Mito, arquétipo e arte nas Performances Culturais / Revista Mosaico / 2020

Neste momento, em que estamos escrevendo a apresentação de um dossiê temático que há muitos meses nos ocupa e a humanidade está passando por uma pandemia grave, de proporções inimagináveis a nós todos há pouco menos de um mês atrás, temos que valorizar mais ainda o humano que existe em todos nós, e que desde tempos imemoriais atua como uma força propulsora de ações e pensamentos que, de uma forma ou outra, representa nossas dinâmicas mais profundas. Embora muitas epidemias tenham existido durante o trânsito da humanidade na superfície terrestre, essa em especial nos atinge quando somos todos adeptos de tecnologias virtuais instantâneas e podemos tanto difundir mais rapidamente doenças, ideias e ajudas, como transitar nos mundos pessoais e coletivos ao mesmo tempo. De forma simbólica, o mundo se aproximou, mas também é certo que as ajudas humanitárias viajam mais rapidamente de um lugar a outro. Pensar hoje o mote desse dossiê é pensar na atualidade de alguns mitos, expressões de dinâmicas arquetípicas, e dar vazão a uma das áreas humanas que mais ‘salvam’ o nosso espírito neste momento: a arte. Obviamente que os textos do dossiê não tratam desta pandemia, mas deixamos aqui uma pista para o leitor: pense esta época como o descortinar de problemas escondidos para debaixo do tapete da humanidade e das nações e que não mais poderemos negar daqui por diante. Várias dinâmicas arquetípicas e assuntos coletivos estão em pauta, como a questão do meio ambiente, a pobreza, a ganância, a solidariedade, o binômio saúde-doença e, não menos importante, a questão do amor (por si, pelo outro, pelo coletivo…).

O dossiê “Mito, arquétipo e arte nas Performances Culturais”, coordenado pelos doutorandos Luana Lopes Xavier, Ivan Vieira e pela professora Dra. Nádia Maria Weber Santos, do PPG em Performances Culturais da UFG, congrega 13 breves ensaios (12 nacionais e um internacional), relacionados à temática. Foi pensado inicialmente a partir da disciplina homônima cursada por mestrandos e doutorandos do Programa Interdisciplinar citado, em 2018-2. Porém, o dossiê vai além, uma vez que seu mote interdisciplinar dialoga perfeitamente com inúmeras disciplinas, o que fica óbvio a partir dos artigos publicados, configurando-se, assim, num campo de pesquisa profícuo em que a disciplina História é muito próxima de nossas discussões.

A reflexão principal deste conjunto de textos passa por apresentar e interpretar os diversos sistemas simbólicos em que se inserem os processos imagéticos contidos nas Performances Culturais. Estes sistemas são nomeados como mitologias ocidentais e orientais, contos de fada, folclore, cosmogonias e mitologias religiosas, astrologias, alquimia e outros sistemas culturais da representação humana. Os ensaios apresentam e discutem alguns sistemas simbólicos, incluindo os símbolos universais, isto é, arquetípicos, relacionando-os às temáticas e aos objetos de pesquisa de seus autores. As discussões teóricas dos textos são direcionadas a autores das Performances Culturais bem como a teóricos estudados na disciplina e aprofundados nos artigos, como o filósofo neo-kantiano Ernst Cassirer, o pensador da psique, original e revolucionário no século XX, Carl Gustav Jung e alguns historiadores, como por exemplo, Roger Chartier. Alguns conceitos são explorados pelos autores na inter-relação com seus objetos de estudo, entre eles: sistemas simbólicos, imagens míticas, mitologema, arquétipos e símbolos arquetípicos. Partindo da indagação “como pensar as imagens arquetípicas na produção imagética contemporânea e qual a relação entre imagem, ação e Performance”, os ensaios, embora breves, percorrem o caminho da tentativa de interpretação de algumas destas imagens, correlacionando sempre psique individual e psique coletiva.

Seria profícuo, aqui, esclarecermos, mesmo que rapidamente, nossos motes conceituais. Por Arquétipos, entendemos, a partir da definição feita pela psicologia junguiana, os constituintes (juntamente com os instintos) do inconsciente coletivo. Aparecem de forma mais pura nos contos de fada, mitos, lendas e folclore. Etimologicamente, a palavra arquétipo origina-se no grego archḗ (ἀρχή) e significa início, origem e num sentido mais amplo também arcaico, primitivo, primordial, elementar; e týpos (τύπος), cujo sentidos são impressão ou marca. Arquétipo é, assim, uma marca primordial do humano, dentro do humano (e não fora, não metafísica, como o querem alguns críticos da teoria…). É, sim, a disposição estrutural básica para produzir uma certa narrativa mítica. Ele é, além de “pensamento elementar”, também fantasia e imagem poética elementar, uma emoção elementar, um impulso elementar dirigido a alguma ação típica (situações típicas de vida). As dinâmicas arquetípicas, expressas simbolicamente na produção imagética da humanidade, revelam os dramas humanos mais típicos presentes em todas as sociedades.

Os mitos são a primeira expressão das formas arquetípicas e a linguagem essencial pela qual o conhecimento humano se manifestou por longos períodos, antes que a humanidade desenvolvesse o pensamento filosófico ou científico. Originalmente, a palavra mŷthos (μῦθος) descrevia qualquer tipo de relatos ou narrativas referentes ao presente e ao passado. Esta palavra se cristalizou na preferência de Homero e mais tarde os filósofos antigos preteriram os mŷthoi dos mitógrafos em favor de uma outra palavra: lógos (λόγος). O esforço era feito para desvencilhar a construção narrativa da Filosofia daquela realizada pela Mitologia.

Os filósofos categorizaram o mito e separaram a sua narrativa em funções, dentre as quais podemos destacar a função cosmológica ou teogônica, associadas ao ritual e ao culto religioso; a função etiológica, adequada a seu uso sociológico; a função mística, adquirindo um caráter consolatório para uma humanidade sem condições de desenvolver o pensamento filosófico; ou a função androgógica, estabelecendo uma relação de ensino e aprendizagem entre o mito e o indivíduo. Contudo, a maioria dos artigos reunidos nesse dossiê se interessam pelo que Mircea Eliade chamou de “mito vivo”, quer dizer, o mito que independente da função desempenhada se inseria num contexto de comunicação simbólica com as pessoas de um determinado lugar e contexto. Somente o “mito vivo” desempenha a última função do mito, que é a função psicológica belamente detalhada em muitos aspectos na obra de Carl Gustav Jung. O “mito vivo” apresenta a cada indivíduo da sociedade os modelos para a conduta humana e os velhos caminhos, percorridos uma e outra vez, pelos deuses e heróis da cultura na qual o indivíduo está inserido.

E mesmo na contemporaneidade, onde o mito parece ter perdido sua função explicativa e orientadora, ainda podemos sentir a sua força e perenidade quando descobrimos sua interação com as imagens simbólicas emanadas dos arquétipos. Afinal, os mitos contados e recontados, tantas vezes desde a aurora dos tempos, na infância da humanidade, cristalizaram em si as forças arquetípicas que até hoje conduzem o psiquismo humano.

A arte pode juntar-se a ambas definições acima. Nela encontramos possibilidades de romper com concretudes pré-estabelecidas, de nos reconhecer dentro de nossa condição humana. Somos sujeitos no mundo porque estabelecemos relações simbólicas e culturais que nos circundam.

A arte tem nos mostrado o espírito do nosso tempo e é por meio dela que podemos, sem necessidade racional, compreender a situação atual e os limites da própria existência. Somos corpos sensíveis e reincorporamos símbolos na medida em que criamos o tempo todo; a necessidade de criar se instaurou no ‘aqui e agora’ e é tempo de pensar o sentido da vida e a necessidade da arte. Nesse viés, frente ao capitalismo excessivo de nossa época e aos precipícios que a racionalidade nos impõe, por que não recorrermos a discussões sobre a natureza humana?

A arte, assim como os mitos, ou seja, o simbólico, nos propicia entrar em contato com as camadas primeiras, com as questões fundamentais. Ou seja, nos redirecionam ao ‘ser bruto’ e nos ligam indefinidamente à vida.

Desta forma, alguns exemplos práticos e analíticos foram pensados pelos autores, em suas temáticas e objetos de pesquisa, dialogando sempre com autores importantes. O que une a todos, assim como aos três conceitos sugeridos é a questão simbólica, sendo o símbolo a melhor forma de exprimir um estado de coisas que não pode ser expresso por outra coisa melhor do que por uma analogia.

Por fim, gostaríamos de agradecer à editora da Revista Mosaico da PUC de Goiás, Thais Marinho, que aceitou nossa ideia de publicar este dossiê. A proximidade do PPG de História da PUC Goiás, que esteve presente na formação deste PPG em Performances Culturais da UFG, nos é ainda muito cara e relevante. A disciplina História é um das que está na base desta área de diálogos interdisciplinares, assim com o Teatro, a Antropologia e as artes em geral. Agradecemos, também a todos autores, que se esmeraram em produzir ensaios que refletiram nossas preocupações em discutir o simbólico, através dos mitos, das tradições locais, arquetípicas e ou dentro dos mais diversos campos artísticos.

E que este momento de incertezas quanto à vida humana que estamos passando nos faça crescer em humanidade e em reflexões sobre o que realmente importa daqui para a frente em termos de coesão de propósitos para transformar o mundo em algo melhor.

Ivan Vieira Neto – Professor Assistente do Curso de História da Escola de Formação de Professores e Humanidades da PUC Goiás. Discente de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Universidade Federal de Goiás. E-mail: vieira. [email protected]

Luana Lopes Xavier – Doutoranda em Performances culturais (UFG). Mestre e Bacharel em Filosofia (UFG). Universidade Federal de Goiás. Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]

Nádia Maria Weber Santos – Doutora em História (UFRGS). Médica, psiquiatra junguiana desde 1986. Bolsista de produtividade em Pesquisa do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (UFG). Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


VIEIRA NETO, Ivan; XAVIER, Luana Lopes; SANTOS, Nádia Maria Weber. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n. especial, 2020. Acessar publicação original [DR]

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