Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura | Robert Darnton

Publicado pela Norton, de Nova York, em 2014, Censors at Work: How States Shaped Literature, o mais recente livro de Robert Darnton chegou ao Brasil em 2016 pela Companhia das Letras com tradução de Rubens Figueiredo, como Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura.

Em setembro de 2012, Darnton esteve no programa Roda Viva [1] e dentre vários temas abordados analisou a importância que o historiador deveria dar à pesquisa presencial nos arquivos. Para ele, desta maneira é possível encontrar o que se procura e dar espaço à serendipidade, ambos os movimentos de relevância para o desempenho do ofício.

Desde O grande massacre de gatos, seu primeiro livro no Brasil, saído do prelo da editora Graal em 1986, o historiador apresenta com maestria uma dinâmica que une pesquisa, análise, uso de fontes arquivísticas e escrita da História. Constitui, sem dúvida, um dos mais importantes historiadores do livro e da leitura de nossa época, que busca, a partir de uma metodologia rigorosa tratar de objetos aparentemente não tão evidentes, tomando como ponto de partida perguntas cuja forma de responder evidencia a necessidade do recurso à micro-história com reconstruções que poderiam passar ao largo de pesquisador menos experiente. Com Darnton, os personagens, suas vozes e ações emergem de documentos silentes.

Apesar de vultoso, este seu método segue semelhante como em outros livros de igual sucesso e publicados pela mesma editora que agora traz ao público brasileiro o resultado da sua nova investigação.

A História do Livro e da Leitura na França é uma constante em suas publicações assim como a força e o poder do impresso, seja de livros ou de folhetos, como analisou em O diabo na água benta (2012) ou na rede comunicação provinda de canções na frança oitocentista como nos mostrou em Poesia e Política (2014).

Controle, censor e censura freqüentemente estiveram na linha de conduta de governos ao longo da história. No século XX, caso de nosso país, especificamente a literatura foi alvo em dois momentos, durante o Estado Novo e na Ditadura Militar, antes, no século XIX, as mordaças estiveram nas mãos de Portugal. Para ambos os séculos, historiadores brasileiros ainda se debruçam e analisam os danos causados pelos censores não só na literatura, mas na música, cinema e teatro, no caso do último século.

No que tange às contradições e as diferentes “censuras”, cabe citar um exemplo nacional. De volta ao nosso período colonial, em 2007, no artigo “O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: outra visão da censura” a historiadora Márcia Abreu apresentou análise inovadora, dentro de temporalidade que abrange dois séculos examinando a ação da censura portuguesa nos romances. Com base em documentação impressa e manuscrita, a pesquisadora analisa as contradições e formas de análise do aparato censor para uma mesma obra – por exemplo. Estabelece a clara distinção entre circulação e produção de livros, discutindo os níveis de controle e, sobretudo, a forma de agir dos censores e sua trama no mundo tipográfico.

De igual modo, o autor norte-americano consegue traçar o perfil de alguns censores e das redes que se estabeleciam com as concessões e negociações de privilégios a tipógrafos e autores. Percebeu que, apesar das sucessivas mudanças na organização das instituições e na correlação de forças interna, o controle sobre os livros mantinha inalteradas muitas de suas práticas. Revelou também uma cultura política baseada em concessões, bajulações, trocas de interesses e uma censura que surpreendentemente considerava conveniência política, religiosa e moral, mas também sua qualidade estética. Por fim, um dos grandes méritos do texto foi seccionar uma imagem de uma censura puramente canhesca, maniqueísta e monolítica que havia sido cristalizada por estudos históricos do século XX.

Por essas razões, como método de análise Darnton propõe a etnografia e deixa apenas para as conclusões uma explicação que poderia ter sido apresentada ao leitor no início o livro. Para ele “uma visão etnográfica da censura a trata de maneira holística, como sistema de controle que permeia as instituições, colore as relações humanas e alcança as engrenagens ocultas da alma”. Como sempre traz uma pesquisa documental profunda e rigorosa, o que faz o livro ultrapassar o conteúdo que pretende e ser também um excelente exemplo de metodologia. Reforça que o “trabalho de campo nos arquivos leva o historiador a deparar com exemplos estarrecedores de opressão”.

O autor considera a literatura como um sistema cultural incorporado à ordem social e assim a propõe analisar, ponderando como a censura pode mudar a face da literatura, algumas vezes de forma muito explícita e de outras mais escamoteadas. Com grande brilhantismo, mostra a uma articulação entre temporalidades e contextos díspares, tendo como fio condutor o ato arbitrário do controle estatal das idéias através da censura.

A obra é dividida em três partes que sustentam a pergunta inicial: o que é censura? Para responder, indaga os próprios censores. Dois através dos arquivos – por exercício exegético fabuloso – e o último pessoalmente. Negociações, comprometimento, cumplicidade e negociação, ações que aparecem como práticas transgeracionais entre os censores e censurados. Assim, o livro perpassa três países em três épocas distintas. Em comum: três sistemas autoritários, ilustrando como a cultura política se consolida em cada caso.

Darnton abre o livro a partir da discussão sobre o ciberespaço que no início configurava-se um terreno fértil e livre, mas que com o passar do tempo virou um terreno de disputas, divisão, controle e vigilância. Lança uma questão que deveria estar constantemente em pauta: “será que a tecnologia moderna produziu uma nova forma de poder, que levou a um desequilíbrio entre o papel do Estado e os direitos dos cidadãos?”. A análise retroage ao passado e busca tratar do interior das operações de censura e evidencia que seja hoje ou no passado o objetivo era controlar a comunicação. Buscará na história comparativa a forma para tentar reconstruir a censura tal como operava em três sistemas autoritários: na monarquia dos Bourbon na França do século XVIII, no governo britânico na Índia – o Raj, do século XIX – e na ditadura comunista na Alemanha Oriental, no século XX. O autor considera que “cada um deles vale um estudo particular, mas quando tomados em conjunto e comparados, permitem repensar a história da censura em geral”.

A afirmação de Darnton se confirma ao longo dos capítulos, pois nos trará sistemas e formas distintas de exercer o controle. O autor se posiciona contrário à forma simplória que a censura foi estudada nos últimos cem anos. Parte do princípio de que não podemos falar em “a censura”, mas em censuras, pois elas diferem de acordo com lugares, tempos e personagens, por isso propõem uma abordagem etnográfica do objeto. Ele acredita que é preciso aprofundar a análise da dicotomia “repressão e liberdade” a fim de relativizá-la e perceber seus matizes. Ontem e hoje a censura poder ser muito mais sutil do que se supõe.

O primeiro capítulo, “A França dos Bourbon: privilégio e repressão”, é dividido em oito subseções, mas seu ponto nevrálgico se concentra em “A polícia do livro” e “Um sistema de distribuição: capilares e artérias”. Nele, Darnton articula os mecanismos para concessão de privilégios e mostra a fluidez e as promiscuidades da relação entre censores – em sua maioria professores da Sorbonne – os tipógrafos e autores. A burocracia, que aparece na França em 1750 com seus complexos sistemas de funcionários, simplificou e complicou o trabalho do censor. Eles atuaram praticamente como colaboradores de autores e as dedicatórias agiam como poderoso instrumento, mas era uma faca de dois gumes, pois “uma personalidade pública que aceitasse a dedicatória de um livro o endossava implicitamente e se identificava com ele”. Curioso fato foi que “apesar das disputas ocasionais”, escreve Darnton, “ a censura […] levou os autores e os censures a juntarem-se e não a separá-los”.

Tanto a trama de atuação dos censores quanto os seus critérios descritos por Darnton fazem lembrar o trabalho de Márcia Abreu – citado a cima – para os portugueses no mesmo século XVIII. O historiador americano apesar de mencionar várias vezes que o privilégio estava presente em outras partes da Europa, não nos indica onde ou como começou. Fermín de los Reyes Goméz no artigo “Con privilegio: la exclusiva de edición del libro antigo español”, publicado na Revista General de Información y Documentación (2011), informa que os primeiros privilégios foram conferidos na Itália, em 1469, a pedido de Antonio Caccia em Milão e de Johannes de Spira, primeiro impressor de Veneza. Deixa evidente que era um mecanismo que favorecia muitos tipógrafos e livreiros que a partir de então buscaram a proteção para seus negócios. De certo que não era nada ligado à proteção da propriedade intelectual, mas ao direito e aos regulamentos para exploração do comércio de livros. E assim como Darnton, verificou que o privilégio também englobava as mudanças de formatos do livro, uso de tipos diferentes e etc.

O segundo capítulo avança para o século XIX sob o título “Índia Britânica: liberalismo e imperialismo” e contêm igualmente oito partes, sendo a subseção “Vigilância” o ponto central do período tratado pelo autor. Ele relata o caso de James Long, um missionário anglo-irlandês em Bengala, que tentou “examinar tudo impresso em bengali entre abril de 1857 e abril de 1858”, a fim de ajudar o serviço civil indiano recém-criado a acompanhar o que estava sendo escrito, num esforço para “entender os indianos, não apenas para derrotá-los”, por isso “tudo foi pesquisado, mapeado, classificado e catalogado, incluindo seres humanos […]”. O governo britânico acreditava que para “manter seu império, eles precisavam de informação, que provinha, antes de tudo, do material impresso”. Surpreendidos pela Revolta dos Cipaios, em 1857, o Estado queria se antecipar aos revoltosos, ou seja, conhecer sua filosofia, seus pensamentos – uma justificava usada atualmente para controlar a vida de milhares de cidadãos. Para isso, Long colabora fazendo um levantamento de tudo o que foi impresso em bengalês entre abril de 1857 e abril de 1858, inspecionando as gráficas de Calcutá e comprando todos os livros publicados em 1857.

Darnton apresenta o processo de calúnia que Long sofreu após publicar um livro que tratava de um melodrama sobre a opressão dos trabalhadores nativos por plantadores britânicos. O historiador conclui com a pergunta: “o que se passava nos tribunais do Raj?”. Censura, vigilância e controle. Os britânicos mantinham o poder e exerceram a repressão com mão pesada.

Ao encetar o olhar para este exemplo, Darnton nos induz a pensar e questionar as práticas “justificadas” de controle e vigilância que vivemos hodiernamente no ciberespaço. Conhecer os hábitos, os costumes, a língua são algumas estratégias usadas há séculos como forma de dominação e exercício de poder.

O capítulo três, que adentra o século XX sob o título “Alemanha oriental comunista: planejamento e perseguição”, composto por também oito seções – equidade que mostra mais uma faceta do rigor metodológico do autor. Nesta parte, Darnton lança mão de fontes arquivísticas e de entrevistas com dois censores feitas nos anos de 1990, período em que esteve na Europa pesquisando.

Para compreender a forma de trabalho e o seu sistema, desta vez o historiador utiliza o relato de quem estava por dentro da máquina de censura. Como resultado, é proposto um diagrama – que pode ser adaptado para pesquisas afins – que mostra como funcionou o mecanismo de controle da literatura na RDA.

Ao longo da entrevista são detalhados os mecanismos de duas formas bem antigas de censura: os expurgos, quando parte do conteúdo era apagado ou rasurado e a prévia, quando a manipulação se dava no manuscrito. Tudo isto, baseado em um documento por escrito, o “Plano”, que funcionava como forma de guia sobre assuntos que poderiam ser publicados, mas também de controle sobre determinadas palavras. O entrelaçamento com práticas de censura de outras épocas e lugares é claramente ilustrado com o envolvimento de autores, editores, burocratas, e também leitores. Queria-se um a Alemanha Oriental livre da influência nefasta – assim reputada – do Ocidente, e para isto a literatura foi francamente manipulada.

Não resta dúvida tratar-se de uma obra que se sugere entusiasticamente pelo assunto – que nos interessa sempre – e por mais uma aula de metodologia utilizada por Darnton. O livro inova com sua desafiante análise comparativa envolvendo três séculos – mesmo com as dificuldades e riscos inerentes.

Nota

1. TV Cultura.

Fabiano Cataldo de Azevedo – Bibliotecário, professor assistente da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO. Dourando em História Política do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. E-mail: [email protected]


DARNTON, Robert. Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: AZEVEDO, Fabiano Cataldo de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.16, p. 242-246, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]