História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; AQUIAR (HU)

RODRIGUES, A.F.; AGUIAR, J.O. (org.). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2016. 490 p. (História Diversa, n. 6). Resenha de CABREIRA, Maria Alda Barbosa. Religiões e religiosidades em debate. História Unisinos 22(1):149-152, Janeiro/Abril 2018.

Estudos relacionados a religiões e religiosidades vêm recebendo cada vez mais interessantes contribuições que ajudam a alargar o debate e o reconhecimento de formas diversas de expressar o religioso, notadamente, na sociedade contemporânea.

A problemática dos fenômenos religiosos, e mesmo das maneiras científicas e acadêmicas de como o universo do sagrado, as religiões e as religiosidades foram interpretadas, é resultante de processos históricos e sociais ligados a relações de privilégios e poder.

Como um conjunto de práticas e doutrinas organizadas em uma cosmologia bem definida, a religião e seu estudo permitem entender o universo cotidiano, as relações sociais, as instituições políticas, as ideias e as formas de expressão religiosa que compõem determinados regimes do crer, como práticas, espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado (Arnal, 2000).

Com análise detida destes nuances, a coletânea História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, coordenada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar, faz-se presente no debate que analisa as religiões e seu desenvolvimento e discussões históricas ocorridas em diferentes épocas, nos mais diversos povos e nas suas muitas manifestações.

Reunindo 24 capítulos, o livro apresenta quatro divisões temáticas que convidam o leitor a refletir sobre as diversidades humanas na abordagem dos espaços e discursos dedicados ao religioso, em perspectiva ligada principalmente à história cultural. Aliás, do conjunto, 17 textos dedicam-se ao multifacetado universo religioso brasileiro, dominado pela matriz do cristianismo. Observando- -se os dados do Censo demográfico 2010 sobre religião, divulgados pelo IBGE em 29 de junho de 2012, confirmam-se tendências de transformação do campo religioso brasileiro, aceleradas a partir da década de 1980, quando se iniciou o recrudescimento da queda numérica dos fiéis seguidores da fé católica frente à vertiginosa expansão dos pentecostais e das pessoas que se declaravam sem religião. Os números interessam: entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais; os evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% da população, acréscimo de 15,6 pontos percentuais em 30 anos, representando 42,3 milhões de pessoas, sendo a segunda religião com o maior número de adeptos no país. Apesar destes números, o catolicismo ainda se faz predominante, com mais de 123 milhões de pessoas, classificando o Brasil como o maior país católico do mundo em números nominais. No período, o conjunto das outras religiões, incluindo espíritas e cultos afro-brasileiros, também dobrou de tamanho, passando de 2,5% para 5% (Mariano, 2013, p. 119).

De 1980 para cá, a partir dos dados informados, prosperou a diversificação da pertença religiosa e da religiosidade no Brasil, mas se manteve “praticamente intocado seu caráter esmagadoramente cristão” (Mariano, 2013, p. 119).2 As raízes de nossa formação cristã, assim como a análise de aspectos da história religiosa brasileira, vislumbrada naqueles números e nas práticas sagradas católicas, espíritas e protestantes, seguem como eixo articulador dos capítulos relacionados ao universo brasileiro contemporâneo presentes na coletânea.

As manifestações cristãs majoritárias aparecem desde o texto de abertura do livro. Dividida em quatro partes, a obra em sua primeira seção procura reunir reflexões dedicadas aos temas da Antiguidade Clássica ou da recepção de suas produções sociais e históricas em nosso tempo. Sob o título de “Identidades, religiosidades e Antiguidade clássica”, tem-se o capítulo de Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (Universidade Católica de Pernambuco e Faculdade Católica de Fortaleza) sobre as expectativas messiânicas no tempo de Jesus Cristo e a sua relação com a identidade cristã, construída a partir de então.

A seguir, Nelson de Paiva Bondioli (professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Espírito Santo) e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) analisam, com base nos escritos da época, a figura dos Príncipes Júlio-Claudianos (governantes Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) e sua posição dentro da hierarquia política e religiosa romana durante o século I da Era Comum para falarem de tradição e de transgressão na religião romana.

Na sequência, Fernando Mattiolli Vieira (Universidade de Pernambuco) apresenta-nos a interessante história da descoberta dos manuscritos de Qumran e as suas condições de produção e recepção. Os documentos estudados por ele foram encontrados em 1947, entre o deserto da Judeia e a orla do mar Morto e próximo às ruínas de um sítio arqueológico conhecido por khirbet Qumran, e representam a maior conquista da arqueologia do século XX, pois neles foram encontrados 930 manuscritos, sendo que deste total 210 documentos reproduzem livros da Bíblia hebraica (chamada pelos cristãos de Antigo Testamento): Salmos, Deuteronômio e o Gênesis. Essa história e os desdobramentos destes achados para o conhecimento e as comprovações empíricas de fatos narrados nos livros sagrados cristãos estão relatados ali por ele.

O último texto desta parte pertence a Haroldo Dutra Dias (juiz de Direito e palestrante espírita) sobre o surgimento da crítica histórica nos estudos sobre a vida de Jesus Cristo e o constructo de sua figura profético- -apocalíptica, assim como sobre a origem do cristianismo.

A segunda parte do livro, Religiões, recepções e impérios ultramarinos, congrega estudos que marcam a presença do catolicismo em terras brasileiras e africanas, notadamente durante o período colonial. Nesta seção, estão presentes as pesquisas de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) sobre as religiosidades e as sociabilidades nas relações entre o clero e a sociedade nas Minas Gerais do século XVIII, mostradas a partir das manifestações religiosas católicas instaladas na região desde a chegada dos primeiros buscadores de ouro. Ainda no cenário das Minas Gerais setecentistas, Jeaneth Xavier de Araújo Dias (Universidade do Estado de Minas Gerais) brinda-nos com as histórias das festas e das celebrações religiosas para analisar os ritos, os ornamentos e as decorações feitas para a realização das procissões celebradas durante o Triunfo Eucarístico em Vila Rica no ano de 1733, quando se comemorou a condução triunfal da imagem do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

Já Lúcia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) narra as estratégias de conversão e os processos de negociação entre bagandas e missionários anglicanos ingleses no reino de Uganda no século XIX.

Na continuidade, Joaci Pereira Furtado (Universidade Federal Fluminense) discute a relação entre catolicismo e paganismo na poesia árcade que vicejou durante a segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX entre Portugal e a América portuguesa, destacando a presença de elementos referenciais clássicos remetentes à mitologia e aos deuses gregos e latinos.

Por sua vez, Gustavo Henrique Tuna (doutor em História pela Universidade de São Paulo) discute o gradiente da fé católica (o sagrado e a descristianização) encontrado na biblioteca do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, considerada uma das mais relevantes do período colonial, com 1.576 volumes. Ainda no palco das letras coloniais, Renato da Silva Dias (Universidade Estadual de Montes Claros), em instigante texto, analisa a dimensão do político na esfera discursiva religiosa empreendida pelo clérigo secular Manoel Ribeiro Rocha para justificar o tráfico e a escravização dos africanos no Brasil na obra Ethíope resgatado, de 1758. Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa) apresenta os hábitos alimentares e a sua relação com o discurso religioso dos primeiros jesuítas quinhentistas que empreenderam missões catequéticas na América portuguesa.

Passando da literatura para a arquitetura de taipa, Paula Ferreira Vermeersch (Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente) examina o patrimônio histórico e a arte sacra encontrada no interior da Igreja Matriz setecentista barroca de Sant’Ana Mestra do Sacramento, localizada na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.

Nas duas partes seguintes, os capítulos centram-se em análises do diálogo e da recepção de textos antigos e modernos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no universo religioso contemporâneo. A terceira seção, “Universo católico e problemas de história contemporânea”, inicia-se com o interessante texto de Patrícia Teixeira Santos (Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos) sobre as missões do Papa Paulo VI no contexto do catolicismo social, a partir de experiências no Brasil e em Moçambique. A militância católica se faz presente no capítulo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) ao analisar o pensamento e a trajetória intelectual de Jonathas Serrano, um importante batalhador pelos ideais cristãos durante a República Velha no Brasil.

No decurso da oposição ao Estado autoritário brasileiro (1964-1985), a partir da década de 1960, um de seus mais destacados opositores foi a Igreja Católica. Partindo desse contexto, Jorge Miklos (Universidade Paulista) e Adriano Gonçalves Laranjeira (Universidade Paulista) analisam a atuação da imprensa católica paulistana na defesa dos direitos humanos, por meio do resgate da história do semanário O São Paulo, jornal oficial da Arquidiocese de São Paulo, criado em 1956 com o objetivo de difundir os valores católicos entre os fiéis. Porém, a partir de 1970, quando a Arquidiocese de São Paulo é liderada por dom Paulo Evaristo Arns, o jornal sofre uma mudança na sua linha editorial e passa a atuar como crítico ao Estado autoritário.

Já Francisco Cláudio Alves Marques (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) e Esequiel Gomes da Silva (Universidade Federal do Pará, campus de Marajó- Breves), com habilidade e brilhantismo, brindam-nos com interessante análise, a partir de exemplos cantados no repente e estampados nos folhetos de cordel, das condições históricas e sociais que contribuíram para a representação de negros, adeptos de religiões de ascendência africana e protestantes associada à ideia de demônio, bem como das relações sociais que se estabeleceram no sertão nordestino marcado por práticas e crenças medievais, sobretudo nas primeiras décadas do século XX.

Ainda pelo viés da cultura, Elder Maia Alves (Universidade Federal de Alagoas) e Greciene Lopes dos Santos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Alagoas) elegem como foco de análise de seu texto as interfaces entre a política do patrimônio imaterial, as festas e celebrações religiosas e o turismo religioso no Brasil, apresentando-nos como exemplo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores celebrações religiosas do mundo, que ocorre todos os anos no segundo domingo do mês de outubro na cidade de Belém, capital do Estado do Pará.

Por sua vez, Gisella de Amorim Serrano (pós- -doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais) analisa as edições de cunho religioso, para se compreender a correlação entre História e identidade nacional, na importante coleção Reconquista do Brasil, editada numa parceria da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Editora da Universidade de São Paulo, de 1976 a 1984, responsáveis pela impressão de 306 volumes.

Na última parte, “Protestantismo, espiritismo e religiões orientais no presente”, discutem-se assuntos relacionados ao evangelismo, protestantismo e atuação das igrejas reformadas no Brasil. Inicia-se com o capítulo de Iranilson Buriti de Oliveira (Universidade Federal de Campina Grande) e Roseane Alves Britto (mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande) comentando as metáforas de cura no discurso neopentecostal brasileiro. Na sequência, João Marcos Leitão Santos (Universidade Federal de Campina Grande) discorre sobre a crise conceitual sobre o protestantismo na historiografia brasileira.

A história recente do movimento espírita brasileiro aparece analisada nos dois artigos seguintes. O primeiro, de Alexandre Caroli Rocha (doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas), escrutina as repercussões geradas pelo chamado Caso Humberto de Campos, que mostra como um problema que envolvia uma disputa por direitos autorais estava além dos domínios jurídicos. E, depois, José Otávio Aguiar (Universidade Federal de Campina Grande) historia a trajetória do SER, “organização sociorreligiosa espírita recente, ecumênica e dedicada à tradição dos evangelhos em diálogo com a obra psicografada de exegese de Francisco Cândido Xavier” atribuída a diversos espíritos, mas em especial a Emmanuel (p. 10).

Os dois últimos autores dedicam seus escritos aos assuntos relacionados a religiões do Oriente Distante. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Universidade Federal da Paraíba) e Gustavo Cesar Ojeda Baez (doutor em História pela Universidade Federal de Campina Grande) abordam em seu capítulo a perspectiva hermenêutica que o historiador das religiões Mircea Eliade desenvolve sobre a tradição do Yoga na Índia enquanto prática de religiosidade. Por último, Deyve Redyson (Universidade Federal da Paraíba) expõe as leituras meditativas do texto budista Sutra do coração e sua relação entre sabedoria e realidade.

Apesar de em seu conjunto os textos apresentarem diversidade temática, eles ilustram no todo a diversificação do campo religioso como fonte de pesquisa e de crença do universo sagrado e religioso multifacetado que se evidencia no dia a dia das pessoas. Tanto assim que, ao surgir da necessidade dos indivíduos se ligarem com o divino, a religião ou a pluralidade religiosa resultante das diversas maneiras de entender e perceber o mundo – e por que também não o homem a si mesmo – se faz presente como eixo articulador da obra, independentemente da época retratada ou das práticas e questões religiosas analisadas.

Os dados religiosos explicitados nos números do Censo 2010 permitem-nos traçar o rico e diverso panorama das “religiões e religiosidade” no Brasil contemporâneo. Guiando-se por essa perspectiva, mas sem esta se fazer explicitamente presente no corpo do livro, conseguimos observar nos capítulos interessantes interpretações da história e dos pressupostos religiosos do catolicismo e das igrejas protestantes – com suas múltiplas diversidades –, do universo espírita, das religiões afro-brasileiras, do sincretismo urdido entre elementos cristãos, afro-brasileiros e indígenas representados na cultura popular, do judaísmo, das religiões orientais e do budismo. Infelizmente faltou o islamismo! No cenário atual, ao propor “novas abordagens e debates sobre religiões”, a obra, plural em todo o seu sentido, revela o quanto assuntos como práticas religiosas e religiosidades desde a “Antiguidade aos recortes contemporâneos” não são temas pacíficos, já que em muitos trechos se evidenciam competições entre religiões, conceituações e personagens. Isto, aliás, permite-nos hoje visualizar a exacerbada quantidade de conflitos, cenas de intolerância e preconceito que se vivenciam na sociedade não só brasileira, mas mundial. No fundo, o livro nos faz refletir sobre a finalidade última das práticas religiosas: propor e transmitir a paz.

Notas

2 Os números do Censo mostram que as religiões no Brasil em 2010 dividiam-se em: Católica Apostólica Romana (123.280.172 = 64,63%), Evangélicas (42.275.440 = 22,16%), Sem religião (15.335.510 = 8,04%), Espírita (3.848.876 = 2,02%), Outras religiosidades cristãs (1.461.495 = 0,77%), Testemunhas de Jeová (1.393.208 = 0,73%), Não determinada e múltiplo pertencimento (643.598 = 0,34%), Umbanda e Candomblé (588.797 = 0,31%), Católica Apostólica Brasileira (560.781 = 0,29%), Budismo (243.966 = 0,13%), Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (226.509 = 0,12%), Não sabe (196.099 = 0,10%), Novas religiões orientais (155.951 = 0,08%), Católica Ortodoxa (131.571 = 0,07%), Judaísmo (107.329 = 0,06%), Tradições esotéricas (74.013 = 0,04%), Tradições indígenas (63.082 = 0,03%), Sem declaração (45.839 = 0,02%), Islamismo (35.167 = 0,02%), Outras religiosidades (11.306 = 0,01%), Hinduísmo (5.675 = 0,00%) (Somain, 2012).

Referências

ARNAL, W.E. 2000. Definition. In: W. BRAUN; R.T. McCUTCHEON (ed.), Guide to the study of religion. London, Continuum, p. 21-34.

MARIANO, R. 2013. Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo 2010. Debates do NER, Porto Alegre, 14(24):119-137. Disponível em: http://oldsociologia.fflch.usp.br/sites/oldsociologia.fflch.usp.br/files/Campo%20religioso%20no%20Censo%202010.pdf Acesso em: 15/12/2017.

SOMAIN, R. 2012. Religiões no Brasil em 2010. Confins: Revista Franco- Brasileira de Geografia, n. 15. Disponível em: http://confins. revues.org/7785. Acesso em: 16/10/2017.

Maria Alda Barbosa Cabreira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Professora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), unidade de Garça. Av. Presidente Vargas, 2331, 17400-000, Garça, SP, Brasil. E-mail: [email protected].