Alteridades em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis | Miriam hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

Gabriel Amato e Miriam Hermeto Alteridades
Gabriel Amato e Miriam Hermeto | Imagem: UFMG

Sentados diante de um Outro, tentamos atribuir sentido a ele. Ou enquadrá-lo, nas palavras de Judith Butler (2018). No instante dessa “cena do reconhecimento”, as molduras que usamos vêm de relações de poder que extrapolam esse momento. Ao reconhecê-lo como outro, reconhecemos também a nós mesmos. Há semelhanças, mas também há diferenças.

Já nos vimos antes ou esse é o primeiro contato? É uma mulher, assim como eu? Ou talvez é um homem e ainda mais velho? Há confiança suficiente entre nós para que o que ela está para me dizer seja enunciado? Tais características constituem uma barreira ou um conector entre nós? Os pesquisadores que já estiveram em entrevistas de história oral sabem que as respostas a cada uma dessas perguntas – e a inúmeras outras – podem levar, a nós e a nossas pesquisas, para rumos diversos, muitas vezes inesperados. Leia Mais

História pública e ensino de história | Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira

Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Alteridades
Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira (em primeiro plano) | Fotos: UFMG e UFF

ALMEIDA Historia publica e ensino de historia AlteridadesO estranhamento de todo dia para aqueles e aquelas que experimentam, seja na formação inicial ou continuada, seja no trabalho escolar ou na pesquisa acadêmica, o ensino de história como um campo de conhecimento, mas também de práticas profissionais, talvez seja muito seme­lhante à experiência de um estrangeiro olhando as suas fontes e os seus materiais, interagindo com os sujeitos do campo, buscando sempre autorizar a superação da dolorosa sensação de alheamento e exterioridade com a sua prática e a experiência que dela decorre. Quem sabe, eles não encontrem nesse belo trabalho organizado por Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira, com a contribuição de especialistas sempre (ou quase sempre) compartilhando a autoridade com professores de ofício da educação básica – via de regra experimentando percursos de formação continuada –, uma aliança generosa e solidária? Que esta resenha possa somar-se a essa alian­ça potente, em uma perspectiva de compreensão narrativa e empatia (RITIVOI, 2018), assumindo um lugar de professor entre professores de História.

Bons textos nos fazem pensar uma segunda vez sobre o que já sabemos, ou julgamos saber. E pensar ainda uma vez mais sobre o repensado, em uma espiral de sentidos que não se esgota entre paredes, nem do laboratório nem da sala de aula. E ainda que esses espaços sejam, às vezes, referências incontornáveis para o que pensamos e para o modo como pensamos, também eles não cabem definitivamente em si mesmos. Estão aí estes tempos de pandemia e de afastamento social a forçar a dilatação paradoxal das nossas referências e das nossas reflexões. O que sabe­mos sobre o ensino de história? O que sabemos sobre a história pública? O que sabemos sobre esse lugar para onde convergem nossos saberes sobre ambos? Se não trazem respostas prontas e definitivas a tantas perguntas, os textos reunidos em História pública e ensino de história parecem seguir o conhecido conselho de Clifford Geertz (2009), segundo o qual, quando não conhecemos bem a resposta, devemos discutir a pergunta: eles trazem, sem dúvida, uma excelente contribuição à continuidade do debate. Leia Mais

História pública e ensino de história | Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira

O estranhamento de todo dia para aqueles e aquelas que experimentam, seja na formação inicial ou continuada, seja no trabalho escolar ou na pesquisa acadêmica, o ensino de história como um campo de conhecimento, mas também de práticas profissionais, talvez seja muito semelhante à experiência de um estrangeiro olhando as suas fontes e os seus materiais, interagindo com os sujeitos do campo, buscando sempre autorizar a superação da dolorosa sensação de alheamento e exterioridade com a sua prática e a experiência que dela decorre. Quem sabe, eles não encontrem nesse belo trabalho organizado por Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira, com a contribuição de especialistas sempre (ou quase sempre) compartilhando a autoridade com professores de ofício da educação básica – via de regra experimentando percursos de formação continuada –, uma aliança generosa e solidária?

Que esta resenha possa somar-se a essa aliança potente, em uma perspectiva de compreensão narrativa e empatia (RITIVOI, 2018), assumindo um lugar de professor entre professores de História. Leia Mais

Alteridades em tempos de (in)certezas / Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas. Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública (policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente, disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.

É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore, na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no período da ditadura civil-militar. A organização do livro se deu pela participação dos autores na comissão local do XII Encontro Regional Sudeste de História Oral – Alteridade em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis, em Belo Horizonte, no ano de 2017, ocasião em que foram responsáveis pelo planejamento da programação das mesas redondas, conferências e atividades ao longo do evento.

A coletânea é a reunião dessas falas pronunciadas por pesquisadores, de formação múltipla, nos auditórios da UFMG, mas também em outros espaços públicos, como o Museu de Arte da Pampulha e a Casa de Referência da Mulher Tina Martins. A história oral e, especialmente, o problema da escuta sensível, nos são apresentados de modos distintos nesse livro: reflexão sobre acervos, memória e identidade, alteridade e espaço urbano, a entrevista como prática social e coletiva, as estratégias de organização individuais e coletivas, o oral e o audiovisual na construção de sentidos, a urgência da participação da história e das(os) historiadoras (es) no debate público, a publicização de experiências de vidas que demandam cuidado e atenção e a reflexão sobre percursos biográficos ligados à própria história da pesquisa em história oral.

Na introdução, o livro é dividido em três grandes conjuntos de textos: alteridade como marcador das possibilidades da entrevista de história oral; “problematizações de identidades de minorias políticas”; e “escutas sensíveis diante das diferenças”. Ana Maria Mauad abre o primeiro grupo de texto com um artigo que analisa a questão indígena na obra fotográfica de Claudia Andujar, analisando seu trabalho a partir da categoria de fotografia pública, associando-a com “uma dimensão crítica e (…) dialética” (p. 25). O engajamento público de Andujar na causa indígena se deu, também, pelo movimento de inclusão da comunidade Yanomami como parte desse público e também como partícipe da narrativa pública sobre os sentidos das imagens. A confiança é a base dessa relação pública com a questão indígena, assim como a relação entrevistador-entrevistado.

O segundo texto, de Mario Brum, aprofunda o problema da relação entre fatos e representações, abordado por Alessandro Portelli, ao analisar as representações sociais e as identidades em torno da construção da favela da Cidade Alta (e seus entornos) na cidade do Rio de Janeiro. O estigma dos “removidos” da região central para a Cidade Alta, marcou “toda a trajetória posterior do conjunto” habitacional, seja a partir do silenciamento, seja pela diferenciação social com outra categoria, a dos “inseridos”. Em seguida, Luciana Kine e Emilene Souza apresentam reflexões metodológicas para lidar com narrativas de vida ligadas a “tópicos sensíveis”, em especial jovens vivendo com HIV/aids. A multiplicidade das experiências de vida que giram em torno de “temas delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação coletiva” (p. 54).

Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta, muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida (EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.

Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de gerações anteriores.

O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar. Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste e no Sudeste, a militância negra brasileira se caracterizou pela pluralidade de perspectiva, pelas diferenças regionais, geracionais e ideológicas. Apesar dessas diferenças, Amílcar Pereira, buscou demonstrar a importância das redes estabelecidas pelos militantes, que criaram conexões e espaços de experiência compartilhadas por diferentes grupos. A proposição no final da década de 1970, de organização do movimento por rede, teve como norte o fortalecimento e o estímulo de formação de lideranças. Já o artigo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e Roberto Carlos da Silva Borges aborda o problema do audiovisual como parte do projeto de construção narrativa sobre o passado e o imaginário da cultura negra, contribuindo para uma educação antirracista no Brasil. Os autores estão interessados em investigar o “estatuto de testemunho” em torno da produção audiovisual sobre e da cultura negra, no sentido de problematizar o “funcionamento da memória” que funda “imaginários individuais e coletivos” (p. 106). Os vídeos analisados, produzidos em diferentes instâncias, representam formas heterogêneas de “contraponto à ideologia da branquitude” que sustenta as relações étnico-raciais no Brasil (p. 118).

Finalmente, o terceiro grupo de artigos apresenta diferentes abordagens metodológicas da pesquisa com a alteridade. As demandas dos policiais militares contidas no acervo “Tropas em Protesto”, que reúne narrativas de policiais, tendo como ponto de partida o movimento das praças das polícias desde 1997, ficaram silenciadas na década de 2010, especialmente após o arquivamento da PEC 21/2005, que previa a desmilitarização das polícias estaduais. Juniele Almeida argumenta a necessidade urgente de retomar o debate público em torno da desmilitarização das polícias. As “tensões históricas”, que esse debate faz emergir, correspondem à ideia de pertencimento à corporação e, ao mesmo tempo, aos movimentos contestatórios da estrutura militarizada das polícias brasileiras. Até hoje, essas tensões podem ser representadas a partir de três grandes dimensões que norteiam a urgência da redefinição do papel da polícia em um estado democrático: “o discurso institucional militarista, os problemas em segurança pública [da sociedade brasileira] e as questões trabalhistas dos servidores públicos” da segurança (p. 122).

A historiadora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, com sua sensibilidade ímpar, tece uma reflexão muito provocativa sobre um conjunto de memórias de mulheres que nos ensinam novas “formas de entrevistar e de registrar narrativas” (p. 141) e nos impulsionam para uma nova concepção de conhecimento histórico, compromissado com uma “escuta atenta” (p. 151). Em atenção às vidas que pedem cuidado e reparação, a autora propõe uma postura de amorosidade do pesquisador diante da “intolerância” e dos silenciamentos que atravessam as vidas de mulheres. A história oral como espaço de reinvenção da existência, como espaço de audiência – e não de análise – segue sendo uma possibilidade de compromisso ético do pesquisador, uma “escuta atenta” – e não promessa de remissão – capaz de intermediar outras possibilidades de construção de um mundo mais humano.

Rodrigo Patto Sá Motta nos brinda com uma reflexão sobre o uso de fontes orais em suas pesquisas sobre as universidades durante a ditadura e as surpresas advindas desse processo, contribuindo, inclusive, para incorporação do conceito de acomodação para leitura dos arranjos sócio-políticos no período (p. 158). A emoção do pesquisador ao entrevistar intelectuais importantes para o campo das ciências no Brasil, em especial na área de Ciências Humanas, e a emoção dos indivíduos ao receber informações pessoais por parte do pesquisador, contribuíram para mudanças dos sentidos da pesquisa. Proporcionando o redimensionamento dos problemas de pesquisa a partir do confronto entre diferentes documentos, por um lado, e a reapropriação e ressignificação dos objetivos da pesquisa por parte dos sujeitos entrevistados. O conceito de acomodação, como lembra Motta, não se pretendeu um modelo perfeito, mas visou apresentar uma explicação aos eventos da ditadura a partir de evidências que emergiram na pesquisa em história oral, aprofundando o debate e nos convidando para possibilidade de transformação, criando e mobilizando outros jogos que não o das acomodações (p. 162-163).

Encerrando o volume, o pesquisador Ricardo Santhiago apresenta uma reflexão sobre a trajetória biobibliográfica de Ecléa Bosi e sua contribuição para a formação do campo da história oral no Brasil. A trajetória intelectual de Bosi nos convida a uma reflexão sobre “a capacidade humana e humanizadora do exercício da escuta” como prática de formação dos jovens pesquisadores (p. 175). Os conselhos, as indicações e as sugestões de Ecléa Bosi emergem como elementos metodológicos. Ao invés da rigidez das normas, a atenção, a afetividade, a criatividade, a sensibilidade. A partir das reflexões iniciais em sua tese de doutorado, o autor argumenta a importância seminal do trabalho de Bosi para o campo da história oral brasileira, de onde se desabrocharam diferentes frutos, com pesquisas atentas “à memória, à linguagem”, a partir da “empatia, curiosidade e pluralismo” (p. 177).

Gostaria de ressaltar que há uma dissonância no ritmo de leitura do livro, pois cada capítulo corresponde a uma dimensão da pluralidade da pesquisa em história oral. Levando em consideração os itinerários formativos das(os) pesquisadoras(es), essa dissonância longe de significar um problema, torna-se potência para o contato do leitor com uma gama de leitura polissêmica sobre as possibilidades de escutar o outro de modo sensível sem abandonar o rigor metodológico. Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore nos brindam com um livro plural que retoma o antigo problema da relação pesquisador-entrevistado, apresentando contribuições proveitosas e polêmicas para a pesquisa em história oral (que por sua vez, é preciso dizer, não é metodologia, campo ou área exclusivos de historiadores).

A multiplicidade de abordagens e perspectivas dos artigos do livro, que se configura como um desafio para toda coletânea, funciona como uma postura necessária diante do desafio de se produzir conhecimento sobre o tempo presente. Mais do que mera alegoria, essa multiplicidade é, ao mesmo tempo, unidade em diferença e múltiplo nas identidades. As bases epistemológicas para imaginar outras formas de relação de poder, implicam em diálogos mais profundos e em escutas mais sinceras entre diferentes áreas do conhecimento. O livro em questão é resultado de um refinado trabalho de seleção e de enfrentamento de questões políticas e epistemológicas desse tempo imediato. De tudo ficam algumas questões: Estamos preparados para escutar o outro? Até que ponto conseguimos realizar a escuta do diferente? Em tempos de monstruosidades políticas típicas do fascismo, ou do que Traverso (2019, p. 19) chama de pós-fascismo – enfatizando as continuidades e transformações históricas do fenômeno – até quando teremos forças e disposição para ouvir quem não admite escutar? Como restabelecer o diálogo – em que a arte da escuta (PORTELLI, 2016) é o centro dessa relação – em um mundo que nasceu e da implosão das noções do “comum” e da “democracia”, das próprias “ruínas do neoliberalismo” (BROWN, 2019)?

Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. (Coleção Ideias).

TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation David Broder. New York/London: Verso., 2019.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: [email protected].


HERMETO, Miriam; AMATO, Gabriel; DELLAMORE, Carolina (Org). Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2019. 180p. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aquiar. A escuta do outro em tempos dissonantes. Canoa do Tempo, Manaus, v.12, n.1, p.457-463, 2020. Acessar publicação original. [IF].

(Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História – MAIA et. al (HE)

MAIA, Tatyana de Amaral; ALVES, Luís Alberto Marques; HERMETO, Miriam; RIBEIRO, Cláudia Sofia Pinto (Org.). (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História. Porto Alegre: EdiPUCRS; Porto: CITCEM, 2016. 286 p. Resenha de: CARMO, Maria Andréa Angelotti. A responsabilidade social do ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 231-237, jul./dez. 2017.

Historicamente, uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades está no controle sobre a memória, o esquecimento e os silêncios na História, conforme argumenta Le Goff (2003). Nessa perspectiva, as batalhas entre os registros e a hegemonia sobre determinada memória são marcadas pelos silêncios, esquecimentos e confrontos que compõem a história das sociedades humanas e, em especial, das democracias atuais. As sociedades, cujas histórias encontram-se inseridas em processos ditatoriais, têm enfrentado seus passados recentes a partir de temas e conteúdos compreendidos como sensíveis, dolorosos e de difícil consenso.

É o caso das sociedades ibéricas e sul-americanas. Qual, então, o papel do ensino de História no processo de construção, reelaboração, manutenção, mediação, e outros tratamentos da memória, nessas sociedades? Um olhar atento sobre esses passados, e seu ensino, nas sociedades ibéricas e sul-americanas, constitui a feliz contribuição que se apresenta na coletânea (Re)Construindo o Passado: o papel insubstituível do ensino de História, publicada pela Editora da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul em parceria com o Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) da Universidade do Porto, Portugal.

A obra é organizada pelas professoras brasileiras Tatyana de Amaral Maia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Miriam Hermeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pelos professores portugueses Luís Alberto Marques Alves e Cláudia Sofia Pinto Ribeiro, ambos da Universidade do Porto. A coletânea conta com análises e pesquisas da temática no Brasil e em Portugal e traz, ainda, a participação de pesquisadores espanhóis e argentinos num exercício em que compreendem a necessidade contínua de reflexão sobre os usos do passado, e de como eles se apresentam, e são tratados, no ensino. Os artigos resultam de distintas pesquisas que envolvem perspectivas de alunos, professores, propostas curriculares e manuais didáticos de ensino de História. Ainda, abordam a forma como memórias, narrativas, percepções do passado são eleitas para comporem, ou não, o quadro dos conteúdos, formas de apresentação e abordagens históricas.

A coletânea está dividida em duas partes, de modo a contemplar os estudos sobre as sociedades ibéricas e sul-americanas em suas peculiaridades e particularidades: Os passados dolorosos na Europa e Os passados dolorosos na América Latina são compostas por quatro artigos cada uma, o que disponibiliza, ao leitor, um amplo panorama da temática nos diferentes países e contextos, a partir de análises de um rico e diverso leque de fontes e do emprego das mais diversas metodologias.

Na primeira parte, Luís Alberto Alves e Cláudia Ribeiro refletem sobre o que temos feito dos “nossos passados históricos”, dos quais não queremos lembrar. Ensinar passados dolorosos, aprender com o uso pedagógico da história apresenta os resultados e análises de uma longa pesquisa realizada com estudantes do 9º. e do 12º. anos da Educação Básica, e professores de História, em Portugal. Os autores compreendem que o passado, por mais doloroso que seja, deve transformar-se “num conhecimento inteligível e, a partir daí, acreditar num devir de melhoria (esperança) que seja suportado na inteligibilidade” (p. 28). Os passados dolorosos precisariam ser trabalhados por docentes “preparados cientificamente e intelectualmente honestos”, a fim de fornecer “recursos variados, perspectivas heterogêneas, sínteses consensuais englobando contributos dos seus interlocutores” (p. 27). Por meio das análises de entrevistas com professores e alunos, os autores tratam as “questões socialmente vivas” e remanescentes da Guerra Colonial, consideradas, pela maioria dos entrevistados, como o ápice do passado doloroso da sociedade portuguesa.

Na análise de Aprendizagem histórica dos passados dolorosos: as “guerras coloniais” nas narrativas de jovens portugueses, Marçal de Menezes Paredes e Tatyana de Amaral Maia refletem acerca da aprendizagem e educação histórica como campo de pesquisa em que se busca “investigar os processos pelos quais alunos constroem o seu conhecimento histórico e como aprendem os conceitos estruturantes da disciplina” (p. 51). Em um segundo momento, os autores analisam as maneiras de compreender a história da Guerra Colonial dos alunos portugueses, considerando os passados dolorosos circunscritos às experiências traumáticas e “passados que ameaçaram romper com a cultura histórica moderna que inclui a defesa de valores considerados universais e intrínsecos aos indivíduos” (p. 63). Nessa pesquisa, a apreciação das narrativas de estudantes leva os autores a entenderem que a História ensinada ainda exerce um papel tido por essencial na compreensão da experiência vivida. No entanto, revelam, também, os desejos de esquecimento, o silêncio sobre esse passado ou mesmo o tratamento superficial das questões na forma como são abordadas no ensino ou pela opinião pública.

Beatriz de Las Heras, no artigo (Re)construindo a história a partir da (re)presentação visual: memória da Guerra Civil espanhola em Madrid por meio da fotografia, argumenta que a fotografia não mostra a realidade, mas mostra realidades (p. 82). A autora trabalha quatro conceitos chaves considerados relevantes para a compreensão do processo de (re)construção da história a partir das imagens: memória, fragmento, saber lateral e (re)presentação.

As formas como trabalharam os fotógrafos na cidade de Madrid, bem como as estratégias de propaganda mais utilizadas durante a guerra, também são consideradas ao longo do texto. Apresentando um conjunto de fotografias e tecendo profundas análises, Las Heras aponta as estratégias de mostrar, ocultar, reter e reconduzir, utilizadas pelas autoridades durante a guerra civil espanhola. Neste texto, a fotografia e todo seu processo de “fabricação” são compreendidos como um processo de criação de um discurso que finda por se converter na memória do acontecimento. A leitura nos apresenta a inquietação e preocupação quanto aos usos, produção e emprego das imagens, especialmente na sociedade contemporânea, em que a chegada da tecnologia se converteu em um grande programador de olhares, e registros, de memórias.

No artigo Abordagem ao ensino da Guerra Civil e da ditadura de Franco na Espanha contemporânea, Claire Magill observa as “diferenças nas abordagens dos professores no que respeita à relação explícita entre o passado e o presente” (p. 116), e analisa as metodologias adotadas pelos profissionais do ensino ao ministrarem os temas da Guerra Civil e da Ditadura de Franco. As investigações da autora levam-na a deparar-se com cinco grupos/categorias de professores, assim descritos: aqueles que não se privaram de ensinar o tema potencialmente polêmico, mas também não criaram oportunidades para abordar tais questões (p. 120); aqueles que enfrentam verdades desconfortáveis, mitos e preconceitos, e procuram sensibilizar seus alunos para os perigos de reduzir questões históricas e complexas a explicações simplistas e maniqueístas da História (p. 122); aqueles que em vez de apresentar múltiplas perspectivas e incentivar seus alunos a fazerem suas próprias escolhas, tendem a apresentar suas próprias opiniões, sem incentivar o debate ou a discussão (p. 126); aqueles que mostram clara preferência por manterem-se afastados de questões polêmicas ou controversas; aqueles que relutam em abordar o tema ou relacionar o passado e o presente; aqueles que tratam a questão, mas não conseguem explorar o tema em profundidade.

Não se trata apenas de nomear uma ou outra atuação docente, tampouco culpar os docentes e sua atuação, mas busca-se refletir acerca das dificuldades encontradas para trabalhar questões não amplamente consensuais e conflituosas na sociedade contemporânea. Ressalta-se a necessidade de desenvolver programas de formação profissional, adequados e pertinentes, no contexto espanhol e em outros contextos.

Na segunda parte da obra temos O ensino de história e os “passados dolorosos”: a questão das ditaduras na América Latina, texto no qual Marcos Napolitano e Mariana Villaça apresentam o debate historiográfico sobre a temática, propondo oferecer alguns subsídios para que o professor possa abordar o tema, instigando os alunos a compreendê-lo historicamente (p. 155). Após apresentar um panorama das ditaduras na América Latina e suas principais questões, os autores indicam um conjunto de temas, conteúdos, materiais, e atividades didáticas, que podem auxiliar os professores no tratamento dessas questões, além de indicarem bibliografias sobre os golpes e regimes militares.

Por sua vez, Maria Paula Gonzáles debruça-se sobre a última ditadura na Argentina e a observa como “um passado que não passa” perpetua-se em um grande desafio para a escola habituada e convencida de seu caráter neutro. O Ensino da História e passados sensíveis: olhares sobre o caso argentino provoca-nos ao trazer uma abordagem acerca das narrativas, dos regulamentos educativos e, principalmente, das práticas e desafios que se apresentam aos professores de história no ensino de uma temática histórica do tempo presente. Após mergulhar na documentação, e analisar as práticas de ensino como estratégias e táticas construídas no tempo e no contexto, a autora aponta que o tratamento da história nas escolas está “tensionado pela natureza recente e polêmica, a condição aberta e inacabada, o caráter traumático, as questões éticas e políticas, o privilégio da memória sobre a história” (p. 219). A autora destaca, ainda, a relevância de se reconhecer os problemas acarretados pelo tratamento dado ao passado, oportuniza a revisão das maneiras pelas quais pensamos a história como reelaboração do passado, e os significados que damos ao seu ensino.

Com o título de Justa memória, dívida ética e passados-presentes dolorosos: questões a partir da análise de interpretações sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) em livros didáticos de História, o penúltimo artigo da obra apresenta a reflexão de Mateus Henrique de Faria Pereira e Miriam Hermeto, que versa sobre a “tensão entre as práticas do dever de memória e do trabalho de memória” (p. 228). Os autores discorrem sobre os temas da arte engajada e do Golpe de 1964, e de como eles são abordados e dispostos nos 46 manuais didáticos analisados. Os livros didáticos são compreendidos como produtos culturais e instrumentos pedagógicos que se tornaram guardiões e construtores da memória e do saber escolar (p. 243), e o ensino de história pode contribuir para o exercício de superação de uma história “puramente traumática” em direção à transformações no e do presente. O texto encoraja a discussão de maneira crítica e sistemática da escrita da produção didática e a reflexão sobre o dever e o trabalho de memória, cuja incumbência parece incidir sobre ensino de História, de modo a contribuir para que processos históricos não voltem a ocorrer.

O empenho contido no último artigo da obra, Os passados dolorosos no ensino de História: trauma, memória e direitos humanos, de Tatyana de Amaral Maia, é compreender como a legislação e os documentos curriculares que orientam o ensino de História tratam do tema e expõem a ação oblíqua do Estado brasileiro, quanto ao dever de memória e à ampliação da justiça de transição (p. 264). Após profundas análises acerca da instituição e atuação da Comissão Nacional da Verdade e seus contextos, bem como dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a autora provoca quanto à naturalização da seleção de determinados conteúdos históricos, e sobre o discurso meramente retórico de defesa dos direitos humanos, apontando que é preciso integrar os currículos dedicados ao ensino de História e à Educação em Direitos Humanos, de modo a favorecer a superação dos legados autoritários na sociedade. Para a autora, o ensino de História pode ser um espaço privilegiado para a reflexão sobre a ditadura militar e seus legados, e pode romper com a “política do esquecimento” que teria sido implantada junto com a “transição negociada” experimentada pela sociedade brasileira (p. 263).

A obra (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História instaura a oportunidade de olhar para os passados dolorosos sob a perspectiva do ensino, mas também possibilita ampliar o olhar para além de materiais didáticos e conteúdos curriculares, apresentando diferentes fontes, linguagens, e contextos, em que se pesam elementos como o compromisso e a honestidade intelectual para com a sociedade e seus enfrentamentos sociais e históricos, bem como para com as populações, e grupos, diretamente marcados pela violência, cujas memórias parecem manter-se sob a “sombra” dos registros e discursos hegemônicos.

A coletânea oportuniza rememorar o privilégio e o dever do ensino de História no processo de (re)construção de passados recentes, reconhecimentos e esclarecimentos de usos e abusos. (Re)construção de sua força no combate aos “esquecimentos” e de sua possibilidade de contribuição na formação de uma sociedade nas quais suas histórias não repitam os processos cingidos pela dor.

Maria Andréa Angelotti Carmo –  Professora Adjunta no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutoranda em História pela Universidade do Porto, Portugal.