Educação não escolar: Religiosidade e modos de fazer de uma curadora | Márcio Barradas Sousa e Maria betânia B. Albuquerque

A obra é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2015 no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). No livro, Márcio Barradas Sousa e Maria Betânia B. Albuquerque analisam os saberes e as práticas educativas cotidianas presentes no atendimento de pessoas submetidas às orações e tratamento de cura realizada por Odinéia dos Santos Barbosa, na comunidade quilombola de Abacatal, em Ananindeua, no Pará. Dona Dionéia, como costumava ser chamada, era conhecida como benzedeira que tratava os males espirituais provocados pelos seres habitantes das matas. Como aporte teórico metodológico os autores buscaram alicerçar-se nos pressupostos da história cultural, cuja abordagem historiográfica volta-se para a vida cotidiana, objetos e temas ligados à vida social dos homens e mulheres no tempo. Além disso, utilizaram-se do método da história oral e da técnica da entrevista semiestruturada, bem como características da pesquisa etnográfica.

Nesse movimento analítico os autores demonstraram o protagonismo de dona Dionéia e conferiram-lhe o status de exímia educadora ao revelar que esta, ao mudar de religião, criou uma metodologia própria de prática de cura ressignificando os processos educativos que utilizava no enfrentamento de doenças espirituais das pessoas que a procuravam. Nesse aspecto, tratava-se de processos educativos de natureza não escolar identificado pelos autores nas tessituras cotidianas das práticas de dona Dionéia e seus educandos, cuja relação era perpassada pelo processo de ensino e aprendizagem, na qual era mediadora de múltiplos saberes, disseminados pelo método da oração e da terapia de cura. Leia Mais

Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX) – WISSENBACH (PH)

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX). São Paulo: Intermeios; USP-Programa Pós-Graduação História Social, 2018, 256 p. Resenha de: PERES, Elena Pajaro. Religiosidade em trânsito. Práticas cotidianas do sagrado coração no Brasil da Primeira República. Projeto História, São Paulo, v.67, pp. 439-446, Jan.-Abr., 2020.

Em 1929 o imigrante italiano José Zarelli, depois de muito trabalhar em São Paulo como vendedor, comprou uma pequena propriedade rural nos arredores da cidade. Foi nesse pedaço de terra que resolveu recuperar uma antiga habilidade que trouxera da Europa: esculpir imagens de madeira inspiradas em figuras do mundo camponês. Com o tempo foi acrescentando a essas imagens atributos de matriz africana sobre os quais tomou conhecimento no Brasil. Essa modificação de sua arte levou Zarelli a ganhar fama como escultor feiticeiro. Suas criações, após os devidos rituais de consagração, passaram a ser consideradas objetos sagrados, ou, como seria mais apropriado denominá-las, ínqueces,

e começaram a integrar altares religiosos, tornando-se, o próprio artesão, um rezador.

Essa significativa história, narrada por Oswaldo Xidieh em artigo de 1944, foi retomada pela historiadora Cristina Wissenbach em seu livro Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX), publicado em 2018 pela editora Intermeios, para nos introduzir de maneira exemplar no universo das interconexões entre o catolicismo de base popular, imbricado de práticas camponesas muitas vezes consideradas heréticas na Europa, as religiões de matrizes africanas e os saberes milenares dos povos indígenas. A partir daí, capítulo a capítulo, o leitor vai conhecendo como se deu historicamente esse entrecruzamento cultural recriador de formas de expressividade artística e religiosa.

Essa configuração cultural multifacetada vem sendo nas últimas décadas recuperada por estudos acadêmicos – como os da própria professora Wissenbach, do historiador Robert Slenes e do antropólogo estadunidense James Lorand Matory, entre outros – que têm demonstrado como elementos provenientes de diferentes tradições entrechocaram-se no Brasil, levando ao surgimento de novas e intrincadas práticas culturais.

O livro de Wissenbach traz à luz os quatro capítulos revisados da tese de doutoramento Ritos de Magia e Sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil (1890/1940), apresentada ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1997. No processo de revisão dos capítulos, a pesquisadora incorporou sua experiência como professora de História da África na Universidade de São Paulo, ampliando diálogos e abrindo suas reflexões para novos horizontes, como ela mesma afirmou em um dos eventos de lançamento ocorrido no Centro Cultural São Paulo. Seguindo os mais recentes debates na área, Wissenbach atualizou bibliografia e conceitos, enfatizando pontos antes apenas mencionados em sua tese. Dessa forma utilizou o conceito de pós-emancipação no lugar de pós-abolição, práticas religiosas no lugar de magia, vida cotidiana em vez de sobrevivência. Acrescentou ainda o conceito de errância, que antes não estava explicitado no título ou definido teoricamente.

As memórias, as crônicas, os relatos de viagem e de expedições foram algumas das fontes utilizadas na pesquisa. Contudo, foi na documentação criminal e nas notícias impressas nos jornais que a historiadora descobriu o elo para se aproximar das vivências concretas das populações que se encontravam em trânsito e que, num período conturbado da passagem do século, nos primeiros anos da República brasileira, experimentavam novas formas de estar no mundo. Ao revelar a luta do poder instituído para tentar disciplinar essas populações e suas manifestações culturais e religiosas, a documentação policial também revela, mesmo que parcialmente, as táticas utilizadas pelos mais pobres para se desvencilhar desse poder. A autora explica como esses registros, pelo seu próprio caráter fragmentário, permitem a compreensão de práticas que também se davam fragmentariamente, permeadas pelo improviso e pelo aproveitamento das brechas. Práticas que assumiam formas fugidías para garantir a permanência e liberdade de expressão em um meio dominado cada vez mais pelo pensamento racial e evolucionista.

Assim, dialogando com as fontes, tendo como fio teórico condutor de seu método o perspectivismo e a hermenêutica, que alerta para a historicidade do próprio conhecimento histórico, Wissenbach mergulha e faz o leitor mergulhar no mundo das religiosidades populares, um mundo que não se atrela ao poder oficial e desafia constantemente as religiões institucionalizadas.

No primeiro capítulo – Ritos e crenças de homens livres no pós-emancipação – a autora revela, a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e de fontes, como a população economicamente pobre criou padrões de organização de moradia, trabalho e convivência, colocando em circulação ideias, práticas e mercadorias nos momentos das festas religiosas, dos encontros e das feiras. Quando movimentamos as páginas, seguindo os rastros deixados no texto, podemos acompanhar a versatilidade desses grupos na busca de um melhor terreno para plantio e caça, no trabalho de construção e reconstrução da moradia, na decisão de abandonar os poucos bens materiais que não seriam úteis ou que não poderiam ser carregados durante a mudança de um território a outro. Práticas essas sempre vistas com reprovação pelos detentores das terras e do poder, que pretendiam aprisionar essas populações pelo trabalho, quando necessário, ou, quando eram vistas como dispensáveis, eliminá-las ou isolá-las em alguma área em que permanecessem segregadas.

O estudo mostra como esses grupos sociais criaram vínculos com a natureza, realizando todas as tarefas em seu tempo certo. Era na mata que encontravam parte importante de sua alimentação, ervas medicinais e seu mundo espiritual. Tudo o que era considerado sinal de atraso pelo pensamento modernizador que adveio com a República adquire uma outra roupagem quando se busca, como fez Wissenbach, uma aproximação compreensiva dos valores e meios de vida dessas populações. Eram grupos que viviam dispersos, mas evitavam o isolamento por meio de uma hierarquia social bem configurada em um mundo paralelo ao poder oficial e por ele incompreendido. Nesse grupo se destacam os africanos e afro-brasileiros a quem a autora dedicou grande parte do estudo publicado nesse livro.

Importantes discussões são apresentadas nesse primeiro capítulo, incorporando novas abordagens sobre as manifestações culturais especialmente dos povos provenientes da África centro-ocidental, que, segundo reforçam pesquisas atuais, foram os grupos majoritários trazidos ao Brasil no século XIX pelos traficantes de escravizados.

No segundo capítulo – Dissonâncias sociais da cidade moderna – vislumbra-se como as expressões de cultura e religiosidade presentes no interior do país começam a se reconfigurar a partir do movimento dessas populações em direção às áreas urbanas, promovendo a ressocialização das camadas populares em novos espaços. Discursos políticos, médicos e higienistas, que acompanharam e legitimaram a chamada modernidade, passaram a considerar as práticas religiosas desses grupos como sinais de incultura, atraso e ignorância. A história de Canudos e seu crescimento demográfico explosivo em torno das pregações do beato é recuperada pela autora como uma referência importante para se compreender processos semelhantes que ocorriam nas cidades brasileiras. Essas práticas começaram a ser cada vez mais notadas, anotadas e perseguidas. Nesse cenário aparecem novamente com destaque os contingentes de africanos e afro-brasileiros que, nas cidades conturbadas por um processo de urbanização abrupta, dividiram o espaço com imigrantes pobres de diferentes nacionalidades. Sabe-se que essa convivência foi muitas vezes tensa e conflituosa, mas, como esse e outros estudos demonstram, também foi marcada pelo compartilhamento de tradições.

No capítulo 3 – Religiosidade e magia nas primeiras décadas do século XX – a autora leva o leitor pelos meandros da escrita de cronistas e romancistas, que descreveram as práticas religiosas, especialmente aquelas que se davam nas casas de homens negros e mulheres negras. Essas descrições em sua maioria traziam toques de exotismo, demonstrando a tentativa de distanciamento dos autores em relação àquela população encantada por feitiços, magia e tudo aquilo que pertencia ao mundo do secreto e do oculto. As camadas remediadas e as mais ricas temiam aqueles “cultos misteriosos”, reservados aos iniciados, e preferiam se aproximar do espiritualismo de base francesa ou americana, mais atrelado à ciência e às supostas comprovações.

Nesse terceiro capítulo acompanha-se ainda a história de como o espiritismo se disseminou rapidamente também entre as camadas mais pobres da população, combinado com as crenças de ascendência europeia e às religiões afro-brasileiras.

O ritmo da narrativa se intensifica até atingir o capítulo 4 – Espaços sociais das crenças religiosas na urbanização de São Paulo – onde se vê como o discurso que representa o medo pela perda de controle sobre esses grupos espiritualizados foi muito forte em São Paulo entre 1890 e 1900, período em que a população da cidade cresceu em 268%. Esse medo acompanhou de perto a disseminação de práticas religiosas diversas por todo espaço urbano.

Particularmente nesse capítulo final pode ser feita uma ponte entre esse estudo e as mais recentes concepções dos estudos africanos, que demonstram como a incorporação de novas crenças e sua recriação era uma prática comum na África central. Pesquisas de historiadores africanistas como Linda Heywood e John Thornton apontam enfaticamente na direção de que novos elementos sempre foram apreendidos e transformados quando considerados benéficos ou úteis à cosmologia dos povos africanos. A convivência no Brasil com curandeiros, pitonisas e adivinhos provenientes das mais variadas nacionalidades, como demonstra Wissenbach, ampliou ainda mais essa prática. Essa “mistura”, da qual nos fala a autora, permeava o extrato social e cultural onde essas populações viviam, nas pequenas casas de cômodos, nos quintais coletivos, no compartilhamento de atividades informais. Aos poucos as práticas chamadas de curandeirismo irmanaram-se aos novos campos da ciência, como a homeopatia.

Na conclusão Wissenbach mostra como as práticas religiosas populares eram mais perseguidas e, ao mesmo tempo, mais temidas, quando eram empreitadas por homens negros, os chamados mestres cumbas ou feiticeiros. Foi contra eles que a repressão policial agiu de forma mais intensa até seu ponto máximo nos anos de 1930. Mesmo temidos, eram eles que lançavam uma fagulha de esperança para aqueles que não tinham a quem recorrer ou que não acreditavam em qualquer ajuda que pudesse vir do poder estabelecido. Da mesma forma, segmentos negros da população eram perseguidos quando fundavam agremiações religiosas, como igrejas reformadas, grêmios de ocultismo e centros espíritas.

Nos processos criminais, analisados pela historiadora, um ponto chamou sua atenção de forma impactante, a presentificação das narrativas a partir do final do século XIX. Desapareceram os detalhes da vida pregressa, da África ancestral, que podiam ser encontrados nos depoimentos de escravizados e libertos. A cidade em processo de modernização parecia reservar espaço apenas para o novo. Essa importante reflexão da autora nos leva a indagar se a memória de fato fora perdida ou começara a ser acobertada como tática de proteção num momento de perigo, em que as perseguições a tudo que remetesse à África haviam se intensificado.

E aqui podemos voltar ao início do livro, quando, citando Xidieh, Wissenbach ressalta que há um momento certo para a narração, que não é o momento da noite ou do dia, mas é o momento social em que elas se justificam e funcionam. É preciso concordar que essa pesquisa, que demorou um longo tempo para ser publicada, chegou num momento preciso de narração, num tempo necessário, permitindo a lembrança e o estudo crítico de práticas que fogem das imposições oficiais e se afirmam em sua diversidade, em profunda conexão com o contexto histórico das camadas populares, seus conflitos e compartilhamentos. Nesse sentido o livro atende a um público amplo, formado não apenas por historiadores, estudiosos das religiões, da história urbana e do cotidiano, mas também por todos os interessados nos assuntos relativos à diversidade, ao direito de expressão, às dissonâncias culturais, ao compartilhamento e tensão entre tradições. O trabalho de Cristina Wissenbach é profícuo em ampliar caminhos de pesquisa e discussão.

Elena Pajaro Peres – Doutora e mestre em História pela FFLCH-USP. Pós-doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Visiting Scholar no African American Studies Program da Boston University (2013-2014). É pesquisadora no grupo Trilhas e circuitos do riso no espaço público brasileiro (1880-1960)-DH-USP/CNPq.

História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; AQUIAR (HU)

RODRIGUES, A.F.; AGUIAR, J.O. (org.). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2016. 490 p. (História Diversa, n. 6). Resenha de CABREIRA, Maria Alda Barbosa. Religiões e religiosidades em debate. História Unisinos 22(1):149-152, Janeiro/Abril 2018.

Estudos relacionados a religiões e religiosidades vêm recebendo cada vez mais interessantes contribuições que ajudam a alargar o debate e o reconhecimento de formas diversas de expressar o religioso, notadamente, na sociedade contemporânea.

A problemática dos fenômenos religiosos, e mesmo das maneiras científicas e acadêmicas de como o universo do sagrado, as religiões e as religiosidades foram interpretadas, é resultante de processos históricos e sociais ligados a relações de privilégios e poder.

Como um conjunto de práticas e doutrinas organizadas em uma cosmologia bem definida, a religião e seu estudo permitem entender o universo cotidiano, as relações sociais, as instituições políticas, as ideias e as formas de expressão religiosa que compõem determinados regimes do crer, como práticas, espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado (Arnal, 2000).

Com análise detida destes nuances, a coletânea História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, coordenada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar, faz-se presente no debate que analisa as religiões e seu desenvolvimento e discussões históricas ocorridas em diferentes épocas, nos mais diversos povos e nas suas muitas manifestações.

Reunindo 24 capítulos, o livro apresenta quatro divisões temáticas que convidam o leitor a refletir sobre as diversidades humanas na abordagem dos espaços e discursos dedicados ao religioso, em perspectiva ligada principalmente à história cultural. Aliás, do conjunto, 17 textos dedicam-se ao multifacetado universo religioso brasileiro, dominado pela matriz do cristianismo. Observando- -se os dados do Censo demográfico 2010 sobre religião, divulgados pelo IBGE em 29 de junho de 2012, confirmam-se tendências de transformação do campo religioso brasileiro, aceleradas a partir da década de 1980, quando se iniciou o recrudescimento da queda numérica dos fiéis seguidores da fé católica frente à vertiginosa expansão dos pentecostais e das pessoas que se declaravam sem religião. Os números interessam: entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais; os evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% da população, acréscimo de 15,6 pontos percentuais em 30 anos, representando 42,3 milhões de pessoas, sendo a segunda religião com o maior número de adeptos no país. Apesar destes números, o catolicismo ainda se faz predominante, com mais de 123 milhões de pessoas, classificando o Brasil como o maior país católico do mundo em números nominais. No período, o conjunto das outras religiões, incluindo espíritas e cultos afro-brasileiros, também dobrou de tamanho, passando de 2,5% para 5% (Mariano, 2013, p. 119).

De 1980 para cá, a partir dos dados informados, prosperou a diversificação da pertença religiosa e da religiosidade no Brasil, mas se manteve “praticamente intocado seu caráter esmagadoramente cristão” (Mariano, 2013, p. 119).2 As raízes de nossa formação cristã, assim como a análise de aspectos da história religiosa brasileira, vislumbrada naqueles números e nas práticas sagradas católicas, espíritas e protestantes, seguem como eixo articulador dos capítulos relacionados ao universo brasileiro contemporâneo presentes na coletânea.

As manifestações cristãs majoritárias aparecem desde o texto de abertura do livro. Dividida em quatro partes, a obra em sua primeira seção procura reunir reflexões dedicadas aos temas da Antiguidade Clássica ou da recepção de suas produções sociais e históricas em nosso tempo. Sob o título de “Identidades, religiosidades e Antiguidade clássica”, tem-se o capítulo de Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (Universidade Católica de Pernambuco e Faculdade Católica de Fortaleza) sobre as expectativas messiânicas no tempo de Jesus Cristo e a sua relação com a identidade cristã, construída a partir de então.

A seguir, Nelson de Paiva Bondioli (professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Espírito Santo) e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) analisam, com base nos escritos da época, a figura dos Príncipes Júlio-Claudianos (governantes Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) e sua posição dentro da hierarquia política e religiosa romana durante o século I da Era Comum para falarem de tradição e de transgressão na religião romana.

Na sequência, Fernando Mattiolli Vieira (Universidade de Pernambuco) apresenta-nos a interessante história da descoberta dos manuscritos de Qumran e as suas condições de produção e recepção. Os documentos estudados por ele foram encontrados em 1947, entre o deserto da Judeia e a orla do mar Morto e próximo às ruínas de um sítio arqueológico conhecido por khirbet Qumran, e representam a maior conquista da arqueologia do século XX, pois neles foram encontrados 930 manuscritos, sendo que deste total 210 documentos reproduzem livros da Bíblia hebraica (chamada pelos cristãos de Antigo Testamento): Salmos, Deuteronômio e o Gênesis. Essa história e os desdobramentos destes achados para o conhecimento e as comprovações empíricas de fatos narrados nos livros sagrados cristãos estão relatados ali por ele.

O último texto desta parte pertence a Haroldo Dutra Dias (juiz de Direito e palestrante espírita) sobre o surgimento da crítica histórica nos estudos sobre a vida de Jesus Cristo e o constructo de sua figura profético- -apocalíptica, assim como sobre a origem do cristianismo.

A segunda parte do livro, Religiões, recepções e impérios ultramarinos, congrega estudos que marcam a presença do catolicismo em terras brasileiras e africanas, notadamente durante o período colonial. Nesta seção, estão presentes as pesquisas de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) sobre as religiosidades e as sociabilidades nas relações entre o clero e a sociedade nas Minas Gerais do século XVIII, mostradas a partir das manifestações religiosas católicas instaladas na região desde a chegada dos primeiros buscadores de ouro. Ainda no cenário das Minas Gerais setecentistas, Jeaneth Xavier de Araújo Dias (Universidade do Estado de Minas Gerais) brinda-nos com as histórias das festas e das celebrações religiosas para analisar os ritos, os ornamentos e as decorações feitas para a realização das procissões celebradas durante o Triunfo Eucarístico em Vila Rica no ano de 1733, quando se comemorou a condução triunfal da imagem do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

Já Lúcia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) narra as estratégias de conversão e os processos de negociação entre bagandas e missionários anglicanos ingleses no reino de Uganda no século XIX.

Na continuidade, Joaci Pereira Furtado (Universidade Federal Fluminense) discute a relação entre catolicismo e paganismo na poesia árcade que vicejou durante a segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX entre Portugal e a América portuguesa, destacando a presença de elementos referenciais clássicos remetentes à mitologia e aos deuses gregos e latinos.

Por sua vez, Gustavo Henrique Tuna (doutor em História pela Universidade de São Paulo) discute o gradiente da fé católica (o sagrado e a descristianização) encontrado na biblioteca do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, considerada uma das mais relevantes do período colonial, com 1.576 volumes. Ainda no palco das letras coloniais, Renato da Silva Dias (Universidade Estadual de Montes Claros), em instigante texto, analisa a dimensão do político na esfera discursiva religiosa empreendida pelo clérigo secular Manoel Ribeiro Rocha para justificar o tráfico e a escravização dos africanos no Brasil na obra Ethíope resgatado, de 1758. Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa) apresenta os hábitos alimentares e a sua relação com o discurso religioso dos primeiros jesuítas quinhentistas que empreenderam missões catequéticas na América portuguesa.

Passando da literatura para a arquitetura de taipa, Paula Ferreira Vermeersch (Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente) examina o patrimônio histórico e a arte sacra encontrada no interior da Igreja Matriz setecentista barroca de Sant’Ana Mestra do Sacramento, localizada na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.

Nas duas partes seguintes, os capítulos centram-se em análises do diálogo e da recepção de textos antigos e modernos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no universo religioso contemporâneo. A terceira seção, “Universo católico e problemas de história contemporânea”, inicia-se com o interessante texto de Patrícia Teixeira Santos (Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos) sobre as missões do Papa Paulo VI no contexto do catolicismo social, a partir de experiências no Brasil e em Moçambique. A militância católica se faz presente no capítulo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) ao analisar o pensamento e a trajetória intelectual de Jonathas Serrano, um importante batalhador pelos ideais cristãos durante a República Velha no Brasil.

No decurso da oposição ao Estado autoritário brasileiro (1964-1985), a partir da década de 1960, um de seus mais destacados opositores foi a Igreja Católica. Partindo desse contexto, Jorge Miklos (Universidade Paulista) e Adriano Gonçalves Laranjeira (Universidade Paulista) analisam a atuação da imprensa católica paulistana na defesa dos direitos humanos, por meio do resgate da história do semanário O São Paulo, jornal oficial da Arquidiocese de São Paulo, criado em 1956 com o objetivo de difundir os valores católicos entre os fiéis. Porém, a partir de 1970, quando a Arquidiocese de São Paulo é liderada por dom Paulo Evaristo Arns, o jornal sofre uma mudança na sua linha editorial e passa a atuar como crítico ao Estado autoritário.

Já Francisco Cláudio Alves Marques (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) e Esequiel Gomes da Silva (Universidade Federal do Pará, campus de Marajó- Breves), com habilidade e brilhantismo, brindam-nos com interessante análise, a partir de exemplos cantados no repente e estampados nos folhetos de cordel, das condições históricas e sociais que contribuíram para a representação de negros, adeptos de religiões de ascendência africana e protestantes associada à ideia de demônio, bem como das relações sociais que se estabeleceram no sertão nordestino marcado por práticas e crenças medievais, sobretudo nas primeiras décadas do século XX.

Ainda pelo viés da cultura, Elder Maia Alves (Universidade Federal de Alagoas) e Greciene Lopes dos Santos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Alagoas) elegem como foco de análise de seu texto as interfaces entre a política do patrimônio imaterial, as festas e celebrações religiosas e o turismo religioso no Brasil, apresentando-nos como exemplo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores celebrações religiosas do mundo, que ocorre todos os anos no segundo domingo do mês de outubro na cidade de Belém, capital do Estado do Pará.

Por sua vez, Gisella de Amorim Serrano (pós- -doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais) analisa as edições de cunho religioso, para se compreender a correlação entre História e identidade nacional, na importante coleção Reconquista do Brasil, editada numa parceria da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Editora da Universidade de São Paulo, de 1976 a 1984, responsáveis pela impressão de 306 volumes.

Na última parte, “Protestantismo, espiritismo e religiões orientais no presente”, discutem-se assuntos relacionados ao evangelismo, protestantismo e atuação das igrejas reformadas no Brasil. Inicia-se com o capítulo de Iranilson Buriti de Oliveira (Universidade Federal de Campina Grande) e Roseane Alves Britto (mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande) comentando as metáforas de cura no discurso neopentecostal brasileiro. Na sequência, João Marcos Leitão Santos (Universidade Federal de Campina Grande) discorre sobre a crise conceitual sobre o protestantismo na historiografia brasileira.

A história recente do movimento espírita brasileiro aparece analisada nos dois artigos seguintes. O primeiro, de Alexandre Caroli Rocha (doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas), escrutina as repercussões geradas pelo chamado Caso Humberto de Campos, que mostra como um problema que envolvia uma disputa por direitos autorais estava além dos domínios jurídicos. E, depois, José Otávio Aguiar (Universidade Federal de Campina Grande) historia a trajetória do SER, “organização sociorreligiosa espírita recente, ecumênica e dedicada à tradição dos evangelhos em diálogo com a obra psicografada de exegese de Francisco Cândido Xavier” atribuída a diversos espíritos, mas em especial a Emmanuel (p. 10).

Os dois últimos autores dedicam seus escritos aos assuntos relacionados a religiões do Oriente Distante. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Universidade Federal da Paraíba) e Gustavo Cesar Ojeda Baez (doutor em História pela Universidade Federal de Campina Grande) abordam em seu capítulo a perspectiva hermenêutica que o historiador das religiões Mircea Eliade desenvolve sobre a tradição do Yoga na Índia enquanto prática de religiosidade. Por último, Deyve Redyson (Universidade Federal da Paraíba) expõe as leituras meditativas do texto budista Sutra do coração e sua relação entre sabedoria e realidade.

Apesar de em seu conjunto os textos apresentarem diversidade temática, eles ilustram no todo a diversificação do campo religioso como fonte de pesquisa e de crença do universo sagrado e religioso multifacetado que se evidencia no dia a dia das pessoas. Tanto assim que, ao surgir da necessidade dos indivíduos se ligarem com o divino, a religião ou a pluralidade religiosa resultante das diversas maneiras de entender e perceber o mundo – e por que também não o homem a si mesmo – se faz presente como eixo articulador da obra, independentemente da época retratada ou das práticas e questões religiosas analisadas.

Os dados religiosos explicitados nos números do Censo 2010 permitem-nos traçar o rico e diverso panorama das “religiões e religiosidade” no Brasil contemporâneo. Guiando-se por essa perspectiva, mas sem esta se fazer explicitamente presente no corpo do livro, conseguimos observar nos capítulos interessantes interpretações da história e dos pressupostos religiosos do catolicismo e das igrejas protestantes – com suas múltiplas diversidades –, do universo espírita, das religiões afro-brasileiras, do sincretismo urdido entre elementos cristãos, afro-brasileiros e indígenas representados na cultura popular, do judaísmo, das religiões orientais e do budismo. Infelizmente faltou o islamismo! No cenário atual, ao propor “novas abordagens e debates sobre religiões”, a obra, plural em todo o seu sentido, revela o quanto assuntos como práticas religiosas e religiosidades desde a “Antiguidade aos recortes contemporâneos” não são temas pacíficos, já que em muitos trechos se evidenciam competições entre religiões, conceituações e personagens. Isto, aliás, permite-nos hoje visualizar a exacerbada quantidade de conflitos, cenas de intolerância e preconceito que se vivenciam na sociedade não só brasileira, mas mundial. No fundo, o livro nos faz refletir sobre a finalidade última das práticas religiosas: propor e transmitir a paz.

Notas

2 Os números do Censo mostram que as religiões no Brasil em 2010 dividiam-se em: Católica Apostólica Romana (123.280.172 = 64,63%), Evangélicas (42.275.440 = 22,16%), Sem religião (15.335.510 = 8,04%), Espírita (3.848.876 = 2,02%), Outras religiosidades cristãs (1.461.495 = 0,77%), Testemunhas de Jeová (1.393.208 = 0,73%), Não determinada e múltiplo pertencimento (643.598 = 0,34%), Umbanda e Candomblé (588.797 = 0,31%), Católica Apostólica Brasileira (560.781 = 0,29%), Budismo (243.966 = 0,13%), Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (226.509 = 0,12%), Não sabe (196.099 = 0,10%), Novas religiões orientais (155.951 = 0,08%), Católica Ortodoxa (131.571 = 0,07%), Judaísmo (107.329 = 0,06%), Tradições esotéricas (74.013 = 0,04%), Tradições indígenas (63.082 = 0,03%), Sem declaração (45.839 = 0,02%), Islamismo (35.167 = 0,02%), Outras religiosidades (11.306 = 0,01%), Hinduísmo (5.675 = 0,00%) (Somain, 2012).

Referências

ARNAL, W.E. 2000. Definition. In: W. BRAUN; R.T. McCUTCHEON (ed.), Guide to the study of religion. London, Continuum, p. 21-34.

MARIANO, R. 2013. Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo 2010. Debates do NER, Porto Alegre, 14(24):119-137. Disponível em: http://oldsociologia.fflch.usp.br/sites/oldsociologia.fflch.usp.br/files/Campo%20religioso%20no%20Censo%202010.pdf Acesso em: 15/12/2017.

SOMAIN, R. 2012. Religiões no Brasil em 2010. Confins: Revista Franco- Brasileira de Geografia, n. 15. Disponível em: http://confins. revues.org/7785. Acesso em: 16/10/2017.

Maria Alda Barbosa Cabreira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Professora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), unidade de Garça. Av. Presidente Vargas, 2331, 17400-000, Garça, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Práticas de leitura e religiosidade em Dom Quixote – VIANNA (C)

VIANNA, Marielle de Souza. Práticas de leitura e religiosidade em Dom Quixote. Caxias do Sul: Educs. Resenha de: BOMBASSARO, Luiz Carlos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 3, p. 225-230, set/dez, 2015.

Para quem deseja estudar e compreender as significativas e complexas relações entre literatura, leitura e religiosidade, está à disposição um belo e instigante livro: Práticas de leitura e religiosidade em Dom Quixote, de Marielle de Souza Vianna, publicado pela Editora da Universidade de Caxias do Sul (Educs). Nesse livro, a autora mostra como o entrelaçamento de leitura e religiosidade constitui um dos temas centrais daquele que é considerado um dos romances fundadores da literatura moderna: Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Numa investigação meticulosa, que associa reconstrução histórica do contexto sociocultural e análise textual da obra cervantina, Vianna destaca a importância que a leitura e a religiosidade adquirem na estruturação dessa obra-prima, romance que marcou a transformação radical da literatura ocidental. O resultado é uma defesa inconteste do valor e do sentido da leitura e um convite para revisitar a fascinante, multifacetada e desafiadora obra de Cervantes.

A paixão pela leitura e pelo seu ensino é declaradamente o motivo que deu origem ao livro. Vianna a toma como pressuposto de seu trabalho que, além de ser uma produção simbólica marcante da nossa cultura, a leitura é antes um modo específico de interpretação da realidade e uma forma de vida. A leitura vem entendida, assim, como “um processo dinâmico constituído por múltiplas dimensões que envolvem o modo de ser, de perceber e de agir do ser humano no mundo”. (p. 12). Dessa  hipótese de trabalho, o leitor encontrará provas incontestáveis já nas primeiras páginas do livro, quando a autora indica quatro dimensões básicas da leitura: uma ontológica, uma estética, uma gnosiológico-hermenêutica e outra ética. A prática de leitura configura, assim, o modo de ser, de conhecer e de agir. Por isso, Vianna descreve o ato de ler como “uma relação existencial, um processo de descoberta e de construção de si mesmo e do mundo”. (p. 9). A prática de leitura é uma forma de vida e de convivência. Leia Mais

Religiosidade no Brasil | J. B. B. Pereira

O primeiro artigo tem como título “As religiões indígenas: o caso tupi-guarani”. Nele, o autor Roque de Barros Laraia não se apropria de fazer um inventário das diferentes religiões indígenas do Brasil, mas, sim, por meio do exemplo tupi-guarani, possibilitar ao leitor o entendimento de algumas características dos sistemas de crenças existentes entre os índios do Brasil. Laraia se detém na descrição do pajé e de tupã, e trata do entendimento de alma para os indígenas. Assim, o autor levanta os quatro tipos de alma: espíritos errantes (aqueles que morreram e não alcançaram ser bons), espíritos criadores ou heróis culturais, os donos das florestas, das águas e dos rios, e os espíritos de animais. Outros dois pontos norteadores para a compreensão das religiões indígenas, segundo o autor, referem-se ao entendimento de “céu” que indica onde estão as almas dos antepassados, o herói mítico, e à perda da vida eterna, em que, como nas religiões cristãs, há uma Eva, só que Tupi não colheu o milho desobedecendo à ordem de Mahyra.

Faustino Teixeira é o autor do segundo artigo da coletânea: “As faces do catolicismo brasileiro”. Inicialmente, Teixeira apresenta dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre as religiões no censo de 2000, em que o catolicismo continua como a religião com o maior número de fiéis, porém apontando para um grande crescimento de evangélicos e dos sem religião. Muito instrutivo, o autor aponta a complexidade da religião católica no Brasil e de forma bastante lúcida enumera quatro vertentes dos meandros do catolicismo: santorial, oficial, de reafiliados e midiático. Ao findar sua análise, Teixeira conclui que o Brasil é um país do sincretismo religioso, mas que ainda há de se elucidar o intenso trânsito entre tradições opostas. Leia Mais

Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII) – ANDRADE FILHO (H-Unesp)

ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012, p. 256. Resenha de: ESTEVES, Germano Miguel Favaro. História [Unesp] v.33 no.1 Franca Jan./June 2014.

Nos últimos decênios, mais precisamente a partir dos anos oitenta, vimos o aumento e consolidação dos estudos relativos à antiguidade e ao medievo no Brasil. Temas que eram tão distantes de nossos pesquisadores, agora eles tomam corpo em grupos de estudos, congressos e encontros internacionais, na formação de profissionais antiquistas e medievalistas que compõem o quadro docente das universidades brasileiras.

Nesse percurso se insere a produção de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor de História Medieval na UNESP. Seu livro, resultado de seu doutoramento na USP em 1997, revisto e agora publicado pela Editora da USP, traz uma significativa contribuição, ao lado de artigos e capítulos de livros que o próprio autor vinha publicando, para o debate de uma estimulante temática: a íntima relação entre religião e poder.

Já na introdução, Andrade Filho, com uma linguagem clara, trata da progressiva aproximação entre as estruturas do reino visigodo e as da Igreja, o que resultaria na elaboração de uma teoria da realeza, em que o rei é considerado o “ungido do Senhor”. Havia, portanto, um profundo sentido teocrático da realeza, que encontraria sua legitimidade na sanção divina à autoridade do rei. A monarquia, assim, revestia-se de um caráter sobrenatural fornecido e legitimado pela Igreja.

Como ferramentas para sua análise, o autor faz uso de uma gama de fontes que englobam hagiografias, leis civis e conciliares e um corpus de textos litúrgicos, dialogando diretamente com várias pesquisas sobre o reino visigodo. Esse corpus documental é utilizado de forma dinâmica para explicar a religiosidade e a montagem da monarquia católica com a conversão de Recaredo.

No primeiro capítulo da obra, intitulado “Uma Hispânia Convertida?”, a indagação logo no caput mostra-nos os problemas suscitados pela cristianização da Península Ibérica na Antiguidade Tardia. O paganismo explicitado por meio de cultos e práticas religiosas que, segundo Andrade Filho, são “difíceis de desenraizar” mostra a oposição entre o mundo urbano e o mundo rural. Este último representava um desafio maior para a penetração do Cristianismo; porém, após a conversão/cristianização, a verdadeira ortodoxia católica não teria grandes problemas no combate às heresias, era o ambiente em que existia maior severidade dos cristãos contra o paganismo. Em contrapartida, o mundo urbano, no que tange à religião, é o lugar do bispado, que se torna, em muitos casos, um mecanismo de ascensão social em que o grupo nobiliárquico dominante, a elite hispano-romana e visigoda, disputa esse tão almejado posto de poder.

No segundo capítulo da obra, intitulado “Cultura e Religião no Reino de Toledo”, o autor trata diretamente das consequências da conversão de Recaredo e da formação da Societas Fidelium Christi, quando supõe a composição do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma só fé e regido por uma cabeça cuja autoridade provinha do próprio Deus, e no qual os segmentos eclesiásticos tentavam disseminar uma nova concepção do sagrado, centrada em uma pretensa distinção entre os fatos religiosos e não religiosos. Porém, o mundo rural, pouco tocado pelo cristianismo católico, continuava a se alimentar dos velhos fundos de crenças ancestrais, tornando-se um meio que exigia da Igreja e de seus clérigos um movimento inverso, “de cima para baixo”, na tentativa de reordenar a sociedade segundo as finalidades religiosas.

Por meio do debate entre historiografia e fontes primárias, o autor busca desde o Baixo Império Romano a justificativa para a montagem da “Societas Fidelium Christi“, centrada na questão da “analogia antropomórfica”, expressa em leis civis, cânones conciliares e outros textos da Hispânia visigótica. Nos procedimentos de cristianização impostos pelo clero à população pagã, articulavam-se diversas relações e interpenetrações entre a “religiosidade popular” e a “oficial”. O Cristianismo veiculava a ideia de que as práticas pagãs estavam sob o jugo dos espíritos do Mal, unindo-se de forma íntima a idolatria, a magia e a heresia, fato que oferece ao pesquisador um vasto campo de possibilidades para a análise de tais temas.

No capítulo seguinte, intitulado “Religiosidade ou Religiosidades?”, o autor ressalta o costume de chamar de paganismo as manifestações relativas à religiosidade popular e mostra as dificuldades de uma sociedade mista em relação à religiosidade pretendida. Instiga-nos a pensar sobre a profundidade alcançada pelo Cristianismo e sobre a efetiva conversão e/ou cristianização produzida no reino visigodo. Segundo Andrade Filho, “a expressão religiosidade popular produz os efeitos mais diversos” (p. 104), mostrando o problema de definição de tal expressão e apontando o caráter empobrecedor de uma análise que a aborda como se tratasse de meras “permanências ou resistências pagãs” dentro do contexto hispano-visigodo. O autor demonstra, ainda, como ocorre a relação entre as práticas cristãs e as pagãs em diversas fontes do período. As práticas pagãs eram condenadas em concílios, regras monásticas e hagiografias; entretanto, tal condenação resulta na assimilação de mitos e ritos pagãos pela teoria cristã, além da aquisição, por parte dos santos, de muitas características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Ou seja, produzem um Cristianismo que dá continuidade a crenças anteriores a ele. Dessa forma, a pergunta persiste: “haveria então, efetivamente, uma religiosidade popular?”.

No quarto capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, Andrade Filho toca em um dos pontos essenciais de sua tese: a formação da “analogia antropomórfica”. Para o autor, a conversão ao catolicismo torna-se fundamento ideológico do reino de Toledo, e o Cristianismo é o elemento de coesão social. A conversão de Recaredo seria interpretada como um novo princípio, e a aliança entre Deus e a monarquia seria expressa na junção “rex-regnum“, corroborada pelo rito da unção régia: aproximava-se o posto do monarca com o da realeza judaica e, assim, o legitimava. O Deus cristão seria, antes de tudo, um Deus de vitória, do qual se poderia solicitar o triunfo, pois o monarca era escolhido pela gratia Dei. Segundo o autor, “de forma mais ampla, todos os habitantes do reino, enquanto cristãos, faziam parte de um corpo maior: da Igreja, do corpus Christi” (p. 162).

Em seu quinto e último capítulo, “Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo”, Andrade Filho demonstra a necessidade de novas análises documentais, indica como o Cristianismo criou uma cosmologia que, apesar das críticas, englobou diversos componentes do esquema pagão e que seria adotada e desenvolvida por Isidoro de Sevilha, na concepção dualista do homem integral, dotado de corpo e alma. Segundo o autor, é com base nesse pensamento hierofânico que se articula a metáfora da analogia antropomórfica, com suas correspondentes ligações entre o reino/corpo e a Igreja/alma, os quais deveriam compor um todo, isto é, a sociedade cristã.

Com uma análise minuciosa das fontes literárias do período, principalmente os documentos hagiográficos, que expressam os momentos de angústia em que vivia a sociedade visigoda cristã, Andrade Filho toca a questão do monopólio da intermediação do sagrado por parte do ordo clericorum, relação complexa diante das realidades cotidianas, pois, se para o mundo culto a leitura do “corpo místico” parecia plausível como sinal divino, tal ideia seria difícil de ser assimilada pela “religiosidade popular”, que ficava restrita ao destino de sua gente, de sua terra e de seus bens locais. Sendo assim, configuram-se dois tipos de paganismo: aquele praticado pelas elites, oficial e essencialmente urbano, e o dos humildes do campo, reduzido em grande medida, pela Igreja da época e pela historiografia tradicional, à condição conjunto de meros hábitos e usos sociais.

Observa-se, portanto, que o autor instiga o leitor à medida que aborda o tema de forma aberta e com metodologias não convencionais aos textos. Além disso, o autor deixa de lado as teorias prontas e as análises superficiais, demonstrando grande sensibilidade com relação à produção de um material científico valioso para a interpretação da sociedade do período. Ao abordar a monarquia visigoda, mostra-nos como esta se comporta e se contempla em um espelho ideal, ao transcender o elemento institucional da Igreja e colocar a religiosidade e a monarquia em meio a um processo em que novos valores são incorporados. Enfim, a obra de Andrade Filho, de forma clara e ao mesmo tempo erudita, incita-nos a pensar as relações entre religião e religiosidade, o catolicismo pós-conversão e a religiosidade partilhada dentro e fora do reino visigodo de Toledo. Constitui, pois, valiosa contribuição para os estudos referentes ao reino visigodo e à Antiguidade Tardia.

Germano Miguel Favaro Esteves – Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da UNESP /Assis.

Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII)

O campo historiográfico brasileiro atravessou, nas últimas décadas, um amplo e profundo processo de consolidação e expansão. Essa dinâmica, amparada fortemente no crescimento do ensino superior no país, tanto em cursos de graduação e principalmente na pós-graduação, cria as condições para que a historiografia nacional avançasse em termos teóricos e metodológicos, mas também ultrapassasse as fronteiras temáticas que tradicionalmente limitavam os estudos históricos.

No bojo deste processo assistimos senão a emergência, mas com certeza o estabelecimento e a consolidação dos estudos históricos voltados para temáticas vinculadas a Antiguidade e o Medievo. As dissertações de mestrado, as teses de doutorado, artigos e livros se multiplicaram, ainda que aquém do desejável, abordando uma vasta gama de questões que se debruçam desde aos problemas da economia mesopotâmica até a santidade na realeza portuguesa no alvorecer da modernidade. Leia Mais

Culturas e Linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações escritura, oralidade, gestualidade, visualidade – BRITO (PL)

O livro Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste, do professor baiano Gilmário Moreira Brito, publicado em 2009, mas apresentado primeiramente em 2001 como tese de Doutorado na PUC de São Paulo, é uma valiosa contribuição ao estudo da cultura popular do Nordeste. O autor, em sua longa e acurada pesquisa, rastreia a construção da religiosidade do povo nordestino como construção histórica, procurando identificar as tensões nas relações de encontro/confronto entre poder e cultura, que envolvem os diversos grupos sociais em disputas por princípios e valores religiosos que ganham significados sociopolíticos e culturais. Leia Mais

Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andra de Filho

A Península Ibérica sempre ocupou dentro do mundo romano um espaço importante no tocante não apenas a sua localização, mas também como um dos mais ricos celeiros do Imperium. Com o fim político do Império Romano do Ocidente, a região, que, no passado, abrigou povos de etnias várias como lusitanos, iberos, celtas e celtiberos, vivenciaria até o século VIII a ocupação de seu território por dois povos de origem germânica, os quais para lá estenderam seus domínios após sua migração, a saber, suevos e visigodos. Estes últimos assentaram-se preferentemente na Hispânia romana, em um contexto sócio-histórico e religioso bastante peculiares. Exatamente sobre estas singularidades do mundo germânico em um território antes celta e romano debruça-se Ruy de Oliveira Andrade Filho.

Cada vez mais estudos historiográficos sobre a Alta Idade Média (ou Primeira Idade Média) [como queiram] realizados por pesquisadores brasileiros concentram-se sobre a movência, assentamento e contribuições de toda a ordem legados, apropriados, fundidos e refundidos pelo estrato populacional germânico no ocidente europeu. Vinícius Dreger, Mário Jorge Bastos, Leila Rodrigues da Silva, Renan Friguetto, apenas para citar alguns nomes, compõem esse espectro de investigadores. Caso nos ocupemos em especial com a Espanha medieval, o nome do professor da Universidade do Estado de São Paulo, citado no primeiro parágrafo, deve assomar como um dos principais e Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VIVIII) preenche uma lacuna cronológica e historiográfica nesses estudos.

O medievista sintetiza em cinco capítulos e 253 páginas os acontecimentos sobre a relação Monarquia-Igreja presentes no desenvolvimento do reino visigodo de Toledo ao longo de três séculos e para alcançar este objetivo, divide seu trabalho em cinco capítulos teórico-práticos, nos quais expõe não apenas seu instrumental de trabalho e análise das fontes investigadas, como também seu vasto arcabouço teórico que subjaz as suas práticas de pesquisa.

No primeiro capítulo, “Uma Hispânia convertida?”, evidencia-se um levantamento crítico com opiniões de diversos renomados estudiosos acerca da extensão, penetração e aceitação do cristianismo na região, preferentemente entre os séculos IV e VIII. Ao lado da superstitio e das gentes que professavam o judaísmo e defendiam as heresias, assiste-se também a presença dos innumeri christiani (p. 40). O historiador aponta, com sólida erudição, as questões que perpassavam os citadinos de então, bem como a massa de camponeses, com suas visões e práticas muitas vezes diferenciadas da própria experiência cristã, em que escolhas (heresias) não ligadas à ortodoxia, como o caso do priscilianismo, também encontraram espaço de circulação dentro do território majoritariamente hispânico. Esse estado de coisas, assevera Ruy, serviu também como circunstâncias, nas quais as estruturas de Sippe visigodas foram lentamente sofrendo modificações em favor de uma monarquia consolidada. Para isso, a influência da Igreja e sua habilidade em amalgamar na imagem de unus Dei populus, unumque regnum, expressa no Terceiro Concílio de Toledo, foram fundamentais. O paulatino mas inexorável avanço do cristianismo sobre as práticas pagãs dos rustici fora aberto.

“Cultura e Religião no Reino de Toledo” é o título do segundo capítulo, no qual o binômio “cultura/religião” é abordado no reino de Toledo, porém até chegar no medievo, o autor elabora um percurso histórico dessa relação, iniciando sua viagem na Tardoantiguidade, mais precisamente, no século III, com a sacralização do poder imperial, reafirmado e remoldado a partir da implantação do cristianismo como religião oficial do império um século depois. Contudo, ainda sentia-se na Hispânia uma forte presença de traços pagãos dentre os senadores e os camponeses, o que, a posteriori, com o fortalecimento da monarquia dos visigodos e em especial após a conversão do rei Recaredo, ainda tenderia a se manifestar. Um fator que contribui sobremaneira para a difusão da religião “oficial” foi, sem dúvida, uma rede de “escolas episcopais, paroquiais e monásticas, cuja finalidade principal era … a formação de clérigos” (p. 80). Igreja e Monarquia apoiam-se mutuamente em Toledo, porém no tocante à saúde, física e d´alma, sente-se uma simbiose de práticas e costumes populares com a utilização de elementos cristãos, configurando uma união perene entre corpo/alma e lhe dando juízo de fé pública. Interessante notar que o historiador ressalta dois aspectos importantes nesse processo: o primeiro prende-se à conversão dos monarcas e de seu séquito mais próximo; já o segundo, a cristianização, ainda necessitava de uma implementação maior, pois o maravilhoso, o insólito, o estranho que fugiam à compreensão dos eclesiásticos ainda rodeavam e povoavam estratos significativos da população visigótica da Hispânia e de Toledo.

Nada mais justo, portanto, que o próximo capítulo “Religiosidade ou Religiosidades?” também apresentasse uma indagação como tema central. A questão do encontro entre modos de vivenciar o sagrado expresso pela dicotomia paganismo X cristianismo no território hispânico é debatida e o historiador aponta desde o início para o fato de que obras como os Capitula Martini ou o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga, “não parecem estar dotadas de uma intenção apenas preventiva ou lutando contra lembranças residuais ou obscuras, ´meras impurezas´” (p. 103). Tais textos demonstrariam a coexistência de duas formas de religiosidade, uma oficial e outra ´popular`.

Para Ruy Andrade, o termo `religiosidade popular` situa-se na esfera de um embate que oporia o cristianismo, uma religião da cultura escrita, a um conjunto de crenças e práticas, que sobressaiu exatamente a partir da expansão dominadora do credo cristão, pois o estudioso defende para o período “a religiosidade como elemento catalisador dos descontentamentos, e não seu agente elaborador.” (p. 109) Portanto, vislumbrar-se-ia uma antinomia campo X cidade, em que o meio rural manteria tradições e expressões de religiosidade dissonantes daquelas das cidades, ligadas ao círculo real e de certa forma aliadas ao poder eclesiástico. Esta “cisão de fé”, se é que assim podemos denominar tal fenômeno no reino visigodo de Toledo, colocava em lados opostos a magia pagã e o milagre cristã, embora, afirma o historiador, questionando-se ao fim do capítulo, se é realmente possível falarmos de ´religiosidade popular´, na medida em que este termo parece englobar mais que simplesmente uma escolha ou prática não referendada pela Mater Ecclesia, revelando-se como um outro viés da religião do Cristo.

No próximo capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, discute-se a partir da conversão ao cristianismo dos visigodos do reino de Toledo ocorrida no ano 589 o projeto de referendo da organização monárquica do reino em consonância com a esfera religiosa, já que “A unidade política assentava-se, pois, na unidade religiosa.” (p. 132) A coesão política do reino atrelava-se agora ao apoio eclesiástico, que ensejava e ansiava por uma “utopia monárquica”, em que bispos e nobres visigóticos possuiriam papel de destaque nos assuntos régios em Toledo.

Para a realização em terra de um ideal cristocêntrico até o fim do reino visigótico de Toledo em 711, a Igreja lança mão da metáfora do corpus Christi para direcionar os papéis sociais de todos, reis e súditos, no céu e na terra com a intermediação dos clérigos, representantes do Criador entre os homens. Para o historiador, uma aliança é estabelecida, tanto em nível civil quanto em teológico, entre realeza e igreja, a ponto de, cita o pesquisador brasileiro, se chegar em certos momentos “à promulgação pelos reis da lex in confirmatione concilii” (p.142). A lei e a Lei fundem-se, e a consagração em Toledo do rei Wamba, em 672, é marco na história ocidental.

A sacralização da monarquia, as etapas, as funcionalidades e as características deste momento histórico descritas no capítulo IV somam-se agora no capítulo V, Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo os resultados visíveis e depreensíveis de tal processo. Partindo de Paulo e Isidoro de Sevilha ter-se-ia a divisão do homem em sua integralidade em três instâncias: “espírito/pneuma, que corresponderia à parte que estava reservada para a imortalidade; alma/psykhe, que animaria o corpo; e corpo/soma, [este último par apenas para Paulo] a parte degradável que desapareceria.” (p. 166) O historiador analisa com argúcia a inserção do homem – visigodo – dentro do plano cosmológico cristão, em que a teia cultural do cristianismo e suas expressões de religiosidade servem de base e de argamassa para ordenar o mundo, já que, como bem explica Ruy Andrade, “´Cosmo´, significando ordem, estrutura, mundo, universo, também é uma palavra entendida como ´caos´…” (p. 171), o que logicamente pressuporia a existência prévia de uma falta de coesão. As uerba Dei mostram, num mundo ordenado, as belezas da Criação e caberia ao homem ser o espelho deste ordenamento e deste encanto. A natureza deve se sujeitar ao melhor specimen forjado por Deus, a cidade é eleita o seu melhor abrigo, embora sobre a terra ainda pairasse o a possibilidade da sedição do Mal.

Tal perigo, que lembraria ao ser humano a presença do demônio, pode ser polarizado pelos binômios catolicismo/arianismo devido à associação ao Mal de reis visigodos que professavam a doutrina de Ário. Todavia, o rei cristão verdadeiro traria a salvação e a saúde ao seu povo, sendo ambos os termos derivados etimologicamente de salus. Enfim, o Homem e o Reino do plano divino ver-se-iam então personificados e revividos na figura do monarca e seu reino terrestre. Nesse momento entende-se o porquê do título Imagem e Reflexo, como bem sumariza o historiador: “É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe distorce a imagem, confere-lhe uma forma.” (p. 192)

Em suma, lançando questões, propondo interpretações aos moldes de uma História Argumentativa, amparado em sólida bibliografia e em uma linguagem acessível a estudiosos e leigos, Ruy de Oliveira Andrade filho leva-nos ao reino visigodo de Toledo, em uma viagem que se encerra no “eterno retorno” do mundo germânico medieval à plasmação da Europa que em grande parte ora conhecemos e que cada vez mais é objeto de investigação de historiadores brasileiros.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de línguas Anglo-Germânicas. E-mail: [email protected]


FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Germanos na Espanha medieval – entre Reis e Deus (es). Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 114-119, 2013. Acessar publicação original [DR]

Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andrade Filho

Com Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, de autoria de Ruy de Oliveira Andrade Filho, a Edusp presta-nos a nós medievalistas – e aos historiadores em geral – um grandioso serviço, fazendo renascer para a vida um dentre os milhares de exemplares de teses que, elaboradas com afinco e dedicação por estudiosos de programas de pós-graduação de todo o país, jazem condenadas a dormitar nas estantes empoeiradas dos recônditos das bibliotecas universitárias, fadadas ao silêncio e ao esquecimento.

Baseada em sua tese de doutorado,1 Imagem e Reflexo… dedica-se à análise das relações entre a(s) religiosidade(s) e a monarquia no reino visigodo da Hispânia, desde a conversão de Recaredo ao credo niceno, celebrada no III Concílio de Toledo, em 589, até a conquista muçulmana da Península Ibérica, em 711. Segundo o autor,2 o desfecho deste processo ocorreria no citado concílio, quando tem início a elaboração de uma teoria da realeza que, por seu turno, ficaria mais bem configurada na reunião seguinte, realizada no ano de 633. Leia Mais