Jogo e educação – BROUGÈRE (REi)

BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 2003. LEAL, Luiz Antonio Batista. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 2, p. 177-183, jul./dez. 2014.

Gilles Brougère é professor de Ciências da Educação na Universidade Paris XIII e desde os anos 1970 se dedica aos estudos sobre o universo infantil e a ludicidade. Neste livro, estuda as relações entre jogo e educação e procede a uma profunda análise sócio-antropológica para chegar às suas conclusões acerca do lugar do jogo no universo infantil e na natureza humana.

No primeiro capítulo do livro, o autor aborda o jogo principalmente do ponto de vista da filosofia da linguagem, busca a etimologia da palavra e conclui pela polissemia do termo. Segundo Brougère, a cultura lúdica torna possível a aprendizagem do lúdico.

Isto é, a pessoa que participa da cultura, aprende a jogar. Distingue também o jogo em três acepções centrais: a. O jogo como atividade lúdica, tanto do ponto de vista do sentimento de quem participa desse tipo de atividade, como pelo seu reconhecimento objetivo; b. O jogo como uma estrutura ou sistema de regras (existe e subsiste de modo abstrato independente dos jogadores); c. E o jogo como material ou objeto (tal como jogo de xadrez e outros), podendo ser associado também ao termo “brinquedo”.

Considerando, como Wittgenstein, que as palavras são atos, Brougère afirma o caráter polissêmico do termo “jogo”, proveniente, pois, de diversas culturas com seus modos próprios de conversar e criar formas de jogar ou brincar (sem distinguir estes dois termos).

Nesse sentido, a noção de jogo para o autor provém da compreensão do seu lugar em diferentes contextos sociais, sendo por ele considerado como um fato social.
Para o autor, a psicologia vai se utilizar da ideia de jogo como uma noção proveniente do senso comum, trabalhada pela sociedade, pela língua e sem críticas. Mesmo Piaget, segundo Brougère, nesta obra, não chega a estabelecer um conceito de jogo. A psicologia, assim, vai fazer um uso comum do termo em diferentes estudos, designando-o em um certo número de comportamentos e situações.

Na perspectiva da contribuição da filosofia, Brougère vai ao pensamento de Aristóteles para sustentar que desde a Antiguidade a ideia de jogo e jogar é uma oposição complementar ao trabalho.

O jogo não tem um fim em si e está submetido ao trabalho que o justifica – significa, pois o espaço para o relaxamento necessário.

Thomas de Aquino introduz no universo cristão, a ideia de jogo como imposição divina que orienta o homem ao trabalho e à especulação contemplativa: “Procuramos o repouso do espírito através dos jogos, seja em palavras, seja em ações. Portanto, é permitido ao homem sábio e virtuoso propiciar-se esses relaxamentos algumas vezes”. O jogo tem a finalidade do repouso, justifica Aquino: “se o jogo carregasse em si sua finalidade, deveríamos jogar sem parar o que não poderia ser” (p. 28).

Para os psicólogos, a maioria deles, o jogo também não é fim, mas um meio de estudo e interpretação de casos e situações psíquicas para a compreensão do comportamento humano.

Para muitos pedagogos, também, o jogo é um meio para se chegar a aprendizagens específicas e contribuir para o desenvolvimento humano.
É com tal espírito que Brougère se aventura neste livro à compreensãodo “jogo”, indo em busca de suas configurações mais primitivas e em diferentes culturas, para depois relacionar essas ideias com o fenômeno educativo.

No segundo capítulo, então, vai tentar entender como se configura e se instala, na modernidade, a ideia de jogo como oposição complementar ao trabalho. Sem preocupar-se com uma cronologia histórica, desfila concepções de jogo oriundas de diferentes culturas que define o jogo numa rede de analogias e experiências distintas.

É assim que apresenta o jogo em Roma, por exemplo.

Na sociedade romana o jogo se instala como treinamento e espetáculo. Derivado de jocus (divertimento, jogo de palavras), há transformações de conceitos de uma esfera a outra, podendo ganhar outras conotações, a exemplo do termo ludus que também designa escola. Ludus, por assim dizer, designou concomitantemente uma atividade livre – que é o jogo -– e uma atividade dirigida – que é o trabalho escolar. O autor vai à raiz das palavras e seus usos para entender essa oscilação: um dos sentidos usuais de ludere, por exemplo, é “se exercer”, ludus também define “exercício” em oposição ao que é luta em aplicação real. Assim, antes de ser um jogo, ludus é uma técnica, um exercício; sendo assim, uma atividade semfim prático e que segue ao lado da ação propriamente dita.

“Ludere consiste em fazer o simulacro da caçaou da guerra ou realizar esta ou aquela série de gestos da vida prática, sem nenhuma outra preocupação a não ser os gestos e fazê-los bem, dedicando-se apenas a mostrar sua graça ou caráter expressivo, através da dança, por exemplo” (p. 36). O jogo reproduz, pois, os gestos da realidade, servindo também para ensinar a fazer esses gestos – exercício; representa diversão e estudos infantil; como também, tanto o lugar onde se dão esses estudos como a escola de gladiadores. Reconhecese, assim, a fusão de sentido num só termo – jogo. O jogo aparece aqui como fingimento, imitação de uma situação real. O simulacro impele os gladiadores para o jogo. “O público é central aí: é um espetáculo, um combate para o público antes de ser um combate real. Mais do que salvar sua pele, o gladiador deve agradar a um público que solicita a morte do vencido, a menos que este tenha seduzido apesar de sua derrota”. A decisão pela morte é do público. O fim do combate/espetáculo não define a morte do vencido. O duelo é mais acompanhado de encenação exótica e teatralização do que realismo.

Os jogos também têm uma dimensão religiosa, são rituais, presentes oferecidos a deus e, portanto, devem ser obedecidas regras ritualísticas. O espectador encontra-se no lugar de deus, e o financiador dos jogos, no mesmo movimento, oferece alegria e relaxamento aos homens e a deus. São jogos que têm com frequência fins políticos.

O jogo na Grécia vai assumir um caráter de concurso ou competição.

A palavra Agon, com efeito, traduz essa ideia. A palavra Paidia, deriva de criança e jogo infantil, diversão e também luta e concurso. Justamente nesta cultura se instalam em 776 a.C. os Jogos Olímpicos que podem ser analisados a partir da seguinte triangulação: a. Como expressão de um dinamismo vital; b. Para racionalizar a relação dos mortais com as divindades; c. Como elemento estruturador da comunidade – na transmissão da cultura e seus valores.

O jogo, ou paidia vai tornar-se o fundamento da educação – paideia, para os gregos. Paideia não se limita à infância, mas prossegue por toda a vida.
Em síntese, para as duas culturas mais próximas à nossa, o jogo se mostra em duas direções: em Roma, como espetáculo, na Grécia, como um concurso ou competição. O núcleo comum é o simulacro e o exercício, o que até hoje guardamos em nossa cultura.

Brougere ainda neste capítulo passa a analisar o jogo numa cultura aparentemente distante da nossa – a cultura e o jogo asteca no México, século XVI e XVII.
O jogo naquela cultura foi tido como atividade séria, ao mesmo tempo guardando um sentido de renovação cósmica e objetivo de civilização. A simulação lúdica é um meio de expressão cultural.

O termo jogo, para os astecas, provem do vocábulo tlachia que designa o ver, o olhar. Para o autor, há uma dimensão antropológica original do jogo e o jogo tem uma função social – um sentido social traduzido no “como se fosse verdade”, no simulacro. A simulação lúdica, seja na religião, nos ritos em geral, é um meio de expressão cultural, uma linguagem, um ato social, por assim dizer.

Da Idade Média à Moderna, vamos perceber desenvolvida uma noção de lúdico no seu sentido frívolo. O lúdico vai estar presente principalmente nas festividades religiosas, fundadas no fingimento, como o carnaval, por exemplo.

Na Idade Média, religião e vida social estavam relacionadas às atividades lúdicas – o jogo tem espaço nos ritos carnavalescos.

E os jovens estão no centro dessa manifestação, tendo sido muito valorizada a cultura popular naquele período. Os grandes mestres também ensinavam de maneira lúdica, através de adivinhas e problemas de aritmética com enunciados jocosos. O jogo e a festa se marginalizaram em contrapartida ao jogo oficial e aos poucos se foi assumindo em oposição ao trabalho, como atividade frívola.

O jogo tem no período da Idade Moderna uma conotação de frivolidade, em forte oposição ao trabalho, como atividade de relaxamento.

Incna prática infantil, o jogo mantém a característica de futilidade um novo interesse a partir de uma reavaliação da infância. Quando ele será associado à categoria da seriedade sobre outras bases.

Em síntese, cada sociedade determina e legitima seu conceito de jogo.

É com o Romantismo que vamos assistir à ruptura da visão frívola de jogo. Nessa época, ela passa a ser relacionado à educação e à visão das crianças.

A criança surge como representante da natureza, boa e pura ao nascer, como apregoava Rousseau. E os românticos, então, passam a atribuir ao jogo esse caráter educativo, de artifício pedagógico, com um valor educativo, controlado pelo educador. Com a revolução romântica, o acesso ao saber e à educação é percebido de uma nova maneira. Vê-se a criança dotada de um dinamismo interno e a infância deixa de ser renegada. Nesse sentido, caberia ao adulto deixar fluir a educação dessa criança, desse vir a ser, em liberdade. Também a observância da sensibilidade infantil e sua espontaneidade no processo de desenvolvimento fazem surgir o interesse de estudo desse indivíduo, fazendo emergir a psicologia infantil ou do desenvolvimento. É justamente nesse quadro que aparece um pensamento cientifico que irá justificar novas relações entre o jogo, o desenvolvimento e educação infantil.

No final do século XIX, a humanidade assiste ao nascimento da psicologia da criança e na sua esteira novos discursos sobre o jogo e a educação. Para Brougère, o novo discurso científico incorpora princípios e quadros teóricos de outras ciências.

A teoria da recapitulação, surgida nesse contexto, pode ser resumida à metáfora das idades ou da vida, ou seja, à tentativa de comparar a vida da humanidade à vida do indivíduo. Assim como o indivíduo, a humanidade teria também uma infância, uma maturidade e uma velhice “A antiguidade torna-se a infância da humanidade. A época moderna é superior porque é ascensão à maturidade. A metáfora é orientada em um sentido: utiliza-se as idades do indivíduo para valorizar ou desvalorizar certos períodos da historia” (p. 80). Essa é uma tendência que surge com os românticos e que é incorporada pela ciência moderna. Em alguns autores, a metáfora se inverte, utilizando-se as idades da humanidade para se compreender as épocas ou fases da infância.

Na esfera da psicologia infantil, Piaget funda a sua psicologia evolutiva com forte influencia da biologia. Para Piaget, trata-se de orientar-se pela criança, pela gênese, para compreender a inteligência adulta. A gênese nesse caso pode ser a do indivíduo como a das próprias ciências, ou seja, da historia da inteligência das espécies.
Muito embora Piaget não reproduza a teoria da recapitulação nos fundamentos da sua própria teoria, o seu pensamento surgiu num contexto em que a biologia era a ciência mais valorizada e ele mesmo como biólogo buscava explicar o fenômeno da inteligência mediado por modelos biológicos, considerando a psicogênese como parte da embriogênese. Piaget não estuda o jogo em si, mas como uma atividade espontânea da criança que permite a interpretação de suas representações em diferentes fases, levando à compreensão de suas funções semióticas.

Também em Freud, o jogo é um mecanismo de interpretação da subjetividade infantil. O jogo, em Melanie Klein, é uma técnica para se chegar à cura analítica. O jogo, como o sonho, fornece o conteúdo simbólico, sobre o qual o analista irá se debruçar e proceder à análise – é a principal via de acesso para se chegar ao inconsciente da criança, reconstruindo sentidos a partir de uma conjunção de materiais.

A psicologia, em suma, assim constituída de bases românticas e na biologia, constrói uma ciência sobre o jogo, como um fenômeno natural, ocultando sua dimensão social e concedendo-lhe o lugar da expressão espontânea, própria, natural da criança. É nesse bojo que Froebel e Claparède, por exemplo, associam tais princípios à pedagogia.

Veremos, então, surgir um campo de conhecimento educativo – a pedagogia – que vai se utilizar de princípios provindos da moderna psicologia infantil e, numa perspectiva que também associa o romantismo às bases da biologia, faz emergir um novo conceito de jogo e de educação infantil.

No final do século XIX, o jogo adquire um estatuto educativo que convém abordar. São três as acepções que assume: como recreação, como artifício para fazer emergir o desejo de aprender e como exercício físico. Duas ideias estão presentes na recreação: a) Jogos organizados pelos professores – momento educativo sem deixá-lo a espontaneidade da criança; b) Como momento de liberdade concedida à criança – um momento educativo enquanto tal e sem qualquer intervenção adulta.

O debate sobre a importância que se deva atribuir ao jogo se faz num quadro tradicional no qual se associa recreação ao jogo, constituindo-se em uma contribuição à educação física e a forma de diversão conferida às lições e exercícios. O jogo está presente apenas através dos jogos disciplinados, controlados, vigiados, dirigidos, organizados. Não há espaço para valorização da espontaneidade no âmbito de um jogo considerado em si educativo.

Concluindo, o livro de Brougère sobre o jogo e suas relações com a educação constitui-se numa obra de referência para a ciência pedagógica, pois permite enxergar o conceito de jogo e de educação infantil sob uma visão científica rigorosa. O autor faz um traçado histórico muito pertinente, recorrendo às bases do surgimento da ciência que se ocupa do desenvolvimento infantil, tecendo análises críticas sobre as diversas teorias e teóricos que con0struíram suas concepções sobre o jogo.

Luiz Antonio Batista Leal – Centro de Formação em Artes/ FUNCEB. E-mail: [email protected]

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