The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil – FONTES; HOLLANDA (RBH)

FONTES, Paulo; HOLLANDA, Bernardo Buarque de. The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil. London: Hurst & Company, 2014. 274p. Resenha de: CORNELSEN, Elcio Loureiro. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.35, n.70 jul./dez. 2015.

O “país do futebol” – muito se escreveu e se alimentou esse mito nas últimas quatro décadas, dentro e fora do Brasil. Nesse sentido, The Country of Football oferece ao leitor um percurso pela história do futebol brasileiro, de seus primórdios aos dias atuais, percurso esse pavimentado por contribuições de vários pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

Na introdução intitulada “The Beautiful Game in the ‘Country of Football'” (p.1-16), os historiadores Paulo Fontes e Bernardo Buarque de Hollanda, organizadores da obra, ressaltam que o Brasil continua a ocupar uma posição de destaque no cenário internacional, quando o assunto é futebol. Pela trajetória vitoriosa, coroada pela conquista de cinco títulos mundiais, a expressão “Country of Football” teria se tornado “nossa própria metáfora de Brasil” (p.2).1

O primeiro capítulo do livro, intitulado “The Early Days of Football in Brazil: British Influence and Factory Clubs in São Paulo” (p.17-40), da socióloga Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, versa sobre os primórdios do futebol brasileiro. De início, a autora chama a atenção para o fato de que o football já era praticado como atividade física na década de 1880 em escolas religiosas do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Essa nova modalidade adotada pela elite logo despertaria o interesse também de membros das classes operárias, o que culminaria com a formação dos chamados “clubes de várzea” e, sobretudo, de clubes de fábricas, num primeiro passo rumo à popularização.

No capítulo seguinte, intitulado “‘Malandros’, ‘Honourable Workers’ and the Professionalisation of Brazilian Football, 1930-1950” (p.41-66), o historiador norte-americano Gregory E. Jackson enfoca o período de profissionalização do futebol brasileiro a partir de 1933. De acordo com esse autor, sob o jugo autoritário, o futebol representou “uma ferramenta pedagógica para construir cidadãos eugenicamente aptos e culturalmente ortodoxos” (p.43). No contexto da Era Vargas, “o jogo e a cultura do futebol apresentaram um tropo para as críticas da suposta democracia racial do Brasil” (p.61), e encontraram no sociólogo Gilberto Freyre e no jornalista Mário Filho dois pensadores fundamentais na construção do discurso em torno do “mulatismo” como traço de um suposto estilo brasileiro de jogar.

O terceiro capítulo, “Football in the Rio Grande Do Sul Coal Mines” (p.67-85), da antropóloga Marta Cioccari, dedica-se ao estudo de um caso específico: investigar “a importância social e o simbolismo da classe trabalhadora como expressos na vida de mineiros e ex-mineiros de carvão no município de Minas do Leão, no Rio Grande do Sul” (p.67). Trata-se de uma pesquisa etnográfica realizada pela autora, que residiu no período de setembro de 2006 a fevereiro de 2007 em Minas do Leão, uma pequena localidade com cerca de 8 mil habitantes, cuja fonte de renda principal é a mineração. Segundo a autora, o futebol desempenha papel importante no cotidiano do município, onde os primeiros clubes criados por trabalhadores das minas foram fundados nas décadas de 1940 e 1950 (p.69).

No quarto capítulo, “‘Futebol De Várzea’ and the Working Class: Amateur Football Clubs in São Paulo, 1940s-1960s” (p.87-101), o historiador Paulo Fontes destaca a relevância do futebol de várzea como forma de lazer, especialmente em bairros operários das grandes cidades brasileiras. Segundo o autor, “para muitos, o fervor dos torcedores e o sentimento de apego entre os clubes locais e suas comunidades fazem do futebol amador, do futebol ‘real’, herdeiro do que há de melhor nas tradições do futebol brasileiro” (p.88). Tais clubes eram autênticos centros de lazer que integravam diversas atividades para além do futebol, atraindo, assim, amplos segmentos da comunidade em que se localizavam.

O quinto capítulo, “The ‘People’s Joy’ Vanishes: Meditations on the Death of Garrincha” (p.103-127), do antropólogo José Sergio Leite Lopes, apresenta uma “etnografia do funeral” (p.103) de Manuel Francisco dos Santos, mundialmente conhecido como Garrincha. “Uma canção de gesta medieval” (p.108): assim define o antropólogo a intenção de cronistas esportivos, em jornais publicados logo após a morte do ex-jogador, em atribuir sentido épico à carreira de Garrincha, marcada por triunfo e fama no esporte, graças à extrema habilidade em driblar os adversários que o tornou uma figura legendária, não obstante a fase de decadência e a morte trágica, praticamente esquecido, vítima do alcoolismo, em Bangu, no subúrbio do Rio.

No sexto capítulo, “Football as a Profession: Origins, Social Mobility and the World of Work of Brazilian Footballers, 1950s-1980s” (p.129-146), o historiador francês Clément Astruc investiga o testemunho de 43 ex-jogadores que atuaram na seleção brasileira entre 1954 e 1978, no intuito de refletir sobre a real capacidade do futebol como meio de ascensão social da classe trabalhadora. Vários entrevistados foram taxativos ao afirmar que a sociedade, em geral, não via com bons olhos o jogador de futebol, por não considerar sua prática uma profissão. Ao invés disso, termos depreciativos lhes eram atribuídos, como, por exemplo, “vagabundo”, “malandro” ou “safado” (p.133).

No sétimo capítulo, “Dictatorship, Re-Democratisation and Brazilian Football in the 1970s and 1980s” (p.147-166), o antropólogo José Paulo Florenzano enfoca o impacto da ditadura civil-militar (1964-1985) sobre o âmbito do futebol brasileiro e estabelece “um contraponto entre a ‘utopia autoritária’, forjada no contexto de militarização, e a República de Futebol, fundada no contexto da redemocratização” (p.148). A militarização do esporte com fins de propaganda teve várias facetas. Mas, como bem aponta o antropólogo, não faltaram vozes no âmbito do futebol para se rebelar contra esse status quo, em busca de uma democratização de seu meio profissional e, igualmente, da sociedade como um todo.

O oitavo capítulo, “Public Power, the Nation and Stadium Policy in Brazil: The Construction and Reconstruction of the Maracanã Stadium for the World Cups of 1950 and 2014” (p.167-185), do historiador Bernardo Buarque de Hollanda, versa sobre a construção do Estádio do Maracanã para a Copa de 1950 e estabelece uma comparação com a sua reconstrução no contexto da organização da Copa de 2014. Nesses dois momentos, houve uma mudança sensível em relação ao público torcedor: enquanto em 1950 havia uma política inclusiva, até mesmo por se tratar de uma época em que a televisão ainda estava ausente das transmissões, nos anos 2000, com as diretrizes da FIFA e uma maior midiatização, passa a vigorar uma política de exclusão, no espaço dos estádios, de segmentos populares da sociedade, impossibilitados de arcar com os altos preços dos ingressos.

Por fim, o nono capítulo, “A World Cup for Whom? The Impact of the 2014 World Cup on Brazilian Football Stadiums and Cultures” (p.187-206), do geógrafo norte-americano Christopher Gaffney, propõe uma reflexão sobre o impacto da Copa de 2014 para os estádios e para a cultura no Brasil, examinando o desenvolvimento de projetos de construção de estádios e demais infraestruturas relacionadas ao esporte. Com extrema lucidez, o geógrafo conclui suas reflexões com um quadro nada otimista: “Esses processos têm o potencial de alterar, permanentemente, um elemento essencial da identidade cultural brasileira. Ironicamente, é o peso cultural do futebol como criado e sustentado pelo ‘povo’ que tornou possível sua potencialidade de venda no mercado global” (p.206). Afinal, não devemos nos esquecer de que, feito uma Medusa, o capital petrifica tudo aquilo que toca.

Nota

1 As traduções de trechos citados são de nossa autoria.

Elcio Loureiro Cornelsen – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Jogo e educação – BROUGÈRE (REi)

BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 2003. LEAL, Luiz Antonio Batista. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 2, p. 177-183, jul./dez. 2014.

Gilles Brougère é professor de Ciências da Educação na Universidade Paris XIII e desde os anos 1970 se dedica aos estudos sobre o universo infantil e a ludicidade. Neste livro, estuda as relações entre jogo e educação e procede a uma profunda análise sócio-antropológica para chegar às suas conclusões acerca do lugar do jogo no universo infantil e na natureza humana.

No primeiro capítulo do livro, o autor aborda o jogo principalmente do ponto de vista da filosofia da linguagem, busca a etimologia da palavra e conclui pela polissemia do termo. Segundo Brougère, a cultura lúdica torna possível a aprendizagem do lúdico.

Isto é, a pessoa que participa da cultura, aprende a jogar. Distingue também o jogo em três acepções centrais: a. O jogo como atividade lúdica, tanto do ponto de vista do sentimento de quem participa desse tipo de atividade, como pelo seu reconhecimento objetivo; b. O jogo como uma estrutura ou sistema de regras (existe e subsiste de modo abstrato independente dos jogadores); c. E o jogo como material ou objeto (tal como jogo de xadrez e outros), podendo ser associado também ao termo “brinquedo”.

Considerando, como Wittgenstein, que as palavras são atos, Brougère afirma o caráter polissêmico do termo “jogo”, proveniente, pois, de diversas culturas com seus modos próprios de conversar e criar formas de jogar ou brincar (sem distinguir estes dois termos).

Nesse sentido, a noção de jogo para o autor provém da compreensão do seu lugar em diferentes contextos sociais, sendo por ele considerado como um fato social.
Para o autor, a psicologia vai se utilizar da ideia de jogo como uma noção proveniente do senso comum, trabalhada pela sociedade, pela língua e sem críticas. Mesmo Piaget, segundo Brougère, nesta obra, não chega a estabelecer um conceito de jogo. A psicologia, assim, vai fazer um uso comum do termo em diferentes estudos, designando-o em um certo número de comportamentos e situações.

Na perspectiva da contribuição da filosofia, Brougère vai ao pensamento de Aristóteles para sustentar que desde a Antiguidade a ideia de jogo e jogar é uma oposição complementar ao trabalho.

O jogo não tem um fim em si e está submetido ao trabalho que o justifica – significa, pois o espaço para o relaxamento necessário.

Thomas de Aquino introduz no universo cristão, a ideia de jogo como imposição divina que orienta o homem ao trabalho e à especulação contemplativa: “Procuramos o repouso do espírito através dos jogos, seja em palavras, seja em ações. Portanto, é permitido ao homem sábio e virtuoso propiciar-se esses relaxamentos algumas vezes”. O jogo tem a finalidade do repouso, justifica Aquino: “se o jogo carregasse em si sua finalidade, deveríamos jogar sem parar o que não poderia ser” (p. 28).

Para os psicólogos, a maioria deles, o jogo também não é fim, mas um meio de estudo e interpretação de casos e situações psíquicas para a compreensão do comportamento humano.

Para muitos pedagogos, também, o jogo é um meio para se chegar a aprendizagens específicas e contribuir para o desenvolvimento humano.
É com tal espírito que Brougère se aventura neste livro à compreensãodo “jogo”, indo em busca de suas configurações mais primitivas e em diferentes culturas, para depois relacionar essas ideias com o fenômeno educativo.

No segundo capítulo, então, vai tentar entender como se configura e se instala, na modernidade, a ideia de jogo como oposição complementar ao trabalho. Sem preocupar-se com uma cronologia histórica, desfila concepções de jogo oriundas de diferentes culturas que define o jogo numa rede de analogias e experiências distintas.

É assim que apresenta o jogo em Roma, por exemplo.

Na sociedade romana o jogo se instala como treinamento e espetáculo. Derivado de jocus (divertimento, jogo de palavras), há transformações de conceitos de uma esfera a outra, podendo ganhar outras conotações, a exemplo do termo ludus que também designa escola. Ludus, por assim dizer, designou concomitantemente uma atividade livre – que é o jogo -– e uma atividade dirigida – que é o trabalho escolar. O autor vai à raiz das palavras e seus usos para entender essa oscilação: um dos sentidos usuais de ludere, por exemplo, é “se exercer”, ludus também define “exercício” em oposição ao que é luta em aplicação real. Assim, antes de ser um jogo, ludus é uma técnica, um exercício; sendo assim, uma atividade semfim prático e que segue ao lado da ação propriamente dita.

“Ludere consiste em fazer o simulacro da caçaou da guerra ou realizar esta ou aquela série de gestos da vida prática, sem nenhuma outra preocupação a não ser os gestos e fazê-los bem, dedicando-se apenas a mostrar sua graça ou caráter expressivo, através da dança, por exemplo” (p. 36). O jogo reproduz, pois, os gestos da realidade, servindo também para ensinar a fazer esses gestos – exercício; representa diversão e estudos infantil; como também, tanto o lugar onde se dão esses estudos como a escola de gladiadores. Reconhecese, assim, a fusão de sentido num só termo – jogo. O jogo aparece aqui como fingimento, imitação de uma situação real. O simulacro impele os gladiadores para o jogo. “O público é central aí: é um espetáculo, um combate para o público antes de ser um combate real. Mais do que salvar sua pele, o gladiador deve agradar a um público que solicita a morte do vencido, a menos que este tenha seduzido apesar de sua derrota”. A decisão pela morte é do público. O fim do combate/espetáculo não define a morte do vencido. O duelo é mais acompanhado de encenação exótica e teatralização do que realismo.

Os jogos também têm uma dimensão religiosa, são rituais, presentes oferecidos a deus e, portanto, devem ser obedecidas regras ritualísticas. O espectador encontra-se no lugar de deus, e o financiador dos jogos, no mesmo movimento, oferece alegria e relaxamento aos homens e a deus. São jogos que têm com frequência fins políticos.

O jogo na Grécia vai assumir um caráter de concurso ou competição.

A palavra Agon, com efeito, traduz essa ideia. A palavra Paidia, deriva de criança e jogo infantil, diversão e também luta e concurso. Justamente nesta cultura se instalam em 776 a.C. os Jogos Olímpicos que podem ser analisados a partir da seguinte triangulação: a. Como expressão de um dinamismo vital; b. Para racionalizar a relação dos mortais com as divindades; c. Como elemento estruturador da comunidade – na transmissão da cultura e seus valores.

O jogo, ou paidia vai tornar-se o fundamento da educação – paideia, para os gregos. Paideia não se limita à infância, mas prossegue por toda a vida.
Em síntese, para as duas culturas mais próximas à nossa, o jogo se mostra em duas direções: em Roma, como espetáculo, na Grécia, como um concurso ou competição. O núcleo comum é o simulacro e o exercício, o que até hoje guardamos em nossa cultura.

Brougere ainda neste capítulo passa a analisar o jogo numa cultura aparentemente distante da nossa – a cultura e o jogo asteca no México, século XVI e XVII.
O jogo naquela cultura foi tido como atividade séria, ao mesmo tempo guardando um sentido de renovação cósmica e objetivo de civilização. A simulação lúdica é um meio de expressão cultural.

O termo jogo, para os astecas, provem do vocábulo tlachia que designa o ver, o olhar. Para o autor, há uma dimensão antropológica original do jogo e o jogo tem uma função social – um sentido social traduzido no “como se fosse verdade”, no simulacro. A simulação lúdica, seja na religião, nos ritos em geral, é um meio de expressão cultural, uma linguagem, um ato social, por assim dizer.

Da Idade Média à Moderna, vamos perceber desenvolvida uma noção de lúdico no seu sentido frívolo. O lúdico vai estar presente principalmente nas festividades religiosas, fundadas no fingimento, como o carnaval, por exemplo.

Na Idade Média, religião e vida social estavam relacionadas às atividades lúdicas – o jogo tem espaço nos ritos carnavalescos.

E os jovens estão no centro dessa manifestação, tendo sido muito valorizada a cultura popular naquele período. Os grandes mestres também ensinavam de maneira lúdica, através de adivinhas e problemas de aritmética com enunciados jocosos. O jogo e a festa se marginalizaram em contrapartida ao jogo oficial e aos poucos se foi assumindo em oposição ao trabalho, como atividade frívola.

O jogo tem no período da Idade Moderna uma conotação de frivolidade, em forte oposição ao trabalho, como atividade de relaxamento.

Incna prática infantil, o jogo mantém a característica de futilidade um novo interesse a partir de uma reavaliação da infância. Quando ele será associado à categoria da seriedade sobre outras bases.

Em síntese, cada sociedade determina e legitima seu conceito de jogo.

É com o Romantismo que vamos assistir à ruptura da visão frívola de jogo. Nessa época, ela passa a ser relacionado à educação e à visão das crianças.

A criança surge como representante da natureza, boa e pura ao nascer, como apregoava Rousseau. E os românticos, então, passam a atribuir ao jogo esse caráter educativo, de artifício pedagógico, com um valor educativo, controlado pelo educador. Com a revolução romântica, o acesso ao saber e à educação é percebido de uma nova maneira. Vê-se a criança dotada de um dinamismo interno e a infância deixa de ser renegada. Nesse sentido, caberia ao adulto deixar fluir a educação dessa criança, desse vir a ser, em liberdade. Também a observância da sensibilidade infantil e sua espontaneidade no processo de desenvolvimento fazem surgir o interesse de estudo desse indivíduo, fazendo emergir a psicologia infantil ou do desenvolvimento. É justamente nesse quadro que aparece um pensamento cientifico que irá justificar novas relações entre o jogo, o desenvolvimento e educação infantil.

No final do século XIX, a humanidade assiste ao nascimento da psicologia da criança e na sua esteira novos discursos sobre o jogo e a educação. Para Brougère, o novo discurso científico incorpora princípios e quadros teóricos de outras ciências.

A teoria da recapitulação, surgida nesse contexto, pode ser resumida à metáfora das idades ou da vida, ou seja, à tentativa de comparar a vida da humanidade à vida do indivíduo. Assim como o indivíduo, a humanidade teria também uma infância, uma maturidade e uma velhice “A antiguidade torna-se a infância da humanidade. A época moderna é superior porque é ascensão à maturidade. A metáfora é orientada em um sentido: utiliza-se as idades do indivíduo para valorizar ou desvalorizar certos períodos da historia” (p. 80). Essa é uma tendência que surge com os românticos e que é incorporada pela ciência moderna. Em alguns autores, a metáfora se inverte, utilizando-se as idades da humanidade para se compreender as épocas ou fases da infância.

Na esfera da psicologia infantil, Piaget funda a sua psicologia evolutiva com forte influencia da biologia. Para Piaget, trata-se de orientar-se pela criança, pela gênese, para compreender a inteligência adulta. A gênese nesse caso pode ser a do indivíduo como a das próprias ciências, ou seja, da historia da inteligência das espécies.
Muito embora Piaget não reproduza a teoria da recapitulação nos fundamentos da sua própria teoria, o seu pensamento surgiu num contexto em que a biologia era a ciência mais valorizada e ele mesmo como biólogo buscava explicar o fenômeno da inteligência mediado por modelos biológicos, considerando a psicogênese como parte da embriogênese. Piaget não estuda o jogo em si, mas como uma atividade espontânea da criança que permite a interpretação de suas representações em diferentes fases, levando à compreensão de suas funções semióticas.

Também em Freud, o jogo é um mecanismo de interpretação da subjetividade infantil. O jogo, em Melanie Klein, é uma técnica para se chegar à cura analítica. O jogo, como o sonho, fornece o conteúdo simbólico, sobre o qual o analista irá se debruçar e proceder à análise – é a principal via de acesso para se chegar ao inconsciente da criança, reconstruindo sentidos a partir de uma conjunção de materiais.

A psicologia, em suma, assim constituída de bases românticas e na biologia, constrói uma ciência sobre o jogo, como um fenômeno natural, ocultando sua dimensão social e concedendo-lhe o lugar da expressão espontânea, própria, natural da criança. É nesse bojo que Froebel e Claparède, por exemplo, associam tais princípios à pedagogia.

Veremos, então, surgir um campo de conhecimento educativo – a pedagogia – que vai se utilizar de princípios provindos da moderna psicologia infantil e, numa perspectiva que também associa o romantismo às bases da biologia, faz emergir um novo conceito de jogo e de educação infantil.

No final do século XIX, o jogo adquire um estatuto educativo que convém abordar. São três as acepções que assume: como recreação, como artifício para fazer emergir o desejo de aprender e como exercício físico. Duas ideias estão presentes na recreação: a) Jogos organizados pelos professores – momento educativo sem deixá-lo a espontaneidade da criança; b) Como momento de liberdade concedida à criança – um momento educativo enquanto tal e sem qualquer intervenção adulta.

O debate sobre a importância que se deva atribuir ao jogo se faz num quadro tradicional no qual se associa recreação ao jogo, constituindo-se em uma contribuição à educação física e a forma de diversão conferida às lições e exercícios. O jogo está presente apenas através dos jogos disciplinados, controlados, vigiados, dirigidos, organizados. Não há espaço para valorização da espontaneidade no âmbito de um jogo considerado em si educativo.

Concluindo, o livro de Brougère sobre o jogo e suas relações com a educação constitui-se numa obra de referência para a ciência pedagógica, pois permite enxergar o conceito de jogo e de educação infantil sob uma visão científica rigorosa. O autor faz um traçado histórico muito pertinente, recorrendo às bases do surgimento da ciência que se ocupa do desenvolvimento infantil, tecendo análises críticas sobre as diversas teorias e teóricos que con0struíram suas concepções sobre o jogo.

Luiz Antonio Batista Leal – Centro de Formação em Artes/ FUNCEB. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

O jogo da onda: entre na onda da saúde | Sandra Rebello e Simone Monteiro

 

Não são poucos os desafios com os quais, nesta nossa contemporaneidade, têm se defrontado os chamados ‘profissionais da educação’. A bem da verdade, em um mundo marcado pela inflação de fontes de informação e pela difusão de diferentes meios e modos de comunicação, é tarefa difícil discriminar uma categoria profissional específica que possa responder pelos (des)caminhos da educação. E, aos que com ênfase argumentam em torno das diferenças existentes entre informação e formação, só podemos apontar como paradoxal o papel reconhecido e disputado que desempenham os meios de comunicação na formação da opinião pública.

De qualquer forma, sempre é possível considerar que, desde os tempos que nossa memória histórica não consegue alcançar, a educação das novas gerações implica a participação e a responsabilidade de todos os membros das gerações precedentes. Mesmo que tenhamos transferido tal responsabilidade para instituições, nomeadamente a escola e a família, não raras vezes responsabilizamos a ineficiência de nosso sistema de ensino — em última instância, de nossas escolas — pelos índices de desemprego. Diante do noticiário policial, que nos informa do envolvimento de jovens em atos criminosos, automática é a suspeita de que os pais desses ‘infelizes jovens’ falharam na tarefa de preservação dos valores morais da sociedade.

Um observador mais destemperado não titubearia em afirmar que tais posturas são a tradução de um progressivo processo de ausência de responsabilidade, processo que tem por contraface o (nosso) anonimato. Escola e família são duas instituições que nos dão a pista dos contornos de uma sociedade que se estruturou, entre outras divisões, a partir da cisão entre conhecimento e ética.

Bem, antes que algum leitor mais apressado imagine que o que se pretende é o desenrolar de mais um dos discursos ‘pessimistas’ que costumam acometer alguns pobres mortais por ocasião da virada dos séculos, retornemos ao que foi dito no primeiro parágrafo. ‘Desafio’ é a palavra-chave. Melhor dizendo, é o sentimento que tanto nos mobiliza a decifrar os diferentes percursos das histórias das civilizações, como é o sentimento que nos impulsiona a tecer, ou a desvendar, novas rotas de saída-começo. Num ou noutro caminho, um requisito se impõe: sensibilidade para decifrar o ritmo.

Sensibilidade para desvendar o ritmo desta nossa contemporaneidade é o que demonstra o trabalho de Sandra Rebello e Simone Monteiro, O jogo da onda. De resto, como marca de todas as iniciativas e inovações de qualidade, é um trabalho enraizado num sólido terreno, no caso, o Laboratório de Educação Ambiental e em Saúde do Departamento de Biologia/IOC, Fundação Oswaldo Cruz, que é coordenado por Virgínia Schall.

Antecipo os argumentos do elogio. Conforme mencionado nas instruções que acompanham o jogo, “de forma divertida, educativa e motivadora, O jogo da onda esclarece dúvidas e promove reflexões sobre a prevenção do HIV/Aids e a dimensão social do uso indevido de drogas, enfocando questões emocionais, familiares e pedagógicas”. Como proposta pedagógico-metodológica, destaco os méritos do jogo em reapresentar o lúdico como fundamento da cultura e de suas formas de transmissão e resgatar o diálogo como lugar de encontro entre os jovens e os educadores.

O que é o homem? Talvez este seja um dos principais enigmas postos pelo e para o próprio homem, na aventura do conhecimento. Mesmo que adormecida, visto o inevitável (e necessário…) confronto com o ‘pantanoso’ terreno da metafísica, cremos não incorrer em exageros se afirmarmos que esta questão, ainda hoje, subjaz às grandes áreas dos conhecimentos, escusado dizer, científicos, e as mobiliza.

Pois bem, um contemporâneo nosso, se assim ainda for possível definir alguém que habitou este planeta na primeira metade do século XX, ousou inferir uma nova nomenclatura no mosaico de tentativas de definição do que, afinal de contas, vem a ser a espécie humana. Às designações dessa nossa espécie como Homo sapiens, ou Homo faber, Johan Huizinga contrapõe o seu Homo ludens. Para este pensador, é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve. Mais do que isso, para Huizinga, “o jogo é fato mais antigo que a cultura”. Dito de outra maneira, “a cultura surge sob a forma de jogo”. Para ele, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico, o jogo “é uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido”.

Distante de quaisquer vestígios de banalização e vulgarização da existência, Huizinga vê no jogo a própria possibilidade do exercício da criatividade humana. Jogo não é a ausência de critério; está longe de significar a ausência de valores.

O ponto de partida, e de chegada, de seu fascinante trabalho é a afirmação de que, em suas fases mais primitivas, a cultura possui um caráter lúdico, processa-se segundo as formas e no ambiente do jogo. “Regra geral, o elemento lúdico vai gradualmente passando para segundo plano, sendo sua maior parte absorvida pela esfera do sagrado. O restante cristaliza-se sob a forma de saber: folclore, poesia, filosofia e as diversas formas da vida jurídica e política. Fica assim completamente oculto por detrás dos fenômenos culturais o elemento lúdico original.”

Vejamos, em acordo com Johan Huizinga, algumas das características fundamentais do jogo: o jogo é livre, é uma atividade voluntária; o jogo não é vida corrente, nem vida real, é como que fosse um intervalo em nossa vida quotidiana; distingue-se da vida ‘comum’ tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa, ou seja, tem por características o isolamento e a limitação; outra de suas características, talvez a mais marcante, refere-se ao fato de que, na dupla unidade do jogo e da cultura, cabe ao jogo a primazia: ele cria ordem e é a ordem.

No jogo, verificam-se todas as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo e entusiasmo. Em que pese serem estas características marcadamente estéticas e em que pese o fato de que o jogo, enquanto tal, esteja posto para além do domínio do bem e do mal, “o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua ‘lealdade’”. No jogo, não existe possibilidade para a manifestação de quaisquer ceticismos. Nele, o jogador, “apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo”.

O quanto tenhamos ocultado o Homo ludens do cotidiano de nossas vidas, ou o quanto nos permitimos acreditar que ‘ele’ se manifesta nas nossas horas programadas para o lazer, seriam temas para especialistas mais qualificados. Aqui, importa brindar um trabalho que alia o lúdico à seriedade. Trabalho que é resposta ao desafio posto pela realidade de vida dos jovens que têm por morada as metrópoles do final do século XX.

Por concordar com a formulação de Huizinga, não considero que utilizar o jogo como recurso educativo, por si só, seja um argumento de pouca monta para destacar os elementos de qualidade que caracterizam O jogo proposto por Sandra Rebello e Simone Monteiro. Mas cabe destacar outro argumento de singular significado. Nos termos em que foi formulado, O jogo da onda é um convite ao diálogo, ou seja, está implícita na metodologia proposta a negação de ser mais um dos inúmeros manuais de comportamento e conduta. Nesse sentido, está em consonância com o que de melhor foi realizado na área denominada educação e saúde. A título de exemplo de realizações nessa linha e, antes de tudo, por homenagem, eu lembraria os nomes de Hortência Holanda e Joaquim Alberto Cardoso de Melo.

Um significativo trabalho de pesquisa precedeu a elaboração de O jogo da onda. Tendo por preocupação apreender a percepção dos jovens no que se refere ao consumo e à dimensão social das drogas, uma pesquisa de campo foi realizada com jovens na faixa etária de 12 a 18 anos, regularmente matriculados na rede escolar de ensino do estado do Rio de Janeiro. Os resultados da pesquisa indicaram, entre outros problemas, a precariedade dos programas e iniciativas que visam à prevenção do uso indevido de drogas. Esta constatação ratificou a importância de que a equipe continuasse o desenvolvimento de jogos, tanto como recurso educativo quanto como recurso metodológico de pesquisas subseqüentes relacionadas ao tema.

No entanto, o trabalho é significativo não apenas por ter utilizado uma bibliografia pertinente, ou por ter analisado com competência os resultados da pesquisa de campo. A preocupação em penetrar no universo simbólico dos jovens de forma a permitir a construção de recursos educativos que, além de transmitir informações, sejam pontes de diálogo entre as diferentes gerações é marca importante deste trabalho de pesquisa.

É bem verdade que o que estou destacando como aspecto significativo deste trabalho — a sintonia entre as preocupações do ponto de partida e o produto final — em princípio pode parecer não mais que uma obviedade metodológica. Mas quando o tema envolve nosso papel e nossa responsabilidade na orientação das novas gerações no que se refere à descoberta da sexualidade, ao uso de drogas, à indicação dos valores que devem nortear a conduta dos jovens diante da curiosidade e da sedução provocadas pela possibilidade de experimentar novas sensações, que obviedade deverá nos orientar no cumprimento desta ‘tarefa’?

No encarte de apresentação de O jogo da onda, as autoras registram pelo menos duas constatações que considero deverem entrar na ‘pauta’ de nossas reflexões: no que diz respeito ao uso de drogas, “muitos pais não se sentem capazes de orientar os filhos corretamente, além de terem receio de que a simples menção do assunto drogas possa despertar o interesse pelo consumo”; no que diz respeito ao papel da escola na prevenção ao uso de drogas, as autoras questionam “a possibilidade da manutenção de um diálogo claro e aberto entre professores e alunos, visto que o conhecimento dos profissionais de ensino sobre drogas muitas vezes é mais restrito que o dos estudantes”.

No mesmo encarte, sem meias-palavras, Francisco Inácio Bastos provoca o início de O jogo, afirmando que o uso de substâncias ativas sobre o sistema nervoso central e o psiquismo é um dos problemas mais angustiantes deste final de século e, também, um dos hábitos mais antigos da humanidade, um hábito que, associado ao descompasso que se verifica entre o desenvolvimento das modernas tecnologias e o aprendizado, ou regulação, dos limites do consumo dos produtos destas tecnologias, vira sinônimo de problema social. À lista de problemas decorrentes do consumo de drogas, acrescentou-se, nestas duas últimas décadas, o da transmissão da Aids.

Pois bem, se entrecruzarmos as constatações feitas pelas autoras com o convite-provocação de Francisco Inácio Bastos, e se não estivermos convencidos da eficácia de determinados códigos de conduta moral, os quais, em geral, são estabelecidos à revelia da realidade do cotidiano da vida dos homens, resta-nos aceitar o desafio da aventura do diálogo.

Diálogo, relação, encontro, estas são algumas das pistas para que nos aproximemos da ontologia relacional de Martin Buber. Certa vez, em resposta a um interlocutor que lhe solicitava que apresentasse os segredos do ofício do educador, Buber respondeu: “Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo. Não tenho ensinamentos a transmitir. Apenas aponto algo, indico algo na realidade, algo malvisto ou escassamente avistado, tomo quem me ouve pela mão e o encaminho à janela.”

Tal declaração pode perder a força de seu sentido se não tivermos demarcado em nossos horizontes de percepção o fato de que toda obra de Buber é construída a partir do pressuposto de que vida é relação. O eu só se torna eu no encontro com o outro.

Ousando uma definição, diríamos que o motivo desta resenha foi a apresentação de um jogo dialogal. O ponto de interseção entre o jogo e o diálogo é a surpresa. Favorecer a surpresa do encontro é o que desejamos aos que entrarem na onda deste jogo.

Referências

BUBER, Martin.1985. Que es el hombre?. México, Fondo de Cultura Económica.

BUBER, Martin.1982. Do diálogo e do dialógicoSão Paulo, Perspectiva.

BUBER, Martin. 1979. Eu e tu. São Paulo, Cortez e Moraes.

HUIZINGA, Johan. 1993. Homo ludensSão Paulo, Perspectiva.


Resenhista

Bianca Antunes Cortes – Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, COC/Fiocruz.


Referências desta Resenha

REBELLO, Sandra; MONTEIRO, Simone. O jogo da onda: entre na onda da saúde. Rio de Janeiro: Laboratório de Educação Ambiental e em Saúde; Instituto Oswaldo Cruz; Fiocruz; Edições Consultor, 1997. Resenha de: CORTES, Bianca Antunes. O jogo da onda: um convite ao diálogo. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.5, n.3, nov. 1998/fev. 1999. Acessar publicação original [DR]