêntricas e narrativas que se distanciam da realidade da maioria de nossos alunos pautam os conteúdos propostos nos currículos e materiais didáticos. Soma-se aos impasses mencionados, a desvalorização da carreira docente, os bombardeios negacionistas, relativistas e anticientíficos proferidos nas falas de tantas autoridades do meio político. A História, tida por muitos estudiosos como ciência das revoluções, hoje se encontra ferida no meio acadêmico, nas escolas e no cotidiano. Leia Mais

História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de história e formação docente – ARAÚJO (HE)

ARAÚJO, Raimundo Inácio Souza et al. História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de história e formação docente. São Luís: EDUFMA, 2018. Resenha de VARGAS, Karla Andrezza Vieira. História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de história e formação docente. História & Ensino, Londrina, v. 25, n. 02, p. 475-480, jul./dez. 2019.

O livro História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de História e formação docente, é um material escrito a muitas mãos. Mãos de pesquisadores/as e professores/as, com vínculo em diferentes universidades, que tingiram em seus textos a problemática do pensar a Ciência Histórica coadunada às práticas que tangenciam a atividade do Ensino de História, na modalidade da Educação Básica, no agora. Organizada por Erinaldo Cavalcanti (professor Adjunto da Faculdade de História da Unifesspa), Geovanni Gomes Cabral (professor Adjunto da Faculdade de História da Unifesspa), Margarida Maria Dias de Oliveira (professora adjunta da UPE, Campus Nazaré da Mata) e Raimundo Inácio Souza Araújo (professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Maranhão – COLUN-UFMA), a obra marca, também, as intenções do núcleo de pesquisa Interpretação do Tempo: ensino, memória, narrativa e política (iTemnpo), associado à Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), do qual emanou a escrita dessa coletânea.

O contexto de produção da obra está tensionado pela conjuntura política educacional, prescrita pela Reforma do Ensino Médio, que torna a matéria História optativa no currículo escolar, segundo a Lei nº 13.415, de fevereiro de 2017. Assim, na apresentação, os/a organizadores/a (também autores/a), registram a importância e a funcionalidade da História em tempos de cólera. Nos textos, não encontramos resoluções acabadas, mas reflexões para um repensar de práticas que possam ser transgressoras ao universo acadêmico e as “velhas” formas de narrar a História. Fazer circular outras narrativas e outras experiências de pesquisa, segundo as proposições abordadas na obra, pode/deve contribuir para a formação de professores/as no chão da sala de aula.

A coletânea compõe treze textos, distribuídos em três eixos temáticos: História, formação docente e ensino; História, ensino e narrativas e A História entre diálogos acadêmicos e o ensino. No primeiro, encontramos quatro capítulos que se articulam pela compreensão de que a História é espaço de saber e de poder, bem como expressão de formação docente. No capítulo que abre o debate, temos a escrita do professor Erinaldo Cavalcanti submetida ao título A História e o ensino nas encruzilhadas do tempo: entre práticas e representações. Aqui, Cavalcanti localiza a questão da chamada História do Tempo Presente, seus sentidos e significados. Na esteia desse tempo, o autor apresenta discussões referentes aos currículos dos cursos de Licenciatura em História das Instituições de Ensino Superior Federais da Região Norte do Brasil, problematizando os usos dos livros didáticos nas práticas de ensino de egressos/as desses espaços. Margarida Dias e Itamar Freitas, no segundo capítulo, tecem considerações sobre a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular. Construída no ano de 2015, a BNCC, previa alterações significativas do ponto de vista dos conteúdos (abertura para estudos regionais, para as questões africanas, afro-brasileiras, indígenas…), com impacto na formação e na atuação de professores/as. Base Nacional Curricular Comum: caminhos percorridos, desafios a enfrentar nomeia as reflexões dos autores.

Ainda, sobre os debates referentes à formação de professores/as de História, visualizamos no terceiro capítulo, as pesquisas de Thiago Calabria e José Batista Neto. Em Formação continuada de professores de Pernambuco para o uso das TDIC e o protagonismo dos exames estandardizados, os autores buscam analisar as ações formativas referentes às tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC), nas práticas de ensino. Finalizando a primeira parte da obra, Maria Auxiliadora Schmidt, recupera a teoria da consciência histórica e a sua contribuição para a construção de uma matriz didática. A autora realiza um estudo sobre a Educação Histórica em vários territórios, desde o final do século XX, ancorado, especialmente, nas concepções epistemológicas de teóricos como Jörn Rüsen (2016). O texto intitula-se A teoria da consciência histórica e sua contribuição para a construção de matrizes da didática da educação histórica.

História, ensino e narrativas, segundo eixo do livro, problematiza a questão da pluralidade narrativa como um arcabouço analítico possível para se pensar o Ensino de História. Em narrativas fantásticas, ensino de História e a redescoberta da diversidade da cultura afro-maranhense, Inácio Raimundo discute a importância da construção de suportes materiais acerca da cultura afro-maranhense, atinente às prerrogativas dos marcos legais para o Ensino da História e da cultura africana, afro-brasileira e indígena Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08. Na sequência, e seguindo o percurso da discussão apontada pelas demandas identitárias do tempo presente, Edson Silva, Maria da Penha e Márcio Vilela, procuram escutar as vozes das populações indígenas. Povos indígenas no ensino de História: a Lei 11.645/2008 interculturalizando o ensino fundamental avalia os efeitos, os sentidos e as apropriações dadas à temática indígena na modalidade de Ensino Fundamental.

Em A xilogravura no ensino de História: usos do passado na arte do poeta José Costa Leite, Geovanni Cabral, traz para o cenário a ideia de ampliação do corpus documental a ser potencializado na pesquisa e nas salas de aula da Educação Básica. As xilogravuras presentes em folhetos de cordel, produzidos por José Costa Leite, segundo Cabral, encontram-se carregadas de representações e visões de mundo que podem dialogar com os acontecimentos históricos nacionais e do lugar. Na dimensão da História Local, encontra-se o trabalho de Cristiani Bereta da Silva e Rosiani Marli Antônio Damásio. As autoras tomam como território o município de Garopaba (Santa Catarina) para discutir a invenção de uma tradição cultural açoriana e a sua influência no currículo escolar, a partir de 1990. Trata-se do título Tradição, culturas histórica e escolar: o desafio de se ensinar história local no presente. As prescrições curriculares são também preocupações de Márcio Henrique Baima Gomes em As mudanças curriculares e seus reflexos sobre o ensino de história do Maranhão (1970 a 2015). Gomes encerra a segunda parte da obra, apontando as transformações do currículo formal de História do estado do Maranhão, a sua projeção no ensino e os desafios enfrentados na sala de aula no presente.

A terceira e última parte da coletânea, A História entre diálogos acadêmicos e o ensino, encontramos o trabalho de Pablo Porfírio acerca dos diálogos discursivos entre a Guerra Fria e o movimento das Ligas Camponesas no Estado de Pernambuco. Aqui, vê-se um exercício de experimentação do objeto de pesquisa do autor e sua contribuição para o Ensino de História, intitulado Guerra fria e ligas camponesas no Brasil: outras histórias possíveis. Para além do conteúdo, este eixo incide, também, sobre estudos com impressos e suas potencialidades em práticas pedagógicas da História como disciplina escolar. A partir de O que os jornais (não) dizem sobre a cidade e sua gente: uma breve proposta de ensino de história a partir dos periódicos, Thiago Santos realiza análises de relatos publicados em periódicos do XIX e suas representações discursivas, para pensar em pontes de encontro entre o que se produz na academia e o que pode encontrar terreno fértil no espaço escolar, nas aulas de História.

O trato com a memória e a questão do patrimônio cultural, são também temáticas abordadas na terceira parte do livro. Com Márcia Milena Galdez Ferreira, a partir das memórias referentes à migração de nordestinos e maranhenses para o Médio Mearim (Maranhão), pode-se refletir sobre outras agências no processo de aprendizagem histórica de estudantes. Em destaque, também, a luta pela terra, assim como bem coloca o título do capítulo Da história e memória da migração de nordestinos e maranhenses à luta pela terra no Médio Mearim, MA: proposta de mediação didática. Sobre os debates referentes ao patrimônio cultural e seu lugar na atividade de ensinar História, temos o trabalho de Magdalena Almeida. Em Conhecimento local e ensino de história: Reflexões sobre usos do patrimônio cultural, a autora problematiza os múltiplos objetos que constituem o patrimônio cultural do Estado de Pernambuco, bem como a construção de narrativas que se deseja veicular e significar.

A obra revela a diversidade de possibilidades da Ciência Histórica escrita nas universidades, suas conexões com o universo da Educação Básica e sua extensão na vida cotidiana. Como se vê, há um esforço de todos/as envolvidos/as na produção e circulação de narrativas plurais. Em todo o trabalho, percorrem-se as concepções do teórico Jörn Rüsen (2011) e a dimensão do sentido prático do saber histórico. Um saber comprometido com as questões do presente e do futuro. As reflexões sobre as temporalidades estão estruturadas pelas contribuições de pesquisadores como Paul Ricoeur (2012) e Reinhart Koselleck (2014). Assim, a noção de que o passado precisa/deve/pode ser desnaturalizado, tal qual postulou Durval Muniz Albuquerque Júnior (2012), é o que melhor caracteriza a organização do livro.

Da capa ao desfecho da obra o que se vê é movimento, cor, experiência, expectativa. Na imagem da capa, a ampulheta que instiga o tempo fluído pelo movimento da areia; a moldura que sugere uma janela aberta, repleta de possibilidades; as mãos que seguram a ampulheta indicam que a construção do tempo e da História é essencialmente humana. Há, portanto, um horizonte, um futuro. Sóbrio como as cores que compõem a capa e as pesquisas que dão vida ao livro. Ao final, encontramos a descrição da trajetória dos autores, elemento pontual para compreendermos inclusive as ambições desse projeto.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida et al. (org.). Qual o valor da história hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. p. 21-39.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio e Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2014.

RICOEUR, Paul. O passado tinha um futuro. In: MORIN, Edgar (org.). A Religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

RÜSEN, Jörn. Didática da história: passado, presente e perspectiva a partir do caso alemão. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (org). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.

RÜSEN, Jörn. Contribuições para uma teoria da didática da história. Curitiba: W & A Editores, 2016.

Karla Andrezza Vieira Vargas – Professora de História da Educação Básica da rede estadual de Santa Catarina. Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

(Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História – MAIA et. al (HE)

MAIA, Tatyana de Amaral; ALVES, Luís Alberto Marques; HERMETO, Miriam; RIBEIRO, Cláudia Sofia Pinto (Org.). (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História. Porto Alegre: EdiPUCRS; Porto: CITCEM, 2016. 286 p. Resenha de: CARMO, Maria Andréa Angelotti. A responsabilidade social do ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 231-237, jul./dez. 2017.

Historicamente, uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades está no controle sobre a memória, o esquecimento e os silêncios na História, conforme argumenta Le Goff (2003). Nessa perspectiva, as batalhas entre os registros e a hegemonia sobre determinada memória são marcadas pelos silêncios, esquecimentos e confrontos que compõem a história das sociedades humanas e, em especial, das democracias atuais. As sociedades, cujas histórias encontram-se inseridas em processos ditatoriais, têm enfrentado seus passados recentes a partir de temas e conteúdos compreendidos como sensíveis, dolorosos e de difícil consenso.

É o caso das sociedades ibéricas e sul-americanas. Qual, então, o papel do ensino de História no processo de construção, reelaboração, manutenção, mediação, e outros tratamentos da memória, nessas sociedades? Um olhar atento sobre esses passados, e seu ensino, nas sociedades ibéricas e sul-americanas, constitui a feliz contribuição que se apresenta na coletânea (Re)Construindo o Passado: o papel insubstituível do ensino de História, publicada pela Editora da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul em parceria com o Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) da Universidade do Porto, Portugal.

A obra é organizada pelas professoras brasileiras Tatyana de Amaral Maia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Miriam Hermeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pelos professores portugueses Luís Alberto Marques Alves e Cláudia Sofia Pinto Ribeiro, ambos da Universidade do Porto. A coletânea conta com análises e pesquisas da temática no Brasil e em Portugal e traz, ainda, a participação de pesquisadores espanhóis e argentinos num exercício em que compreendem a necessidade contínua de reflexão sobre os usos do passado, e de como eles se apresentam, e são tratados, no ensino. Os artigos resultam de distintas pesquisas que envolvem perspectivas de alunos, professores, propostas curriculares e manuais didáticos de ensino de História. Ainda, abordam a forma como memórias, narrativas, percepções do passado são eleitas para comporem, ou não, o quadro dos conteúdos, formas de apresentação e abordagens históricas.

A coletânea está dividida em duas partes, de modo a contemplar os estudos sobre as sociedades ibéricas e sul-americanas em suas peculiaridades e particularidades: Os passados dolorosos na Europa e Os passados dolorosos na América Latina são compostas por quatro artigos cada uma, o que disponibiliza, ao leitor, um amplo panorama da temática nos diferentes países e contextos, a partir de análises de um rico e diverso leque de fontes e do emprego das mais diversas metodologias.

Na primeira parte, Luís Alberto Alves e Cláudia Ribeiro refletem sobre o que temos feito dos “nossos passados históricos”, dos quais não queremos lembrar. Ensinar passados dolorosos, aprender com o uso pedagógico da história apresenta os resultados e análises de uma longa pesquisa realizada com estudantes do 9º. e do 12º. anos da Educação Básica, e professores de História, em Portugal. Os autores compreendem que o passado, por mais doloroso que seja, deve transformar-se “num conhecimento inteligível e, a partir daí, acreditar num devir de melhoria (esperança) que seja suportado na inteligibilidade” (p. 28). Os passados dolorosos precisariam ser trabalhados por docentes “preparados cientificamente e intelectualmente honestos”, a fim de fornecer “recursos variados, perspectivas heterogêneas, sínteses consensuais englobando contributos dos seus interlocutores” (p. 27). Por meio das análises de entrevistas com professores e alunos, os autores tratam as “questões socialmente vivas” e remanescentes da Guerra Colonial, consideradas, pela maioria dos entrevistados, como o ápice do passado doloroso da sociedade portuguesa.

Na análise de Aprendizagem histórica dos passados dolorosos: as “guerras coloniais” nas narrativas de jovens portugueses, Marçal de Menezes Paredes e Tatyana de Amaral Maia refletem acerca da aprendizagem e educação histórica como campo de pesquisa em que se busca “investigar os processos pelos quais alunos constroem o seu conhecimento histórico e como aprendem os conceitos estruturantes da disciplina” (p. 51). Em um segundo momento, os autores analisam as maneiras de compreender a história da Guerra Colonial dos alunos portugueses, considerando os passados dolorosos circunscritos às experiências traumáticas e “passados que ameaçaram romper com a cultura histórica moderna que inclui a defesa de valores considerados universais e intrínsecos aos indivíduos” (p. 63). Nessa pesquisa, a apreciação das narrativas de estudantes leva os autores a entenderem que a História ensinada ainda exerce um papel tido por essencial na compreensão da experiência vivida. No entanto, revelam, também, os desejos de esquecimento, o silêncio sobre esse passado ou mesmo o tratamento superficial das questões na forma como são abordadas no ensino ou pela opinião pública.

Beatriz de Las Heras, no artigo (Re)construindo a história a partir da (re)presentação visual: memória da Guerra Civil espanhola em Madrid por meio da fotografia, argumenta que a fotografia não mostra a realidade, mas mostra realidades (p. 82). A autora trabalha quatro conceitos chaves considerados relevantes para a compreensão do processo de (re)construção da história a partir das imagens: memória, fragmento, saber lateral e (re)presentação.

As formas como trabalharam os fotógrafos na cidade de Madrid, bem como as estratégias de propaganda mais utilizadas durante a guerra, também são consideradas ao longo do texto. Apresentando um conjunto de fotografias e tecendo profundas análises, Las Heras aponta as estratégias de mostrar, ocultar, reter e reconduzir, utilizadas pelas autoridades durante a guerra civil espanhola. Neste texto, a fotografia e todo seu processo de “fabricação” são compreendidos como um processo de criação de um discurso que finda por se converter na memória do acontecimento. A leitura nos apresenta a inquietação e preocupação quanto aos usos, produção e emprego das imagens, especialmente na sociedade contemporânea, em que a chegada da tecnologia se converteu em um grande programador de olhares, e registros, de memórias.

No artigo Abordagem ao ensino da Guerra Civil e da ditadura de Franco na Espanha contemporânea, Claire Magill observa as “diferenças nas abordagens dos professores no que respeita à relação explícita entre o passado e o presente” (p. 116), e analisa as metodologias adotadas pelos profissionais do ensino ao ministrarem os temas da Guerra Civil e da Ditadura de Franco. As investigações da autora levam-na a deparar-se com cinco grupos/categorias de professores, assim descritos: aqueles que não se privaram de ensinar o tema potencialmente polêmico, mas também não criaram oportunidades para abordar tais questões (p. 120); aqueles que enfrentam verdades desconfortáveis, mitos e preconceitos, e procuram sensibilizar seus alunos para os perigos de reduzir questões históricas e complexas a explicações simplistas e maniqueístas da História (p. 122); aqueles que em vez de apresentar múltiplas perspectivas e incentivar seus alunos a fazerem suas próprias escolhas, tendem a apresentar suas próprias opiniões, sem incentivar o debate ou a discussão (p. 126); aqueles que mostram clara preferência por manterem-se afastados de questões polêmicas ou controversas; aqueles que relutam em abordar o tema ou relacionar o passado e o presente; aqueles que tratam a questão, mas não conseguem explorar o tema em profundidade.

Não se trata apenas de nomear uma ou outra atuação docente, tampouco culpar os docentes e sua atuação, mas busca-se refletir acerca das dificuldades encontradas para trabalhar questões não amplamente consensuais e conflituosas na sociedade contemporânea. Ressalta-se a necessidade de desenvolver programas de formação profissional, adequados e pertinentes, no contexto espanhol e em outros contextos.

Na segunda parte da obra temos O ensino de história e os “passados dolorosos”: a questão das ditaduras na América Latina, texto no qual Marcos Napolitano e Mariana Villaça apresentam o debate historiográfico sobre a temática, propondo oferecer alguns subsídios para que o professor possa abordar o tema, instigando os alunos a compreendê-lo historicamente (p. 155). Após apresentar um panorama das ditaduras na América Latina e suas principais questões, os autores indicam um conjunto de temas, conteúdos, materiais, e atividades didáticas, que podem auxiliar os professores no tratamento dessas questões, além de indicarem bibliografias sobre os golpes e regimes militares.

Por sua vez, Maria Paula Gonzáles debruça-se sobre a última ditadura na Argentina e a observa como “um passado que não passa” perpetua-se em um grande desafio para a escola habituada e convencida de seu caráter neutro. O Ensino da História e passados sensíveis: olhares sobre o caso argentino provoca-nos ao trazer uma abordagem acerca das narrativas, dos regulamentos educativos e, principalmente, das práticas e desafios que se apresentam aos professores de história no ensino de uma temática histórica do tempo presente. Após mergulhar na documentação, e analisar as práticas de ensino como estratégias e táticas construídas no tempo e no contexto, a autora aponta que o tratamento da história nas escolas está “tensionado pela natureza recente e polêmica, a condição aberta e inacabada, o caráter traumático, as questões éticas e políticas, o privilégio da memória sobre a história” (p. 219). A autora destaca, ainda, a relevância de se reconhecer os problemas acarretados pelo tratamento dado ao passado, oportuniza a revisão das maneiras pelas quais pensamos a história como reelaboração do passado, e os significados que damos ao seu ensino.

Com o título de Justa memória, dívida ética e passados-presentes dolorosos: questões a partir da análise de interpretações sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) em livros didáticos de História, o penúltimo artigo da obra apresenta a reflexão de Mateus Henrique de Faria Pereira e Miriam Hermeto, que versa sobre a “tensão entre as práticas do dever de memória e do trabalho de memória” (p. 228). Os autores discorrem sobre os temas da arte engajada e do Golpe de 1964, e de como eles são abordados e dispostos nos 46 manuais didáticos analisados. Os livros didáticos são compreendidos como produtos culturais e instrumentos pedagógicos que se tornaram guardiões e construtores da memória e do saber escolar (p. 243), e o ensino de história pode contribuir para o exercício de superação de uma história “puramente traumática” em direção à transformações no e do presente. O texto encoraja a discussão de maneira crítica e sistemática da escrita da produção didática e a reflexão sobre o dever e o trabalho de memória, cuja incumbência parece incidir sobre ensino de História, de modo a contribuir para que processos históricos não voltem a ocorrer.

O empenho contido no último artigo da obra, Os passados dolorosos no ensino de História: trauma, memória e direitos humanos, de Tatyana de Amaral Maia, é compreender como a legislação e os documentos curriculares que orientam o ensino de História tratam do tema e expõem a ação oblíqua do Estado brasileiro, quanto ao dever de memória e à ampliação da justiça de transição (p. 264). Após profundas análises acerca da instituição e atuação da Comissão Nacional da Verdade e seus contextos, bem como dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a autora provoca quanto à naturalização da seleção de determinados conteúdos históricos, e sobre o discurso meramente retórico de defesa dos direitos humanos, apontando que é preciso integrar os currículos dedicados ao ensino de História e à Educação em Direitos Humanos, de modo a favorecer a superação dos legados autoritários na sociedade. Para a autora, o ensino de História pode ser um espaço privilegiado para a reflexão sobre a ditadura militar e seus legados, e pode romper com a “política do esquecimento” que teria sido implantada junto com a “transição negociada” experimentada pela sociedade brasileira (p. 263).

A obra (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História instaura a oportunidade de olhar para os passados dolorosos sob a perspectiva do ensino, mas também possibilita ampliar o olhar para além de materiais didáticos e conteúdos curriculares, apresentando diferentes fontes, linguagens, e contextos, em que se pesam elementos como o compromisso e a honestidade intelectual para com a sociedade e seus enfrentamentos sociais e históricos, bem como para com as populações, e grupos, diretamente marcados pela violência, cujas memórias parecem manter-se sob a “sombra” dos registros e discursos hegemônicos.

A coletânea oportuniza rememorar o privilégio e o dever do ensino de História no processo de (re)construção de passados recentes, reconhecimentos e esclarecimentos de usos e abusos. (Re)construção de sua força no combate aos “esquecimentos” e de sua possibilidade de contribuição na formação de uma sociedade nas quais suas histórias não repitam os processos cingidos pela dor.

Maria Andréa Angelotti Carmo –  Professora Adjunta no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutoranda em História pela Universidade do Porto, Portugal.

rajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo – VAROLO (HE)

VAROLO, Flávia Renata da Silva; RIBEIRO, Arilda Ines Miranda; FELIX, José Luís. Trajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo. Uma escola alemã na colônia Riograndense: 1922-1938 (Maracaí/Cruzália-SP). Jundiaí: Paco Editorial, 2015. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. Terra, educação e imigração: uma escola na colônia de alemães no interior do Estado de São Paulo. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 243-247, jul./dez. 2017.

VAROLO Flávia Renata da Silva (Aut), RIBEIRO Arilda Ines Miranda ([Apres]), FELIX José Luís (Apres), Trajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo (T), Imigrantes alemães, SAMPAIO Thiago Henrique (Res), Colônia alemã riograndense, Escola alemã, Paco Editorial (E)

Quando estudamos movimentos migratórios, temos que entender as tentativas de implantação de uma cultura de imigrantes, em seus novos espaços de convívio, como uma forma de continuação das experiências de sua terra de origem. Dentro dessa perspectiva, a obra Trajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo apresentou um panorama da colônia Riograndense e sua escola alemã.

Na apresentação José Luís Felix, professor da Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis), salientou a importância do papel de um sistema escolar dentro da comunidade de imigrantes alemães no Brasil. Dessa forma, a história da escola da colônia Riograndense confunde-se com a trajetória da própria localidade. O recorte temporal apresentado na obra é de 1922 a 1938, na região dos municípios de Cruzália e Maracaí. O ano final da escolha da pesquisa deve-se à deterioração da Escola Alemã, durante o Estado Novo com suas medidas educacionais.

Na introdução, Flavia Renata da Silva Varolo, apresentou suas motivações ao escrever a obra e seu contato com a cultura e língua alemã durante sua trajetória de formação. Seu livro usou como metodologia a História Oral, articulando-se com a História Cultural, durante toda a obra. Suas fontes são fotografias, textos, e narrativas, dos moradores da colônia e pessoas que passaram pela Escola Alemã.

O livro é resultado de sua dissertação de Mestrado em Educação, A educação alemã na colônia Riograndense: 1922-1938 (Maracaí/Cruzália-SP) defendida, em 2010, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente (UNESP/Presidente Prudente).

No primeiro capítulo, O imigrante alemão no solo brasileiro, a autora mostrou o início da vinda dos alemães em território nacional. Isso era desencadeado por motivos como má distribuição de terras, problemas econômicos, e altos impostos, em suas localidades. Para a pesquisadora, o início do movimento migratório alemão para o Brasil começou com a vinda da família real portuguesa, em 1808, que trouxe alguns alemães em sua comitiva.

O aumento do fluxo da população alemã ao Brasil iniciou-se em 1820, com um decreto de D. João VI para incentivar a entrada de indivíduos europeus, com a finalidade de gerar o branqueamento da população do território. Entre 1822 a 1826, a vinda de alemães ganhou força com a Imperatriz Leopoldina, filha do imperador da Áustria, Francisco I.

No caso do Estado de São Paulo, a imigração alemã pode ser dividida em quatro fases: a primeira, de 1827 a 1849, devido a políticas imperiais adotadas no país; a segunda, de 1850 a 1870, acarretado às agitações sociais nos territórios alemães; a terceira, de 1870 a 1945, motivada por parcerias entre as administrações do estado com companhias; e a quarta, de 1945 aos dias de hoje. Na década de 1930, o fluxo de alemães se intensificou para o Estado devido a política de branqueamento adotado durante o Estado Novo.

Nas décadas de 1920 a 1930, a educação brasileira não penetrava nas grandes camadas populares, isso incluiu os imigrantes em território nacional. A educação pública era essencialmente aristocrática e patriarcal. Com o movimento da Escola Nova, buscou-se uma renovação escolar através do discurso progressista e liberal.

Durante a Era Vargas, aconteceram mudanças formais e substanciais na educação através de algumas medidas como a criação do Ministério da Educação e Saúde (1930), a Reforma Francisco Campos (1931), e a Reforma Gustavo Capanema (1942). Com uma pasta própria para assuntos educacionais, ocorreram a formação do Conselho Nacional de Educação, que buscou a organização do ensino superior, secundário e comercial; a organização da Universidade do Rio de Janeiro, e a adoção de medidas no regime universitário.

No capítulo seguinte, Uma colônia de alemães no interior do Estado de São Paulo, a autora tratou da formação da Colônia Riograndense, em 1922. A população da localidade era originária da Alemanha, Áustria, Suíça e de alemães que já estavam no Brasil e se mudaram para a região. Para escrever sobre a história da colônia foi utilizada documentação oficial, depoimentos e diários de habitantes. O nome da região origina-se da influência de colonos do Rio Grande do Sul.

Durante o início da colônia aconteceu propaganda para a vinda de alemães a área. Esse marketing era enganoso, pois divulgava terras planas e próprias para a agricultura. Ao chegarem na localidade, os colonos deveriam abrir matas para a construção de casas e cultivos. Além disso, a viagem da Alemanha para o Brasil era extremamente cansativa e penosa, principalmente para crianças e idosos. Muitos, que tentaram vir, morreram devido a problemas na viagem e causadas por tifo.

A colônia Riograndense passou por três núcleos de colonização: em 1922, na região central da localidade; em 1924, começou um segundo núcleo, formado por habitantes de maioria católica e com grandes propriedades; e em 1929, uma região de população majoritária de gaúchos em torno da Fazenda Galvão.

As mulheres e crianças ajudavam na derrubada de matas para a criação de áreas cultiváveis e habitacionais na colônia. A agricultura era de produtos de subsistência: mandioca, milho e feijão. Entretanto, a economia da colônia ganhou força com a comercialização de alfafa, produto ficou em alta até a década de 1950. Na década de 1960, a alfafa foi substituída pelo cultivo de trigo e soja. A localização da área colonial era de fácil acesso à estrada de ferro (Sorocabana), possibilitando um rápido escoamento de sua produção.

Católicos e luteranos conviviam na localidade. Desde o início do processo de colonização as igrejas eram construídas. Desta forma, fé e religião eram uma força para os colonos superarem as dificuldades das mudanças.

No último capítulo, A educação alemã na colônia rio-grandense: escolas, clubes e práticas culturais, a autora buscou demonstrar o papel primordial desempenhado pela educação no processo de inserção dos imigrantes alemães. A educação nas colônias, na maioria das vezes, era responsabilidade dos seus próprios moradores, que construíram escolas e contratavam professores devido à ausência de investimentos do Estado nas localidades. Na colônia Riograndense não foi diferente.

A Escola Alemã da colônia Riograndense era no meio rural e mista (meninos e meninas frequentavam). A primeira escola foi construída em madeira e após um incêndio, em 1926, uma nova escola foi inaugurada. No currículo escolar estavam presentes o catecismo, a bíblia, a escrita e a aritmética. O material didático era de língua alemã adaptada à realidade brasileira. Seu programa curricular era flexível e diversificado para o momento.

O professor possuía responsabilidades além da escola, como o desenvolvimento de atividades culturais e religiosas, além da importância econômica para a localidade. A manutenção do colégio ficou a cargo dos colonos (prédio e salário de professor).

Os espaços educacionais não se restringiram apenas à escola, pois os autores do livro demonstram que outros espaços sociais, como os clubes e igrejas, tinham importância na formação educacional das crianças e jovens, principalmente após a perseguição e preconceito a alemães, desencadeados após a Segunda Guerra Mundial.

Com a Reforma de Gustavo Capanema teve início o fim da escola, pois houve a implementação de escolas públicas na colônia Riograndense. Esta reforma colocou como obrigatória o ensino do português nas escolas públicas. O número de alunos da Escola Alemã diminuiu com o início das reformas educacionais do período do Estado Novo

Durante a Segunda Guerra Mundial, os habitantes da colônia sofreram com associação ao nazismo. Muitos imigrantes alemães foram perseguidos pela polícia, tiveram suas casas invadidas e alguns bens confiscados.

Com o passar do tempo, aprender alemão perdeu importância entre os colonos, pois começaram a se considerar integrados à sociedade brasileira. Este processo de aculturação da colônia foi movido por vários fatores, entre eles a Segunda Guerra Mundial, nacionalização do ensino e casamento de seus habitantes com pessoas de fora da colônia. Entretanto, micro-resistências dos habitantes se mantinham, como a preservação da língua dentro dos espaços do lar.

Em suas considerações finais, a autora salientou a relação construída dos imigrantes com a sociedade brasileira, como eram vistos por nós e como entendiam o Brasil. A colônia alicerceava-se na escola e na igreja, sendo o colégio um lugar de construção da cultura, da língua e cidadania.

Com a mudança de hábitos na colônia, ocorreram alterações também na Escola Alemã. Ela ficou responsável pela formação dos filhos dos colonos para a obtenção de postos de trabalho melhores que de seus pais. Entretanto, na medida em que se exportou mão de obra qualificada, se impôs um fim lento e gradual da colônia e, com isso, de sua escola.

A obra Trajetória educacional dos imigrantes alemães no Estado de São Paulo é ímpar ao mostrar o papel da educação como sinônimo de oportunidades a imigrantes em uma localidade nova. O livro aborda a coesão de um povo para a manutenção da sua cultura e de suas práticas sociais, distantes de sua pátria mãe. Com uma escrita agradável e esclarecedora, a autora faz o leitor analisar o papel da educação como algo fortalecedor de uma comunidade em prol da prosperidade coletiva e manutenção de suas raízes histórico-culturais.

Thiago Henrique Sampaio – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis).

Patrimônio cultural e ensino de história – GIL; TRINDADE (HE)

GIL, Carmen Zeli de Vargas; TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski (Org.). Patrimônio cultural e ensino de história. Porto Alegre: Edelbra, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Maria Nogueira. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 239-241, jul./dez. 2017.

A obra é resultado de estudos e pesquisas de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Federal de Santa Catarina, todos envolvidos com a Educação Patrimonial. Em outra parte, são professores da Educação Básica e os licenciandos em História da UFRGS que compartilham suas experiências, as quais foram adquiridas nas atividades da disciplina de estágio de Docência em História III- Educação Patrimonial, que aconteceram de 2010 a 2012 em museus, arquivos, praças e escolas do Rio Grande do Sul.

Professores e estudantes relatam suas experiências e fazem reflexões acerca do espaço do tema do patrimônio no ensino de História, numa perspectiva atual. Ao relatarem suas ações educativas em escolas, museus e outros espaços de cultura, os licenciandos em História e professores, apresentam novas estratégias e perspectivas para a educação patrimonial. Chamam a atenção não somente para o papel do patrimônio de monumentos, mas também para o patrimônio local e imaterial, os saberes e fazeres populares que por muito tempo ficaram esquecidos, no ensino de História.

Segundo Carmem Zeli de Vargas Gil, professora da disciplina Estágio de Docência em História III, a escola, uma instituição fechada, aos poucos se abre para dialogar com outros espaços com potenciais educativos. Neste caso, a prática é uma oportunidade dos futuros professores refletirem, não só em metodologias e teorias, mas também em sua própria formação cultural. Além disso, eles entram em contato com outras formas de aprender e “ampliam suas reflexões a respeito da história”.

A partir dos anos 1980 a educação para o patrimônio ganhou importância, acentuando-se nos últimos anos e despertando grande interesse dos pesquisadores. No entanto, o termo educação em relação ao patrimônio já aparece desde as primeiras políticas de preservação. Mário de Andrade, quando da elaboração do documento de criação do SPHAN, nos anos 30, dizia que a preservação do patrimônio histórico já seria uma forma de educação. Recentemente, foi ampliado quando em 2002, o patrimônio intangível ou imaterial foram incluídos nas políticas oficiais para o patrimônio.

Outro importante aspecto que hoje percebemos na Educação Patrimonial é a visão crítica em relação à constituição do patrimônio. Nas ações educativas, tanto nos museus e centros de cultura quanto nos centros históricos, é importante dar relevância à discussão da constituição desse patrimônio e suas implicações políticas e sociais. Por que determinada produção cultural foi valorizada em detrimento de outra? Quem e em quais circunstâncias essas pessoas fizeram as escolhas do que preservar ou não?

Nos relatos dos docentes e discentes podemos perceber isso. Eles nos apresentam novas abordagens para a Educação Patrimonial no ensino de História. Baseando-se na ampliação do conceito de patrimônio, procurou-se a valorização dos saberes e fazeres populares, além de valorização do patrimônio local.

A experiência na Unochapecó, em que alunos dos cursos de Matemática, História, Artes Visuais e Letras foram incentivados a pesquisar junto às pessoas de seu próprio convívio, é um exemplo. A partir de questões da educação patrimonial, eles pesquisaram os saberes matemáticos, históricos, artísticos e literários. Os alunos se surpreenderam com o conhecimento que encontraram. Com isso perceberam o campo vasto de possibilidades para se trabalhar com patrimônio e memória no ensino de História.

Outro aspecto importante que apareceu em todas as experiências é o questionamento e reflexão em torno do patrimônio constituído. E necessário que conheçamos em qual circunstância e objetivos certos patrimônios foram constituídos. Para isso é necessário contextualizar e aprender mais sobre a história local e nacional nos seus aspectos sociais, políticos e econômicos. Nos museus, por exemplo, sabemos que a exposição é apenas um discurso construído, uma versão de muitas outras possíveis.

A experiência no Museu da Medicina mostrou o discurso dos médicos através da exposição de objetos que lá havia, mas também possibilitou falar dos saberes populares no campo da saúde: uso de plantas medicinais, benzedeiras e parteiras e outros.

As estratégias e recursos utilizados nas práticas merecem ser mencionados: leituras reflexivas da cidade, fotografias com discussão, entrevistas com pessoas do convívio, reflexão sobre o patrimônio do próprio bairro. Essas estratégias foram eficientes porque anteriormente houve a discussão acerca da contextualização histórico e social, local e nacional. Tudo isso possibilitou aos alunos fazerem relações e compreenderem as circunstâncias e escolhas pelas quais o patrimônio e a memória são constituídos. Além disso, é importante mencionar que os graduandos procuraram uma base teórica que desse suporte às suas práticas. Em seus textos percebemos as discussões e diálogos com os teóricos da área. Entre outros, podemos citar Walter Benjamim e seus conceitos de memória e patrimônio e sua relação com as experiências vividas; Mário Chagas também é citado, inclusive pelo seu questionamento do termo “educação patrimonial” que para ele é redundante, pois educação já é patrimonial. Márcia Chuvas, também, aparece em muitos dos textos, além de Chartier, Le Goff e Michel de Certeau.

É pertinente considerar que o estudo apresentou interessantes abordagens e estratégias de educação para o patrimônio. Valorizando não só o patrimônio monumentalizado, mas também os saberes e fazeres da cultura popular. Ademais, valorizou-se a contextualização nas atividades de estudo, possibilitando dessa forma reflexões sobre a forma de constituição do patrimônio e suas implicações políticas e sociais. É necessário discutir tanto aquilo que foi preservado quanto aquilo que foi esquecido. Assim, penso que esse estudo contribuiu para o desenvolvimento do campo da Educação para o patrimônio e de suas possibilidades no ensino de História.

Ana Maria Nogueira Oliveira – Instituto Brasileiro de Museus_ IBRAM/MinC. Mestre em Educação pela Universidade Federal de São João Del-Rei.

 

 

 

 

 

 

Ensino (d)e História Indígena – WITTMANN (HE)

WITTMANN, Luisa Tombini (Org.). Ensino (d)e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. Resenha de: BIGELI, Maria Cristina Floriano. Ensino (d)e história indígena: um livro necessário. História & Ensino, Londrina, v. 22, n. 2, p. 297-304, jul./dez. 2016.

Iniciar a introdução do livro Ensino (d)e História Indígena com a indagação “O que você sabe sobre os índios?”, já nos põe em estado de reflexão antes mesmo de passarmos os olhos pelas primeiras frases contidas nessa seção. Afinal, o que a maioria de nós, professores ou não, porém, antes de tudo, brasileiros e brasileiras, sabe sobre os povos que outrora já habitavam essas terras? Além daqueles que possuem acesso a bibliografias especializadas, a população brasileira, majoritariamente, tem conhecimentos parcos e aquém do necessário. Para Wittmann, organizadora e autora de um dos capítulos do livro, a escassez de saberes a respeito dos povos indígenas brasileiros “[…] revela o desconhecimento de nossa sociedade sobre a própria história” (WITTMANN, 2015, p. 9). Contudo, há diversos motivos para tal insciência, sendo o principal deles a ausência ou a insuficiente abordagem de histórias e culturas indígenas em instituições educacionais.

Por décadas, os indígenas foram apartados da escrita da História do Brasil, portanto, pouco abordados nos currículos escolares. Quando apareciam nos livros e materiais didáticos, eram enfocados no passado, vistos como coadjuvantes e jamais como sujeitos históricos. Além disso, até meados de 1990, não havia menção aos indígenas em tempos anteriores à colonização espanhola e a portuguesa na América Latina na maioria dos livros didáticos brasileiros. Esses povos passavam a existir na História somente com a chegada dos estrangeiros e, consequentemente, a partir de seus olhares. No que se concerne à vinda dos povos indígenas ao continente americano, quase nenhuma informação era encontrada (GRUPIONI, 1996).

Dando mais um passo para trás, a exiguidade de estudos sobre indígenas na área de História pode estar relacionada ao imaginário construído com a chegada dos colonizadores, eternizado na famosa frase de Varnhagen, presente em História Geral do Brasil, livro de 1854: “de tais povos na infância não há história: há só etnografia” (VARNHAGEN, [1854] 1953, p. 31). Bittencourt (2013, p. 111-112) infere que, a partir dessa frase e dessa obra, “[…] poucos foram os historiadores que se ocuparam dos povos indígenas, assim como vários autores de livros didáticos se limitaram a reproduzir essa escassa produção sobre esses ‘povos sem história’, que tornaram-se, quase que exclusivamente, objeto de estudo de etnólogos”. Corroborando, assim, com nosso atual desconhecimento acerca de histórias e culturas dos povos indígenas brasileiros.

Desde a metade final dos anos 1990, com a instituição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), teve início uma reformulação do ensino brasileiro, bem como uma renovação nos ensinos fundamental e médio. A partir de então, passou-se a aceitar o termo “diversidade” como princípio norteador dos PCN para o ensino de História e, do mesmo modo, o termo “pluralidade” aparece em evidência. A temática indígena também é mencionada em diversos pontos, tanto nos PCN para as disciplinas de História e Geografia destinados aos primeiros ciclos do ensino fundamental (de 1ª a 4ª série, atualmente denominados de 1º ao 5º ano), como nos PCN destinados à História dos anos finais do ensino fundamental (5ª a 8ª série, atuais 6º ao 9º ano).

A partir de tais parâmetros, diversos livros didáticos brasileiros incluíram conteúdos sobre indígenas em contextos anteriores à colonização europeia, passando a versar sobre o continente americano em temáticas relacionadas à Pré-história. Dessa forma, “a antiga tradição de começar nossa História com a chegada dos portugueses foi superada. Mantém-se, contudo, o predomínio da apresentação dos índios a partir do passado, mas isso se explica, em grande parte, por se tratar de livros de História” (FUNARI; PIÑÓN, 2011, p. 100).

Anos após a publicação dos PCN, a lei 11.645/2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura1 indígena nas escolas públicas e particulares. Assim, em colaboração com essa lei, o livro Ensino (d)e História Indígena tem o objetivo de compartilhar e gerar conhecimentos a respeito da temática indígena, sendo uma obra destinada a professores e professoras da educação básica, principalmente para o ensino médio. Contudo, acreditamos que as diversas abordagens sobre povos indígenas, divididas em cinco capítulos, nos trás uma multiplicidade de informações sobre a pluralidade de histórias indígenas de nosso país e colaboram com aulas de todos os níveis escolares – inclusive com aulas universitárias.

Na introdução, Wittmann nos mostra o que está por vir a partir da discussão de uma nova área de estudos da temática: a Nova História Indígena. Essa área tem consolidado espaço nos estudos históricos por abordar ações e interpretações de sujeitos e povos indígenas diante de múltiplas realidades, além de buscar desconstruir afirmações até então bastante difundidas, tais como: “populações indígenas estão em vias de desaparecimento”, “povos indígenas já fazem parte do passado”, “extermínio indígena” ou mesmo visões “conservadoras”, a saber, as que não consideram indígenas aqueles que deixaram de residir em suas terras e/ou comunidade de origem; aqueles que têm contato com objetos não indígenas que fazem parte da sociedade capitalista, como aparelhos eletrônicos (celulares, televisão, rádio, computador etc.), vestimentas (calça jeans, roupas íntimas, calçados, bonés etc.), automóveis, acesso a internet, entre outros. Ou seja, essas visões “conservadoras” não consideram indígenas aqueles que não mantiveram suas culturas estáticas (como se isso fosse possível!) e se apropriaram de objetos de outras culturas.

De fato, o livro cumpre o que propõe em seus cinco capítulos de autoria de pesquisadores e pesquisadoras com formação acadêmica em História. Nesses, as histórias e culturas indígenas são grafadas a partir de diversos olhares e abordam variadas regiões brasileiras, desconstruindo, de prontidão, as ideias de uma única história indígena ou de apenas uma cultura indígena. Além disso, percebe-se o cuidado com a diagramação da obra, pois os capítulos são constituídos de figuras coloridas e quadros informativos. Esses quadros são destacados do texto em caixas quadradas de cor púrpura e trazem informações, complementações e explicações essenciais para a compreensão dos assuntos abordados nos capítulos, ampliando, dessa forma, os conhecimentos dos leitores e tornando o assunto ainda mais dinâmico e compreensível.

Vamos às análises desses trabalhos. Giovani José da Silva, autor do primeiro capítulo, intitulado “Ensino de História Indígena”, após versar sobre as dificuldades em se reconhecer, no Brasil, a diversidade pluricultural e multiétnica, enfatiza a sua experiência em uma escola indígena localizada no Mato Grosso do Sul. Silva foi professor de ensino fundamental e médio da escola fixada na aldeia Bodoquena, dos indígenas Kadiwéu, na qual realizou uma experiência didático-pedagógica em História e a narra em seu capítulo. Entretanto, antes da experiência contada, o autor descreve suas dificuldades em se aprender o idioma falado pelos Kadiwéu – filiado à família Guaikuru – e também pela experiência que vivenciou ao acompanhar a instalação das escolas indígenas na região do Pantanal.

Com linguagem fácil para leigos, já que o livro não é destinado a acadêmicos e sim para docentes de escola básica, Silva explana algumas trocas de conhecimentos e experiências ocorridas durante sua permanência de sete anos nessa região do Mato Grosso do Sul. Ao final, assim como há nos capítulos seguintes, o autor propõe sugestões de atividades visando auxiliar os docentes na preparação das aulas escolares. Cada atividade possui um “texto de apoio para o(a) professor(a)”, que complementa o assunto abordado. Silva propõe atividades que vão além do assunto central de seu capítulo, ampliando a gama de possibilidades de se abordar História Indígena dentro da sala de aula. O autor sugere trabalhar, por meio de vídeo, a presença indígena na sociedade brasileira atual; refletir sobre as representações acerca dos indígenas presentes em canções; compreender os porquês das datas comemorativas, entre essas, o dia 19 de abril como “Dia do Índio”; realização de pesquisa a respeito da inserção da temática indígena nas aulas; e discussão de memórias construídas sobre a participação dos indígenas na Guerra do Paraguai. Enfim, há diversas propostas que os docentes podem se apropriar, se inspirar ou utilizar como norte para as aulas escolares.

Saindo do Centro-oeste e caminhando para região Norte do país, “Índios cristãos na Amazônia colonial”, de autoria de Almir Diniz de Carvalho Júnior, aborda as relações ocorridas entre indígenas que habitavam a região amazônica e os europeus através das “missões católicas” – utilizadas como mais uma forma de colaborar com a conquista do território recém-“descoberto”. Dentro dessas “missões” – núcleos de pequenos povoados instalados nas proximidades dos primeiros centros coloniais – havia uma maior concentração de indígenas do que de brancos (esses eram soldados, padres, missionários e alguns colonos), mas, obviamente, as impressões sobre tal período, registradas em documentos oficiais, vêm dos olhares dessas “minorias” brancas.

Deslocando o foco do olhar do europeu para o indígena, o autor do segundo capítulo descreve as relações e o dia a dia dentro desses lugares de “missões”, como: as diversas funções cumpridas; os espaços de controle; a administração; as novas formas de conceber e administrar o tempo; o uso de panos de algodão para cobrir os corpos; a imposição de uma ética de trabalho que não condizia com os significados que os povos indígenas atribuíam a essas atividades laborais; as estratégias criadas para se livrarem dos serviços; ou seja, a imposição e a adaptação dos indígenas a essa lógica religiosa e cultural cristã. Portanto, os personagens, como diz o autor, obscurecidos na historiografia brasileira, são trazidos nesse capítulo para que compreendamos as transformações dos povos indígenas da região amazônica brasileira.

O terceiro capítulo, “Identidades indígenas no Nordeste”, de Mariana Albuquerque Dantas, aborda as transformações nas identidades e culturas dos povos indígenas habitantes da localidade compreendida hoje como Nordeste, precisamente da região de Pernambuco, a partir da formação dos aldeamentos ocorrida no século XIX. Esse capítulo nos põe em estado de reflexão para entendermos as origens dos discursos que são disseminados, até a atualidade, a respeito da “pureza” dos indígenas. A autora também aborda o surgimento dos “caboclos” (remanescente de indígenas, na concepção daqueles que compreendem que a identidade é algo estático e imutável), as relações dos povos indígenas com o surgimento de aldeamentos, além do processo de extinção das aldeias articuladas pelos discursos acerca da mestiçagem.

Dantas constrói o texto de maneira didática, com figuras, mapas e documentos históricos, o que facilita tanto o processo de entendimento do professor como o do leitor que tenha interesse na temática. Além disso, a autora traz problematizações envolvendo os discursos dominantes das autoridades que ocupavam cargos administrativos e a falta de produções documentais a partir da fala dos indígenas, elucidando que, para se analisar fontes do século XIX a respeito da participação indígena na construção da História, é necessário que o leitor/pesquisador tenha um posicionamento crítico. Nas sugestões de atividades há a utilização de vídeos e da Literatura para se comparar imagens construídas acerca dos indígenas (como a imagem idealizada presente em “O Guarani”, de José de Alencar, e a representação do povo mestiçado, considerado indolente e sem terra, contida no livro “O Caboclo”, de Estêvão Pinto), além de textos de apoio para os docentes.

Luisa Tombini Wittmann, organizadora do livro, é a autora do quarto capítulo “Relações interétnicas ao Sul”, que aborda histórias indígenas da região do Vale do Itajaí, localizado no estado de Santa Catarina. De escrita mais literária, o que possibilita uma leitura deveras agradável, a autora narra os “(des)encontros de dois mundos” – assim como a própria escreve – ocorridos entre o mundo dos indígenas Xokleng e o dos imigrantes europeus, majoritariamente alemães, que chegaram em Santa Catarina no século XIX. Além de informações sobre a criação de grupos denominados de “bugreiros”, destinados à caça de indígenas, o que mais chama atenção, no capítulo, é a reconstrução das histórias de crianças indígenas retiradas de seus núcleos de nascimento para viverem nas cidades com outras famílias não indígenas com o intuito de serem “civilizadas”. As histórias das irmãs Ana e Korikrã, duas indígenas Xokleng que foram retiradas do grupo para serem educadas com não indígenas (Ana recebeu o sobrenome alemão de Waldheim e foi viver junto às freiras no Colégio Sagrada Família e Korikrã foi adotada pela família Gensch) além de provocarem emoção no leitor, vêm a colaborar com a demonstração de como é incoerente ainda se dizer, no Brasil, que há “uma história indígena” (no singular), pois, as diversas etnias, os diversos povos, as diversas regiões brasileiras têm suas particularidades e suas diferentes histórias.

O último capítulo, escrito por Clovis Antonio Brighenti, “Movimento indígena no Brasil”, aborda, além do assunto já explícito no título, os desafios para a consecução dos movimentos indígenas – como as demarcações de terras; a legislação indigenista no Brasil; a criação de órgãos como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI); as assembleias organizadas por Chefes Indígenas; as repressões e os apoios; e as diversidades dos movimentos indígenas devido às variedades de povos indígenas no Brasil. Um dos pontos importantes do texto é a desmistificação, já no início, da ideia do “bom selvagem”, imbuída pelo pensamento europeu da época dos descobrimentos intramarinos (século XVI), demonstrando que os movimentos de resistências indígenas têm início no mesmo século, logo após a chegada dos portugueses.

O livro ainda possui, como anexo, uma série de “Materiais comentados sobre a temática indígena”, no qual a organizadora visa auxiliar professores e estudantes para as reflexões acerca dos indígenas no ambiente escolar. Os materiais são divididos em: sites, músicas, mapas e filmes – com links daqueles que estão disponíveis para o domínio público em sites de internet.

Como já assinalado no início desta resenha, além de cumprir o objetivo de compartilhar e gerar conhecimentos sobre a temática indígena, o livro vai mais à frente. Colabora com a desconstrução de clichês como “o bom selvagem”, mostrando as resistências e organizações indígenas surgidas a partir das próprias populações originárias; também favorece a desedificação de ideias que generalizam os povos indígenas, como se fossem todos iguais, evidenciando as diversas histórias e culturas presentes em várias regiões brasileiras; e põe em cheque a velha máxima de que esses povos estão desaparecendo, trazendo a tona reflexões acerca das identidades indígenas e das elaborações das mesmas.

A partir dos olhares de cinco pesquisadores, cada qual partindo da área de História, porém com diversas trajetórias acadêmicas e diferentes objetos de pesquisas, temos, neste livro, saberes que são essenciais para colaborar com a desconstrução de estereotipias sobre os indígenas e demonstrar algumas das produções da área de pesquisa intitulada Nova História Indígena. Compreendemos que, de tais povos, não há “história” no singular. Mas, há “histórias” no plural, há singularidades, há transformações, há lutas, há protagonismos, há presenças, há memórias, há sujeitos, há participantes da construção da História do Brasil, da constituição do povo brasileiro e da composição das diversas culturas que fazem parte de nosso país. Portanto, Ensino (d)e História Indígena é um livro necessário para brasileiros e brasileiras, sejam professores ou não.

Referências

BITTENCOURT, C. F. História das populações indígenas na escola: memórias e esquecimentos. In PEREIRA, A. A.; MONTEIRO, A. M. (Org.). Ensino de história e cultura afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.

BRASIL. Lei nº 11.645. “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> Acesso em: 13 de abril de 2014

______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 10 volumes, 1997.

FUNARI, P. P.; PIÑÓN, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto. 2011.

GRUPIONI, L. D. B. Imagens Contraditórias e Fragmentadas: sobre o lugar dos índios nos livros didáticos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.77, n. l86, p. 409-437, maio/ago. 1996.

VARNHAGEN, F. A. de. História Geral do Brasil. Tomo 1. 5 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1953.

WITTMANN, L. T. (Org.). Ensino (d)e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

Nota

1 Na lei é denominado “história” e “cultura” no singular. Nós optamos por sempre referenciar a “histórias” e “culturas” indígenas por partirmos da concepção de que os povos indígenas são diversos e plurais, sendo inadequado generalizar e considerar que todos os povos são iguais e possuem apenas uma história e uma cultura.

Maria Cristina Floriano Bigeli – 1 Doutoranda UNESP – Assis. Professora UNESP – Marília.

Ensino de História – ABUD et al (HE)

ABUD, K. M.; SILVA, A. C. M.; ALVES, R. C. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2010, 178p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. A história, sua escrita e seu ensino. História & Ensino, Londrina, v. 18, n. 2, p. 305-308, jul./dez. 2012.

O ensino de História tem voltado a estar em discussão. Por certo, suas discussões não se encerram, mas, de tempos em tempos, há maior envergadura dos debates. E, neste caso, entre 1996 e 2006, da discussão e aprovação da última LDB até as recentes deliberações sobre história e cultura africana e afro-brasileira, indígena e dos povos orientais, tais questões deram novo fôlego as discussões e questionamentos sobre a aplicação, ensino e reflexão sobre a História e sua escrita em sala de aula.

A publicação do interessante livro de Kátia Maria Abud, André Chaves de Melo Silva e Ronaldo Cardoso Alves, Ensino de História, além de estar inserido neste contexto, também demonstra como o tema em questão é promissor e tem gerado uma série de debates nos últimos anos. A proposta da obra é viabilizar um conjunto de técnicas e procedimentos, que sejam operacionais e adequados para o trabalho docente em sala de aula. Ao buscarem demonstrar a importância dos documentos escritos para o ensino de história, e por meio deles inserir o trabalho com jornais, obras literárias, letras de música, mapas, fotografias, cinema, cultura material e os espaços da história nos museus, além de ser indicada a necessidade do estudo do meio, a obra nos oferece uma série de mecanismos para tornarem mais dinâmico o trabalho em sala de aula.

Sendo a Didática da História uma metodologia, uma prática e meios de favorecerem melhor oferecimento e apreensão do ensino de história, ela também “constitui-se em torno de um objeto diverso do objeto da História”, por que se “esta investiga o passado e constrói um conhecimento próprio, a versão escolar ultrapassa a simples transmissão de saberes, para se tornar um campo de conhecimento no qual se imbricam a História ciência e a História escolar, cada uma com elementos próprios” (p. IX). Nesse aspecto, o “saber escolar seria constituído sobre a base do conhecimento histórico em conjunção com outros conhecimentos e nas relações com os saberes dos quais os alunos são portadores” (p. X).

Se o “conceito de História como campo de conhecimento é fundamentalmente relacionado ao conceito de fontes históricas”, para “proporcionar o desenvolvimento do pensamento histórico do aluno e fazê-lo distanciar-se do senso comum, a Didática da História propõe procedimentos críticos em relação às fontes, analisadas como recursos para a aprendizagem do aluno”, quer dizer, “promove a utilização do raciocínio comparativo, da periodização do tempo histórico, distinto de um tempo subjetivo, da maestria do grau de generalização dos conceitos, distinguindo completamente a História de seus usos”, e, para isso ser feito adequadamente, “mobiliza metodologias clássicas das ciências humanas e sociais: questionamento e observação, coleta de dados, exame e descrição e coloca em perspectiva os desdobramentos entre noções comuns e conceitos históricos” (p. XIII).

Por essa razão fazem um rápido panorama dos desenvolvimentos da escrita da história e da prática de seu ensino, conformada numa didática especial, entre o século XIX e o XX. De imediato, questionam-se sobre a importância das fontes para a pesquisa e para o ensino de história, demonstrando a diferença nos usos, leituras e interpretações, e o papel fundamental que tem para o ensino de História. Desse modo, em cada capítulo elaboram um rápido esboço da fonte e como foi tratada pela historiografia, como deve ser trabalhada em sala de aula, com sugestões de atividades e questões que podem ser feitas. O livro traz ainda quadros didáticos sobre tipologia de fontes, fragmentos de documentos e roteiros de análise de fontes, com as respectivas bibliografias especializadas, tratadas no capítulo, ao final de cada um, com rápidos comentários sobre cada uma das indicações.

Assim, o fazem quando tratam dos jornais e das publicações periódicas; quando discutem a literatura (tomando como exemplo o conto O homem na multidão de Edgar Allan Poe); ao discutirem a função das letras de música para a aprendizagem da História; ao passarem para o estudo do meio (e mostrarem como a literatura e as letras de música podem contribuir para o seu aprendizado em sala de aula); ao o articularem com o estudo dos mapas, para que seja vislumbrada mudanças e permanências no território analisado; ao ser enfocada a cultura material, pois, sua utilização como “meio de construir conhecimento histórico não se esgota na análise dos artefatos [do passado], mas impõe aos historiadores a mesma abordagem em relação às suas etapas de confecção” (p. 112), e, em sala de aula, o “trabalho pedagógico [permite] desmistifica[r] a idéia de que os objetos só são importantes historicamente se pertencerem às classes dominantes no passado (visto que a maioria dos museus conserva apenas os objetos pertencentes à elite político-econômica das sociedade)” (p. 115); ao articularem esta análise com o estudo dos espaços da história fornecidos pelos museus, que “é fruto de uma série de forças e interesses que operaram na sua construção, instituição e manutenção” (p. 138); deles passarem para o estudo das fotografias, que “é uma rica fonte de informações para a reconstituição do passado, ainda que sua utilização também possa comportar a constituição de ficções” (p. 147); e, por fim, ao demonstrarem a importância do cinema em sala de aula, tendo em vista que “à semelhança do que ocorre com o conhecimento histórico, são produzidos com base em processos de pluralização de sentidos ou verdades”, e, por isso, “as obras cinematográficas são construções carregadas de significados, construídos a partir da seleção de elementos que irão compor as imagens e o som que as acompanham e, depois, na articulação entre os diferentes conjuntos de imagens a partir da edição e montagem dos filmes” (p. 165).

Em todos os casos, de aplicação e usos de fontes em sala de aula, o livro fornece instrumentais seguros para que o professor de história possa alçar novos voos sobre o ensino de História e no trabalho com seus alunos. Donde ser uma referência para o tratamento de questões, que seguramente com as mudanças recentes da sociedade e operacionalizadas pelas políticas públicas no ensino de História, ainda se mantém em aberto, e sujeitas as mais variadas formas de tratamento e resolução. Por tudo isso, a obra chega em boa hora, ainda mais por se tratar de uma base de consulta extremamente atual.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor dos cursos de História e de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), na Unidade de Amambai.

História do ensino da história no Brasil – MATTOS (HE)

MATTOS, Ilmar Rohloff (org.). História do ensino da história no Brasil. Rio de Janeiro: Acess, 1998. Resenha de: CERRI, Luis Fernando. História & Ensino, Londrina, v. 8, p. 151-156, out. 2002.

Afirmamos continuamente que não há assunto que não possa ser melhor compreendido com o recurso à História. Este é um dos argumentos centrais para a manutenção da História como disciplina escolar, e das graduações em História; por que não deveria valer também para o próprio estudo da disciplina? Com esta perspectiva, Ilmar de Mattos organiza a apresentação de trabalhos de pesquisa de profissionais com diferentes formações e diferentes situações na carreira acadêmica, o que não desiguala o nível da contribuição de cada um dis trabalhos elencados (produzidos por profissionais ligados ao Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Com isso, a principal contribuição coletânea é uma reflexão séria e empenhada sobre o que foi o ensino de História no Brasil durante o império e até meados do século vinte, que possibilita pensar as teorias, metodologias e práticas que hoje se discute e que se no normatiza, debate acadêmico e na legislação.

A obra dá seqüência a uma perspectiva de retomada da História da disciplina, que tem expoentes nos nomes de Elza Nadai, Kátia Abud e Circe Bittencourt, entre outros(as). Mas a coletânea organizada por Mattos distingue-se e avança, pois traz ao público trabalhos que aprofundam os contextos competentemente reconstituídos pelas pesquisas anteriores, esmiuçando obras, autores, instituições e influências que pesaram sobre o quadro atual da disciplina escolar em questão.

A coletânea é aberta por Kaori Kodama, que retoma as variadas considerações da historiografia sobre o texto de Von Martius (“Como se deve escrever a história do Brasil”) c sobre o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no processo de constituição e de viabilização do ensino da história nacional na primeira metade do século XIX, com especial destaque para os preconceitos raciais que aí se inscrevem e que até hoje demandam combate incessante, não por serem explicitamente assumidos, mas por Imiscuírem-se em informações, explicações e posturas consagradas no ensino da história nacional.

Selma Rinaldi de Mattos abre uma importante seara, analisando os manuais de história produzidos pelo consagrado escritor Joaquim Manoel de Macedo. estabelecendo uma ponte necessária entre a literatura e a história mergulhadas no mesmo ambiente do nacionalismo romântico que esteve presente na constituição cultural da nação, concomitante à sua construção em outras áreas como a diplomática, política e econômica, protagonizada pelo Estado surgido em 1822. A autora dá destaque ao componente aristocrático presente no projeto político e conseqüentemente na obra pedagógica de Macedo, que para a autora é o primeiro que dá a feição de manual didático à história lida por Varnhagen no clássico “História Geral do Brasil”.

O texto de Patrícia Santos Hansen traz um recorte cronológico posterior, que enfoca a reconstrução da disciplina sob novos princípios político, na implantação da República, por meio da análise da obra de João Ribeiro, autor de livro didático adotado pelo Colégio Pedro 11 no período. Para Hansen, João Ribeiro indica, em sua obra, uma ruptura com “a concepção de história vigente”, isto é, aquela consagrada durante o império, colocando-nos diante de um caso importante para a compreensão dos processos de confronto de perspectivas historiográficas e pedagógicas no ensino da história, do qual podem ser levantadas algumas reflexões, sobretudo referentes às permanências e às continuidades entre propostas que se confrontam.

Luiz Rcsnik narra e discute um outro processo de confronto de concepções sobre o ensino de História, num outro momento político nacional. Trata-se do debate sobre a autonomização ou não da História do Brasil em relação à História Geral ou da Civilização, que teve lugar no início da década de 1930. Neste momento permanecem as afirmações, nas obras de autores consagrados e nas orientações legais ou oficiais, sobre o papel central do ensino de História na formação do sentimento patriótico do cidadão. O diferencial neste momento é o debate sobre o método e sobre o tratamento do conteúdo (memorização dos fatos x compreensão e raciocínio sobre a História), colocado principalmente pela influência da Escola Nova. Para os partidários desta vertente educacional, grosso modo, o ensino da história nacional o reforço das diferenças e das rivalidades internacionais; para o IHGB, entretanto, esse ensino era imprescindível para garantir aos brasileiros o assumir da vocação de cidadãos de um país destinado à grandeza. Sustentada no governo federal, esta proposta sai vitoriosa, e acaba transformando-se numa importante ferramenta política do Estado Novo.

Neste ponto da coletânea é que podemos começar a reconhecer mais claramente alguns traços das propostas contemporâneas, que equivocada e apressadamente acabamos por chamar de “novas”, referentes por exemplo ao papel ativo do aluno no processo pedagógico, ao espaço para outras abordagens da história para além do político e do factuaL Essas “novidades” são contemporâneas à criação da Revista Annales, do que se deduz a inadequação das abordagens que lêem na influência desta vertente sobre a historiografia e o ensino de história no Brasil a raiz das propostas alternativas atuais.

Essas reflexões podem ser continuadas para os dois textos seguintes, que tratam do período que precede e inclui os primeiros tempos do regime militar. Neles, Daniel Mesquita Pereira (utilizando como fonte o Boletim de História Faculdade Nacional de Filosofia) e Francisco José Calazans Falcon (num depoimento na condição de docente da mesma faculdade neste período) dotam o leitor de informações e considerações sobre o debate da História e seu ensino neste momento e nesta instituição.

Ao final da leitura, a impressão que se tem lembra a tese de Amo Mayer (em A Força da Tradição, Cia. Das Letras), para o qual, os antigos regimes europeus mantêm sua força e disposição de determinar a história pelo menos até a Primeira Guerra Mundial, permanecendo, resistindo com sucesso às forças burguesas, urbanizantes, republicanas. Mayer destaca a sedução exercida pela nobreza sobre a burguesia, destacando que, mais que suprimir a primeira, a segunda almejava atingir o seu status, o que levou a uma simbiose entre ambas na maior parte da Europa, ao contrário do que se pensa ao reduzir a análise a nações às quais historicamente se deu maior destaque.

Esta impressão impõe-se pela similaridade que é possíve1 encontrar entre as afirmaçôes que se faz  incansavelmente hoje sobre os parâmetros hodiernos de qualidade do ensino da história, cujos princípios estavam delineados na década de 20, sendo suprimidos no Estado Novo, reafirmados na democratização nos anos 50 e 60, novamente suprimidos pelas reformas educacionais do regime militar, e novamente afirmados na redemocratização nos anos 80 e 90, desta vez aparecendo como “novo” ou “renovado”. Para usar estes termos, mostra-nos a obra, é preciso considerar a tradição quase secular do “novo” (uma contradição em termos), em relacionamento de longa data de confronto com o “tradicional”, o arcaico, muitas vezes incorretamente chamado de positivista. A conclusão, enfim, é que o ensino de História hoje tem diante de si alternativas que não podem ser tratadas a partir de um critério temporal (novo, inovador x tradicional), mas que precisam ser recuperadas em sua longa duração, em seu embasamento teórico e filosófico que atravessa o tempo e engloba vários séculos.

Por Luis Fernando Cerri – Doutor em Educação (Metodologia do Ensino), professor do DEHIS Universidade Estadual de Ponta Grossa [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

 

Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa – JANCSÓ; KANTOR (HE)

JANCSÓ, István; KANTOR, Íris. (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Hucitec; Edusp; Fapesp, 2001. 2v. 992p. (Coleção Estante USP – Brasil 500 anos, 3). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. História & Ensino, Londrina, v.8, p. 157-160, out. 2002.

A ligeira mulata, em trajes de homem

Dança o quente hmdu e o vil batuque;

E aos cantos do passeio inda se fazem

Ações mais feias, que a modéstia oculta.1

o poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga em suas Cartas Chilenas aludiu ao lundu e ao batuque, respectivamente, canto e dança, muito populares nas festas mineiras do século ‘I’11 como ele, alguns historiadores observam as festas, ou melhor, as manifestações da cultura popular como um lugar de subversão, de transgressão à norma disciplinadora do poder. Gonzaga, por ser aristocrata e moralista, vê a festa como uma grande promiscuidade, onde se misturam brancos, negros e mulatos, chegando mesmo a comparar Vila Rica em festas (atual Ouro Preto) às cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra.

Ao historiador, seguindo uma tradição herdada da Sociologia e da Antropologia, ficou a percepção que as manifestações populares nos dão acesso às experiências cotidianas de segmentos da população que ficaram por muito tempo silenciados. Daí o fascínio pela festa, um cenário privilegiado para observação do universo cultural dominante e, também, ambiente onde se encontra mesclado elementos próprios da cultura popular, com suas tradições, seus símbolos e suas práticas, constituindo-se num espaço de grande sociabilidade.

Assim, entender esse espaço, mostrar pesquisas que estão em andamento e fazer um balanço da produção recente sobre as festividades na América portuguesa e, conseqüentemente, suas implicações na formação da nacionalidade e da cultura nacionais, são os objetivos da edição da coletânea Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, organizada pelos professores e historiadores István Jancsó e lris Kantor.

O livro, fruto de um seminário internacional realizado na USP em 1999, reúne 49 artigos escritos por pesquisadores brasileiros e portugueses, que se preocuparam em compreender as manifestações coletivas (festas, cerimônias, ritos, atos de sociabilidade, etc.) que influenciaram na construção de nossa identidade nacional. Segundo os organizadores, as festas são um dos pontos principais da imagem que o brasileiro faz de si mesmo e do estrangeiro sobre o país. Para grande parte da população, elas significavam um instrumento fuga ao controle exercido pelo Estado absolutista, com o qual sempre tivemos uma relação de sofrimento e de antagonismo. O Estado criado por nossas elites nunca foi um instrumento de harmonia, mas sim de desagrega1ção, pois jamais ele foi utilizado como mecanismo de identificação e de libertação.

Comu as festas coloniais nem sempre tinham a mesma dinâmica nem os mesmos objetos de pesquisa e, portanto, não podiam ser abordadas da mesma forma e através dos mesmos instrumentos analíticos, a obra pode ser dividida em três grandes momentos: um primeiro que trata das festas religiosas ligadas aos jesuítas e a catequese dos indígenas; um segundo período ligado ao processo de consolidação da sociedade urbana desde fins do século XVII e durante a centúria seguinte, notadamente em Minas Gerais. Isso se explica devido à urbanização ocorrida ao longo do setecentos, resultado de uma extensa rede de centros urbanos, e à diversificação da economia através do comércio, do artesanato, da mineração (do ouro e de diamantes), da agricultura e da pecuária. Somam-se a esses dados ainda o contingente populacional, a estrutura administrativa e a constituição de um mercado consumidor interno.

Nas sociedades urbanas, muitas festas, seguindo o modelo ditado pela metrópole, cultuavam o rei e/ou se dedicavam aos ritos processuais católicos, como as celebrações da Semana Santa, do Triunfo Eucarístico e do atual “Corpus Christi”. Mas, ao lado destas festividades, tínhamos também a existência de um número quase que incontável de festas de caráter popular.

Nas interessantes “subversões e inversões da ordem festiva”, uma das divisões do livro que pode ser incluída nesse segundo momento, nota-se que conhecemos muito pouco das festas de caráter político não oficial que integravam o cotidiano das vilas coloniais. Um exemplo dessas curiosas celebrações jocosas que utilizavam signos de poder ocorreu em 1732, quando desafetos do governador dom Lourenço de Almeida promoveram-lhe enterro simbólico, por ocasião de sua partida da capitania de Minas Gerais, enquanto outros celebraram uma missa paródica pela sua alma que, julgava-se, ardia no inferno.

Outras formas de resistência à ordem festiva e social vieram através da circulação de cartas e sátiras anônimas que insuflavam a população à rebeldia, ou ainda através da existência de representações teatrais, como a “Serração da Velha” -cerimônia caricata que ocorria na época da Quaresma, onde um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro. A Velha representava uma entidade maléfica (3 morte) ou algo grotesco que perturbava a felicidade ou dificultava a conquista legítima de alguma coisa. Nesses casos, a festa era um “lugar por excelência capaz de tornar realidade uma das exigências básicas dos protestos: a mobilização popular, que constituiu recurso imprescindível da prática amotinadora a fim de garantir poder de pressão às suas exigências” (p. O terceiro momento é o das “festas na corte portuguesa”, período que se inicia com a transmigração da família real lusitana para o Brasil e vai até a nossa Independência. Nesse instante, as festas tornaram-se mais seletivas e as músicas se apresentaram com novos elementos funcionais, técnicos e estéticos, devido à importação de novos instrumentos musicais e a enriada de novos ritmos na corte dom João Além dos dois volumes que compõe a obra, encontra-se encartado no primeiro exemplar um belo CD com 26 músicas que acnrnpanharam o universo sonoro festas na América portuguesa, desde as tradiçôes medievais, no século XIII, até as práticas indígenas, religiosas e afro-americanas do século XVIII. A apresentação coube ao historiador e músico Maurício Monteiro c a direção artística à Ana Maria Kieffer.

Referências

GONZAGA, Tomás Antônio. Carta 6ª: Em que se conta o resto dos festejos. In: Cartas Chilenas. Edição organizada por Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.143.

André Figueiredo Rodrigues – Mestre em História Social / FFLCH-USP.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

Páginas de prazer – DeNIPOTTI (HE)

DeNIPOTTI, Cláudio. Páginas de prazer. Campinas: UNICAMP, 1999. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. Sobre o prazer. História & Ensino, Londrina, v. 6, p. 203-205, out. 2000.

Podemos imaginar um distinto senhor caminhando pelas ruas empoeiradas de Curitiba, numa tarde quente de verão, nos anos dez. O fraque, a cartola e a bengala não traem a distinção de um jovem advogado.

A cidade pretende cosmopolitismo e, às vezes, os sons urbanos até enganam; engraxates, vendedores de jornais, ambulantes, conversas pessoais trazem consigo as vozes dissonantes, por um momento, da imigração em massa.

Flanando calmamente, o nosso distinto senhor aproveita os lentos minutos que seguem o almoço, que seus amigos chamam de déjeuner, numa inútil tentativa de se sentirem mais próximos da sonhada Europa.

Ele caminha em direção à Biblioteca Pública e, evidentemente, deseja que conhecidos notem a sua entrada no prédio, assim, manteria a imagem de letrado. Poucos passos faltam para o prédio, quando uma bela senhora, acompanhada pela ama, de traços joviais e muito bem vestida cruza-lhe o caminho. Rapidamente, retira o chapéu e cumprimenta a jovem senhora, que lhe retribui com um sorriso e um longo olhar de soslaio, pelo menos foi o que imaginou.

Isto foi preocupante. A esposa de seu melhor amigo. Alguns pensamentos impuros lhe assaltam a mente. Um conflito interno toma proporções épicas: ao mesmo tempo que se deleita com os devaneios carnais, sente-se extremamente culpado. Sonha com o colo da bela dama, mas, vê-se execrado pela sociedade.

Ao adentrar a biblioteca, desiste do compêndio de direito que iria consultar e, envergonhado, sem o demonstrar, solicita a obra de Mantegazza, Higiene do amor. Preocupa-se, agora, com a normalidade dos seus pensamentos. Até onde, para ele, aqueles pensamentos impuros são desvios patológicos?

Enquanto toma o livro na mão, tenta se consolar afirmando a si mesmo que, pelo menos, não era pederasta, provado pelo desejo que o assolou a poucos instantes.

A consulta ao livro poderia lhe ajudar a resolver o conflito entre o desejo e a situação social. De suas páginas, reafirmase a superioridade do casamento monogâmico e, esperança longínqua, o médico aceita o divórcio como solução para casamentos infelizes (claro que sob certas circunstâncias). Convencido, de certa maneira, pelas orientações do médico que, para ele, tinha atingido um grau superior do conhecimento, como quase todos os médicos, encerra a consulta e retorna ao seu escritório de advocacia.

Talvez, esse personagem imaginário, que parece saído de uma obra literária considerada “água-com-açúcar”, não fosse tão incomum naqueles dias. O saber médico atingia o seu ponto culminante, entre os letrados, como ciência que explicava a vida e determinava a melhor maneira de vivê-Ia, superando, para muitas pessoas o papel, da Igreja. Sendo assim, as orientações que partiam desse saber tinham quase força de lei.

É justamente neste universo mental, que Cláudio DeNipotti aventurou-se com o seu livro Páginas de Prazer (Editora da UNICAMP, 1999). Inspirado pelas proposições de Robert Darton sobre leitura, o autor busca, numa pesquisa minuciosa, compreender o universo dos leitores da Biblioteca Pública do Paraná, durante a década de dez, no início do século.

Não vamos estranhar se pudermos imaginar um leitor como o jovem advogado acima, ou centenas de outros personagens, após a leitura do livro. Fugindo do padrão de trabalhos acadêmicos, o texto nos remete para o mundo dos leitores que buscam orientações, explicações, respostas ou, até mesmo, o simples prazer, para as suas sexualidades. E este é um trabalho difícil, pois o autor, aqui no caso, o historiador, deve seguir indícios muito tênues, quase imperceptíveis. Os livros de consultas da biblioteca, redescobertos ao acaso, puderam indicar alguns caminhos, mas não se tornariam algo, sem o trabalho indiciário executado pelo autor.

Para conduzir o leitor nesse seu trabalho, o autor, utilizando um recurso original, cria um personagem, um bibliotecário bem plausível, que irá nos ciceronear pelas ruas de Curitiba e pelas leituras de alguns freqüentadores da Biblioteca Pública.

O texto é construído numa relação constante entre o particular e o geral, isto é, a partir das leituras individuais de obras que tratam direta ou indiretamente sobre a sexualidade, podemos perceber como era pensada esta questão por uma camada da população que se quer letrada e culta.

Assim, acredito que o livro em questão conseguiu atingir o que François Furet chamou de primum movens do historiador, a curiosidade intelectual e a atividade gratuita de conhecimento do passado (Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989). O que DeNipotti nos traz é a redescoberta de personagens há muito esquecidos, de preocupações cotidianas mas que pouco aparecem nos nossos livros de História. Pode caber ao título do livro, resumi-lo. Efetivamente, são páginas de prazer.

André Luiz Joanilho – Professor Adjunto da UEL e do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL

Acessar publicação original

[IF]

 

História Indiscreta da Ditadura e da Abertura – Brasil 1964-1985 – COUTO (HE)

COUTO, Ronaldo Costa. História Indiscreta da Ditadura e da Abertura – Brasil 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1998, 517p. Resenha de: FERRAZ, Francisco César Alves. História & Ensino, Londrina, v.6, p.199-201, 2000.

Os interessados na história recente do Brasil têm à sua disposição uma obra que é proveitosa tanto do ponto de vista do seu conteúdo, quanto do perspectiva de quem a escreveu. A História Indiscreta da Ditadura e da Abertura -Brasil: 1964-1985, de Ronaldo da Costa Couto, além do estilo agradável e direto, sem as retorções acadêmicas de praxe, possui, dentre suas principais virtudes, o fato de oferecer uma síntese da história política brasileira recente a partir da perspectiva de quem participou de vários de seus momentos principais, seja sob as luzes do palco principal, seja nos bastidores do poder.

Costa Couto foi, ao longo das décadas de 70 e 80, secretário de governos estaduais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, bem como ministro em duas pastas e governador de Brasília. A história que escreveu ajuda a entender melhor como alguns homens públicos neste país concebem sua função política e social.

É um tipo de história que tem sido escasso nesses últimos tempos, a do pOlítico de Estado que escreve histórias de seu presente, para além de suas memórias particulares. Dois exemplos deste tipo de história podem ser lembrados: a volumosa História da Segunda Guerra Mundial, do estadista britânico Winston Churchill, e o recém reeditado clássico da historiografia brasileira do século XIX Um Estadista do Império, do parlamentar Joaquim Nabuco.

A maior diferença desses trabalhos com o de Costa Couto é que este foi apresentado, originalmente, como tese de doutorado na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). A maior semelhança é a de ter a perspicácia de compreender a estrutura e o funcionamento dos acontecimentos políticos a partir de uma interpretação singular, combinando duas dimensões da história pol ítica que nós, historiadores acadêmicos, deixamos de lado como “história factual’ ou desprovida de interesse. Uma delas é aquilo que nossos parlamentares e membros do poder executivo chamam de “entendimentos”, ou seja, aquelas conversas de bastidores entre políticos, aqueles acordos ou rompimentos que nós, da plateia, só descobrimos quando o roteiro já foi todo rearranjado, à nossa revelia e muitas vezes às nossas custas … Essa dimensão da “política miúda” é enredada com o poder de síntese histórica que, queiramos ou não enxergar, alguns políticos possuem de sobra, principalmente quando tentam articular os meios que dispõem para os fins que desejam. Esse é o ponto mais forte desse livro. Se desejamos conhecer como as coisas realmente acontecem na política brasileira, precisamos aprender a ler as notinhas de jornais com o mesmo apetite que lemos as matérias de primeira página.

A fonte documental básica para o livro de Costa Couto contribui bastante para esta compreensão: são os depoimentos de trinta e duas pessoas de relevante importância política, de Luís Inácio Lula da Silva ao general João Baptista Figueiredo. Alguns dos depoentes não concediam entrevistas a historiadores acadêmicos, o que torna o estudo de Costa Couto uma boa oportunidade para conhecer certos meandros do poder no Brasil. Essas entrevistas propiciam ao leitor uma perspectiva que, dificilmente, seria conseguida com o estudo dos documentos usuais de nossa história recente. Têm, contudo, o inconveniente de limitar a compreensão dos processos históricos nas fronteiras do que é possível um político dizer em público. Pessoas públicas que têm uma imagem a zelar não costumam revelar nada além do que é permitido e já divulgado. Neste sentido, é uma história “discreta”, sem novidades para os leitores mais atentos de nossa produção historiográfica.

Assim, alguns problemas do livro aparecem. O principal, já evidente desde o título, é prometer algo maior do que o que pode cumprir: o que o autor quer dizer com ‘história indiscreta”? Não é uma história de fofocas do poder, adianta na apresentação

o historiador (recentemente falecido) Francisco Iglésias. Ainda bem. Mas ao fazer uma história da política brasileira a partir dos bastidores, “sem comprometer ninguém (p.20)”, sem o risco de propor explicações mais gerais do que a dinâmica de poder palaciano, perde-se uma oportunidade única de oferecer ao leitor uma reflexão sobre o porquê de “plantinhas tão tenras” (nas palavras do político Octávio Mangabeira) como democracia, direitos, cidadania e igualdade social, aparecerem com mais frequência de modo instrumental e oportunista, nas considerações de nossos homens públicos, do que como princípios fundamentados na vivência e na dignidade da vida política.

Não obstante essa “discrição” -por não revelar nada novo ou “guardado a sete chaves” pelo poder -o livro é importante pelas pistas que, voluntariamente ou não, oferece para estudos futuros sobre a história do poder político no Brasil. Nessa história, eu, você, todos nós, leitores, aparecemos mais como a plateia do que como coadjuvantes, menos ainda como protagonistas da história. Não se trata apenas de uma divisão entre classes, ou entre elites e massas. Se essa estrutura política ainda sobrevive às vésperas da virada do século, se ainda é possível combinar o discurso da modernidade com o clientelismo mais tradicional, e se tudo isso ainda aparece na história dos livros didáticos como algo pertencente à ordem natural das coisas, nossa atenção deve deslocar um pouco das explicações que reduzem a política à expressão dos interesses de classe. Talvez seja o momento de saber o que alguns políticos pensam de si mesmos, e como concebem a história da qual se vêem como os atores principais. Neste sentido, o livro de Costa Couto é um importante e útil ponto de partida.

Francisco César Alves Ferraz – Professor da Universidade Esiadual de Londrina e Doutorando em História na USP.

Acessar publicação original

[IF]

Uma História do Brasil – SKIDMORE (HE)

SKIDMORE, Thomas. Uma História do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. Para inglês (e brasileiro) ver. História & Ensino, Londrina, v. 5, p. 165-168, out., 1999.

Inicialmente escrito para um público norte-americano, Uma História do Brasil, Paz e Terra, 1998, deve ser lido pelos brasileiros. Sem a necessidade de filiação com determinadas linhas de interpretação da nossa História, Skidmore pôde apresentar uma narrativa geral sobre a nossa formação e, mais ainda, traçar uma rota para compreendê-la.

A questão fundamental para o autor é perceber como foi possível constituir uma identidade nacional num país que apresenta características de formação tão disparatadas e aí está o seu grande mérito.

Se uma das nossas maiores preocupações em relação ao estrangeiro é passar uma imagem de civilidade, este livro, justamente, nos mostra como podemos ser percebidos e compreendidos por alguém de fora, que busca ir além dos estereótipos, explicando-os. Assim, podemos perceber a extensão do que somos, ou melhor, de como somos explicados a um público de cultura média e, no caso, norte-americano.

É evidente que, se procuramos análises complexas por parte do autor, não as teremos, e aí está outro dos grandes valores do livros. Sem a necessidade de linguagem rebuscada, Skidmore apresenta um quadro claro e bastante elucidativo da nossa formação. Isto é possível justamente por estar livre de filiações acadêmicas ou linhas interpretativas da nossa História. Percebese que o texto não rende homenagens a este ou àquele pensador nacional, pois a preocupação de Skidmore é a possibilidade de síntese para um público que desconhece querelas acadêmicas, o que dá fluidez ao texto, sem cair em simplificações.

Skidmore identifica bem a nossa situação racial ao centrála na figura do mulato. Este, expoente de uma sociedade multirracial que se constituiu durante o período colonial, teve ascensão social limitada, mas significativa, praticamente inviabilizando a separação legal entre as raças. O racismo da elite branca se revela mais “sutil” do que o da elite norteamericana. A idéia de “branquear” a população através da imigração européia é parte constitutiva da ideologia da sociedade multirracial.

O autor percebe em parte esta trajetória, mas acredito que faltou compreender um pouco melhor o espírito da “Casa Grande” na qual a aparência é fundamental-um grande fazendeiro nunca aceitou rótulos negativos sobre a sua conduta ou condição social, logo faz de tudo para se promover e aparentar.

Desse modo, o mito multirracial não é só fruto de cruzamentos, é também formas da elite aparentar cordialidade, bondade, preocupação com os pobres e também poder, pois os mulatos, muitos filhos bastardos de grandes proprietários, não podiam ser deixados à míngua, logo lhes eram arranjadas colocações junto à administração pública, uma maneira de estender o poder da Casa Grande em direção à esfera do espaço público.

Essa expressão da nossa elite e, porque não, da nossa sociedade, é difícil de ser notada por alguém que não vivencia tal experiência. A explicação de Skidmore é bem americana: “ocorreu que uma constante carência de mão-de-obra européia nos escalões mais altos da força de trabalho brasileira deixou abertas algumas oportunidades de trabalho para negros livres, que eram bem mais numerosos no Brasil colonial do que na América do Norte colonial” e corretamente acrescenta: “não se deve concluir daí que o Brasil estava livre de preconceito” (pág. 42).

Ora, essa certa ascensão do mestiço, para Skidmore, aliviou as tensões raciais até os nossos dias, o que não é de modo algum satisfatório. É necessário um sistema ideológico e de constituição do social que assegure, além das condições econômicas, a situação racial e, no nosso caso, a situação das classes. Não que exista engano na observação do autor, mas ela não é suficiente. Um sistema que apresenta como representação social a possibilidade das diferentes culturas se manifestarem, a ideologia da democracia racial, são elementos constitutivos das relações interaciais.

A parte esta questão, a narrativa de Skidmore, longe de ser inédita, privilegia junto com as questões de formação, a trajetória política do nosso país e é justamente aqui que o livro se mostra muito interessante. A necessidade de síntese leva o autor a nos fornecer quadros amplos e bastante compreensivos acerca dos acontecimentos de nossa História. A análise do período militar é particularmente profícua nesse sentido. Os mais críticos verão um quadro simplificado, mas tendo em vista os objetivos da obra, o que o autor nos apresenta é uma descrição sintética sem perder o gosto explicativo.

Enfim, é uma obra que deve ser lida, pois ao evitar filiações, pode nos apresentar um painel instrutivo e de fácil leitura da nossa História.

André Luiz Joanilho – Professor Adjunto da UEL e do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

O Hitler da História – LUKACS (HE)

LUKACS, John. O Hitler da História. Trad. de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, 250p. Resenha de: FERRAZ, Francisco César Alves. Hitler, a História e a Historiografia. História & Ensino, Londrina, v. 5, p.169-170, out. 1999.

Adolf Hitler foi, sem dúvida, a personalidade mais importante da história do século XX. Por mais que possamos reagir com merecida indignação a qualquer esforço de legitimação ou reabilitação dos atos que, direta ou indiretamente, desencadeou, não podemos negar que, para o bem e para o mal, o século que está terminando não seria o mesmo sem ele e o que ele representou e ainda representa.

Mas o que significa a trajetória de um único homem no fluir da história? Pergunta interessante, sempre presente nas discussões sobre a biografia como uma modalidade do conhecimento histórico. Nos bancos escolares, aprendemos que homens sozinhos não fazem a história, mas grupos sociais (sejam estes classes, estamentos, grupos políticos, religiosos, étnicos, etc). Mas será que o caso de Hitler se encaixa neste princípio geral? Afinal, qual o lugar de Hitler na história da Alemanha, da Europa e do século XX?

Essas e outras questões importantíssimas para o entendimento da história mais recente da civilização ocidental são a base para O Hitler da História, livro de John Lukacs, historiador húngaro radicado nos Estados Unidos. Nele, o autor analisa a imensa variedade de biografias e estudos sobre Adolf Hitler, uma massa historiográfica que soma mais de uma centena de títulos, se ficarmos apenas nas obras consideradas “mais sérias” ou de maior repercussão.

Lukacs inicia seu rigoroso balanço das biografias e interpretações sobre Hitler com um pressuposto básico: embora moralmente compreensível, a demonização de Hitler não contribui em nada para entender seu papel na história. Mais do que simplesmente condenar Hitler pelos males da guerra e do nazismo, é preciso compreendê-lo historicamente, cotejar as fontes documentais, entender os influxos do passado e do presente nas interpretações sobre o líder nazista.

Somos apresentados, assim, a um debate que envolveu historiadores que procuravam entender o fenômeno Hitler e, ao mesmo tempo, entender o lugar dos alemães naquele passado. Esse debate foi marcado ideologicamente pela Guerra Fria e seus maniqueísmos. Enquanto historiadores “de esquerda” procuravam definir Hitler e o nazismo ora como fenômenos da extrema-direita alemã e européia, ora como decorrências históricas do imperialismo capitalista, outros, auto-denominados “conservadores”, procuravam explicar o Terceiro Reich como uma anomalia, um desvio da história alemã, ou mesmo como uma resposta histórica a um mal maior, que seria representado pelo então totalitarismo comunista. Na esteira dessas variadas interpretações, documentos de toda espécie eram invocados para corroborar tais afirmações, enquanto outros seriam desprezados por negá-las ou colocá-Ias em dúvida.

Dessa maneira, o leitor é sempre lembrado de que não basta ser uma interpretação tradicional ou mesmo inovadora, se ela não estiver respaldada em metodologias e aparatos documentais coerentes e abrangentes. Neste ponto, Lukacs é particularmente ácido nas críticas a obras que, nos meios acadêmicos brasileiros, são bastante prestigiadas, como Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt (que critica pelo uso arbitrário e assistemático de fontes, “cheio de falhas e desonesto”) e Ascensão e Queda do Terceiro Reich, de William Shirer (“superficial e germanófobo”).

Após esse breve balanço, Lukacs elegeu alguns problemas históricos e historiográficos da vida de Hitler e qual a relação desses com a história da Alemanha e do mundo na primeira metade do século XX. Alguns desses problemas são tão fundamentais como polêmicos, para o entendimento do lugar de Hitler na história.

a) As idéias e crenças de Hitler a respeito da política, dos judeus e do papel da Alemanha no mundo consolidaram-se em Munique, após a primeira Guerra Mundial.

Para Lukacs, se existem indícios suficientes para apontar

o período vienense como a base para o seu germanismo e antisemitismo, a consolidação dessas idéias e a luta para transformálas em realidade, porém, só puderam acontecer após a derrota alemã e o fracasso da revolução comunista na Baviera em 1919. Em Munique, Hitler descobriu ser um orador de talento, e que suas idéias encontravam ressonância: o repertório de ódios explícitos aos judeus, aos comunistas, aos “traidores da Alemanha”, aos inimigos de Versalhes (p.50-61) encontrou terreno fértil na Baviera e, depois, no resto do país.

  1. b) Hitler foi, a seu modo, mais revolucionário do que reacionário.

Depois de discorrer sobre os problemas da definição do que é ser revolucionário e/ou reacionário, Lukacs afirma algo que apenas alguns inimigos contemporâneos a Hitler (como Winston Churchill) intuíram: Hitler era perigoso por ser revolucionário, e não por ser reacionário. Muitas das idéias de Hitler eram modernas. Em que pese seus métodos, sob sua liderança, a Alemanha transformou-se numa potência econômica e tecnológica mais respeitável do que era antes da Primeira Guerra Mundial, com auto-estima e prosperidade recuperadas (p.78). E dentre os ingredientes da modemidade de Hitler, estava sua habilidade para conquistar tanto as classes conservadoras quanto as massas em um mesmo discurso de transformação e mudança. Nas palavras de Lukacs,

o que isso significa para o passado recente o historiador pode -e tem o dever de reconhecer: que Hitler foi um novo tipo de revolucionário, um revolucionário populista em uma era democrática, não obstante os elementos mais antigos das instituições e da sociedade alemã ainda existentes em sua época, muitas das quais ele sabia usar para seus próprios fins (p.88).

  1. c) Ele era mais nacionalista que racista.

Embora a questão racial fosse fundamental para toda sua ideologia, sua racionalidade política buscava, quando lhe convinha, apoio em japoneses, chineses, árabes, croatas, romenos, etc, desde que isso significasse auxflio no combate aos inimigos dos “arianos” (p.94). Além disso, a despeito de não se encontrar claramente uma definição diferencial de Hitler se a “Raça Ariana”ou a “Nação Alemã” é que iria governar seu mundo, existem indícios suficientes de que seu pensamento e ação elegiam a Nação Alemã, concebida sob prisma mais cultural que biológico. A Nação seria a realização histórico-cultural do Volk (Povo), liderada não por um Estado tradicional de funcionários públicos, mas por um Volkgenossenstaat, um “Estado de camaradagem do Povo”. Assim, segundo Lukacs, diferenças entre arianos e negros, amarelos, etc não chamavam tanto a atenção de Hitler quanto àquela que dizia respeito à “luta dentro da raça branca, entre arianos e judeus”. Os judeus seriam sua obsessão, por viverem entre os “legítimos membros da nação alemã”. E nesse ponto, seu ódio obsessivo aos que considerava “inimigos da nação” era insuperável (p.98).

  1. d) De certa maneira, Hitler foi um estadista e estrategista competente

Assim como o êxito do líder alemão deveu-se, em grande parte, à sua subestimação pelos seus inimigos e aliados de ocasião, muitos historiadores desprezam-no a priori como estadista e estrategista. Lukacs, no capítulo mais longo do livro, recoloca em discussão o problema. Para ele, Hitler demonstrou, principalmente no período que antecedeu a guerra, atitudes de estadista que eram esperadas de líderes de potências européias daquele tempo. Embora condenáveis moralmente, sua política possuia uma celia racionalidade na adequação dos meios (muitas vezes ultrajantes) para os fins que se propunha. Na Alemanha de Hitler, a política interna e externa se apoiavam mutuamente.

Do ponto de vista estratégico, suas decisões, se examinadas friamente, tiveram sucessos retumbantes embora, a longo prazo, terminassem em fracassos flagrorosos. Apesar da oposição de alguns generais do Exército, a prioridade às forças terrestres de rápida mobilidade não apenas garantiu as vitórias iniciais alemãs como contribuiu para drásticas mudanças nas doutrinas de guerra de então. Mesmo aquele que é apontado como como seu maior equ ívoco estratégico -a criação da Segunda Frente, ao invadir a União Soviética -pode ser entendido a partir da suposição de Hitler de que as principais potências capitalistas (Inglaterra e Estados Unidos) hesitariam em combater mortalmente a nação que pudesse subjugar a ameaça bolchevique. Lukacs chama a atenção para documentos que mostram que, até as vésperas do fim, Hitler acreditava que a aliança “improvável” entre o Ocidente capitalista e a potência comunista poderia ser rompida (p.115 e segs.). E conclui com uma ressalva: se por um lado sentiu-se “obrigado a enfatizar que ele [Hitler] possuía talentos políticos e militares”, por outros, esses “coexistiam com obsessões não raro fanáticas”. Além disso, embora Hitler não tenha sido o autor de todas as decisões e ações do Terceiro Reicl1, ele sabia que suas principais diretrizes eram cumpridas fielmente. E por isso é que “ele foi sem dúvida responsável pelas maldades mais brutais cometidas por seus esbirros (p.126)”.

  1. e) Não há como dissociar Hitler da “Solução Final” dos Judeus.

Embora tenha havido tentativas, como a de David Irving, de eximir Hitler de qualquer responsabilidade de planejar e ordenar a execução em massa dos judeus (afirmando que quem planejara e ordenara tudo foram os auxiliares de Hitler, sem seu conhecimento e autorização), o que a vasta documentação e as interpretações mostram é que ele ordenou -ou pelo menos consentiu com -o extermínio em massa dos judeus, o que ficou conhecido como a “Solução Final”. Se não foi encontrada sua “assinatura” em documentos dessas espécie, isso só prova uma coisa: havia um mínimo de consciência de que o que se estava cometendo era uma atrocidade sem pararelos, e isso obviamente não podia ser documentado, ainda mais na iminência de uma invasão aliada (p.135). O que merece ser ainda melhor pesquisado é o quanto a população germânica realmente sabia sobre os campos de concentração e sobre a “Solução Final” e como quem sabia de algo lidava com isso.

  1. f) Hitler foi parte da história alemã, e não um “desvio” acidental e indesejável.

Segundo Lukacs, há entre os alemães uma tendência em ver Hitler como um episódio antinatural na história do país. No entanto, o Terceiro Reich representou muito mais uma continuidade do que uma aberração na história alemã. Isso não quer dizer que Hitler e o nazismo seriam inevitáveis. Mas a ascensão de Hitler e as crenças e atitudes do povo alemão da primeira metade do século estavam intimamente interligadas:

o nacionalismo e a unidade nacional alemã constituíram também forças poderosas durante a I Guerra Mundial. Hábitos nacionais profundamente enraizados de obediência e disciplina persistiram e culminaram na /I Guerra Mundial. A estrutura psíquica (e social) dos sucessos do povo alemão na /I Guera Mundial, porém, mudou, e isto foi tanto condição quanto resultado da ação de Hitler. Sem Hitler, os alemães não poderiam ter conseguido o que conseguiram, e Hitler tampouco poderia ter realizado oque realizou sem opovo alemão ou mais exatamente, sem a aceitação esmagadora de sua pessoa pela maioria (p. 142).

É preciso separar o movimento historiográfico de “reabilitação” de Hitler e dos alemães sob o Terceiro Reich das tentativas conhecidas como “revisionistas”. Esses últimos sequer podem ser considerados como dignos de figurar no debate historiográfico, pois além da pobreza e má fé documental de seus escritos, são sectários escrevendo para um número limitado de leitores, que já estavam convencidos de antemão ou prontos para sê-lo (p.156). De outra natureza são especialistas, alguns com assento nas universidades e institutos de pesquisa e que, inadvertidamente ou não, tentam minimizar os apectos sombrios do Reich e de Hitler, bem como distribuir responsabilidades para outros agentes históricos, como no caso do desencadear da 11 Guerra Mundial, atribuída aos “objetivos bélicos e inflexível má vontade de seus inimigos”. No entanto, Lukacs não aprofunda os porquês de tal posicionamento. Talvez, o que se deve perguntar é como o clima da Guerra Fria e de anti-comunismo contribuiu para justificar e promover aberrações interpretativas como essas…

Trata-se, portanto, de um balanço histórico e historiográfico de grande importáncia, para todos aqueles que se interessam por conhecer melhor Hitler e o nazismo, bem como o debate historiográfico a respeito. É uma obra admirável, de estilo agradável e que aprofunda pontos bastante polêmicos de nossa história mais recente. Para não ficar apenas nos elogios, acredito que pelo menos dois problemas devem ser comentados, embora não comprometam a grandeza do conjunto.

Um deles é seu sistemático desprezo às abordagens marxistas sobre seu tema. Embora tenha alguma razão ao apontar a pouca variação dos argumentos marxistas, ele não desenvolve nehuma discussão aprofundada sobre quais seriam os equívocos dessa corrente, preferindo refugiar-se no chavão de que o marxismo padece de determinismo econômico, como se não existissem abordagens bem distantes desses lugarescomuns.

O outro problema é que, depois de passar o livro todo chamando a atenção para a necessidade de abordagens sem demonizações de qualquer espécie, discorre ao final sobre as “características malignas espirituais” de Hitler, e propõe “a necessidade de uma interpretação cristã de Adolf Hitler (p. 180 e

  1. 240, n. 49 e segs.)”. Particularmente, prefiro sua proposta inicial, de que por mais que provoque nossa indignação moral, é preciso compreendê-lo historicamente, e não como o Anticristo ou a emanação do Mal em seu estado mais absoluto.

Mostrar a crueldade, a monstruosidade e tudo o que é mais abjeto, obscuro e inumano no nazismo é imprescindível, mas nunca será o suficiente. Por mais de 50 anos partilhamos a condenação moral do que acreditamos ser a origem da maior tragédia do século. No entanto, seu espectro resiste, se fortalece e se diversifica (como os grupos neonazis, skinheads, nacionalistas de extrema-direita e os defensores de “limpezas étnicas”, por exemplo), num mundo sem utopias libertadoras e regido pelo pensamento único do mercado. Até agora nos satisfizemos em condenar o nazismo. O desafio, para o presente e o futuro, é compreendê-lo. Mais do que um avanço historiográfico, é um ato de militância pela dignidade da política. E este livro proporciona considerável contribuição para isso.

Francisco César Alves Ferraz – Professor-Assistente do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina-PR.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal – VIGARELLO (HE)

VIGARELLO, Georges O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal. São Paulo: Martíns Fontes, 1996. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. O limpo e o sujo: anotações sobre um livro. História & Ensino, Londrina, v.4, p. 173-176, out. 1998.

Um texto límpido. Não é bom começar uma resenha sobre um livro fazendo trocadilho com o título e objeto, porém é irresistível. A objetividade traçada desde o princípio, a clareza da linguagem, cria uma imagem muito precisa sobre o que Georges Vigarello propõe no seu livro O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal, da Martins Fontes, 1996. Dividido em quatro partes que ganharam títulos apropriados: “Da água festiva à água inquietante”, “A roupa branca que lava”, “Da água que penetra o corpo àquela que o reforça” e “A água que protege”. A propriedade dos títulos está no texto que segue cada um, pois apresenta justamente o que foi anunciado.

Viajando no tempo desde o século XIV, chega até meados do nosso século, tratando de um único assunto, a higiene corporal. Mas, surpresa, não se trata de como os homens evoluíram no trato com o seu próprio corpo, e sim de uma linha sinuosa ao longo dos séculos que parte do banho medieval e chega no banho moderno.

Insuspeitamente acreditamos que os banhos medievais tinham o mesmo caráter dos banhos contemporâneos: limpar. Ledo engano, eles não visam a higiene, e sim a lubricidade (desculpem a palavra). A umidade dos banhos é prenúncio dos prazeres da cama. Os banhos são tomados em estabelecimentos específicos, porém, como contíguos à bordéis, tavernas, e eles visam a excitação e não ahigiene.

Tudo muda. Estamos em plena Renascença. O temor das epidemias se associa ao temor das águas. Água que enlanguesce os músculos, os orgãos, abre os poros aos miasmas com as suas doenças. O conselho é evitar de toda forma os banhos e muito mais a imersão completa. O ideal é manter o corpo limpo através de uma segunda pele: a roupa branca justa, limpa e, de preferência feita de finos tecidos -é claro que isto se aplica à nobreza. Ela absorveria as impurezas naturais expelidas pelo próprio corpo e manteria uma certa proteção dos ares malsãos. No entanto, por mais contraditório que seja, a fuga dos banhos não significa que o período barroco foi mais descuidado da higiene corporal, muito pelo contrário, é nesse momento que surge a idéia de limpeza mais íntima, pois o que está além do olhar é que deve ser cuidado, ou melhor “o íntimo é gradualmente incluído no visível” (p. 251).

É o espetáculo do que é visível dentro do processo civilizatório, isto é, o processo de recalcamento das pulsões na sociedade (podemos lembrar do consagrado estudo de Norbert Elias, O processo civilizatório, da Jorge Zahar, sobre a etiqueta no Antigo Regime, associando-a ao desejo de distinção de classe por parte da nobreza). Aquilo que é vergonhoso e não deve ser visto, e ao contrário, o que é valorizado e todos devem ver.

De novo tudo muda. Insinua-se novas idéias sobre o corpo e as correspondentes práticas de limpeza. O vigor do organismo deve ser estimulado agora pela água. Assim passamos da água lúbrica, para aquela que é veículo de doenças e no século XVIII, para água que revigora. Representações de classe no trato do corpo e a limpeza. Para uma burguesia que quer conquistar é preciso corpos rígidos, fortalecidos, longe do enlanguecimento corporal provocado pelas representações que a nobreza “ociosa e devassa” tem de si mesma. A ciência do final do século XVIII corrobora a imagem que a burguesia tem de si ao legitimar que a limpeza protege e reforça o corpo. O banho frio enrijece, revigora o organismo, enquanto que o banho quente enlanguesce.

Durante o século XIX vamos assistir o reforço dessa idéia de vigor proporcionado pela limpeza, e mais ainda, a limpeza íntima é fundamental nesse novo processo. O asseio corporal passa a ser a salvaguarda contra as doenças, mas ao mesmo tempo há um avanço inexorável do pudor. Nos séculos XVII e XVIII a roupa branca íntima representava o ideal de limpeza e delicadamente deveria ser notada pelos outrosrendas saindo nos punhos, ou visíveis através de decotes ousados, sendo comum os camareiros pessoais participarem da higiene do patrão. Já no século XIX se torna impensável a presença de alguém estranho nos momentos de higiene pessoal, muitas vezes se estendendo aos familiares.

Esse novo pudor, inventado pela burguesia, mostra as práticas que envolvem o corpo nas sociedades capitalistas, e com o avanço da ciência, essa higiene se personaliza cada vez mais. Mas, de novo a surpresa. A paranóia em relação aos micróbios, desvelados como agentes patológicos, leva a idéia de higiene ao paroxismo. Médicos, higienistas propõem, na passagem do século, a lavagem das paredes, a desinfecção das casas, rígidas quarentenas, uma perseguição sem tréguas à sujidade e à falta de asseio. E com isso triunfa a idéia do banho diário e a higiene íntima. Porém, é demonstrável que a essa nova concepção de higiene é muito mais uma representação que a sociedade ocidental criou sobre o corpo.

As cidades, a arquitetura, os fluxos de água, ar, esgotos, fazem parte desse imaginário sobre o corpo e sobre o indivíduo. É antes uma psicologia, sensações que se traduzem em práticas cotidianas. O bem-estar, o consumo, o temor do que não é visível. Assim, a higiene não é simples imperativo com bases científicas, é antes de mais nada, uma imagem que a sociedade produz sobre si mesma, sobre os indivíduos, sobre os cuidados de si.

Pode-se afirmar que na realidade o trabalho de Geoges Vigarello trata de parte da história da idéia de intimidade. Entretanto, além dessa viagem surpreendente, uma outra questão chama a atenção do leitor mais atento, e que é uma vantagem para os desatentos: não há enunciações teóricas, ou melhor, o autor prescinde da citação de autoridade, o que lhe dá um ganho, pois não precisa enunciar métodos e nem complicadas fórmulas para compreender o objeto, e não que o autor não tenha reflexão. Atentamente transparece vários conceitos teóricos, mas que, pelo menos é o que transparece, não são citados pela segurança que o autor demonstra nas suas discussões, dispensando o recurso à autoridade. É desnecessário citar este ou aquele teórico para corroborar com as conclusões da pesquisa. Dispensável porque antes de serem aqueles que conformaram o objeto sem o saber, eles aparecem como inspiradores da análise e conclusão.

Ele bebe em vários filósofos e historiadores. Alguns aparecem claramente, outros nem tanto. Foucault, para começar, mas também Norbert Elias -já destacado acima. Além destes cabe lembrar Jacques Le Goff, Georges Duby e Roger Chartier, não por estarem citados, mas por trabalharem com o que se convencionou chamar de mentalidades. Há também que lembrar de Pierre Bordieu, este sociológo, e que trabalhou com a noção de hábito. Isso para não apontar outros mais clássicos, como Freud, para questões da psicologia, e Marx para as questões de classe. Porém, apesar de toda essa inspiração, o autor não faz referências diretas a elas, e por isso que os leitores mais desatentos, ou melhor, o leitor não especialista em história pode ter o prazer de ler um grande livro, e ainda por cima refletir um pouco sobre si mesmo.

André Luiz Joanilho – Professor do Departamento de História -Universidade Estadual de Londrina -PR.

Acessar publicação original

[IF]

 

História e prática: a pesquisa em sala de aula / André Joanilho

A Proposta Curricular para o Ensino de História, lançada sob responsabilidade da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo, em 1992, tem gerado inúmeras controvérsias, desde o seu surgimento até sua aplicação -ou não -nas escolas públicas paulistas. É no contexto de sedimentação desses debates que surge o livro de André Luiz Joanilho (Mercado de Letras, 1996), que propõe a realização de uma a análise crítica da “Proposta” (como ficou conhecida entre os professores). Para tanto, circunda esta análise com uma reflexão sobre os mecanismos de funcionamento da instituição escolar, a política educacional do governo paulista e uma proposta de metodologia para viabilização da Proposta através do trabalho com projeto de pesquisa em sala de aula. É preciso lembrar que este novo currículo surge no contexto em que o govemo peemedebista estava implantando o projeto “Escola-Padrão”, derivando disto, muitas vezes, uma interpenetração das críticas tecidas sobre os dois assuntos.

O núcleo da obra, portanto, é a crítica da Proposta Curricular, no que o autor segue o comentário geral entre os profissionais aos quais pediu-se a sua implantação: a proposta é teoricamente boa, bem elaborada, mas na prática é de difícil -senão impossível aplicação. Para reforçar esta tese, Joanilho elenca o comodismo sistemático dos corpos docente e discente, viciados nas metodologias tradicionais e no livro didático, a estrutura da escola em si, os graves problemas de formação da maioria dos professores de história, a descontinuidade e má qualidade dos cursos de aperfeiçoamento e materiais de complementação pedagógica lançados pela Secretaria da Educação.

A questão central é o jogo entre o ideal e o real, e as conseqüências da aplicação de um bom princípio teórico Joanilho afirma que sua crítica é externa, e não interna numa realidade educacional que muito deixa a desejar. Invertendo a ordem dessa problemática, poderíamos perguntar se faz sentido lançar propostas que não ultrapassem a situação dada, sejam plenamente factíveis e, conseqüentemente, não introduzam mudanças.

Para Joanilho, a flexibilidade da Proposta traz duas ordens de problemas. Em primeiro lugar, o professor, fragilizado em sua formação e em suas condições de trabalho, sente-se perdido e inseguro perante a responsabilidade de criar os próprios materiais e conduzir a ordem dos conteúdos. Por outro lado, essa flexibilidade (que o autor chama de lacunas) , perante a situação discutida acima, traz o risco de que a aplicação do novo currículo não altere nada ou pior, que crie incoerências e que caia no senso comum, prestando um desserviço à causa do aperfeiçoamento e adequação do ensino de história às novas vertentes teóricas e metodológicas. A isso, seria preferível a coerência dos currículos tradicionais.

A ingenuidade da Proposta estaria em crer que a organização em torno de temas, em substituição à linearidade dos conteúdos, seria capaz de induzir o profissional a uma nova abordagem prática em sala. Faltaria, então, um recheio de orientações, critérios, dicas, material, enfim, uma normatização. Todavia, uma concepção de proposta inovadora que preferisse cercar todas as possibilidades e fornecer todo o material a ser trabalhado acabaria por passar longe das pretensões de construção crítica do conhecimento, de abertura à pluralidade de visões, de valorização do professor enquanto profissonal competente. Não seria “Proposta”, mas a imposição que acabou ocorrendo pelo seu mal uso nos corredores da burocracia, fazendo com que a inovação pendesse, nas escolas, como ameaça sobre a cabeça dos menos avisados.

Joanilho acaba cobrando da Proposta responsabilidades que não cabem a ela: seu papel, antes de mais nada, é sugerir, colocar ideais e questionamentos, introduzir uma crise de crescimento no seio do professorado, deixando evidentes as deficiências para que

o corpo docente sinta a necessidade de aperfeiçoamento e cobre isso dos órgãos competentes. Faltam critérios, claras orientações metodológicas, e até mesmo material para ser utilizado, afirma; não há, apesar da competência e boa vontade de seus elaboradores, verdadeira intenção de que os objetivos sejam atingidos (protegida pela falsificação do marketing, a política educacional sabotaria a si mesma).

Ao analisar os mecanismos de funcionamento da escola, Joanilho explica, pelos mesmos, as “deficiências” da Proposta: o objetivo das reformas introduzidas pela escola padrão não é criar o aluno crítico e com formação humanística, mas sim produzir trabalhadores semiqualificados que preencham imediatamente o mercado de trabalho ou que ingressem nas universidades pagas, de qualidade duvidosa. Daí aparecer como extremamente oportuna a defasagem não resolvida entre a teoria da proposta e a prática manca das salas de aula. As incompetências do professor são deliberadas -premeditadamente, ao que parece e mantidas de forma a garantir que a proposta não funcione. Esta visão pessimista da instituição escolar não leva em conta sua heterogeneidade nem a presença marcante das subjetividades no processo, ou o dado de que aproximadamente 40% dos alunos da Unicamp, por exemplo, são egressos da escola pública (Jornal da Unicamp, jul./96, p. 2). A abordagem da escola como fábrica de um tipo especial de mais-valia, comprova esta perspectiva da qual o autor lança mão para sua crítica.

Para Joanilho, a “aplicação da Proposta pura e simples” resulta em aberração, em um ensino incoerente e improdutivo. Mas a Proposta não está de todo perdida. Guardadas as advertências, bem como as suas sugestões metodológicas apresentadas (projeto de pesquisa em sala de aula), que visam atender à lacuna que foi deixada, é possível quebrar a ordem estabelecida pela política educacional paulista e fazer o oposto do que era esperado: fazer com que a Proposta funcione ( !). Não é mais do que desejamos todos nós, comprometidos com o processo de aperfeiçoamento do ensino de história. E as contribuições são sempre bem vindas: a Proposta é estruturalmente aberta a elas.

Luis Fernando Cerri – Professor do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Universidade Est. de Ponta Grossa-PR.


JOANILHO, André L. História e prática: a pesquisa em sala de aula. São Paulo: Mercado de Letras, 1996. Resenha de: CERRI, Luis Fernando. História & Ensino, Londrina, v.3, p.123-125, abr. 1997. Acessar publicação original .[IF]

 

 

Antiguidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos – FUNARI (HE)

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Antiguidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: Edunicamp, 1995. 150p. Resenha de: CAINELLI, Marlene Rosa. História & Ensino, Londrina, n. 2: 139-140, 1996.

O Prof. Pedro Paulo Abreu Funari enuncia que o livro Antiguidade clássica; a história e a cultura a partir dos documentos é indicado para alunos de graduação e também para professores de 1 ° e 2° graus, assim como o público em geral.

No 1° capítulo Funari analisa a utilização de documentos por historiadores, desde os documentos tradicionais até o uso da “narrativa para compreensão do discurso histórico”. A especificidade do estudo da antigüidade clássica, a diversidade dos documentos e uma discussão sobre periodização são temas abordados pelo autor no segundo capítulo.

O autor apresenta documentos textuais, materiais, epigráficos e arqueológicos, utilizando-se de diversas abordagens: “textos filosóficos, poesias, documentos oficiais, leis.” Vários documentos são traduzidos pelo autor, portanto inéditos em língua portuguesa.Os documentos aparecem no texto divididos em temáticas: memória, práticas, sentimentos, reflexões, expressões, poderes, espaços e experimentos. É importante destacar que as divisões temáticas utilizadas pelo autor são originais fugindo a forma tradicional de apresentação usadas na maioria dos livros didáticos, paradidáticos e coleção de documentos existentes no mercado.

Os documentos são comentados pelo autor que elucida uma série de relações desconhecidas pelo leitor, facilitando assim o entendimento do texto, que sem as explicações do autor, ficaria prejudicado. Além dos comentários Pedro Paulo Abreu Funari preocupa-se em indicar atividades para o trabalho com os documentos, dividindo as tarefas em atividades encaminhadas e propostas.

Nas atividades propostas o autor sugere de maneira exaustiva que o leitor reflita sobre diversos temas e também remeta-se para outras bibliografias que auxiliem o entendimento dos documentos.

É certo que Antigüidade clássica… é indicado para alunos de graduação, porém para professores de 10 e 2° graus, o texto mostra-se dificil. O ensino de história antiga nas escolas, talvez seja o mais sofrivel no que tange aos conteúdos trabalhados. As dificuldades apresentadas pelos professores impede-os, por exemplo, de seguir sugestões de atividades sugeridas pelo autor como a atividade proposta na pág. 36: “elencar as principais coleções bilingües (originais grego ou latino e tradução para o idioma moderno) e observar o papel do aparato critico nestas séries.”

Como em outros livros didáticos ou paradidáticos indicados para professores de 10 e 2° graus, o autor elabora questões e as responde, talvez com medo que o leitor não consiga responde-Ias de acordo com as suas expectativas.

Um problema apresentado pelo texto que dificulta a leitura e o possível uso do livro por professores de 10 e graus é que os documentos aparecem no texto divididos por temas sem uma ordem cronológica que facilite a procura por determinado documento para uso em sala de aula, de acordo com o periodo estudado.

O livro tem a qualidade de apresentar para o leitor uma série de documentos inéditos, interessantes e instigantes, mas demonstra o quanto é necessário entender do periodo, das discussões bibliográficas para compreender o texto, demonstra também o que todos sabemos, o documento preCisa de um leitor atento e instruído, não é dado a ele o poder da fala.

Marlene Rosa Cainelli – Professora do Departamento de História -Universidade Estadual de Londrina -Londrina-PR.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

História & Ensino | UEL | 1995

Historia e Ensino 2 História & Ensino

A Revista História & Ensino: Revista do Laboratório de Ensino de História (Londrina, 1995-) foi criada pela Profª Drª MARLENE CAINELLI. Foi a primeira revista científica do país a abordar o ensino de História.

Inicialmente era destinada aos graduandos do curso de História e aos professores de História do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Ao longo de sua trajetória tornou-se um importante veículo de divulgação da pesquisa sobre ensino de história sem deixar de estabelecer um elo e um espaço de discussão entre os três níveis de ensino. A Revista História & Ensino é parte das ações do Programa de Extensão Laboratório de Ensino de História.

O campo de discussão da Revista História & Ensino engloba: ensino de história; educação histórica;  metodologias para o ensino de História; aprendizado histórico; Didática da História; construção do saber histórico escolar; história da disciplina de História (escolar ou acadêmica); estágio de História; ensino de História extraescolar; História da Educação; currículo de História (escolar ou acadêmico); cognição histórica; relações entre Ensino de História e História Pública; formação do professor de História; História da infância e da juventude.

Entende que os artigos devem veicular resultados de pesquisas e que os relatos de experiências didático-pedagógicas devem ser fundamentados em termos teóricos e metodológicos. Devem ser inéditos.

Destina-se aos alunos do curso de História, professores de História de todos os níveis de ensino, pesquisadores voltados para o ensino de História.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2238-3018

ISSN-L 1212-3488

Acessar resenhas

Acessar dossiês

Acessar sumários

Acessar arquivos