Para a Glória de Deus, e do Rei? Política, religião e escravidão nas Minas do Ouro (1693-1745) | Renato da Silva Dias

D. Joao VI Rei de Portugal Detalhe de capa de Para a Gloria de Deus e do Rei Politica religiao e escravidao nas Minas do Ouro 1693 1745
D. João VI, Rei de Portugal | Detalhe de capa de Para a Glória de Deus, e do Rei? Política, religião e escravidão nas Minas do Ouro (1693-1745)

A obra em questão vem a lume dezesseis anos após a sua apresentação como tese de doutoramento em História, defendida pelo autor em 2004, na UFMG, sob orientação da professora Carla Anastasia. Nesse intervalo muita coisa se escreveu a respeito da história mineira no século XVIII.2 O trabalho de Renato da Silva Dias, Professor de História na Universidade Estadual de Montes Claros, não se preocupou em antecipar modismos e talvez por isso, recolocado no contexto atual, tenha preservado sua originalidade. Tributário da riquíssima historiografia que, nas décadas de 1980 e 1990, reescreveu a história de Minas Gerais no período colonial, Para a Glória de Deus e do Rei? explorou, em grande parte, as peculiaridades que tornaram a experiência mineradora um evento histórico singular no âmbito da América Portuguesa.

O tema investigado foi o das dimensões políticas do catolicismo luso penosamente imposto aos súditos de Minas. Em especial, Dias preocupou-se em avaliar de que forma a religião católica foi apropriada e reelaborada por africanos detentores de enormes diversidades étnicas, culturais, religiosas e políticas. Aprisionados na terra natal, traficados para a América Portuguesa e revendidos a senhores situados nos arraiais mineradores e em seus respectivos campos e currais, esses trabalhadores sofreram as consequências do escravismo colonial. Estilhaçados seus antigos vínculos e pertencimentos sociais, eles foram obrigados a adotar uma Leia Mais

A vida e o mundo: meio ambiente patrimônio e museus | Paulo H. Martinez

MARTINEZ Paulo Henrique1
 MARTINEZ P A vida e o mundo1Estela Okabayaski Fuzii, Angelita Marques Visalli, Paulo HenriqueMartinez e Chico Guariba | Foto: Agência UEL |

Estabelecer conexões concretas entre as potencialidades de ação educativa dos patrimônios e museus com o meio ambiente foi o desafio do historiador Paulo Henrique Martinez em seu mais recente trabalho A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. Publicado em 2020 pela editora Humanitas, o livro reúne textos de diferentes naturezas escritos pelo autor em sua extensa trajetória de pesquisa e ensino voltada a cooperação técnica, cuja atuação permeou universidades, Câmara dos Deputados, conselhos municipais, organizações não-governamentais, entre muitos outros.

A reunião das produções entre os anos de 2003 e 2017, demonstra a atuação deste historiador diante os acontecimentos que atravessaram as áreas de meio ambiente, patrimônio e museus.

A variedade do material, entre capítulos de livros, artigos de revista científica, resenhas de obras publicadas, artigos em revista universitária e jornais locais, evidencia um trabalho atento às transformações do presente e da vida cotidiana, além da preocupação em ampliar o acesso aos conhecimentos produzidos na universidade e nas instituições culturais ao público geral.

Nesses moldes, a primeira parte do livro denominada Museus e mudança social procura delinear um diagnóstico da situação dos museus no Brasil, no momento da escrita dos textos. Partindo de questões do presente e da esfera local, Martinez articula os acontecimentos com documentos, instituições e agendas nacionais e internacionais tal como a Política Nacional de Museus (2003), o Conselho Internacional de Museus (1946) e a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS, 2005-2014).

A sensível tarefa de repensar o processo de desenvolvimento, sobretudo mediante as significativas transformações no meio ambiente, analisando e promovendo a distribuição de seus benefícios ao conjunto da sociedade global, exige tratar as especificidades culturais, de gênero, classe social e raça. O desenvolvimento sustentável, conceito orientador no século XXI, contempla com atenção este último aspecto do desenvolvimento humano, emergindo as demandas de formação de cidadãos, geração de emprego, combate à pobreza, igualdade de gênero e acesso à educação e saúde de qualidade.

Qual o potencial dos museus na educação para o desenvolvimento sustentável? As diretrizes estabelecidas em documentos internacionais tal como a Agenda 21, elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, documento gerador da já mencionada DEDS e, atualmente, da Agenda 2030 com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015-2030) encontram um fértil terreno nos patrimônios ambiental e cultural presente nos museus.

A cultura, protagonista nas atividades museológicas, é uma das bases do desenvolvimento sustentável pois concentra os mecanismos e finalidades do desenvolvimento.

Vida humana e não humana se encontram em um mundo diversificado, identificado por valores, crenças, saberes, técnicas, instrumentos de produção e consumo que se estabelecem em meio as harmonias e conflitos entre estes dois universos profundamente conectados. A reordenação das atividades humanas e o meio ambiente, o “pensar ecológico” é, para Martinez, parte do trabalho de profissionais das ciências sociais, em geral, e dos historiadores, em particular, que atuam em instituições museológicas.

Atento às transformações do tempo presente, o caráter de experimentação proporcionado pelos museus em exposições e acervos apresentam um novo plano de realidade com o aprimoramento dos usos dos recursos naturais e do capital humano. Parece ser esta a participação institucional de parques e museus no desenvolvimento sustentável, a preservação, valorização, pesquisa e comunicação da cultura material e imaterial e dos patrimônios ambientais. Articulados, garantem a cidadania, inclusão social e vida digna a toda população.

Estas características ganham maior expressão quando vinculados à cultura indígena no Brasil.

A Lei n°11.645 de 2008 institucionaliza a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nos currículos escolares da educação básica e superior. O patrimônio indígena, fundamental para a constituição e conhecimento da história do Brasil, encontra debates fecundos e atuais na segunda parte do livro Patrimônio indígena no Brasil. A localização dos elementos indígenas na sociedade brasileira constitui um dos primeiros passos para o conhecimento da história nacional.

A rivalidade dos discursos hoje predominantes, como aquele vivido pela Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, nos auspícios da Copa do Mundo, corresponde aos conflitos de narrativas de dominação enraizadas no cotidiano brasileiro. As diferentes simbologias presentes nessa experiência narrada na obra, o futebol, a hostilidade com os indígenas, o desenvolvimento econômico no qual os grupos tradicionais são vistos como obstáculos naturais e o autoritarismo da política nacional, são explicativas para compreensão da realidade O sincretismo no uso da palavra “Maracanã” e a luta pela permanência da aldeia indígena naquela região do Rio de Janeiro complementa aquilo que já havia observado o historiador Caio Prado Jr sobre o passado vivo no cotidiano dos brasileiros. Os aspectos coloniais dessa experiência no Brasil, faz aquele “lugar de memória” converter o passado sua forma de resistência e respeito ao compreender os processos no qual deram origem a esta sociedade tão diversificada.

Em todas as situações discutidas, seja nos museus municipais, exposições itinerantes, centros culturais ou universidades, Martinez conduz a educação como inerente às transformações para o século XXI. Em consonância com documentos legislativos e acordos institucionais como as citadas Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI) e a Convenção sobre Diversidade Biológica, a afirmação e o reconhecimento da cultura e dos direitos dos povos indígenas, a inclusão na vida social, a garantia de participação nos planos de gestão é diretamente dependente de um processo educativo que valoriza a cultura, a natureza, as mulheres, a cooperação e a democracia.

O Parque do Xingu e o Museu do Índio no Rio de Janeiro são alguns exemplos concretos desses anseios que relembram a trajetória violenta da colonização e preservam a cultura e a memória dos grupos indígenas. Para além destas instituições, as universidades também desempenham função importante com o desenvolvimento de disciplinas que abordem os temas, no gerenciamento de museus universitários, na formação de profissionais qualificados e na inserção destes grupos no ambiente universitário.

Apresentando a “Universidade da Selva” como ficou proclamada a Universidade Federal do Mato Grosso através de uma resenha da obra Museu Rondon: Antropologia e indigenismo na Universidade da Selva da antropóloga Maria Fátima Roberto Machado, Martinez testemunha os aspectos institucionais da identificação e preservação da cultura material e imaterial na universidade. Estas instituições acompanham os processos de formação intelectual e produção de conhecimentos em conjunto com os museus, embora os últimos tenham sua data de nascimento anterior às primeiras, no Brasil. Este fato, no entanto, reforça as complementaridades entre ambas e os benefícios do trabalho conjunto, adicionando, ainda, a escola de educação básica.

As perspectivas de trabalho nos museus para a abertura de temas relacionados ao meio ambiente, principalmente para a constituição da história dos municípios, destacam o valor do patrimônio indígena. Os processos de formação nacional em seus aspectos econômicos, sociais e políticos esbarram com a trajetória desses povos cujos reflexos ainda permeiam no século XXI. A PGNATI foi um material analisado para demarcar os complexos desafios de preservação e recuperação dos recursos naturais e o reconhecimento da propriedade intelectual e do patrimônio genético. A educação ambiental e indigenista é definida como a principal estratégia destes objetivos, beneficiando não apenas a população indígena, mas todos os cidadãos.

A partir dos exemplos observados, o volume encerra com um caráter pedagógico de demonstração prática das potencialidades da educação patrimonial e ambiental na formação da cidadania.

Uma organização documental para auxiliar historiadores, em especial aqueles dedicados à História Ambiental, aos profissionais da área de museus e professores de educação básica e superior, que permite visualizar as narrativas presentes nos objetos e paisagens como fontes de observação e pesquisa histórica.

O significado cultural da alta produção de carrancas, marcante na paisagem do São Francisco, os processos de utilização deste rio para transporte e comércio, a formação da cidade e da cultura material, dos valores, saberes e comportamentos da população da região são demonstrativos da promoção do patrimônio na construção do conhecimento histórico. Os objetos cotidianos, como o automóvel e os elementos da cultura afro-brasileira também são destacados como mecanismos para compreender a organização da vida social, os processos de industrialização e seus efeitos, principalmente nos centros urbanos.

A pandemia de COVID-19 colocou em evidência as consequências do modelo industrial globalizado na vida humana e não humana. O surgimento de novas doenças, a perda de ecossistemas e da biodiversidade desloca a atenção para fora das cidades e marca os estreitos vínculos entre seres humanos e natureza. Esta experiência demonstra os sintomas de um planeta cujos padrões da vida atual não consegue sustentar e no qual deve-se estar atento. Como observou Donald Worster, todas as epidemias ao longo da história tiveram origem onde o equilíbrio com a natureza estava abalado.

Em sua argumentação sobre o patrimônio indígena, Martinez reforça o utilitarismo como obstáculo para a proteção desses povos e do meio ambiente. Percebe-se que esta perspectiva atravessa diferentes dimensões da vida humana, atribuindo valores distintos, muitas vezes alimentados pelo objetivo do crescimento econômico. Assim, os recursos naturais são destruídos, os objetos musealizados perdem a importância em sua função prática e se fortalece a narrativa dos museus “viverem do passado”. São para estes critérios que a pandemia exige observação, pois escancarou as desigualdades sociais e a crise ambiental da atualidade.

Ao mesmo tempo o isolamento social, para impedir a propagação da doença, fortaleceu os meios de comunicação e incentivou as instituições culturais a se renovarem para acompanhar as novas demandas. As redes sociais se tornaram ferramentas apropriadas pelos museus. A 14° dos Primavera dos Museus, em 2020, trouxe como tema Mundo Digital: museus em transformação e convidou os profissionais a pensar a inserção destas instituições nos novos mecanismos de comunicação.

Martinez nos mostra que as possibilidades de atuação são muitas e trazem consigo resultados positivos à sociedade.

Ao demonstrar os frutíferos e os frustrantes trabalhos que presenciou ao longo de sua carreira, transmite um apelo para a expansão das instituições que já existem e para a valorização e o investimento daquelas que ainda não tem usufruído de seu potencial. Demonstra com clareza os benefícios da cooperação nas dimensões individuais, institucionais e sociais do trabalho. A leitura da obra é direcionada aos profissionais da educação e museus, em etapas de formação inicial ou continuada, para vislumbrarem os contextos no qual fazem parte, integrar e valorizar os conhecimentos locais e aplicar essas ações em todas as oportunidades que vierem à frente.

Os desafios emergentes já visíveis neste século e aqueles que ainda estão por vir convergem na ação educativa como ferramenta fundamental. O trabalho educativo dos museus na promoção da cidadania e da preservação do patrimônio cultural e ambiental convergem com as diretrizes de ação internacional, fortalecendo, ainda, a cooperação para o desenvolvimento sustentável.

Referências

MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020.

NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.

WORSTER, Donald. Otra primavera silenciosa. Historia Ambiental Latioamericana y Caribeña, 10, ed. sup. 1, p. 128-138, 2020. Disponível em: https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/ issue/view/40 Acesso em: 26 fev. 2021.

Cíntia Verza Amarante – Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8845494592325213. E-mail: [email protected].


MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020. Resenha de: AMARANTE, Cíntia Verza. Educação Ambiental em Museus. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.189-193, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].

Reinventando a autonomia: Liberdade – propriedade – autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo 1535-1822 | Vania M. L. Moreira

A recopilação Legislação indigenista no século XIX, publicada por Manuela Carneiro da Cunha em 1992, ofereceu um importante quadro referencial de onde partir para estudar a problemática indígena durante o século de consolidação da independência política brasileira. A partir de então, os comentários da autora abriram duas importantes linhas de frente, e de crítica, para os estudos indigenistas relativos ao período. A primeira delas – a afirmação de que a política indigenista passou, durante o século XIX, de uma política de mão de obra para uma política de terras – vem sendo contestada por inúmeros autores que destacam a dimensão do trabalho compulsório e o apagamento da identidade indígena durante o período em questão. A segunda, por sua vez, refere-se ao escopo temporal, anotando que a revogação do Diretório pombalino em 1798 abriu um período de vazio legislativo durante o qual o Diretório teria sido aplicado, de maneira oficiosa, até a aprovação do Regulamento das Missões em 1845.

Sem gastar tempo refutando essas afirmações, Vânia Moreira aborda em Reinventado a Autonomia (2019) todos os temas centrais das observações de Carneiro da Cunha: a identidade indígena, as questões de terras e mão de obra, as particularidades do período pombalino e as mudanças ocorridas durante o século XIX, passando, ademais, por questões de gênero e família e conectando-as de forma convincente com as demais temáticas tratadas. Ainda que o foco geográfico seja o território específico do Espírito Santo, a autora trata de vincular as suas conclusões com as de outros autores que estudaram diferentes regiões brasileiras, oferecendo uma visão mais ampla do contexto no qual se inserem.

Apesar de enunciar uma temporalidade muito mais ampla (1535-1822), a maior riqueza documental do trabalho encontra-se precisamente no estudo do período pombalino em diante (capítulos 3 a 6), foco de pesquisa da autora durante os últimos anos. Quem está familiarizado com o trabalho de Vânia Moreira pode experimentar uma sensação de déjà vu ao ler o livro. De fato, a obra recolhe o conteúdo tratado nos seus principais artigos sobre os indígenas no território do atual Espírito Santo, organizados de forma mais temática que cronológica, voltando e avançando as datas para contextualizar devidamente cada um dos temas tratados. Porém, não se trata de mera coletânea de artigos publicados. A autora estabelece um diálogo entre seus próprios textos, devidamente referenciados para aqueles que queiram aprofundar em questões específicas, o que acaba convertendo o livro numa espécie de quadro geral de parte da sua produção acadêmica dos últimos quinze anos. Acrescente-se, finalmente, o cuidado em anexar fotografias, mapas e gráficos ao longo da obra, elementos normalmente mais limitados no espaço dos artigos científicos, e que contribuem para reforçar esse caráter estrutural da obra.

No primeiro capítulo, intitulado “Tupis, tapuias e índios”, a autora se vale de uma extensa bibliografia para abordar os caracteres da população que habitava a costa leste do continente antes da chegada dos europeus. Os vestígios das suas etnias, troncos linguísticos, organizações políticas, cultura material e demografia são abordados de forma probabilista, valendo-se de forma convincente dos trabalhos sobre as fontes disponíveis a respeito. No mesmo capítulo, a autora também reconstrói os impactos dos primeiros conflitos com os europeus, ressaltando que a escravização dos prisioneiros de guerra afetou significativamente os valores que presidiam a guerra ameríndia, dando lugar a uma perspectiva promissora para os colonos da região no final do século XVI. Não obstante, a autora enumera uma série de razões pelas quais em meados do século seguinte a escravidão de africanos teria substituído, na capitania, a aposta pelos “negros da terra”. Apesar da perda de protagonismo econômico da região a partir desse momento, a autora anota a sua importância geopolítica, dado que se configurava como fronteira tanto para o mar como para o interior do continente, especialmente a partir da descoberta do ouro na região das Minas. Essa importância se traduziu em diferentes tensões entre indígenas, moradores e jesuítas, relatadas com detalhe por Moreira. Finalmente, o capítulo encerra adentrando-se em questões jurídicas. A autora define a posição jurídica indígena, nomeadamente dos aldeados, como status específico no contexto do Antigo Regime, status que se traduzia na obrigação de prestar serviços, tendo como principal contraprestação a garantia de permanência em terras coletivas (p. 89). Para falar do status no Antigo Regime, não obstante, a autora referencia o conhecido livro de António Manuel Hespanha (2010) dedicado ao estatuto jurídico de coletivos atípicos no Antigo Regime. Nesse espaço, sente-se falta de uma citação direta ao trabalho de Bartolomé Clavero (autor citado, não obstante, ao falar da estrutura de poder do Antigo Regime ibérico, nas páginas 275-276), pois, pertencendo ambos a uma mesma corrente historiográfica, o trabalho do autor espanhol é muito mais incisivo que o de Hespanha no relativo à posição específica atribuída à humanidade indígena na cultura jurídica do Antigo Regime (CLAVERO, 1994, 11-19).

O capítulo seguinte trata sobre os processos históricos que pouco a pouco foram desembocando na consolidação territorial de certos grupos indígenas e sua conversão em aldeamentos. A autora repassa as guerras e migrações mais significativas, assim como dinâmicas particulares que surgiram nesse processo (por exemplo, o curioso fato de que grandes guerreiros aldeados recebessem nomes portugueses idênticos aos dos principais líderes portugueses da terra, fato que exige portanto uma especial atenção dos historiadores na análise das fontes). À continuação, são descritos os principais aldeamentos da capitania, as etnias que os compunham e a importância do trabalho jesuítico na fixação desses grupos ao território. Moreira define três tipos de aldeias administradas pelos jesuítas: (1) as aldeias de serviço do Colégio, (2) as aldeias do serviço Real e (3) as aldeias de repartição (130-131). Por outro lado, destaca-se a importância paramilitar dos indígenas aldeados, que protegiam o território dos ataques de outros povos guerreiros (europeus ou americanos). Os inacianos são descritos como destacados mediadores entre a Coroa e os povos indígenas, encarregando-se da evangelização como fase sucessiva e necessária da conquista mediante a guerra. Por outro lado, a autora destaca o trabalho dos religiosos em aprender as línguas locais e interpretar a cultura dos indígenas, dando a entender que, nesse processo de contato, “escolhiam determinados códigos em detrimento de outros e procuravam neutralizar o processo de conquista e subordinação” (113). Para a autora, isso caracterizaria a presença de uma verdadeira relação intercultural entre os indígenas e os inacianos das aldeias do Espírito Santo.

Do terceiro capítulo em diante, a autora entra definitivamente na cronologia pós-Pombal, tratando as diversas vicissitudes inauguradas com a legislação indigenista aprovada a partir de 1750. O capítulo terceiro trata de uma das principais consequências políticas do Diretório dos Índios – a capacidade de autonomia e autogoverno – ilustradas na conversão das duas maiores aldeias da capitania (Nossa Senhora da Assunção de Reritiba e Santo Inácio e Reis Magos) em Vilas (Nova Benevente e Nova Almeida). Vânia Moreira repassa os debates da Segunda Escolástica relativos à liberdade das pessoas e bens dos aborígenes e, analisando as leis pombalinas, considera que “o que a legislação efetivamente reconheceu e prometia garantir aos índios era a posse e o domínio das terras de seus aldeamentos” (144). A Lei de 6 de junho de 1755 teria especialmente assegurado sua liberdade, propriedade e autogoverno mediante sua equiparação aos demais vassalos da Coroa. Essas medidas foram limitadas pela restituição da tutela mediante o Diretório dos Índios, analisado pela autora neste capítulo (151-158). Em seguida, é explicado o processo de implantação do Diretório no território do Espírito Santo, destacando aspectos como a relação econômica das novas vilas indígenas com o resto de vilas da capitania, os processos eletivos que garantiam a preeminência indígena nas Câmaras, os atos de gestão local do patrimônio e as medidas de controle dos costumes levadas a cabo pelas autoridades – especialmente em relação com as mulheres indígenas.

O capítulo 4 recupera a Lei de 4 de abril de 1755, que incentivava o casamento entre indígenas e brancos como forma de assimilar aqueles à sociedade colonial. A autora destaca o assimilacionismo das políticas pombalinas, interpretando como eminentemente cultural a discriminação no período, e adotando, portanto, as posições que preferem reservar o termo “racismo” para os processos de racismo biologicamente fundamentado (210). Recuperando a argumentação dos inícios da colonização, que caracterizou os indígenas como sujeitos que viviam no “estado natural”, a autora percebe uma continuidade entre essa concepção e as ideias que presidem a abertura do século XIX, onde os indígenas eram acusados de carecer de “vida civil”, continuidade que só seria quebrada com a irrupção do racismo biologicista na segunda metade do século XIX. Para falar sobre políticas matrimoniais, a autora retorna uma vez mais aos relatos dos primeiros missionários no continente, tratando de reconstruir os costumes dos indígenas no relativo às práticas sexuais, alianças afetivas, vestimenta etc. A autora recorda o papel histórico da instituição do matrimônio para a consolidação do poder da Igreja desde as reformas gregorianas, destacando que também na América essa intervenção na organização familiar indígena foi uma política de longa duração (236). Na última seção do capítulo, a autora recupera os seus trabalhos sobre a interpretação que os indígenas da vila de Benevente fizeram das políticas matrimoniais e territoriais contidas no Diretório pombalino. Através de um estudo específico de caso, ela mostra que esses índios interpretaram que o aforamento de terras a moradores brancos, permitido no artigo 80 do Diretório, estava condicionado à sua união em matrimônio com alguma índia da aldeia.

Vânia Moreira volta a tratado desse tema no capítulo seguinte, dedicado às questões de luta pela terra coletiva. A autora destaca que durante a vigência do Diretório os ouvidores de comarca se encarregavam da administração dos bens dos índios, enquanto os diretores eram os responsáveis pela administração das suas pessoas. Para Moreira, as críticas da historiografia à figura dos diretores devem ser tomadas com cautela, pois ela observa que nas duas vilas de índios do Espírito Santo os conflitos entre índios e diretores eram habituais, e que na prática estes acabavam tendo um poder de mando relativo (271). Ela destaca, além do mais, que durante esse período os indígenas foram efetivamente preferidos para os cargos de governo municipal, o que inclusive propiciou a consolidação de uma elite indígena muito ativa na cena política local. Essa situação começou a mudar no fim do século XVIII, com o aumento das intrusões de brancos e pardos nas terras indígenas, garantidas pelo aval das autoridades chamadas, em princípio, a proteger os interesses indígenas (neste caso, os ouvidores de comarca). Assim, ao mesmo tempo que os indígenas eram cada vez menos preferidos para os cargos municipais, as terras eram cada vez mais aforadas a brancos e pardos pelos mesmos poderes municipais. Segundo a autora, essa situação se manteve até o século XIX, pois ela documenta um conflito ocorrido na vila de Nova Almeida em 1847, no qual a Câmara municipal argumentara que levava ao menos 79 anos aforando as terras indígenas a brancos. Em alguns momentos, essas incursões em períodos muito anteriores ou muito posteriores aos fatos narrados podem conduzir a interpretações por vezes anacrônicas, que não tomam em conta o contexto do momento de produção do documento. Em relação ao documento de 1847, por exemplo, Moreira critica a afirmação da Câmara de que os índios eram somente usufrutuários das terras, e não os seus donos. Para a autora, a afirmação é criticável porque as terras não pertenciam ao município, mas sim aos índios, e deveriam ser protegidas segundo as leis específicas que regulavam o patrimônio indígena. Não obstante, segundo o Regulamento das Missões, aprovado dois anos antes do conflito, os índios aldeados eram somente usufrutuários das terras que ocupavam, ainda que contassem com a garantia de não ser expulsos e com a possibilidade de converter-se em proprietários após 12 anos de cultivo ininterrupto (BRASIL, 1845, art. 1.15º). O capítulo conclui, em qualquer caso, retornando ao final do século XVIII e sugerindo que esses episódios de traição por parte das autoridades chamadas a protegê-los permaneceram na memória coletiva dos moradores indígenas. Mais de vinte anos depois dos episódios, os nativos continuavam narrando aos viajantes a pouca confiança que depositavam na justiça institucional.

O último capítulo adentra no processo de subalternização dos indígenas que se abriu com o século XIX e a chegada da família real ao Brasil. Para a autora, um dos fatores que contribuiu para a progressiva exclusão dos índios dos cargos municipais foi a revogação do Diretório em 1798, porque implicou a eliminação dos privilégios dos índios e a sua equiparação jurídica ao status dos brancos. A autora conta que, ao mesmo tempo, essa equiparação só foi efetiva naqueles pontos prejudiciais à autonomia indígena, pois na prática o cargo de Diretor foi recriado, por exemplo, na vila de Nova Almeida em 1806, com o adendo de que esses novos Diretores exerciam funções mais restritas e coercitivas do que os antigos escrivães-diretores, e respondiam a uma configuração diversa do poder. Moreira conta como o sistema de trabalho compulsório foi se tornando muito mais pesado, marcado pela violência e validado pela “escola severa” do período joanino. Nesse sentido, a autora sugere que as Cartas Régias de 1808 que voltavam a permitir a “guerra justa” tinham também como objetivo reencenar a potência da monarquia, que se encontrava num contexto de crise após a fuga da Casa Real sob a ameaça de invasão napoleônica (318). No processo, reforça-se a noção de menoridade jurídica do indígena, e a subsequente submissão à tutela. Moreira conta que no Espírito Santo essa tutela foi exercida especialmente por particulares que eram encarregados de educá-los, cristianizá-los e civilizá-los. Outra faceta da menoridade jurídica era a tutela pública, que se traduzia em uma série de mecanismos que em última instância visavam ao controle social e ao trabalho coercitivo. Assim, muitos indígenas foram recrutados para o serviço militar, especialmente quando mantinham meios de vida diferenciados da cultura do trabalho nos termos europeus. Destarte, os índios que viviam da caça, pesca, roça e atividade madeireira eram os mais vulneráveis a recrutamentos forçados. Este caráter forçoso do recrutamento foi especialmente evidente porque a prestação de serviços militares à Coroa deixou de ter como contraprestação as tradicionais garantias de direito à terra, proteção e direitos específicos. O resultado, segundo Moreira, foi um significativo movimento diaspórico de indígenas aos sertões cada vez mais distantes do controle institucional, muitas vezes com as trágicas consequências de perda de laços com as suas antigas comunidades de origem, além da perda dos privilégios jurídicos reconhecidos aos índios aldeados.

Ao narrar os acontecimentos ao longo do livro, Vânia Moreira se esforça por destacar as estratégias dos indígenas para conseguir manter suas posições no contexto da conquista, esforço que se inserta numa agenda indigenista que vem buscando identificar o seu agenciamento e protagonismo como sujeitos da história. É uma tarefa que durante os últimos vinte anos vem rendendo prolíficos resultados, ainda que sejam insuficientes para situar os indígenas como agentes nos relatos não-indigenistas da história brasileira, como destacou a própria autora alguns anos atrás (MOREIRA, 2012). Por outro lado, talvez seja necessária certa cautela ao referir-se à relação entre indígenas e missionários como uma relação intercultural. Especialmente porque dentro dos estudos culturalistas a noção de diálogo intercultural vem sendo criticada por partir de um pressuposto de igualdade entre as partes que não leva em consideração a problemática da violência intrínseca à noção de universal que a cristandade e a modernidade europeia carregam, o que torna essa noção, portanto, inaplicável nos casos de identidades culturais ou reivindicações particularistas que desafiam os pressupostos do liberalismo econômico e do capitalismo mundializado – como ocorre, atualmente, com as demandas territoriais dos diferentes povos indígenas brasileiros (ÁLVAREZ, 2010).

Por momentos fica a sensação de que os jesuítas eram um mal menor no contexto da colonização, já que com eles era possível o diálogo, enquanto que com os poderes locais só imperava a força. A mesma autora, porém, frisa que a evangelização era um braço necessário da conquista violenta, que serviu para legitimá-la num momento no qual a Coroa não exercia nenhum tipo de controle efetivo sobre o território. Também é perigoso, nesse sentido, afirmar que a expulsão jesuítica acarreou uma política laica de civilização (88), já que no Diretório dos Índios o Reino reclamava para si a jurisdição temporal sobre os aldeados, mas continuava a encarregar a tarefa de evangelização e jurisdição espiritual aos representantes da igreja católica.

Tudo indica, portanto, que se existiu algum nível de diálogo prolífico entre jesuítas e indígenas, esse só foi possível pela existência de uma conjuntura em que também havia outros interesses em disputa, como os dos moradores e representantes do poder régio. Como a própria autora mostra em seu trabalho, a expulsão dos jesuítas abriu um período em que os indígenas conseguiram conservar e inclusive reforçar uma efetiva dimensão de autogoverno, que começou a desmoronar definitivamente com a mudança drástica de conjuntura aberta pelas revoluções liberais na Europa e a necessidade de reafirmação e consolidação do poder por parte das Coroas portuguesa e, posteriormente, brasileira.

Referências

ALVAREZ, Luciana. Mas alla del multiculturalismo: Critica de la universalidad (concreta) abstracta. Filosofia Unisinos n. 11, v. 2, p. 176-95, setembro 2010.

BRASIL. Decreto n. 426 – de 24 de julho de 1845 que contem o Regulamento acerca das Missoes de catechese, e civilisacao dos Indios. In Colleccao das leis do Imperio do Brasil de 1845. Tomo VIII, parte II, p. 86-96. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1846.

CLAVERO, Bartolome. Derecho indigena y cultura constitucional en America. Mexico: Siglo Veintiuno Editores, 1994.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislacao Indigenista no Seculo XIX. Sao Paulo: Edusp, 1992.

HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas. As bem-aventurancas da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. Sao Paulo: Annablume, 2010.

MOREIRA, Vania Maria Losada. Reinventando a autonomia: Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo, 1535-1822. São Paulo: Humanitas, 2019.

MOREIRA, Vania Maria Losada. Os indios na historia politica do Imperio: avancos, resistencias e tropecos. Revista Historia Hoje n. 1, v. 2, p. 269-74, 2012.

Camilla de Freitas Macedo – Universidad del País Vasco. Bilbao – País Vasco – España.


MOREIRA, Vania Maria Losada. Reinventando a autonomia: Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo, 1535-1822. São Paulo: Humanitas, 2019. Resenha de: MACEDO, Camilla de Freitas. Autonomia como agência: o caráter polifacetado da história de luta indígena no Espírito Santo. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; aguiar

RODRIGUES, André Figueiredo; AGUIAR, José Otávio (orgs). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2017. Resenha de: SÀ, Charles Nascimento de; OLIVEIRA, Cintia Gonçalves Gomes. Nos caminhos da fé: história, religião e religiosidade da Antiguidade ao mundo contemporâneo Antítese, v. 11, n. 21, 2018.

Composto por uma coleção de artigos de diferentes autores, o livro História, Religiões e Religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, tem como organizadores: André Figueiredo Rodrigues, professor da UNESP/Assis, e José Otávio Aguiar professor da UFCG. Sua proposta é de abordar o debate sobre a religiosidade nos diferentes contextos da História, desde a Antiguidade Clássica até a atualidade, perpassando diferentes culturas, práticas, cultos, dogmas, levando o leitor a pensar não somente nas diferenças existentes entre as religiões, mas também no quanto tais particularidades são importantes para a composição das sociedades e da própria História. Por se tratar de uma obra coletiva o livro, tem a capacidade de contemplar múltiplas falas e uma diversidade de olhares sobre seu objeto de estudo. Este elemento representa um ganho ao conjunto da obra, mas, como todo trabalho coletivo fica a dever sempre que um assunto interessa mais ao leitor, e este não tem a possibilidade de maiores páginas para aprofundar o estudo.

Os textos reunidos em História, Religiões e Religiosidade foram organizados em quatro partes: Identidade, religiosidades e Antiguidade Clássica; Religiões, recepções e impérios Ultramarinos; Universo católico e problemas de História Contemporânea e Protestantismo, espiritismo e religiões Orientais no presente. Todos eles se apresentam de forma clara e os organizadores tiveram o cuidado de sistematizá-los no livro de modo a ficarem conectados, como se um texto conduzisse ao outro. Assim, a primeira parte do livro, composta por quatro ensaios e com o título “Identidade, religiosidades e Antiguidade Clássica”, tem como foco estudos sobre a Antiguidade Clássica e seus reflexos e receptibilidade na sociedade contemporânea e se inicia com o ensaio de Aila Luzia Pinheiro de Andrade, no qual a autora reflete sobre a crise de identidade cristã, bem como os desafios da atualidade ligados a tal identidade, como a questão da fé em Jesus ou mesmo o conceito de messias, tanto para o judaísmo quanto para os primeiros grupos que seguiam os ensinamentos de Jesus.

Em seguida, Nelson de Paiva Bondioli e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, propõem ao leitor analisar as ações dos Principes Julio-Claudianos, considerando o imaginário que os circundavam e a sua inter-relação com os ideais de tradição e transgressão religiosa, bem como compreender as consequências de tais condutas para seus governos e mesmo para a construção da identidade dos povos romanos do período.

A questão das identidades judaicas é retomada com Fernando Mattiolli Vieira, que chama a atenção para o debate sobre a importância da busca e do reconhecimento da identidade do grupo detentor dos manuscritos de Qumran, uma grande incógnita para os historiadores do assunto, mas que se faz fundamental, pois, todas as análises dos manuscritos são pautadas na organização social e religiosa do grupo, em suas bases culturais e identitárias.

Fechando esta parte inicial do livro, Haroldo Dutra Dias examina os estudos históricos sobre Jesus, que possuem como fonte documentos dos primeiros séculos do cristianismo, dando destaque a suas cronologias e como tais estudos são apropriados e dialogam com informações e dados da doutrina espírita no Brasil, numa relação de complementação de informações e na busca pela solução de questões ainda não respondidas.

A segunda parte do livro, “Religiões, Recepções e Império Ultramarinos”, volta-se para a questão da religiosidade e suas diferentes perspectivas e particularidades nas possessões portuguesas e inglesas. Abrindo esta parte, André Figueiredo Rodrigues analisa a sociedade mineira dos setecentos, mostrado o convívio entre os indivíduos, principalmente entre os religiosos e clérigos e o restante da população que vivia nos entornos das minas e nas cidades, além da relação entre a Igreja local e a Coroa, com suas disputas, reclamações e abuso de poder. Ainda sobre Minas Gerais no século XVIII, Jeaneth Xavier de Araújo Dias investiga a história das festas religiosas de Minas, sua importância para a população do período, a preocupação do povo com a organização e a beleza das mesmas, utilizando para tanto a chamada arte efêmera, com seus ornatos, cenários e decorações. Neste ambiente, a autora mostra que em vários momentos ocorreu a combinação das festas religiosas cristãs com datas e comemorações da Antiguidade grega e romana.

Deixando um pouco o continente americano, o foco volta-se para as possessões inglesas na África, com o texto de Lúcia Helena Oliveira Silva, o qual nos mostra o surgimento e atuação da Church Missionaire Society – CMS e os relatos de indivíduos africanos convertidos, os artifícios utilizados por bagandas e missionários anglicanos tanto para a conversão religiosa quanto para as negociações, além de salientar os paradoxos ligados a tais eventos e suas consequências para os grupos envolvidos.

De volta a América, Joaci Pereira Furtado analisa a poesia árcade em Portugal e em sua possessão americana, procurando explicar, de modo detalhado, os motivos que levaram à referência e mesmo a presença de elementos da cultura clássica, principalmente, o paganismo nestes escritos. Para tanto, volta-se para o contexto da segunda metade do século XVIII e início do século XIX, mostrando os jogos e as disputas de poder num momento no qual o movimento ilustrado tinha influência não somente no Reino, mas também em seus domínios. A questão da literatura igualmente se faz presente nas ponderações de Gustavo Henrique Tuna, o qual estuda a presença de escritos religiosos na livraria de Silva Alvarenga, tida como uma das mais relevantes do período colonial. Além de revelar as transformações na constituição das livrarias da América portuguesa, seu trabalho também evidencia as mudanças de pensamento em relação à religião e sua posição na sociedade.

No artigo seguinte, Renato da Silva Dias realiza uma investigação das argumentações presentes no discurso do padre Manoel Ribeiro da Rocha em defesa em defesa do tráfico e posse de escravos africanos no Brasil, além de ressaltar a utilização por parte do religioso não somente de fundamentos religiosos, mas também de pressupostos jurídicos, empregados com o intuito de embasarem a legalidade de seu ponto de vista. Nesta mesma linha de análise, Rubens Leonardo Penagassi problematiza, tendo por base o contexto e os pensamentos do início da Época Moderna, os relatos e descrições alimentares feitos pelos jesuítas das populações nativas da América Portuguesa, evidenciando como tais escritos acabam por delimitar e caracterizar as identidades dos grupos envolvidos.

O último artigo desta segunda parte do livro, de Paula Ferreira Vermeersch versa sobre o patrimônio artístico e cultural brasileiro, tomando como exemplo a análise a Igreja Matriz de Sant’Ana, composta por a arquitetura de taipa, sistema de construção colonial típica dos setecentos no Brasil colonial. Para desenvolver suas investigações, a autora mostra o quão importante é conhecer e realizar um exame cuidadoso não somente da história e da documentação que envolve o patrimônio a ser estudado, mas também analisar criteriosamente do próprio prédio. Isso porque, pequenos traços ou modificações realizadas no decorrer do tempo auxiliam no desenvolvimento do trabalho e até mesmo gera a possibilidade de reconstruir ou preencher lacunas e perguntas ainda em aberto.

A metade final dedica-se a temas contemporâneos brasileiros. Se até aqui o mundo antigo e partes das conquistas europeias na Idade Moderna foram abordados nos textos iniciais, as duas últimas partes do livro dedicam-se ao Brasil contemporâneo e sua religiosidade. Nesse sentido uma maior pluralidade de elementos são aí discutidos: Igreja católica e sua importância no sociedade; espiritismo, protestantismo e suas concepções, e dois artigos sobre religiosidade hindu ou de matiz indiana.

A terceira parte dessa trama dedica-se ao estudo do mundo católico brasileiro no período republicano. Os trabalhos presentes passeiam pelas mudanças vivenciadas pela Igreja Católica. O primeiro artigo, da pesquisadora Patrícia Teixeira Santos, estuda a proposta sobre a civilização do amor do Papa Paulo VI e sua influência sobre os países do Terceiro Mundo, de modo particular no Brasil e em Moçambique. Em seguida, Milton Carlos Costa, versa sobre a militância do intelectual católico Jonathas Serrano nas primeiras décadas do século XX no Brasil.

Jorge Miklos e Adriano Gonçalves Laranjeira analisam a imprensa católica em São Paulo no período da Ditadura Civil-Militar com a importante atuação do cardeal D. Paulo Evaristo Arns e sua defesa dos direitos humanos e as contendas envolvendo este pastor e outros líderes da Igreja. Nesse texto abordam-se as variantes de concepções que nortearam o pensamento católico e sua relação com a sociedade e a política nacional.

A seguir tem-se um interessante texto sobre a demonização das igrejas protestantes no universo da literatura de cordel. Elemento fundamental para a cultura sertaneja no Nordeste brasileiro, o cordel e o repente são instrumentos com os quais os artistas populares representam, em sua simbologia, aspectos da vida cotidiana dos moradores do sertão. Neste texto é analisado como a expansão do protestantismo na primeira metade do século XX foi vista por esses artistas. A abordagem aqui fica a cargo de Francisco Cláudio Alves Marques e Esequiel Gomes da Silva. Tem-se ainda um texto sobre a importância da religiosidade católica e seu uso no desenvolvimento turístico, tema sempre recorrente em estudos que abordam essa área, sendo analisado aqui o Círio de Nazaré em Belém em trabalho de Elder P. Maia Alves e Greciene Lopes dos Santos. Encerrando esse terceiro momento do livro há um estudo sobre a coleção Reconquista do Brasil, lançada na segunda metade do século XX e sua abordagem sobre a religião católica e o patrimônio cultural nacional feita por Gisella de Amorim Serrano.

A última parte a compor o livro destaca estudos sobre protestantismo, espiritismo e religiosidade com matiz indiana. São seis textos, dois abordando cada tema. No primeiro texto Iranilson Buriti de Oliveira e Roseane Alves Brito fazem interessante trabalho sobre a correlação entre palavras e expressões médicas, tais como cura, remédio, limpeza e o discurso dos pastores nas igrejas neopentecostais. A outra abordagem a trabalhar o protestantismo fica a cargo do professor João Marcos Leitão Santos. Instigante texto sobre a questão conceitual e teórica na historiografia que aborda o protestantismo. Apesar de fazer um interessante debate teórico conceitual sobre o entendimento do protestantismo e sua história, o texto peca ao não apontar um caminho, do mesmo modo que utiliza referências que o guiam a um só entendimento em detrimento de um maior debate envolvendo esse assunto.

Os estudos sobre espiritismo ficam a cargo de Alexandre Caroli Rocha e José Otávio Aguiar. Nesses dois textos aspectos salutares do movimento espírita no Brasil são abordados, seja ao ser estudado um dos maiores representantes do gênero: Humberto de Campos; sejam ao ser analisado características do movimento espírita e sua inserção na mídia.

Por fim, encerrando o livro têm-se duas abordagens sobre a religiosidade de matiz indiana em sua influência na religiosidade contemporânea brasileira. No texto de Maria Lucia Abaurre Gnerre e Gustavo Cesar Ojeda Baez estuda-se o uso da religiosidade indiana no desenvolvimento do Yoga por Mircea Eliade. Já o estudo de Deyve Redyson aborda aspectos sobre meditação e desenvolvimento espiritual nas leituras do Sutra do coração. Nos dois casos nota-se um maior enquadramento dos autores com seu objeto de pesquisa, item também presente no estudo de João Marcos Leitão Santos. Talvez esse seja o componente principal a ser destacado, afinal, ao denotarem sua afinidade ao tema pesquisado, os textos abordados ganham uma vivacidade e um envolvimento que outros, de modo particular alguns constantes no estudo sobre a Igreja Católica no Brasil contemporâneo não possuem. Se a neutralidade é algo que se deve perseguir em um estudo científico, isso não significa que a paixão e o prazer que determinado objeto traz ao seu pesquisador não possa ser evidenciado. Há, porém, que se definir limites, para que a abordagem e o que se conclui no estudo, não venham a ser afetados.

O livro História, religiões e religiosidade traz importante contribuição para o estudo e entendimento de assunto tão presente na sociedade brasileira. Tendo sempre sido destacado a importância e o impacto da religião na formação e construção de nossa identidade e cultural nacional e local, faltam, porém abordagens que trabalhem este assunto. Carecem também, estudos que possam abordar o máximo possível da multiplicidade de assuntos que compõem o universo religioso do país ou que fujam dos chavões e temas que são sempre abordados, como a religião católica ou as africanas.

Ao caminhar para abordagens que privilegiam o mundo antigo, o universo colonial e a diversidade religiosa no mundo contemporâneo brasileiro a obra organizada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar contribuem para ampliar e enriquecer o debate sobre o assunto, mostrando preocupação com a intolerância religiosa, tão presente nos últimos tempos. O livro representa também, o sempre bem vindo diálogo envolvendo duas Instituições distintas. O colóquio foi sempre, ponto fulcral para que a Ciência pudesse ampliar seus horizontes e desenvolver novos olhares e outras abordagens sobre temas e problemas que a sociedade e a História nos impõem. Boa leitura.

Charles Nascimento de Sá – Professor na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XVIII. Doutorando na UNESP/Assis. Bolsista UNEB PAC-DT. E-mail: [email protected].

Cintia Gonçalves Gomes – Doutoranda em História e Sociedade na UNESP/Assis. E-mail: [email protected].

História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; AQUIAR (HU)

RODRIGUES, A.F.; AGUIAR, J.O. (org.). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2016. 490 p. (História Diversa, n. 6). Resenha de CABREIRA, Maria Alda Barbosa. Religiões e religiosidades em debate. História Unisinos 22(1):149-152, Janeiro/Abril 2018.

Estudos relacionados a religiões e religiosidades vêm recebendo cada vez mais interessantes contribuições que ajudam a alargar o debate e o reconhecimento de formas diversas de expressar o religioso, notadamente, na sociedade contemporânea.

A problemática dos fenômenos religiosos, e mesmo das maneiras científicas e acadêmicas de como o universo do sagrado, as religiões e as religiosidades foram interpretadas, é resultante de processos históricos e sociais ligados a relações de privilégios e poder.

Como um conjunto de práticas e doutrinas organizadas em uma cosmologia bem definida, a religião e seu estudo permitem entender o universo cotidiano, as relações sociais, as instituições políticas, as ideias e as formas de expressão religiosa que compõem determinados regimes do crer, como práticas, espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado (Arnal, 2000).

Com análise detida destes nuances, a coletânea História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, coordenada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar, faz-se presente no debate que analisa as religiões e seu desenvolvimento e discussões históricas ocorridas em diferentes épocas, nos mais diversos povos e nas suas muitas manifestações.

Reunindo 24 capítulos, o livro apresenta quatro divisões temáticas que convidam o leitor a refletir sobre as diversidades humanas na abordagem dos espaços e discursos dedicados ao religioso, em perspectiva ligada principalmente à história cultural. Aliás, do conjunto, 17 textos dedicam-se ao multifacetado universo religioso brasileiro, dominado pela matriz do cristianismo. Observando- -se os dados do Censo demográfico 2010 sobre religião, divulgados pelo IBGE em 29 de junho de 2012, confirmam-se tendências de transformação do campo religioso brasileiro, aceleradas a partir da década de 1980, quando se iniciou o recrudescimento da queda numérica dos fiéis seguidores da fé católica frente à vertiginosa expansão dos pentecostais e das pessoas que se declaravam sem religião. Os números interessam: entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais; os evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% da população, acréscimo de 15,6 pontos percentuais em 30 anos, representando 42,3 milhões de pessoas, sendo a segunda religião com o maior número de adeptos no país. Apesar destes números, o catolicismo ainda se faz predominante, com mais de 123 milhões de pessoas, classificando o Brasil como o maior país católico do mundo em números nominais. No período, o conjunto das outras religiões, incluindo espíritas e cultos afro-brasileiros, também dobrou de tamanho, passando de 2,5% para 5% (Mariano, 2013, p. 119).

De 1980 para cá, a partir dos dados informados, prosperou a diversificação da pertença religiosa e da religiosidade no Brasil, mas se manteve “praticamente intocado seu caráter esmagadoramente cristão” (Mariano, 2013, p. 119).2 As raízes de nossa formação cristã, assim como a análise de aspectos da história religiosa brasileira, vislumbrada naqueles números e nas práticas sagradas católicas, espíritas e protestantes, seguem como eixo articulador dos capítulos relacionados ao universo brasileiro contemporâneo presentes na coletânea.

As manifestações cristãs majoritárias aparecem desde o texto de abertura do livro. Dividida em quatro partes, a obra em sua primeira seção procura reunir reflexões dedicadas aos temas da Antiguidade Clássica ou da recepção de suas produções sociais e históricas em nosso tempo. Sob o título de “Identidades, religiosidades e Antiguidade clássica”, tem-se o capítulo de Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (Universidade Católica de Pernambuco e Faculdade Católica de Fortaleza) sobre as expectativas messiânicas no tempo de Jesus Cristo e a sua relação com a identidade cristã, construída a partir de então.

A seguir, Nelson de Paiva Bondioli (professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Espírito Santo) e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) analisam, com base nos escritos da época, a figura dos Príncipes Júlio-Claudianos (governantes Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) e sua posição dentro da hierarquia política e religiosa romana durante o século I da Era Comum para falarem de tradição e de transgressão na religião romana.

Na sequência, Fernando Mattiolli Vieira (Universidade de Pernambuco) apresenta-nos a interessante história da descoberta dos manuscritos de Qumran e as suas condições de produção e recepção. Os documentos estudados por ele foram encontrados em 1947, entre o deserto da Judeia e a orla do mar Morto e próximo às ruínas de um sítio arqueológico conhecido por khirbet Qumran, e representam a maior conquista da arqueologia do século XX, pois neles foram encontrados 930 manuscritos, sendo que deste total 210 documentos reproduzem livros da Bíblia hebraica (chamada pelos cristãos de Antigo Testamento): Salmos, Deuteronômio e o Gênesis. Essa história e os desdobramentos destes achados para o conhecimento e as comprovações empíricas de fatos narrados nos livros sagrados cristãos estão relatados ali por ele.

O último texto desta parte pertence a Haroldo Dutra Dias (juiz de Direito e palestrante espírita) sobre o surgimento da crítica histórica nos estudos sobre a vida de Jesus Cristo e o constructo de sua figura profético- -apocalíptica, assim como sobre a origem do cristianismo.

A segunda parte do livro, Religiões, recepções e impérios ultramarinos, congrega estudos que marcam a presença do catolicismo em terras brasileiras e africanas, notadamente durante o período colonial. Nesta seção, estão presentes as pesquisas de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) sobre as religiosidades e as sociabilidades nas relações entre o clero e a sociedade nas Minas Gerais do século XVIII, mostradas a partir das manifestações religiosas católicas instaladas na região desde a chegada dos primeiros buscadores de ouro. Ainda no cenário das Minas Gerais setecentistas, Jeaneth Xavier de Araújo Dias (Universidade do Estado de Minas Gerais) brinda-nos com as histórias das festas e das celebrações religiosas para analisar os ritos, os ornamentos e as decorações feitas para a realização das procissões celebradas durante o Triunfo Eucarístico em Vila Rica no ano de 1733, quando se comemorou a condução triunfal da imagem do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

Já Lúcia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) narra as estratégias de conversão e os processos de negociação entre bagandas e missionários anglicanos ingleses no reino de Uganda no século XIX.

Na continuidade, Joaci Pereira Furtado (Universidade Federal Fluminense) discute a relação entre catolicismo e paganismo na poesia árcade que vicejou durante a segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX entre Portugal e a América portuguesa, destacando a presença de elementos referenciais clássicos remetentes à mitologia e aos deuses gregos e latinos.

Por sua vez, Gustavo Henrique Tuna (doutor em História pela Universidade de São Paulo) discute o gradiente da fé católica (o sagrado e a descristianização) encontrado na biblioteca do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, considerada uma das mais relevantes do período colonial, com 1.576 volumes. Ainda no palco das letras coloniais, Renato da Silva Dias (Universidade Estadual de Montes Claros), em instigante texto, analisa a dimensão do político na esfera discursiva religiosa empreendida pelo clérigo secular Manoel Ribeiro Rocha para justificar o tráfico e a escravização dos africanos no Brasil na obra Ethíope resgatado, de 1758. Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa) apresenta os hábitos alimentares e a sua relação com o discurso religioso dos primeiros jesuítas quinhentistas que empreenderam missões catequéticas na América portuguesa.

Passando da literatura para a arquitetura de taipa, Paula Ferreira Vermeersch (Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente) examina o patrimônio histórico e a arte sacra encontrada no interior da Igreja Matriz setecentista barroca de Sant’Ana Mestra do Sacramento, localizada na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.

Nas duas partes seguintes, os capítulos centram-se em análises do diálogo e da recepção de textos antigos e modernos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no universo religioso contemporâneo. A terceira seção, “Universo católico e problemas de história contemporânea”, inicia-se com o interessante texto de Patrícia Teixeira Santos (Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos) sobre as missões do Papa Paulo VI no contexto do catolicismo social, a partir de experiências no Brasil e em Moçambique. A militância católica se faz presente no capítulo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) ao analisar o pensamento e a trajetória intelectual de Jonathas Serrano, um importante batalhador pelos ideais cristãos durante a República Velha no Brasil.

No decurso da oposição ao Estado autoritário brasileiro (1964-1985), a partir da década de 1960, um de seus mais destacados opositores foi a Igreja Católica. Partindo desse contexto, Jorge Miklos (Universidade Paulista) e Adriano Gonçalves Laranjeira (Universidade Paulista) analisam a atuação da imprensa católica paulistana na defesa dos direitos humanos, por meio do resgate da história do semanário O São Paulo, jornal oficial da Arquidiocese de São Paulo, criado em 1956 com o objetivo de difundir os valores católicos entre os fiéis. Porém, a partir de 1970, quando a Arquidiocese de São Paulo é liderada por dom Paulo Evaristo Arns, o jornal sofre uma mudança na sua linha editorial e passa a atuar como crítico ao Estado autoritário.

Já Francisco Cláudio Alves Marques (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) e Esequiel Gomes da Silva (Universidade Federal do Pará, campus de Marajó- Breves), com habilidade e brilhantismo, brindam-nos com interessante análise, a partir de exemplos cantados no repente e estampados nos folhetos de cordel, das condições históricas e sociais que contribuíram para a representação de negros, adeptos de religiões de ascendência africana e protestantes associada à ideia de demônio, bem como das relações sociais que se estabeleceram no sertão nordestino marcado por práticas e crenças medievais, sobretudo nas primeiras décadas do século XX.

Ainda pelo viés da cultura, Elder Maia Alves (Universidade Federal de Alagoas) e Greciene Lopes dos Santos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Alagoas) elegem como foco de análise de seu texto as interfaces entre a política do patrimônio imaterial, as festas e celebrações religiosas e o turismo religioso no Brasil, apresentando-nos como exemplo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores celebrações religiosas do mundo, que ocorre todos os anos no segundo domingo do mês de outubro na cidade de Belém, capital do Estado do Pará.

Por sua vez, Gisella de Amorim Serrano (pós- -doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais) analisa as edições de cunho religioso, para se compreender a correlação entre História e identidade nacional, na importante coleção Reconquista do Brasil, editada numa parceria da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Editora da Universidade de São Paulo, de 1976 a 1984, responsáveis pela impressão de 306 volumes.

Na última parte, “Protestantismo, espiritismo e religiões orientais no presente”, discutem-se assuntos relacionados ao evangelismo, protestantismo e atuação das igrejas reformadas no Brasil. Inicia-se com o capítulo de Iranilson Buriti de Oliveira (Universidade Federal de Campina Grande) e Roseane Alves Britto (mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande) comentando as metáforas de cura no discurso neopentecostal brasileiro. Na sequência, João Marcos Leitão Santos (Universidade Federal de Campina Grande) discorre sobre a crise conceitual sobre o protestantismo na historiografia brasileira.

A história recente do movimento espírita brasileiro aparece analisada nos dois artigos seguintes. O primeiro, de Alexandre Caroli Rocha (doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas), escrutina as repercussões geradas pelo chamado Caso Humberto de Campos, que mostra como um problema que envolvia uma disputa por direitos autorais estava além dos domínios jurídicos. E, depois, José Otávio Aguiar (Universidade Federal de Campina Grande) historia a trajetória do SER, “organização sociorreligiosa espírita recente, ecumênica e dedicada à tradição dos evangelhos em diálogo com a obra psicografada de exegese de Francisco Cândido Xavier” atribuída a diversos espíritos, mas em especial a Emmanuel (p. 10).

Os dois últimos autores dedicam seus escritos aos assuntos relacionados a religiões do Oriente Distante. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Universidade Federal da Paraíba) e Gustavo Cesar Ojeda Baez (doutor em História pela Universidade Federal de Campina Grande) abordam em seu capítulo a perspectiva hermenêutica que o historiador das religiões Mircea Eliade desenvolve sobre a tradição do Yoga na Índia enquanto prática de religiosidade. Por último, Deyve Redyson (Universidade Federal da Paraíba) expõe as leituras meditativas do texto budista Sutra do coração e sua relação entre sabedoria e realidade.

Apesar de em seu conjunto os textos apresentarem diversidade temática, eles ilustram no todo a diversificação do campo religioso como fonte de pesquisa e de crença do universo sagrado e religioso multifacetado que se evidencia no dia a dia das pessoas. Tanto assim que, ao surgir da necessidade dos indivíduos se ligarem com o divino, a religião ou a pluralidade religiosa resultante das diversas maneiras de entender e perceber o mundo – e por que também não o homem a si mesmo – se faz presente como eixo articulador da obra, independentemente da época retratada ou das práticas e questões religiosas analisadas.

Os dados religiosos explicitados nos números do Censo 2010 permitem-nos traçar o rico e diverso panorama das “religiões e religiosidade” no Brasil contemporâneo. Guiando-se por essa perspectiva, mas sem esta se fazer explicitamente presente no corpo do livro, conseguimos observar nos capítulos interessantes interpretações da história e dos pressupostos religiosos do catolicismo e das igrejas protestantes – com suas múltiplas diversidades –, do universo espírita, das religiões afro-brasileiras, do sincretismo urdido entre elementos cristãos, afro-brasileiros e indígenas representados na cultura popular, do judaísmo, das religiões orientais e do budismo. Infelizmente faltou o islamismo! No cenário atual, ao propor “novas abordagens e debates sobre religiões”, a obra, plural em todo o seu sentido, revela o quanto assuntos como práticas religiosas e religiosidades desde a “Antiguidade aos recortes contemporâneos” não são temas pacíficos, já que em muitos trechos se evidenciam competições entre religiões, conceituações e personagens. Isto, aliás, permite-nos hoje visualizar a exacerbada quantidade de conflitos, cenas de intolerância e preconceito que se vivenciam na sociedade não só brasileira, mas mundial. No fundo, o livro nos faz refletir sobre a finalidade última das práticas religiosas: propor e transmitir a paz.

Notas

2 Os números do Censo mostram que as religiões no Brasil em 2010 dividiam-se em: Católica Apostólica Romana (123.280.172 = 64,63%), Evangélicas (42.275.440 = 22,16%), Sem religião (15.335.510 = 8,04%), Espírita (3.848.876 = 2,02%), Outras religiosidades cristãs (1.461.495 = 0,77%), Testemunhas de Jeová (1.393.208 = 0,73%), Não determinada e múltiplo pertencimento (643.598 = 0,34%), Umbanda e Candomblé (588.797 = 0,31%), Católica Apostólica Brasileira (560.781 = 0,29%), Budismo (243.966 = 0,13%), Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (226.509 = 0,12%), Não sabe (196.099 = 0,10%), Novas religiões orientais (155.951 = 0,08%), Católica Ortodoxa (131.571 = 0,07%), Judaísmo (107.329 = 0,06%), Tradições esotéricas (74.013 = 0,04%), Tradições indígenas (63.082 = 0,03%), Sem declaração (45.839 = 0,02%), Islamismo (35.167 = 0,02%), Outras religiosidades (11.306 = 0,01%), Hinduísmo (5.675 = 0,00%) (Somain, 2012).

Referências

ARNAL, W.E. 2000. Definition. In: W. BRAUN; R.T. McCUTCHEON (ed.), Guide to the study of religion. London, Continuum, p. 21-34.

MARIANO, R. 2013. Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo 2010. Debates do NER, Porto Alegre, 14(24):119-137. Disponível em: http://oldsociologia.fflch.usp.br/sites/oldsociologia.fflch.usp.br/files/Campo%20religioso%20no%20Censo%202010.pdf Acesso em: 15/12/2017.

SOMAIN, R. 2012. Religiões no Brasil em 2010. Confins: Revista Franco- Brasileira de Geografia, n. 15. Disponível em: http://confins. revues.org/7785. Acesso em: 16/10/2017.

Maria Alda Barbosa Cabreira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Professora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), unidade de Garça. Av. Presidente Vargas, 2331, 17400-000, Garça, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil | João Feres Júnior

João Feres Júnior (IESP/UERJ) e Marcelo Jasmin (PUC-RJ) são dois pesquisadores brasileiros que, no início da década de 2000, abordaram, em algumas obras organizadas por eles, os preceitos elaborados pela história conceitual alemã, na qual o historiador alemão Reinhart Koselleck é um dos maiores expoentes. Algumas destas publicações foram: História dos conceitos: debates e perspectivas, de 2006, e História dos Conceitos: diálogos transatlânticos, de 2007 (apud ROIZ, 2014).

Neste sentido, Feres Júnior dá continuidade às propostas teórico-metodológicas de Reinhart Koselleck na obra intitulada Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil (2014). O trabalho em questão é uma continuidade ou, como o próprio João Feres Júnior afirma, a segunda fase e/ou uma edição revisada e ampliada da obra organizada por ele, em 2009, ambos com o mesmo título e derivados das pesquisas dos historiadores brasileiros participantes do Proyecto Iberoamericano de Historia Conceptual – Iberconceptos2. A ideia que mobilizou a criação deste grupo de pesquisa foi elaborada pelo organizador das referidas obras, juntamente com Javier Fernández Sebastián e Vicente Oieni, em 2004. No entanto, a publicação de 2009 possuía menos capítulos – que, assim como a obra por nós resenhada, tiveram o caráter de verbetes de dicionário, o que demonstra a originalidade deste trabalho (apud FERES JÚNIOR, 2014).

Contudo, Feres Júnior – que atua sem a participação de Marcelo Gantus Jasmin tanto na organização da obra de 2009 quanto na de 2014 – e os demais participantes brasileiros do Proyecto Iberconceptos, optaram por utilizar não somente as sugestões teóricas de Koselleck, mas compatibilizá-las com as ideias propostas pela Escola de Cambridge, representada por Quentin Skinner e John Greville Agard Pocock (apud FERES JUNIOR, 2014). Ao justificar a complementaridade entre estas duas correntes teórico-metodológicas, João Feres Júnior afirma que Melvin Richter, por meio do seu trabalho intitulado The History of Political and Social Concepts: A Critical Introduction (1995), defende a ideia de que os historiadores mais simpáticos aos preceitos elaborados pela Escola de Cambridge passassem a considerar, também, as ideias propostas pela história conceitual alemã (RICHTER, 1995 apud FERES JUNIOR, 2014, p.15). Além disso, o cientista político finlandês Kari Palonen também recomendou o mesmo caminho proposto por Richter e que foi adotado pelo Proyecto Iberconceptos (PALONEN, 2003 apud FERES JUNIOR, 2014, p.15).

Ainda neste sentido, sobre as escolhas teórico–metodológicas de Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil (2014), acreditamos ser pertinente acrescentar que a defesa da complementaridade entre estas duas correntes pode ser corroborada pela seguinte afirmação de Koselleck, que denuncia a tendência que seria própria da história das ideias, em relação às expressões históricas, de conceber estas últimas “[…] como constantes, articuladas em figuras históricas diferentes, mas elas mesmas fundamentalmente imutáveis” (KOSELLECK, 1985a, p.80 apud JASMIN, 2005, p.31).

Em consonância com estas concepções teóricas, Feres Júnior argumenta, no capítulo onde realiza uma leitura de caráter transversal acerca do conceito de “civilização”, com base em outros trabalhos sobre este termo (2014, p.423-454), que a utilização daquelas duas correntes teóricas, de forma conjunta, evitaria a “[…] cilada de ter de optar pelo aspecto descritivo ou normativo dos conceitos. Os elementos descritivos e normativos são tomados como partes da semântica do conceito e, portanto, como objetos a serem estudados” (FERES JÚNIOR, 2014, p.427). Além disso, segundo o organizador da obra, também não é necessário que haja uma escolha pelo total desprendimento entre as questões objetivas e as subjetivas, característica e/ou tendência mais ligadas à linha cartesiana de pensamento, pois

[…] a inspiração fenomenológica embutida na história conceitual foca a experiência e a construção da linguagem através de um processo social de atribuição de significado intersubjetivo, que nunca é totalizante ou propriamente objetivo, pois se encontra fracionado como a própria sociedade (FERES JÚNIOR, 2014, p.427).

Neste sentido, na ótica de Feres Júnior, pelo fato de a História conceitual não se alicerçar em uma dita “perfeição” teórica e/ou não defender a utilização de um único conceito tido como “inquebrantável” na busca pela compreensão de determinado assunto – modelo que seria mais próprio das ciências naturais, e que parte das ciências humanas seguem, como, por exemplo, a Ciência Política, e algumas vertentes das Ciências Sociais -, a escolha pelas indicações de Koselleck e Skinner se mostram mais favoráveis, pois se dispõem a “[…] resgatar a linguagem em seus múltiplos usos e significados” (FERES JÚNIOR, 2014, p.427).

Dessa forma, tentando seguir estes postulados, a obra derivada da primeira fase (2009) contou com análises transversais sobre todos os conceitos abordados até àquele momento, embasadas nos verbetes resultantes das discussões sobre os próprios conceitos e compôs uma publicação em língua espanhola, intitulada Diccionario político y social iberoamericano: conceptos políticos en la era de las independências, 1750-1850 (apud FERES JÚNIOR, 2014). Além disso, a primeira fase (2009) foi derivada do artigo Algumas notas sobre História Conceptual e sua aplicação ao espaço Atlântico Ibero-Americano (2008, p.5-16 apud ROIZ, 2014, p.280), de autoria de Javier Fernández Sebastián e que compôs o dossiê intitulado História Conceptual no Mundo Luso-Brasileiro, 1750-1850, também apresentado por Sebastián e que compõe o número 55 da revista Ler História (apud ROIZ, 2014). Este número, de acordo com Diogo da Silva Roiz, teve, no Brasil, acesso limitado e enfatizou as relações existentes entre o mundo ibero-americano na época das independências (ROIZ, 2014).

Além disso, contou com ensaios que, assim como ainda nos informa Roiz, tratavam de vários conceitos como América-Americanos (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá), Cidadão-Vizinho (Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira), Constituição (Lúcia Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves), Federalismo (de Ivo Coser), História (João Paulo Pimenta e Valdei Lopes de Araújo), Liberal-Liberalismo (Nuno Gonçalo Monteiro), Nação (Sérgio Campos Matos), Opinião pública (Ana Cristina Araújo), Povo (Fátima Sá e Melo Ferreira) e República-Republicanos (Rui Ramos) (apud ROIZ, 2014).

No entanto, na obra de 2009 que foi publicada no Brasil e que focou na operacionalização de todos estes conceitos no caso específico brasileiro daquele recorte temporal – ou seja, não colocou a atenção em Portugal, como havia sido feito no trabalho de 2008 – alguns conceitos foram trabalhados por outros autores e a disposição dos capítulos ficou da seguinte forma: América/Americanos (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá); Cidadão (Beatriz Cruz Santos e Bernardo Ferreira); Constituição (Lúcia Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves); Federal/Federalismo (Ivo Coser); História (João Paulo Pimenta e Valdei Lopes de Araujo); Liberal/Liberalismo (Christian Edward Cyril Lynch); Nação (Marco A. Pamplona); Opinião Pública (Lúcia Bastos Pereira das Neves); Povo/Povos (Luisa Rauter Pereira); e República/Republicanos (Heloisa Maria Murgel Starling e Christian Edward Cyril Lynch) (apud ROIZ, 2014).

Dessa forma, João Feres Júnior, ainda no prefácio da obra sobre a qual estamos direcionando nossa atenção por meio deste trabalho, nos inteira que a intenção ao elaborar o Léxico da segunda fase (2014) foi a mesma da que motivou a publicação do livro de 2009, mas com uma novidade: trouxe a abordagem de outros dez conceitos além dos que estão presentes na obra resultante da primeira fase. Os dez novos capítulos tratam sobre: Soberania (Luiza Rauter Pereira), Independência (Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves), Partido/Facção (Ivo Coser), Democracia (Christian Edward Cyril Lynch), Pátria (Marco Antonio Pamplona), Estado (Ivo Coser), Liberdade (Christian Edward Cyril Lynch), Ordem (Cláudio Antonio Santos Monteiro), Civilização (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá) e Revolução (Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves) (FERES JÚNIOR, 2014).

Dessa forma, aos dez trabalhos referentes à publicação resultante da primeira fase do Iberconceptos (2009) se somaram mais 10 novos capítulos, totalizando uma produção de 20 conceitos trabalhados neste Léxico publicado em 2014. Neste sentido, ao tratarmos aqui de modo breve sobre cada verbete que compõe a nova obra, iniciamos pelo trabalho de João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá que, ao abordarem a noção de América/Americanos (2014, p.25-39), identificam seis diferenciações deste conceito e afirmam que o mesmo parece começar a obter características políticas:

[…] com o advento das independências dos Estados Unidos da América e das colônias espanholas, e o conseqüente uso desses exemplos por parte dos atores coloniais descontentes com o Império português. A associação da América com o valor da liberdade tornou-se comum a partir da primeira década do século 19, ao mesmo tempo que a depreciação das experiências políticas das novas repúblicas da América espanhola rapidamente se converteu em tropo retórico daqueles que não desejavam o governo republicano no Brasil, ou seja, da parte dominante do espectro político brasileiro por toda a primeira metade do século 19 e além (NORONHA DE SÁ; FERES JÚNIOR, 2014, p.36).

O capítulo sobre Civilização (NORONHA DE SÁ; FERES JÚNIOR, 2014, p.209- 231) também é escrito por aqueles dois autores, que indicam um processo de “nacionalização” do referido termo – na expressão de Pim den Boer trabalhada por eles -, protagonizado pela geração romântica brasileira. No que tange ao conceito de Cidadão, Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira afirmam que existia uma relação entre a preservação da ordem escravocrata e a manutenção das hierarquias de caráter tradicional, o que contribuía para o vínculo entre liberdade, cidadania e propriedade que classificava as pessoas entre “cidadãos ativos”, “cidadãos passivos” e os “não cidadãos” (SANTOS; FERREIRA, 2014, p.54-55).

Por sua vez, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves estabelecem a relação entre a noção de Constituição com questões religiosas ou, nas palavras dos próprios autores, uma “[…] dificuldade demonstrada por portugueses e brasileiros em lidar com a democracia, esse ‘poder dos homens tomando o lugar das ordens definida por Deus ou desejada por Deus” (NEVES; NEVES, 2014 p. 72). Além deste capítulo, estes autores também atuam juntos em outros trabalhos componentes deste livro, que são os casos dos trabalhos sobre Independência (NEVES; NEVES, 2014, p.233-252) e sobre a ideia de Revolução (NEVES; NEVES, 2014, p.379-399). Em relação à Independência, estes autores afirmam que o referido termo, “[…] confundia-se com a honra e o orgulho do Brasil” (NEVES; NEVES, 2014, p.248) e não teria mudado tanto a não ser na década de 1860, período em que houve uma maior aproximação com a ideia de “soberania”. Por sua vez, em relação às questões sobre as possibilidades de ruptura total que envolvem o conceito de Revolução, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Neves concluem que, no período analisado, “[…] somente poucos, sem conseguir-se desprender tampouco de uma perspectiva reformista, pareciam dotados de condições para superar essa visão litúrgica do mundo e reconhecer o potencial dos homens para interferir na vida pública em seu próprio proveito” (NEVES; NEVES, 2014, p.394).

Sobre as modificações que envolveram as concepções acerca da própria disciplina histórica propriamente dita – no verbete intitulado História -, João Paulo G. Pimenta e Valdei Lopes de Araújo abordam, dentro do recorte temporal estabelecido (1750-1850) e de seu processo de mudança, o desprendimento dos preceitos religiosos na escrita da história, perpassando pelo estágio onde se percebeu uma ligação entre o letramento e a narrativa histórica, até a fase em que “[…] a história deixava de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados, tornando-se fator de desenvolvimento dessa identidade” (PIMENTA; ARAÚJO, 2014, p.116).

No capítulo Liberal/Liberalismo, Christian Edward Cyril Lynch nos traz a informação de que “no Brasil, o verdadeiro liberal era o conservador, que exigia, pela centralização, o robustecimento da autoridade do Estado, agente civilizador capaz de se impor à aristocracia rural, acessar a população subjugada no campo e fazer valer os direitos civis” (LYNCH, 2014, p.132). Neste sentido, podemos considerar, também, o verbete Ordem, de autoria de Claudio Antonio Santos Monteiro indicando que “[…] com os perigos representados pelo mundo da desordem (homens pobres e livres e escravos), ordem no Brasil imperial implica a total inviabilidade da expansão da liberdade […]” (MONTEIRO, 2014, p.354).

Alguns autores escreveram mais de um capítulo, assim como já colocamos em relação ao texto de Beatriz Santos e Bernardo Ferreira. Esse também é o caso de Lúcia M. Pereira das Neves em seu trabalho sobre o conceito de Opinião Pública, no qual trata sobre a permanência da “[…] perspectiva da opinião como uma, próxima às concepções de cultura política do absolutismo” (NEVES, 2014, p.166), do trabalho de Luisa Rauter Pereira que, além do capítulo sobre Soberania – assim como já pontuamos – também trata sobre a noção de Povo/Povos (PEREIRA, 2014, p.173-189), abordando a relação entre este conceito e a soberania política, liberdade, igualdade e a natureza geográfica do país, não tão ligados assim à esfera política e de Christian Edward Cyril Lynch, que, assim como no trabalho sobre o conceito de Libera/Liberalismo, também se debruçou em outros como sobre a ideia de República/Republicanos – o qual escreveu em parceria com Heloisa Maria Murgel Starling (STARLING; LYNCH, 2014, p.191-207) -, Democracia (LYNCH, 2014, p.253-274) e Liberdade (LYNCH, 2014, p.323-339) – nos quais atuou sozinho –, capítulos estes que nos possibilita perceber uma ligação entre estes conceitos, os quais estavam relacionados às características da monarquia de então.

Outros autores também participam da obra com mais de um trabalho, tais como, Ivo Coser e Marco A. Pamplona. Aquele, ao analisar os sentidos das ideias de Federal/Federalismo (COSER, 2014, p.79-101), Estado (COSER, 2014, p.301-322) e Partido/Facção (COSER, 2014, p.359-377), por meio dos textos de Paulino José Soares de Souza (o Visconde do Uruguai), Alves Branco, Tavares Bastos, entre outras personalidades, chama a atenção para a complexidade entre o estabelecimento da fragmentação do poder estatal, a continuidade do personalismo e a transformação da facção em partido – com um programa racional definido. Por sua vez, Pamplona analisa o conceito de Nação (PAMPLONA, 2014, p.137-153) que, ao dialogar tanto com o trabalho de Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira (Cidadão), quanto com o de Luisa Rauter Pereira sobre Soberania (PEREIRA, 2014, p.401-421), aborda a discussão sobre quem seria considerado cidadão dentro daquela formação político-social no Brasil, defendendo que a “adoção do princípio da ‘soberania do povo’ iniciou uma transformação mais profunda da moldura normativa existente até o momento para a legitimação do poder político” (PAMPLONA, 2014, p.148). Pamplona também trata sobre o conceito de Pátria (p. 275-300), que, segundo o autor, sofreu um processo de singularização, “[…] sendo utilizado cada vez mais na sua identificação com a nação, à medida que esta aprofundava sua sinonímia com o Estado Imperial” (PAMPLONA, 2014, p.297).

Além de conter os verbetes com os conceitos trabalhados por todos os pesquisadores brasileiros neste Léxico, de 2014, a obra também conta com mais um capítulo escrito por João Feres Júnior, mais ao final do livro. Trata-se do posfácio intitulado De olho nas pesquisas futuras: as camadas teóricas da história dos conceitos (FERES JÚNIOR, 2014, p.455-477), no qual trata um pouco mais sobre a possibilidade de complementaridade entre os pressupostos teóricos da Escola de Cambridge e as noções propostas pela Begriffsgeschichte e realiza uma análise crítica sobre a utilização ou não de algumas ideias de Koselleck – como, por exemplo, as noções de “temporalização”, “ideologização”, “politização” e “democratização” dos conceitos – nas pesquisas que tem a história dos conceitos como o principal norte teórico-metodológico (FERES JÚNIOR, 2014).

Dessa forma, ao tratarmos sobre os principais aspectos da obra organizada por Feres Júnior, não temos dúvida de que o recorte enfatizado – que diz respeito à segunda metade do século XVIII e as cinco primeiras décadas do século XIX – contribuiu muito para a riqueza dos resultados obtidos não somente por Feres Júnior, como também por todos os autores envolvidos neste trabalho, pelo fato de ser um período de profundas transformações da sociedade brasileira vinculadas à política do país. Além disso, assim como Diogo Roiz (2014) bem observou sobre a utilização do norte teórico-metodológico escolhido – complementaridade entre o contextualismo linguístico, de Skinner e Pocock, e a história dos conceitos alemã, de Koselleck – na obra da primeira fase (2009) – é totalmente pertinente, pois proporciona discussões frutíferas e inovadoras ao analisar as fontes selecionadas com foco nos conceitos estudados dentro do período trabalhado, o que permite conciliar análises históricas, políticas, linguísticas e sociais. Todos estes fatores colaboram para uma leitura fluida e compõem uma obra que contribui consideravelmente para a historiografia acerca dos temas e período trabalhados, além de despertar novas reflexões sobre as questões abordadas.

Notas

2. Assim como o próprio organizador do Léxico nos informa, O Iberconceptos consiste em um projeto iniciado por meio de uma reunião entre João Feres Júnior, Javier Fernández Sebastián e Vicente Oieni (que não atuou no projeto posteriormente) durante a VII Conferência Internacional de História dos Conceitos, realizada em 2004. Desde o início, o objetivo desta iniciativa era o “[…] de se fazer uma história conceitual dos países de fala espanhola e portuguesa na Europa e na América […]” (FERES JÚNIOR, 2014, p.9), e Sebastián foi o responsável pela angariação de financiamento para a realização deste projeto em seu país natal, a Espanha. João Feres Júnior ficou a cargo da coordenação do Iberconcpetos no Brasil. Sob a coordenação de João Feres Júnior aqui, no Brasil, atuam vários pesquisadores de diversas instituições tais como Beatriz Catão Cruz Santos (UFRRJ), Bernardo Ferreira (UERJ/IUPERJ), Christian Edward Cyril Lynch (IESP-UERJ/FCRB), Cláudio Antonio Santos Monteiro (Université Robert Schuman, de Strasbourg, França), Guilherme Pereira das Neves (UFF), Heloisa Maria Murgel Starling (UFMG), Ivo Coser (UFRJ), João Paulo G. Pimenta (USP), Lúcia M. Bastos Pereira das Neves (UERJ), Luisa Rauter Pereira (IUPERJ/UFF), Marco A. Pamplona (PUC-Rio), Maria Elisa Noronha de Sá (PUC-Rio) e Valdei Lopes de Araújo (UFOP). Além dos pesquisadores brasileiros anteriormente citados, o Projeto Iberconceptos também é composto por equipes de pesquisadores de outros vários países: Argentina, Colômbia, Chile, Espanha, México, Peru, Portugal, Uruguai, Venezuela e países do Caribe e da América Central (FERES JÚNIOR, 2014).

Referências

FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte, MG: EDUFMG, 2014.

ROIZ, Diogo da Silva. A história dos conceitos no Brasil: problemas, abordagens e discussões. Caicó, vol. 15, no 34, p.279-285, jan. / jun. 2014.

JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS). vol. 20, no 57, p.27-38 (fevereiro, 2005).

Elvis de Almeida Diana1 –  Mestre em História pela UNESP. E-mail: [email protected]


FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: EdUFMG/Humanitas, 2014. Resenha de: DIANA, Elvis de Almeida. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.20, p.587-594, ago., 2017.Acessar publicação original [DR]

Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926) | Lúcia Helena Oliveira Silva

Paulistas afrodescendentes é o esperado fruto da tese de doutoramento de Lúcia Helena Oliveira Silva, defendida no ano de 2001, e se insere no contexto de consolidação do pós-Abolição como um campo autônomo de investigação historiográfica. Informado pela historiografia social da escravidão e do processo de abolição do trabalho escravo no Brasil, o estudo desvenda os caminhos que ex-escravos e seus descendentes trilharam ao buscar melhores condições de vida e ampliação da cidadania e conferir significados próprios à liberdade durante os anos posteriores à Abolição.

Desde os anos 1980 a historiografia social brasileira procura associar o tema das relações raciais com o problema gerado pelas tentativas de controle social da classe trabalhadora. A historiografia social do trabalho enquadrou essa especificidade do Brasil republicano com a compreensão das mais diversas esferas da vida cotidiana dos sujeitos. A perspectiva tem sua explicação no fato de que a questão do controle social, quando abordada pelo viés da experiência cotidiana da classe trabalhadora, ressalta o caráter da disputa política presente na vida cotidiana dos agentes sociais. Historiadoras(es) do pós-Abolição brasileiro têm percebido que a luta por cidadania da população negra também pode ser assimilada quando analisada à luz das práticas sociais dos sujeitos em seus dia a dia, e não só da realização de movimentos de reivindicação (Sidney Chalhoub, “Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque”).

Desse modo, Paulistas afrodescendentes é um livro que fornece ao leitor importante imersão no panorama teórico por que o campo acadêmico do pós-Abolição brasileiro passou entre os anos 1990 e 2000. Nele está presente o viés metodológico que privilegia as visões da liberdade que os sujeitos mobilizam para elaborar estratégias de garantir a manutenção de suas vidas no mundo após o fim do cativeiro.

O texto de Lúcia Helena Oliveira Silva revela os anos iniciais da República como um período recheado de expectativas orientadas pelos padrões socioculturais do mundo escravista do século 19, mas também engendradas pelas novas condicionantes sociais no Brasil após a abolição. A autora segue a tendência, muito presente na historiografia desde o fim da década de 1990, de demonstrar que a relação de negros com a sociedade pós-escravista foi marcada por numerosas redefinições, todas elas pautadas em concepções de cor que tenderam a se transformar com o passar do tempo, fosse para negros ou para brancos – como apontou o estudo de Hebe Mattos, Das Cores do Silencio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (1995).

Sendo assim, juntando-se a uma historiografia que começou a assumir as visões da última geração de escravos brasileiros como um problema histórico importante, a historiadora não se limita a atestar a marginalização dos ex-escravizados no mercado de trabalho. Oliveira Silva interpreta as estratégias de resistência de uma parcela da população negra paulista, acompanhando suas trajetórias e seus desejos de protagonizar uma vida mais justa frente ao convívio intenso que tiveram que ter com imigrantes, poder público e as economias de lugares como o estado de São Paulo e a cidade do Rio de Janeiro.

Protagonizar uma vida com melhores condições econômicas e com a efetividade do direito à cidadania não poderia deixar de levar em conta toda uma experiência acumulada durante os anos do cativeiro. Portanto, o racismo, somado à falta de acesso à propriedade e ao mercado formal de trabalho, contribuiu para a escolha da migração como solução por parte dos ex-escravizados e seus descendentes. Mobilidade territorial, nesse contexto, significou, para muitas mulheres e muitos homens, tomar as rédeas de suas vidas e lutar por mais direitos. Oliveira Silva propõe a noção de redes de solidariedade e de trajetórias para apreender o horizonte de experiências que a população negra de migrantes paulistas teve de lidar para resistir ao racismo pós 1888.

O debate sobre mobilidade territorial e migração no pós-Abolição tem importância historiográfica. Inspiradas por uma historiografia norte-americana que entende que migrar foi uma dimensão crucial da noção de liberdade, Ana Lugão e Hebe Mattos sugerem que o exercício da liberdade de movimentação do ex-cativo significou uma possibilidade de realizar rotas que poderiam proporcionar melhorias na condição de vida (O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas, 2004). Migrar traduzia a necessidade dos agentes históricos de constituir família, obter moradia e trabalho em locais onde as redes de solidariedade amenizassem a experiência do racismo.

A publicação do livro de Lúcia Helena Silva contribui para o cenário da historiografia nacional, tendo em vista os diálogos que seu texto estabelece com as gerações posteriores de historiadores. Esse texto pertence a um grupo que soube enfrentar o problema com as fontes que os temas relacionados ao pós-Abolição apresentam. Para acessar a experiência histórica dos ex-cativos, os historiadores dependem de documentação que só parcialmente comunica a cor dos indivíduos negros. A maior parte costuma ocultar a cor das pessoas envolvidas. De maneira muito habilidosa, Silva analisa os livros de registros de presos da Casa de Detenção da Corte (posteriormente denominada de Distrito Federal) que, por ser uma fonte policial, em muitos casos apresenta a cor dos presos, além de evidenciar o seus locais de emigração. Desse modo, a autora traça um quadro geral sobre os locais de habitação e os locais por onde os migrantes negros paulistas circularam e viveram na cidade do Rio de Janeiro.

Mas os livros de registro deixam de fora aspectos da rotina daqueles personagens. Como alternativa metodológica, Silva usa processos criminais e cíveis para captar os padrões de sociabilidade dos habitantes das regiões estudadas (p. 140). Enquanto os livros da Casa de Detenção fornecem indícios quantitativos sobre a repressão aos negros na cidade carioca, os processos delineiam um caminho qualitativo para a análise das experiências de negras naquela cidade.

A utilização de processo-crime também contribui para a coleta de evidências acerca das condições de vida, trabalho, lazer e religiosidade da população negra. Servindo-se de relatos orais, periódicos da grande imprensa, anuário estatístico e imprensa negra, a autora mescla informações de diferente natureza para delinear o quadro de racismo e de situações adversas que negros tiveram que enfrentar.

Quanto à periodização, a autora esclarece que “partimos de 1888, data da Abolição, e concluímos com 1926, data que marca o fechamento do jornal Getulino e o momento em que o item cor deixa de ser preenchido na documentação da Casa de Detenção” (p. 28).

Antes da análise dos capítulos, cumpre levantar questões metodológicas que nortearam os caminhos investigativos da autora. O caráter empírico da abordagem micro-histórica possibilitou a problematização de práticas sociais no pós-1888. Em alguma medida, para a historiografia do pós-Abolição brasileiro, o método da redução de escala foi a saída encontrada para cumprir com o objetivo de organizar e explicar a sociedade no seu período. Portanto, Lúcia Helena Silva opta pela investigação das trajetórias de sujeitos como uma maneira de se aproximar dos tipos de experiência que o novo mundo republicano possibilitou à população negra. A redução de escala, ao nível das trajetórias individuais ou coletivas, dos conflitos cotidianos, é importante instrumento metodológico para a captação das contradições, dos limites e das escolhas que os indivíduos fazem (Giovanni Levi, “Sobre Micro-História.” In: BURKE, Peter (Org). A Escrita da História: novas perspectivas, 1992.).

Com base nessas premissas metodológicas, Lúcia Silva argumenta que negros enfrentaram fortes dificuldades no Estado de São Paulo devido à mescla de características e estereótipos dos tempos escravistas e à perseguição policial e judicial. A escolha pela migração para lugares onde a vida poderia ser melhor foi uma consequência direta das condições sociais, culturais e econômicas que minavam as oportunidades que negros poderiam ter em São Paulo.

Desse modo, o primeiro capítulo analisa a experiência de vida de afrodescendentes paulistas no campo e na cidade no estado de São Paulo. Aproveitando-se de um processo-crime, de depoimentos orais, artigos da imprensa negra e da imprensa paulista, a autora investiga as sociabilidades e as relações de trabalho da comunidade negra focando nas relações raciais (p. 33). A população negra em São Paulo teve sua experiência social demarcada por conflitos raciais que, pautados em estereótipos grosseiros, acabaram por moldar posturas sociais, policiais e judiciais que forjaram mecanismos de discriminação contra pretos e de pardos. Fugindo da simples interpretação da exclusão, Lúcia Silva sugere que, se o negro sofreu com um processo de afastamento dos direitos à cidadania, isso não se deu sem conflito e sem contestação. Graças à sua capacidade de estabelecer laços de solidariedade, os negros puderam enfrentar o preconceito de cor e a violência das relações raciais (p. 46).

Mas num estado onde a política de branqueamento teve grande êxito e as teorias racialistas pautavam os rumos das práticas policiais e jurídicas, ser trabalhador negro não parecia coisa simples. Em São Paulo houve clara orientação política pela escolha de estrangeiros para a ocupação dos postos de trabalho. No campo, os imigrantes foram escolhidos para se submeter ao regime de colonato. Mas, e esse é um dos primeiros estudos a apontar para o fato, o negro também participou dessa prática de produção agrícola. Estudos recentes têm comprovado que houve uma considerável participação negra nas práticas de colonato dentro das fazendas paulistas (Karl Monsma, “Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros : emprego, propriedade, estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista”, Dados, v. 53, n. 3, 2010).

Ainda assim, na cidade ou nos campos de São Paulo o grande contingente imigrante e o racismo contaram para a exclusão do negro dos postos de trabalho e para a não consolidação de seus direitos de cidadania. Essa parcela da população sofreu com a precariedade e com a inconstância no trabalho (p.78-79). É dentro desse contexto que a possibilidade de migração apareceu como forma de efetivação de interpretações de liberdade. O segundo capítulo do livro trata da experiência de migração como uma das possibilidades de vivenciar a liberdade por parte dos libertos ao lhes dar uma visão de mundo mais larga e autônoma. A cidade do Rio de Janeiro foi um espaço aglutinador, onde migrantes negros e naturais dessa região tiveram como inventar suas próprias maneiras de sobrevivência. Era uma cidade com uma vida cultural negra muito rica, que distou da cultura da “elite da belle époque” (p.99-100). Não obstante, e mesmo com todas as possibilidades urbanas cariocas , com toda a expectativa dos ex-escravos e seus descendentes, ser pobre num período de grande esforço para o controle das ações e das ocupações populares representou lutar constantemente contra a saga reformadora da cidade do Rio de Janeiro (p. 105-117).

Mas o Rio de Janeiro ofereceu melhores possibilidades de formação de laços de amizade e de solidariedade que serviram como estratégia para burlar todo assédio do poder público (p.122-123). Mesmo com a forte perseguição policial e com uma reforma urbana que visava afastar o negro e o pobre do centro da cidade, a presença de manifestações religiosas afrodescendentes é um indício de que, com base nesses espaços de solidariedade e lazer, a comunidade negra transformou o território urbano em um campo de batalha política, onde houve constante negociação entre a cidade que se queria “civilizada” e a cidade “africana” (p.127). Dessa forma, Lúcia Silva enxerga o Rio de Janeiro como um campo de disputa mais favorável do que foi o estado de São Paulo. Podia-se estabelecer alianças – inclusive com a classe dominante – e estratégias de manutenção da vida cotidiana (p.127-128).

Por fim, no terceiro e último capitulo Lúcia Helena Oliveira Silva examina as relações entre migrantes paulistas e os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, observando como se deu sua interação durante a transformação do espaço social e físico da cidade. A historiadora enfoca nas vivências cotidianas de migrantes negros, mulheres e homens, afirmando que existiram alguns sujeitos que galgaram espaços em profissões relativamente estáveis e de boa remuneração. Eles conseguiram comprar casas, terrenos e alfabetizar-se, o que demonstra que migrar poderia ser uma maneira de mudança (p.146-147). Se é verdade que migrantes negros paulistas escolheram a cidade do Rio de Janeiro por estarem em busca de melhores condições de vida, e que lá estabeleceram laços socais que tornavam o dia a dia mais leve, também é verdade que tiveram que optar por moradias precárias para ficar perto das regiões que mais empregavam. A vida em cortiços era revestida de diversos conflitos que irrompiam quando os limites de privacidade e de convívio eram ultrapassados. É importante perceber que mulheres negras (migrantes aí incluídas) sofreram, repetidamente, com os padrões morais que deslegitimavam a forma de vida dessas agentes que, pelo caráter de suas profissões, deveriam ocupar espaços que se queriam masculinos.

Graças ao uso das ferramentas metodológicas da micro-história, Lúcia Silva oferece em Paulistas Afrodescendentes no Rio de Janeiro um rico quadro de experiências subjetivas dos negros que escolheram migrar de São Paulo para o Rio de Janeiro como uma estratégia possível de luta pela cidadania. É um estudo altamente recomendável para os interessados na construção social da liberdade no Brasil do fim do século 19.

Fábio Dantas Rocha – Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2014). Atualmente é membro do conselho editorial da Editora Palácio e analista de produção e difusão do conhecimento da Fundação Perseu Abramo. Mestrado em andamento na Universidade Federal de São Paulo.


SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016. Resenha de: ROCHA, Fábio Dantas. O caminho para Pasárgada: negros paulistas no Rio de Janeiro do pós-Abolição. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 352-358, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

A invenção da paz: da República Cristã do duque de Sully à Federação das Nações de Simón Bolivar | Germán A. de la Reza

A invenção da paz: da República Cristã do duque de Sully à Federação das Nações de Simón Bolívar é um estudo historiográfico cujo escopo é a investigação da tradição intelectual abarcada pelos diferentes projetos concebidos para a criação de confederações interestatais. De modo sumário, pode-se definir o livro como um estudo de História das Ideias, cujo enfoque se atém à recuperação do fio condutor existente entre os diversos pensadores que deram atenção à questão da criação de ligas confederadas na história do ocidente e sua penetração e difusão no âmbito da América Latina. O autor do livro, o pesquisador mexicano Germán A. de la Reza, é doutor em Filosofia e História pela Universidade Toulouse Le Mirail e figura como referência quando o assunto em pauta são ideias confederativas no contexto latino-americano, o que é notável pelo título de seus principais trabalhos, dentre os quais é possível destacar Les nouveaux défis de l’intégration en Amérique Latine, El Congreso de Panamá y otros ensayos de integración latinoamericana en el siglo XIX e El ciclo confederativo: historia de la integración latinoamericana en el siglo XIX.

Publicado originalmente pela editora Siglo XXI, A invenção da paz é o primeiro livro de Reza editado no Brasil e tem a virtude de apresentar ao público um eficiente panorama do processo de transmissão e recepção do pensamento confederativo nos mais diversos contextos históricos, desde Filipe II da Macedônia até Simón Bolívar, passando por diferentes nomes ligados ao pensamento anfictiônico, tanto aqueles de maior circulação, como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, como outros mais desconhecidos, como Émeric Crucé e Cecílio del Valle. Leia Mais

Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982) | Thiago Nunes Monteiro

A emergência dos movimentos sociais diversos e de grande vitalidade é uma das dimensões históricas centrais da conjuntura das lutas de resistência à ditadura civil-militar e de redemocratização do país. Em um ambiente de efervescência, o período registra uma grande diversidade de movimentos e práticas urbanas que se configuram como dimensão fundamental do tecido político e social daquele tempo. Leia Mais

Nietzsche e o ressentimento – PASCHOAL (C-FA)

PASCHOAL, Antonio Edmilson. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2015. Coleção Nietzsche em Perspectiva). Resenha de: SHILKAWA, Ítalo Kiyomi. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.21, n.1 Jan./Jun., 2016.

O novo livro de Antonio Edmilson Paschoal figura como o fechamento de uma pesquisa por ele empreendida entre 2007 e 2012 com o apoio do CNPq que, durante esses anos, publicou uma série de artigos sobre o tema do ressentimento na filosofia de Nietzsche. O livro ora em tela retoma e reelabora tais textos, o que permite ao leitor acompanhar como Paschoal se propôs a explorar um dos temas centrais da filosofia nietzschiana. Os objetivos do livro, segundo o autor, são de colocar em relevo “o modo como o conceito [de ressentimento] aparece e é utilizado na filosofia de Friedrich Nietzsche e as possibilidades de superação do ressentimento consideradas por ele, além de algumas especulações que se desdobram de seu pensamento” (p.25).

Atento à maneira como Nietzsche demonstra para seus leitores o ponto de partida de sua interpretação frente aos debates por ele assumidos, Paschoal também explicita qual é o viés interpretativo que norteia sua visão do tema do ressentimento: que, para ele, Nietzsche não é tão somente um filósofo corrosivo que abala os alicerces da moral e da cultura, mas Nietzsche também aponta soluções para os problemas por ele denunciados. Assim, o horizonte da leitura de Paschoal sobre o tema do ressentimento é de buscar meios de sua superação a partir da filosofia nietzschiana.

O primeiro capítulo tem caráter introdutório, no sentido de que visa contextualizar as conotações que o termo ressentimento possuiu na filosofia do século XIX, principalmente na Alemanha e na França. Em seguida, o autor faz um levantamento do termo nos escritos de Nietzsche, cuja primeira ocorrência remonta a uma correspondência de 1875, na qual Nietzsche comenta a obra do filósofo e economista alemão Eugen Dühring, O valor da vida. É importante notar que o interesse de Nietzsche em Dühring, segundo Paschoal, deve-se à procura do filósofo por referências fora do universo schopenhaueriano de seus primeiros escritos. Nesta etapa, Nietzsche estaria procurando novos interlocutores para desenvolver seu pensamento.

A ideia de ressentimento proposta por Dühring marcou profundamente Nietzsche, que criticou tal ideia em textos como Além de bem e mal e Assim falou Zaratustra sem lançar mão da palavra e sem fazer referência direta a Dühring. Todavia, a concepção de que a vingança e a justiça se originam de sentimentos negativos já passa a se configurar como o gérmen da filosofia da superação do ressentimento que Nietzsche desenvolverá em seus escritos posteriores. O termo ressentimento surge com força na Genealogia da moral com dois significados principais: como um problema individual do homem, que se torna fraco diante de uma vingança não realizada; e como um problema social, na medida em que corresponde a uma concepção de justiça e intervenção política.

No segundo capítulo, “Ressentimento e vontade de poder”, Paschoal parte da interpretação de que o ressentimento pensado por Nietzsche não é uma simples reação mecânica como havia proposto Dühring, mas é um fenômeno que se insere no jogo das pluralidades de vontade de poder. Enquanto vontade de poder, o ressentimento é um fenômeno social que busca o domínio, e como sintoma fisiológico, resulta de um enfraquecimento do organismo do homem. Neste capítulo, ganha destaque o aspecto social do ressentimento, ao passo que forma e nivela um tipo de ser humano enfraquecido, não afeito às diferenças, segundo Paschoal:

não é necessário que o outro tenha cometido uma agressão para se tornar alvo de uma sede de vingança do homem do ressentimento. Basta ser diferente, pois, por uma expectativa de segurança ou por medo, o homem do ressentimento se volta para aqueles que são diferentes dele e, tomando-os como um perigo, real ou imaginário, busca tê-los sob seu domínio (p.61).

Paschoal identifica a gênese do ressentimento como fenômeno social no diagnóstico dado por Nietzsche na Genealogia da moral : é com a “rebelião escrava da moral” (GM I 7) que o ressentimento se tornou dominante, o que figura não só o adoecimento daqueles que são adeptos do ideal de nivelamento do homem, mas se tornou também nocivo a toda cultura Ocidental na medida em que se elevou como a forma vitoriosa de criação de valores. A estratégia identificada por Paschoal, que permitiu a vitória da moral do ressentimento no diagnóstico nietzschiano, é de produzir a si mesma através de uma “degeneração e diminuição do homem em direção do perfeito animal de rebanho” (Além de Bem e Mal 203); tal estratégia é tematizada por Nietzsche sob as rubricas de uma “pequena política”, que expressa o ressentimento como formador do corpo social. Um dos mecanismos centrais identificados pelo autor, e que representa um dos pontos chaves do livro, é o papel que a vingança exerce na política de disseminação do ressentimento, a moral ressentida universaliza, sob o nome de “justiça”, a sede de vingança que propaga um adoecimento coletivo. O capítulo se encerra com algumas pistas que já sinalizam uma possível saída do ressentimento a partir da filosofia de Nietzsche. Uma vez que a moral do ressentimento tenha sido vencedora, não é possível aos homens escapar de sua influência, mas há indicativos de um ideal contrário, que retira do ressentimento um resultado que não é sua mera reprodução, mas para isso é necessário ao homem uma força que transforma a doença do ressentimento numa tensão capaz de elevá-lo (pp.75–6).

No terceiro capítulo, “Nietzsche e Dühring: ressentimento, vingança e justiça”, Paschoal verticaliza um tema anunciado no capítulo anterior, a relação filosófica entre Nietzsche e o professor de filosofia em Berlim na época, Karl Eugen Dühring. Paschoal demonstra que em 1875 Nietzsche se debruçou sobre a obra de Dühring, O valor da vida, a ponto de fazer uma extensa resenha onde destaca os aspectos centrais da obra, ideias que serão cuidadosamente refutadas na Genealogia da moral, obra de 1887. Contudo, Paschoal percebeu um sutil aspecto da resenha de 1875: no Valor da vida, Nietzsche encontrou a ideia de que a vida não pode ser avaliada de forma desinteressada, pois toda forma de avaliação sobre a vida é movida por um afeto. Essa ideia, que inicialmente Dühring utiliza para criticar Schopenhauer, será incorporada no pensamento de Nietzsche, sem, contudo, fazer referência ao professor de Berlim.

O ponto central destacado por Paschoal na contraposição de Nietzsche a Dühring diz respeito à visão deste sobre os fundamentos do conceito de justiça. Para Dühring, a ideia de justiça tem origem em impulsos e afetos reativos, que buscam compensação por um dano sofrido, e a justiça seria, então, uma compensação de um sofrimento, o que se coaduna com a ideia de vingança. Assim, o sentimento de justiça, em Dühring, tem proveniência no ressentimento.

Paschoal demonstra zelo no tratamento que confere à questão ao contrapor o conceito de justiça oriundo da vingança em Dühring à ideia de justiça apresentada por Nietzsche na Genealogia da moral. Para Nietzsche, a justiça nasce a partir de um pathos de distância de indivíduos nobres, que criam leis tanto para resolver conflitos quanto para obrigar as massas a assumir compromissos. Para se constituir como tal, a justiça precisa da imparcialidade que é diametralmente oposta a qualquer sentimento de vingança, e a justiça tem como finalidade o futuro da comunidade, e não a compensação impossível de danos. Os sentimentos de superioridade e de imparcialidade dessa concepção de justiça podem levar a comunidade, segundo Nietzsche, a se dar ao luxo de, em alguns casos, promover um curto-circuito no mecanismo de vingança do ressentimento ao deixar “livre os insolventes” (GM II 10) num “ato de graça ”.

Os paralelos entre a filosofia nietzschiana e a literatura de Dostoiévski t ê m sido alvo de estudo de diversos pesquisadores na Pesquisa Nietzsche do Brasil, e os trabalhos de Paschoal sobre o tema são, sem dúvida, muito importantes para o desenvolvimento do assunto; tais artigos foram compilados no quarto capítulo do livro em tela. “Dostoiévski e Nietzsche: especulações em torno do ‘homem do ressentimento’” explora a relação entre a filosofia de Nietzsche e os traços psicológicos de personagens do autor russo.

Paschoal realiza um trabalho de pesquisa em fontes ao consultar a mesma edição da obra de Dostoiévski que Nietzsche utiliza como referência na Genealogia da moral.Trata-se de uma compilação francesa intitulada L’esprit souterrain, que reúne as obras A senhoria e Memórias do subsolo, todavia, essa edição foi editada de modo a parecer uma única obra, e tal torsão editorial foi percebida por Nietzsche, que registrou tal fato numa carta. Chama a atenção de Paschoal, na segunda parte de L’esprit souterrain, que corresponde às Memórias do subsolo, a tradução do termo russo “ Zlosti ” por “ ressentiment”, termo que é empregado por Dostoiévski para descrever o personagem que é caracterizado como “homem da consciência hipertrofiada” e que se considera um “camundongo”. Na visão de Paschoal, o fino tratamento psicológico que o autor russo utiliza para particularizar seu personagem é uma das influências mais marcantes para a interpretação nietzschiana do ressentimento na Genealogia. O personagem não-nomeado pelo escritor russo recebe essa caracterização por criar em si uma “peçonha” devido aos desagravos vividos, e ele alimenta em si uma crescente ofensa e sofrimento. Tal ampliação negativa do mundo interior corresponde ao homem do ressentimento da Genealogia da moral.

Igualmente, o homem nobre do livro de Nietzsche de 1887, aquele que não permite que o ressentimento se instale em seu organismo, tem um paralelo nas Memórias do subsolo, trata-se do “ l’homme de la nature et de la vérite ”, este não se torna rançoso porque reage imediatamente frente aos agravos, não permitindo, assim, a sua introspecção.

Segundo a análise de Paschoal, a leitura de Dostoiévski foi fundamental para Nietzsche cunhar uma das concepções de ressentimento na Genealogia. A esmerada construção psicológica do personagem de Dostoiévski fez com que Nietzsche admitisse que o autor russo fosse o “único psicólogo” com o qual o filósofo teve algo a aprender ( Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo 45). Não obstante as semelhanças, Paschoal chama a atenção para os diferentes projetos que separam os autores analisados: enquanto Dostoiévski utiliza o ressentimento para a caracterização intimista de um personagem, Nietzsche, por sua vez, parte da psicologia do homem ressentido para expandir a interpretação do ressentimento, num viés que atinge a moral e a sociedade.

No quinto capítulo, “Má consciência e ressentimento”, Paschoal realiza um mapeamento dos termos “má consciência” e “ressentimento” na obra nietzschiana.

Atento às nuanças e variações que os termos recebem, o autor constata que os termos possuem sua maior relevância na obra Genealogia da moral. Ao analisar o par de conceitos, Paschoal oferece ao público um exemplo da utilização do método contextual de interpretação da filosofia de Nietzsche, sugerido por Werner Stegmaier, que propõe a interpretação dos conceitos nietzschianos no contexto em que surgem e auscultando os propósitos localizados em cada passagem. Tal método permite compreender o experimentalismo de Nietzsche, que utiliza de conceitos para mobilizar propósitos circunscritos em determinados contextos, o que oportuniza compreender Nietzsche como um filósofo ao mesmo tempo não-sistemático e nãocontraditório.

Atento às variações que um mesmo conceito recebe na pena de Nietzsche, Paschoal demonstra que antes de 1887 a ideia de ressentimento em Nietzsche fica estritamente vinculada à ideia de Dühring, a qual o filósofo critica vorazmente. Na Genealogia da moral, o termo ressentimento ganha em significados, seja na ampliação do mundo interior do homem, ou na imposição de uma moral do ressentimento.

Paschoal dedica o mesmo cuidado analítico ao perseguir as acepções do termo má consciência nos escritos de Nietzsche, termo que antes de 1887 fica próximo de sua concepção cristã, isto é, como um conflito interior ou remorso. Na Genealogia, Nietzsche apresenta sua “hipótese própria” à noção de má consciência – que não é unívoca. Primeiramente, a má consciência é pensada como interiorização do homem, como mudança do curso dos instintos animais do homem que, por meio do processo civilizatório, “não podem ser descarregados para fora, mas são internalizados” (GM II 16), a ponto de expandir o mundo subjetivo do humano, o que o torna um “animal interessante” (GM I 6). Se a interiorização do homem pela má consciência é uma doença necessária, tal como a gravidez (GM II 19), por outro lado, em posse da política de dominação da moral do ressentimento, a má consciência se torna um adoecimento crônico no diagnóstico nietzschiano, pois para ele o cristianismo tornou os antigos instintos animais do homem culpáveis, o que aos olhos de Nietzsche é uma “loucura da vontade” (GM II 22). E mais, o cristianismo, segundo Nietzsche, amplia a má consciência do homem ao colocá-lo numa dívida impagável frente a Deus.

No sexto capítulo, “Possibilidades para se colocar para além do ressentimento”, o autor busca em Nietzsche possíveis soluções para o problema do ressentimento.

Primeiramente, Paschoal identifica que a direção para o problema da saída do ressentimento possuiu uma solução diversa daquela descrita na terceira dissertação da Genealogia da moral. Nesta dissertação, Nietzsche apresenta as técnicas do sacerdote ascético que, para lidar com o sofrimento causado pelo ressentimento, acaba tornando o homem um “animal manso” (GM III 15), fraco e entorpecido.

Nietzsche, na direção contrária, constrói três possíveis soluções, segundo Paschoal, para a saída do ressentimento.

A primeira possível saída do ressentimento, identificada nos textos de 1882 até o início de 1888, é buscada através do cultivo de um tipo de homem superior – o Übermensch –, e tal intenção de criar um tipo humano figura, nos textos deste período, como uma utopia possível, e não como algo irrealizável. A segunda saída possível do ressentimento está intimamente relacionada à primeira e, na interpretação de Paschoal, pode ser encontrada tacitamente na forma como os tipos elevados de homem lidam com o ressentimento, seja numa etiqueta de ordenamento e de oligarquia dos impulsos que fazem a assimilação psíquica da energia introjetada pelo ressentimento, ou pela ideia de uma higiene do espírito (GM I 10; II 1). A higiene do espírito proposta no Ecce Homo, a do “fatalismo russo” (EH Por que sou tão sábio 6), visa conservar a vida em condições desfavoráveis e de fraqueza, mas tal condição de estivação não figura, como no sacerdote ascético, um fim, mas é apenas um meio para a recuperação da saúde e a consequente saída do ressentimento. O terceiro modo de superação do ressentimento, segundo Paschoal, está inserido numa virada do pensamento de Nietzsche nos seus últimos escritos, pois no Ecce Homo e no Anticristo os contornos de uma utopia do além-do-homem cede lugar a uma filosofia voltada eminentemente para o presente. A ideia de amor fati é reavaliada nesse sentido, pois diferentemente de seu primeiro uso em 1882 (Gaia Ciência 276), a ideia não figura nos textos derradeiros de Nietzsche como um ideal futuro, mas como um conceito presente na avaliação retrospectiva de Nietzsche sobre seu próprio pensamento (EH Por que sou tão esperto 10). Seguindo as indicações de Montinari e Stegmaier, Paschoal pensa o tipo Jesus do Anticristo como um exemplo de uma figura que não dá margem para o surgimento do ressentimento. Tanto no amor fati do Ecce Homo quanto no tipo Jesus do Anticristo acontece a superação do ressentimento, pois em ambos os casos o homem se coloca para além do mecanismo do ressentimento, já que ambos não negam aquilo que é necessário e nada desejam de forma diferente e, portanto, nada t ê m a ressentir.

O livro se encerra com um apêndice intitulado “Especulações para novas investigações”, que conduz o tratamento do conceito de ressentimento para limites mais amplos do que a exegese dos textos nietzschianos. Paschoal lança mão da filosofia de Nietzsche para pensar a superação do ressentimento na prática política e social contemporânea e, para isso, utiliza um modelo político: a figura de Nelson Mandela e a implantação da política que permitiu vencer o apartheid na África do Sul.

O contraponto à reflexão proposta por Paschoal é o conceito de justiça promulgado por Dühring, para o qual a justiça se fundamenta num sentimento de vingança que busca equivaler o dano à punição. Todavia, tal concepção de justiça, segundo Paschoal, termina por promover o mecanismo social e político do ressentimento, ao passo que a punição só é ficcionalmente equalizada aos danos, e a punição é tão somente destinada ao indivíduo que cometeu o dano, pois se exime de punir o meio que o produz e, por fim, tal concepção de justiça produz um tipo humano decadente, incapaz de se elevar sobre o cálculo que satisfaz sua sede de vingança.

Paschoal encontra em algumas passagens de Nietzsche a possibilidade inusitada da emergência de tipos humanos destacados, que se esquivam do mecanismo que produz a justiça ressentida e, na Genealogia da moral, Nietzsche aponta para a “autossupressão da justiça” (GM II 10), que “culmina em fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – ela termina como toda coisa boa sobre a terra, suprimindo a si mesma ”. A despeito de tão enigmática passagem do filósofo alemão, Paschoal procura interpretá-la a partir do sutil trabalho de homens destacados, pois nessa passagem Nietzsche afirma que deixar de cobrar uma punição só pode figurar como uma graça ( die Gnade ) ou indulgência por parte de tipos humanos elevados. Tal concepção de graça não tem a mesma acepção do universo religioso de onde advém, mas, ao contrário, pode ser entendida a partir de indicações do Ecce Homo, como um “luxo” dado por naturezas destacadas e voltadas para si mesmas que, num ato de indulgência, deixa de cobrar uma dívida não por compaixão, mas como parte “do egoísmo, do cultivo de si” (EH Porque sou tão esperto 9).

Paschoal identifica na figura de Mandela o modelo de um homem que propôs uma política que se coloca para além do ressentimento, pois se na época pósapartheid todas as injustiças fossem “reparadas” num movimento contrário, como na justiça-vingança de Dühring, a África do Sul seria impelida numa guerra civil insolúvel, e assim a possibilidade de um futuro diferente da lógica de exclusão estaria seriamente comprometida. A política de Mandela, na interpretação de Paschoal, ao buscar o fim do confronto racial na dissolução do anseio político por vingança, figura como um modelo ímpar de uma política de combate ao ressentimento para o século XXI, época para o qual o discurso nietzschiano de superação do ressentimento soa tão atual quanto foi no século XIX.

Nietzsche e o ressentimento é obra de um pesquisador maduro, que demonstra preocupação tanto com a metodologia quanto ao trabalho em fontes para interpretar os textos nietzschianos, e tal primoroso trabalho de exegese se dirige para o apelo de construir uma filosofia comprometida a refletir aspectos essenciais para o presente.

Nesse sentido, Paschoal tem o mérito de atualizar a filosofia de Nietzsche, isto é, de fazer com que o filósofo alemão diga algo a respeito sobre o problema do ressentimento – que figura como doença humana, tanto no homem individual quanto no coletivo social –, e suas possibilidades de ultrapassagem.

Nietzsche e o ressentimento surge como obra obrigatória para estudiosos que se debruçam sobre o tema, assim como para aqueles interessados na relação entre o pensamento de Nietzsche com Dühring e com Dostoiévski.

Ítalo Kiyomi Ishikawa – Universidade Federal do Paraná. [email protected]

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A concepção de matéria na obra de Schopenhauer – BRANDÃO (V-RIF)

BRANDÃO, Eduardo. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2009. Resenha de: SOARES, Daniel Quaresma F. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.3, n.1/2, p.352-358, 2012.

Originado a partir da tese de doutoramento defendida por Eduardo Brandão na Universidade de São Paulo, A concepção de matéria na obra de Schopenhauer pode ser apresentado a partir de duas das suas grandes virtudes, que se intercruzam. Em primeiro lugar, surge neste livro uma interpretação robusta e inovadora acerca da noção de matéria no pensamento schopenhaueriano. Já na Introdução, o autor alude à possível reação de um leitor, que perguntaria: diante de questões mais “nobres e abrangentes” (p. 16) da filosofia de Schopenhauer – tais como a negação da Vontade, a estética e a moral –, por que se deter num tema aparentemente tão “pacífico” e localizado como a matéria? A resposta virá durante todo o livro, e não poderia ser mais clara: justamente porque a concepção de matéria nada tem de pacífica na obra de Schopenhauer. Ao contrário, a matéria será demonstrada como um ponto central de cruzamento, a partir do qual é possível tanto constatar influências pouco conhecidas sobre o pensamento schopenhaueriano quanto lançar luz sobre a articulação de temas capitais para o sistema da Vontade, tais como a relação sujeito/objeto, a metafísica e o argumento de analogia entre homem e mundo.

O suposto caráter não-problemático da concepção de matéria ruirá na medida em que Brandão expõe o modo como tal concepção foi gradualmente alterada e revisada por Schopenhauer, geralmente de modo inconfesso, desde as obras de juventude até o segundo volume de O mundo como vontade e representação. Assim, trata-se justamente de levantar uma suspeita sobre esse aparente ponto pacífico da filosofia schopenhaueriana. Desconfiança que nos leva à segunda das grandes virtudes desta obra. Valendo-se da análise específica da noção de matéria, o autor questiona tacitamente um modo cristalizado de abordagem da filosofia de Schopenhauer. Afinal, talvez por excesso de confiança nas palavras do filósofo (que afirma recorrentemente a unidade a-histórica de seu pensamento), em grande parte dos comentários sobre Schopenhauer ainda é rara a investigação de temas a partir da periodização de seus escritos. Segundo Brandão, no caso específico da concepção de matéria (o que não significa que tal periodização caberia à análise de qualquer questão da filosofia schopenhaueriana), não há como efetuar uma abordagem consequente do tema sem recorrer à divisão histórica dos escritos de Schopenhauer em três períodos: o primeiro engloba a Dissertação de 1813 e a primeira edição de Sobre a visão e as cores; o segundo é constituído pela primeira edição de O mundo como vontade e representação; e o terceiro abrange todas as obras publicadas a partir de Sobre a vontade na natureza (texto no qual começaria a ocorrer a mudança decisiva na concepção de matéria em Schopenhauer).

Assim, o enfoque na questão da matéria teria como função tanto esclarecer o importante (e geralmente desconhecido) papel dessa noção na filosofia schopenhaueriana – apresentando também as (muitas vezes insuspeitas) influências que a constituem –, quanto levantar uma suspeita que cabe a todos nós, historiógrafos da filosofia da Vontade: até que ponto devemos aceitar, confiantes naquele “pensamento único” tão apregoado pelo filósofo, que não há grandes modificações de percurso na filosofia de Schopenhauer? No entrecruzamento entre essas duas facetas (uma relativa ao conteúdo da investigação e outra implícita, metodológica), Eduardo Brandão analisa “as transformações do conceito de matéria ao longo da obra de Schopenhauer” (p. 17) em quatro capítulos.

No primeiro, intitulado O lugar da matéria, o autor procura apontar alguns dos problemas que teriam levado Schopenhauer, em determinado momento de sua trajetória intelectual, a reconfigurar toda a teoria da representação. Mostra-se, por exemplo, que, segundo a letra schopenhaueriana, é preciso identificar forças naturais e Ideias. Porém, o conhecimento das Ideias, como sabemos, é reservado sobretudo ao gênio. Em contrapartida, o terceiro livro d´O mundo demarca nitidamente a separação entre conhecimento estético e conhecimento científico. Sendo assim, como se daria um conhecimento específico de tais forças naturais, conteúdo da metafísica da natureza, que não recaísse num conhecimento estético? Ou seja, nessa configuração “não poderia haver um modus operandi do conhecimento específico da metafísica da natureza” (p. 27). Se, conforme explicitado em Sobre a Vontade na natureza, Schopenhauer almejará uma confirmação de sua metafísica por meio da ciência, como seria possível (dada a separação radical entre ciência e estética) operar essa relação? Assim, seria preciso “encontrar uma relação entre as ciências e a Vontade que não seja de exclusão, […] mas de cooperação” (p. 39).

A tentativa de solucionar tais problemas, entre outros, exigiria uma revisão da teoria da representação, na qual uma renovada concepção de matéria encontrará seu lugar. Segundo Brandão, Schopenhauer perceberá que a Ideia não pode ser estabelecida como o único elo da corrente entre a Vontade e seus fenômenos; afinal, se a função da Ideia é precisa no domínio da estética e da moral, o mesmo não se pode dizer da metafísica da natureza. Com efeito, a matéria poderia ocupar a função de elo entre Ideia e fenômeno, já que é, por um lado, causalidade, e por outro, a instância na qual a Ideia se manifesta. Para conceber essa função, o filósofo precisará ampliar a noção de matéria, conferindo-lhe um estatuto metafísico que ainda não aparecia nos textos de juventude e na primeira edição d´O mundo. À matéria deverá ser conferido um “duplo registro no terreno da objetividade” (p. 63).

Na última seção do primeiro capítulo e no decorrer do segundo, intitulado Os dois lados da matéria, o duplo registro da matéria na filosofia schopenhaueriana será explicitado. Segundo Eduardo Brandão, a partir de 1836 o filósofo de Danzig começa a estabelecer uma distinção entre Materie e Stoff. Ambos os termos deveriam ser igualmente traduzidos por matéria, pois referem-se à mesma noção; porém, tal diferenciação tem a função de ressaltar o duplo ponto de vista schopenhaueriano acerca da matéria. O autor demonstra como a diferença entre Materie e Stoff há muito está presente nos comentários (sobretudo entre os alemães) sobre a filosofia de Schopenhauer. Porém, o papel dessa distinção ainda não teria sido suficientemente utilizado para elucidar as influências recebidas e os debates travados pelo filósofo quando da elaboração do “arcabouço conceitual em que se move a metafísica da natureza” (p. 68). Essa é a tarefa à qual o livro se consagra, e com êxito.

A partir de passagens nas quais Schopenhauer aproxima explicitamente a Ideia, tal como aparece na metafísica da natureza (os graus de objetivação da Vontade), e a noção de forma substantialis, oriunda da tradição aristotélica, Brandão aponta a insuspeita presença de uma vertente aristotélica no interior da noção (supostamente platônica) de Ideia em Schopenhauer. Retomando, à sua maneira, a oposição entre nominalismo e realismo, o filósofo alemão teria procurado esclarecer o estatuto da Ideia (unitas ante rem) e do conceito (unitas post rem). Assim como alguns autores medievais buscaram pacificar a querela entre realismo e nominalismo, Schopenhauer buscaria pacificar conceito e Ideia em sua teoria da representação, a fim de legitimar o modus operandi da metafísica da natureza, que será conduzido pela noção de Materie. Desse modo, mostra-se como, no interior da noção de Ideia schopenhaueriana, sempre dita platônica, esconde-se (após a revisão da teoria da representação) um registro aristotélico. Porém, Brandão alerta que “não se trata de preferir o estagirita a Platão, mas de, no fundo, tentar estabelecer uma coexistência (devidamente camuflada por Schopenhauer) entre ambos” (p. 80). Mostra-se inclusive como a revisão da teoria da representação é também influenciada por Giordano Bruno e Plotino (autores que tentaram, cada um a seu modo, efetuar uma aproximação entre Platão e Aristóteles).

Concomitantemente, o autor de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer ressalta que essa remissão a Aristóteles deve ser tomada com cautela. Afinal, Schopenhauer não faria uso das noções aristotélicas de modo fiel, mas as adaptaria às finalidades de seu próprio pensamento. Assim, tais aproximações deveriam ser sempre consideradas de modo analógico. Além disso, a referência a Aristóteles nunca seria direta, mas intermediada pela escolástica, sobretudo por Suárez.

Ressalvas feitas, Eduardo Brandão demonstra com acuidade as diversas aproximações possíveis entre a concepção schopenhaueriana de matéria e noções oriundas da tradição aristotélica. A Materie poderia ser compreendida de maneira análoga à noção medieval de materia prima, ao passo que Stoff poderia ser aproximada da concepção tomista de materia signata. A Materie seria concebida como análoga à substância (embora retraduzindo a noção aristotélico-escolástica para o interior do idealismo schopenhaueriano), o que permanece na mudança; Stoff, por sua vez, seria concebida como análoga ao acidente, referindo-se aos estados da matéria. Em suma, a Materie seria matéria sem forma e qualidade: uma abstração, um conceito resultante de uma operação da razão, que não é dado na experiência, mas apenas pensado. Ela seria uma atividade permanente in abstracto, um agir em geral. Já Stoff seria matéria formada e qualificada, dada na experiência. Ou seja, matéria intuída, agir em concreto, resultado de uma operação do entendimento. Ainda no horizonte de um referencial aristotélico (sempre permeado pela escolástica), a relação entre Materie e Stoff poderia também ser vista analogamente como uma relação entre potência e ato.

Com efeito, a dupla significação conferida à matéria surgiria para tentar dirimir algumas aporias suscitadas pela primeira edição d´O mundo. Por exemplo: “como uma matéria que é causalidade (portanto, essencialmente mudança) pode, ao mesmo tempo, permanecer numa mudança?” (p. 100). Esse duplo registro permitiria ao filósofo enfim elucidar como a matéria pode ser concebida como o elo de ligação entre a Ideia e o principium individuationis (noção também retirada da tradição aristotélica medieval). Com o par Materie e Stoff, Schopenhauer seria capaz de esclarecer aquela passagem entre Ideia e fenômeno. Afinal, a Materie é a arena da luta dos graus de objetivação da Vontade. Ela cumprirá a função de receptáculo, permitindo essa passagem na medida em que é concebida pelo filósofo de Danzig como aquilo que permanece: “não sendo dada em nenhuma experiência, é pressuposta em todas elas como o sujeito (portador) dos predicados (ou qualidades) que justamente as formas (idéias) ocasionam ao se manifestar nos fenômenos (que são, por sua vez, Stoff)” (p. 143-144). Sem se confundir com um substrato real, a noção de Materie surgiria para articular aquela dificuldade encontrada no cerne da metafísica da natureza.

No terceiro capítulo, intitulado As metafísicas e a matéria, Brandão inicia problematizando a afirmação schopenhaueriana que designa a tábua dos Praedicabilia a priori (apresentada no capítulo 4 dos Complementos) como uma propedêutica aos Princípios metafísicos da ciência da natureza de Kant, demonstrando como é preciso constatar a influência de uma ontologia pré-crítica (de tradição aristotélica) a atravessar o pretenso kantismo alegado por Schopenhauer.

Mas a principal tarefa deste capítulo talvez seja esclarecer o deslocamento fundamental na teoria da representação schopenhaueriana, rematado pelo segundo volume d´O mundo, no qual sujeito e Materie passam a ser apresentados como polos do mundo como representação. Nele, a correlação entre sujeito e objeto seria, de certo modo, transformada na correlação entre sujeito e matéria: polos subjetivo e objetivo da representação, respectivamente. Segundo o autor de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, tal deslocamento traria fortes consequências à metafísica schopenhaueriana, já que a Materie passaria também a ser concebida como a objetivação da Vontade tomada in abstracto. Ou seja, assim como o sujeito (por meio do corpo, objeto imediato) era, desde a primeira edição da obra magna schopenhaueriana, a visibilidade subjetiva da Vontade, a matéria tornar-se-ia – no período final da trajetória intelectual do filósofo – a visibilidade objetiva da Vontade.

Por meio dessa dimensão metafísica da Materie, Schopenhauer teria introduzido no plano da representação o vínculo com a Vontade, viabilizando, assim, como se uma passagem do fenômeno ao em si. Com isso, aproximar-se-ia a possibilidade de uma fundamentação metafísica da natureza. Afinal, “a metafísica da natureza, ao analisar a Vontade do ponto de vista objetivo (na matéria, portanto) tem de ser justamente metafísica” (p. 205). Com efeito, apenas esse novo estatuto da matéria tornaria possível realizar uma confirmação da metafísica pelas ciências, exigência exposta em Sobre a vontade na natureza.

Segundo o autor, esse deslocamento ajudaria também a lançar luz sobre um dos pilares do “pensamento único” schopenhaueriano: a atribuição de um sentido moral ao mundo, estabelecendo a correspondência entre moral e metafísica da natureza. Afinal, se já se afirmava que a mesma Vontade age tanto na ética quanto na natureza, a partir da revisão da teoria da representação seria possível explicar conceitualmente a relação entre elas. Aquilo que para o homem é designado como caráter equivale, na natureza, à noção de força. Tal força, por sua vez, concebida como grau de objetivação da Vontade ou Ideia, manifesta-se na matéria. Neste sentido, um papel fundamental teria sido desempenhado já quando o filósofo instalara a lei de motivação não apenas na quarta classe de representações, como acontecia na Dissertação de 1813, mas como uma das três modalidades da primeira classe (ao lado da causalidade em sentido estrito e da excitação). Essa passagem da quarta classe à primeira teria possibilitado a Schopenhauer estabelecer o solo inicial para vincular moral e natureza, tornando análogas necessidade física e moral.

A partir desse solo, a revisão da teoria da representação efetuaria finalmente uma operação fundamental no interior do sistema da Vontade: conceitualizar o argumento de analogia, que teria sido apresentado de maneira apenas parcial no segundo livro d´O mundo. A formalização conceitual do argumento de analogia encontra suas raízes em Sobre a Vontade na natureza. Nessa obra percorre-se aquele argumento em sentido inverso: ou seja, parte-se das manifestações objetivas da Vontade na matéria e conclui-se por sua manifestação subjetiva. Assim, ao mesmo tempo em que corrigiria a parcialidade da formulação apresentada no segundo livro d´O mundo, o texto de 1836 abriria caminho para o estabelecimento da correlação entre sujeito e matéria, posteriormente explicitada nos Complementos: “além do ponto de vista subjetivo sobre a Vontade deve haver, como correspondente, um ponto de vista objetivo” (p. 230). Na medida em que a matéria aparece como polo objetivo da representação, o argumento de analogia poderia ser finalmente conceitualizado: “e a ideia de analogia se transforma neste reconhecimento de que, assim como se manifesta subjetivamente no sujeito do querer, a Vontade manifesta-se objetivamente na matéria” (p. 236).

No último capítulo, Idealidade e Realidade, trata-se de retirar algumas consequências dos capítulos anteriores. Um resultado importante da formalização da analogia entre natureza e moral refere-se à questão da liberdade: se, do ponto de vista subjetivo, a filosofia schopenhaueriana reconhece a liberdade do fazer, seria preciso (após a revisão da teoria da representação) reconhecer algo análogo do ponto de vista objetivo. Ou seja, assim como o homem possui caráter empírico e inteligível, “cada objeto tem de conciliar liberdade e necessidade” (p. 261). A dupla significação da matéria seria capaz de responder a essa exigência. Afinal, se ser livre é não estar submetido a uma razão suficiente, a Materie – assim como seu correlato, o sujeito – poderia ser considerada livre. Desse modo, “na noção de matéria conciliam-se liberdade (ou seja, indeterminação, idealidade transcendental, através da noção de Materie) e necessidade (determinação, necessidade, realidade empírica, através da noção de Stoff)” (p. 263).

Consciente da meta schopenhaueriana de conjugar idealidade transcendental e realidade empírica, outro ponto crucial deste capítulo é o esclarecimento da posição de Schopenhauer acerca do materialismo. Segundo Brandão, mesmo após as críticas (já presentes na primeira edição d´O mundo) à “petição de princípio” em que recai o materialismo, o filósofo de Danzig poderia reconhecer as pretensões dessa doutrina (que concebe o conhecimento como modificação da matéria) desde que fossem reconhecidas igualmente as pretensões do idealismo (que, por sua vez, concebe a matéria apenas como modificação do conhecimento do sujeito). Diante da questão do materialismo, Schopenhauer apenas seria consequente com sua teoria da representação, que sempre sustentara não haver objeto sem sujeito nem sujeito sem objeto. Com isso, Eduardo Brandão rechaça as interpretações que pretendem apontar um materialismo insidioso que dominaria a teoria do conhecimento de Schopenhauer. Segundo o autor, a revisão da teoria da representação permitiria explicar como a matéria possui tanto realidade empírica quanto idealidade transcendental.

Desse modo, a concepção de matéria na filosofia de Schopenhauer encerraria um ideal-materialismo. E se o materialismo poderia ter suas pretensões reconhecidas desde que reconhecesse a contrapartida idealista, o mesmo ocorreria com o idealismo: por isso, a partir da dupla significação da matéria Schopenhauer procuraria defender o idealismo transcendental kantiano contra o idealismo absoluto de Fichte, Schelling e Hegel. Neste sentido, o autor demonstra como a descoberta da primeira edição da Crítica da razão pura propiciou uma reaproximação de Schopenhauer em relação a Kant. Segundo o filósofo da Vontade, apenas nessa edição Kant professaria um idealismo genuíno, não recaindo em dogmatismo (numa leitura em que Schopenhauer sofreria influência do cético Schulze) e assumindo resolutamente a máxima “não há objeto sem sujeito”. O idealismo que transparece nos Paralogismos da alma, na primeira edição da Crítica da razão pura, teria sido influência decisiva para a revisão da teoria da representação schopenhaueriana, permitindo o estabelecimento da correlação entre sujeito e matéria.

Na Conclusão, Brandão frisa como a noção de matéria é um ponto privilegiado para vislumbrarmos as diversas “tendências” que atuam sobre a filosofia de Schopenhauer. Afinal, a compreensão do ideal-materialismo schopenhaueriano permitiria constatar como o sistema da Vontade incorpora elementos kantianos, pré-críticos e pós-kantianos (em seu combate contra o idealismo alemão). Por último, o autor apresenta ainda um excurso denominado Algumas observações sobre Schopenhauer, Heidegger e Nietzsche, cujo objetivo principal é apontar algumas possíveis consequências de sua obra para a interpretação do pensamento nietzschiano.

Portanto, procuramos apresentar, de modo apenas rudimentar, algumas das principais articulações de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer. A exposição de Eduardo Brandão é repleta de minúcias esclarecedoras (tanto sobre a noção de matéria quanto sobre outros aspectos do pensamento schopenhaueriano) e amiúde surpreende pela erudição (sobretudo em relação à filosofia medieval).

A partir de uma tese original e audaciosa, que não teme extrapolar as leituras habituais da filosofia de Schopenhauer, o livro tem a grande virtude de introduzir uma desconfiança sobre a interpretação daquele “pensamento único” como ausência de modificações relevantes no percurso da filosofia schopenhaueriana. A postura de Schopenhauer, que raramente admite mudanças significativas no interior de seu pensamento, acaba por gerar aporias entre diferentes períodos da obra. Por meio da análise da noção de matéria, Eduardo Brandão não se exime de apontar tais aporias, demonstrando como uma leitura cuidadosa é capaz de, se não as dissolver, ao menos compreender sua função.

Daniel Quaresma F. Soares – Doutorando em Filosofia pela USP e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

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Migração e mão-de-obra: retirantes cearenses na economia cafeeira do Centro-Sul (1877-1901) – GONÇALVES (RBH)

GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e mão-de-obra: retirantes cearenses na economia cafeeira do Centro-Sul (1877-1901). São Paulo: Humanitas, 2006. 246p. Resenha de: LEITE, Rosângela Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54, dec. 2007.

A importância das correntes migratórias e as formas de utilização de diferentes grupos de população nas lavouras do Centro-Sul do Brasil, no momento de crise do cativeiro, são temas recorrentes na historiografia brasileira.

O caso específico da transferência de migrantes cearenses, ainda no século XIX, para utilização nas plantações de café parece-nos, no entanto, um encaminhamento original ao estudo da organização da mão-de-obra no momento de superação da escravidão.

Paulo Cesar Gonçalves, retomando clássicas obras sobre a história do Brasil, enfrentou o desafio de compreender como foi se constituindo um mercado de trabalho no seio de um processo de reorganização econômica, permeado tanto por novas demandas de mercado, quanto pela construção de idéias que dessem suporte aos conteúdos políticos emergentes naquele momento.

Para responder a esses anseios, o autor fez uso de um espectro variado de documentação: por meio de listas da Hospedaria dos Imigrantes, relatórios de presidentes de província, ofícios da Secretaria da Agricultura, mapas estatísticos, livros de registro da Companhia de Vapores, anais do Parlamento e jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará, constrói um quadro explicativo fincado sob os sentidos econômicos da migração dos retirantes cearenses, mas que não despreza, em momento algum, as propostas de civilização encravadas no bojo das medidas apresentadas pelos diferentes protagonistas da cena brasileira do período entre 1877 e 1901.

As secas do Nordeste funcionaram como um elemento desencadeador da expulsão dos cearenses de seus espaços originais, dos inchaços de cidades como Fortaleza e das conseqüentes medidas de envio desses livres pobres para o Centro-Sul. Os retirantes, no contexto de estiagem alarmante, tornaram-se desprovidos de seus meios essenciais de subsistência, o que garantiu recolocação dessas populações de forma favorável – para setores da elite econômica – em novos espaços produtivos que possuíam demanda por trabalhadores.

Há que se considerar, no entanto, que esse processo não foi linear. A riqueza deste livro encontra-se exatamente na análise que permite compreender as contradições imanentes à utilização dos retirantes e, ao mesmo tempo, a depreciação da importância, por parte de alguns setores dirigentes, desses livres pobres no mercado de trabalho em formação.

Como diferentes grupos econômicos foram se articulando na crise do cativeiro? Como esses grupos poderiam incorporar os cearenses, preservando costumes patriarcais e relações de mando baseadas na violência? Essas são algumas das questões que Paulo Cesar Gonçalves procura discutir por meio desta obra.

Abordar as vicissitudes do processo de organização da mão-de-obra no momento de escravidão agonizante representa enfrentar a problemática sobre os sentidos da (re)elaboração das idéias acerca da Nação no período de declínio tanto do Império, quanto do trabalho escravo. O autor apresenta duas respostas importantes a tais questões. Para ele, a circulação das populações permitiu e, ao mesmo tempo, foi fruto de um processo de proletarização por meio do qual foram se constituindo mãos-de-obra disponíveis. Esse processo favoreceu, efetivamente, a organização dos trabalhadores para os cafezais como fenômeno que se deu fora dos limites geográficos São Paulo. Por esse viés interpretativo, a organização produtiva funcionava como componente central para o emprego adequado de diferentes grupos humanos de acordo com os interesses dominantes à época. Nesta mesma chave explicativa, o trabalho livre e baseado em relações permeadas por salário só pôde se constituir no Brasil pela interlocução entre as necessidades produtivas, variantes a cada momento, e as relações sociais fortemente assentadas na coerção de diferentes grupos de trabalhadores.

O século XX, iniciado pouco após a proclamação da República, recolocou velhos problemas à sociedade brasileira, muitos deles ligados à questão de como gerir contradições latentes às relações de trabalho num mundo de recente passado escravista e completamente dominado pelas relações capitalistas.

As formas e os conteúdos dessas contradições são matéria-prima para os estudos sobre as populações livres pobres. O livro de Paulo Cesar Gonçalves apresenta-se como uma importante referência nesta ceara de debates.

Rosângela Ferreira Leite – Centro de Ciências Humanas, Faculdade de História – Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas). Rodovia Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades. 13086-900 Campinas – SP – Brasil. E-mail: [email protected]

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Ensaios sobre a intolerância; inquisição, marranismo e anti-semitismo – GORENSTEIN; TUCCI CARNEIRO (RIHGB)

GORENSTEIN, Lina; TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza (orgs.). Ensaios sobre a intolerância; inquisição, marranismo e anti-semitismo. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP, 2002. Resenha de: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.164, n.418, p.209-217, jan./mar., 2003.

Angelo Adriano Faria de Assis – Doutorando. Universidade Federal Fluminense.

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