Escravidão e comércio de escravos através da história / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2019

A escravidão é uma das instituições mais antigas da humanidade. Ao contrário do que se possa pensar, a escravização começou muito cedo de tal forma que a propriedade de uma pessoa sobre outra é anterior à propriedade privada da terra. Em diferentes locais e épocas, houve povos que comerciaram cativos, escravizaram vizinhos e até gente do seu próprio meio, mas não conheceram a propriedade privada da terra. Inúmeros povos vivendo em sistemas muito próximos ao chamado comunismo primitivo, traziam em suas culturas o costume de apropriar-se dos corpos de prisioneiros para uso e abuso da comunidade ou de algum indivíduo.

São inúmeras as possibilidades de usufruir do corpo escravizado: imolar, devorar, usar, punir, e colocar para trabalhar ou para exercer atividades consideradas indignas ou arriscadas. Existem quase infinitos exemplos em todos os continentes em diferentes épocas. As sociedades costumam sair da escravidão, mas, em algum ponto do passado, todas passam ou passaram por ela. Há quem distinga sociedades com escravos de sociedades escravistas. Umas possuíam escravos apenas. Outras tinham todo o ritmo da economia e da vida social ditados pela escravidão. Há, todavia, quem ache essa distinção irrelevante, pois é uma questão basicamente de escala, de fronteira imprecisa. Mas, uma coisa é certa, a escravidão marcou profundamente a experiência humana desde a Antiguidade mais remota.

Além de antiga, a escravidão é uma das instituições mais resilientes que conhecemos, como bem demonstram os relatórios online da Anti-Slavery Society, sediada em Londres, talvez a ONG humanitária em atividade há mais tempo no mundo. Já se falou que seria superada por motivos religiosos, e no entanto, é comum escravizar-se gente do mesmo credo. Já se falou que a ética secular a superaria, e no entanto, a guerra e as necessidades do vencedor sempre falaram mais alto. Já se falou que o capitalismo era incompatível com a escravidão, e no entanto na periferia das engrenagens dos grandes mercados, ela retorna e enraíza-se sob diferentes disfarces. E convém lembrar, que, mesmo nos centros mais avançados ela pode ser empregada sob diferentes justificativas, algumas muito apropriadas ao mundo moderno. Na contemporaneidade, multidões de trabalhadores vivem em condições análogas à escravidão em países onde os direitos civis mais básicos são conquistas centenárias. Pessoas desprotegidas ainda são traficadas como mercadorias.

Escravidão, stricto sensu, todavia, significa que uma pessoa, ou um grupo, possui o direito de propriedade, de uso e abuso sobre o corpo de uma outra pessoa, e não apenas sobre os produtos do trabalho. E não é uso temporário, mas ininterrupto. Sendo o corpo uma propriedade, havendo comércio, a pessoa pode ser trocada como qualquer outra mercadoria, repassada, herdada. O comércio de gente escravizada vem de tempos imemoriais, mas como tema da História ainda incomoda. Quem vendeu, quem comprou, quantos foram vendidos e comprados, de onde e para onde e quais os resultados disso, são problemas históricos que tocam em questões éticas e políticas profundas. O estudo do comércio de gente africana para as Américas é uma parte dessa temática quase tão ampla quanto a história humana.

A partir de meados do século XX houve um intenso desenvolvimento de pesquisas a respeito desse assunto. Os estudos sobre o impacto do comércio atlântico de gente escravizada nas várias margens do Atlântico, sobre os cativos e seus descendentes, desdobraram-se em um campo de reflexão teórica e metodológica consolidado tanto nas Américas, como na África e na Europa. As demandas sociais em torno das experiências da escravidão e pós-Abolição demonstram a vitalidade do tema na contemporaneidade. Todavia, ainda há muito o que se fazer. Só para exemplificar, no caso de Pernambuco, a historiografia sobre o tema ainda é tímida, apesar do quarto lugar entre os pontos nas Américas que mais receberam cativos da África. A historiografia sobre o Nordeste, portanto, ainda é carente de trabalhos que tratem, não apenas da demografia do tráfico, mas também do fiscalismo, tributação, consumo, comércio, monopólios, contratos e negociantes. Isso, tanto de forma genérica, como específica, no que corresponde à mercancia de gente.

Esse dossiê pretende somar à historiografia que problematiza essas questões, acolhendo pesquisas sobre escravizados e escravizadores imersos na dinâmicas do comércio de cativos. Numa perspectiva abrangente cronológica e geograficamente, tentamos aqui motivar pesquisas primárias e / ou análises comparativas e ampliar abordagens sobre o comércio de pessoas escravizadas em diferentes contextos e circunstâncias, fomentando assim a discussão. Há muito o que se estudar sobre os processos que permitem relacionar os pontos de origem dos cativos e os locais da exploração dos seus corpos e trabalho, submetendo pessoas a condições degradantes de vida e supressão das liberdades, desde épocas remotas até à contemporaneidade. Os trabalhos que compõem o elenco do dossiê abordaram o assunto entre os séculos em que o Brasil foi uma conquista portuguesa até os estertores da escravidão legal no Brasil do segundo reinado.

O texto de Gustavo Acioli e Leonardo Marques intitulado “O outro lado da moeda: estimativas e impactos do ouro do Brasil no tráfico transatlântico de escravos (Costa da Mina, c. 1700-1750)”, retoma um tema já tratado pela historiografia do comércio atlântico, mas que ainda apresenta muitas lacunas, uma vez que quantificar o volume de ouro saído da América portuguesa, em direção à África Ocidental para a troca por cativos sempre apresentou-se como uma empreitada difícil. Ao longo da argumentação os autores chegam a conclusão que 2 / 3 dos cativos comprados na costa africana foi através do ouro retirado das minas no Brasil e que, de forma indireta, a conquista portuguesa contribuiu para o incremento das trocas globais e a hegemonia do sistema capitalista mundial, o que não teria acontecido se não fosse a via africana a conectar os elos que formavam esse conjunto.

Já o trabalho de Maximiliano Menz “Uma comunidade em movimento: os traficantes de escravos de Lisboa e seus agentes no Atlântico , c. 1740-1771”, desenvolve um estudo sobre os principais traficantes atuantes em Lisboa entre 1740 e 1771. Trata-se de um ramo português de investimentos no tráfico de Angola. Com levantamento circunstanciado de fontes primárias, o texto narra a participação de mercadores e o exercício mercantil de homens de negócio portugueses que transitaram entre o Reino e a conquista Angola, aproveitando as conjunturas vantajosas para o comércio de cativos. Apresenta variados negociantes, alguns reconhecidos como os mais ricos no sistema, demonstrando com suas práticas e estratégias que os negócios atlânticos vão além de esquemas “triangulares” e “ bipolares”.

Por sua vez, o artigo de Alexandre Bittencourt trata da complexa rede estabelecida entre as regiões exportadoras e importadoras de pessoas escravizadas, África, América portuguesa e Europa. Em “A travessia de escravos dos sertões de Angola para os sertões de Pernambuco (1750-1810)”, desenvolve o entendimento de que pessoas colocadas em lugares chave e exercendo funções variadas se tornaram essenciais para viabilização do comércio de escravos. Dentre as personagens tratadas sobressaem-se as que residiam em Pernambuco e atuaram através da Companhia de Comércio Pernambuco e Paraíba. Delineia um processo que conecta de sertão a sertão, tendo o Atlântico como intermediário, concluindo-se quando as pessoas escravizadas alcançavam o seu destino fossem nas minas ou nas fazendas de gado dos rincões Setecentistas.

Com o texto de Janaína Bezerra mergulhamos no universo dos homens de cor atuantes principalmente nos centros urbanos. O trabalho “Luís Cardoso: de Escravo a Homem de Negócio da Praça do Recife (XVII e XVIII)”, seguiu a trajetória de vida de um homem pardo, forro, filho de um senhor branco com sua escrava, que chegou a alcançar a distinção como homem de negócio de grosso trato na Praça de Pernambuco. Participou de instituições sociais frequentadas pela elite branca, demonstrando quão fluidos foram os padrões de inserção e as negociações para impedimentos ou não, nas conquistas portuguesas do Antigo Regime.

Arthur Danillo Castelo Branco de Souza lida com o comércio interprovincial e intraprovincial de cativos na segunda metade do oitocentos. Analisa anúncios de compra e venda de cativos nos jornais e a atuação de alguns negociantes e daí busca entender esse complexo processo que permitiu repor a mão de obra escrava em Pernambuco. Tal como no tráfico atlântico, o comércio interprovincial de cativos também se fez em boa parte à margem da legalidade. Os escravizados, por sua vez, aproveitaram-se da demanda pela mão de obra para, sempre que possível, tentarem trocar de senhor à procura de um cativeiro menos brutal.

George F. Cabral de Souza trabalha com documentos recolhidos em diversos acervos, tanto no Brasil como em Portugal, que lhe permitem apresentar dados substanciais sobre 38 negociantes que operavam no Recife, aproximadamente entre 1660 e 1760, os quais estavam envolvidos no comércio de africanos escravizados. O foco central do texto são quinze negociantes listados em um relatório sobre as embarcações negreiras da praça do Recife, em 1758. Atendendo pedido do governo central, o governador da capitania produziu aquele documento sob o pretexto de apurar a possível superlotação das embarcações.

O texto analisa as trajetórias e inserção desses personagens na sociedade pernambucana, os quais diversificavam seus negócios e teciam redes de forma a permanecerem no topo da hierarquia social. O texto de Gian Carlo de Melo Silva tem por base uma densa pesquisa no Rol de Confessos, uma fonte rica em dados populacionais que não costuma ser utilizada em estudos sobre escravidão no Nordeste. Partindo de uma descrição crítica daquele acervo documental, o trabalho analisa os dados obtidos sobre a escravidão em Alagoas, com especial atenção para a freguesia de Santa Luzia do Norte, cujo território engloba tanto uma área mais urbana como uma região ocupada por engenhos de cana. O foco central do trabalho são as complexas relações entre os arranjos familiares no Brasil colonial, a escravidão e as mestiçagens.

É com muita satisfação, portanto, que apresentamos este dossiê, na certeza da relevância do seu tema e na qualidade dos trabalhos aqui publicados que esperamos que sirvam de base para outras pesquisas e debates futuros.

Suely C. Cordeiro de Almeida – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, integra o corpo docente da Graduação e Pós-Graduação do Curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e da Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0001-8267-4719

Marcus J. M. de Carvalho – Doutor em Historia pela University of Illinois at Urbana-Champaign. Atualmente é professor titular de História nos programas de graduação e pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-1912-2879

Organizadores


ALMEIDA, Suely C. Cordeiro de; CARVALHO, Marcus J. M. de. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.37, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Nação, cidadania, insurgências e práticas políticas, 1817-1848 (II) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2015

Esta segunda parte do dossiê Nação, cidadania, insurgência e práticas políticas, 1817- 1848, mais uma vez, aborda a história social e política daquele momento-chave da formação da nacionalidade e da consolidação do império do Brasil, que costumava ser chamado pela historiografia tradicional de “Ciclo das Insurreições Liberais do Nordeste”. Mesmo tendo esse vínculo comum, os artigos abordam objetos diversos, enriquecendo assim nossa compreensão sobre o período e sobre a temática do dossiê. Nas páginas seguintes, estudaremos: a constituição de uma família que tinha um projeto de ascensão à elite política do Império; o conturbado processo de independência nas “províncias do norte”; a participação de índios aldeados nas lutas da Confederação do Equador; o jogo político das primeiras celebrações do Sete de Setembro, e, finalmente, os confrontos armados envolvendo as populações florestais nas matas de Jacuípe na primeira metade do dezenove.

Abre o dossiê o instigante artigo de Paulo Henrique Fontes Cadena, que desvenda a trajetória política e financeira dos Cavalcanti de Albuquerque desde 1801, quando os irmãos Francisco, Luís e José protagonizaram a trama conhecida como Conspiração dos Suassuna (nome do engenho da família). Em 1817, Francisco (o Coronel Suassuna), e seus filhos participaram da revolução que estourou no Nordeste. O autor analisa os problemas financeiros que rondavam o cotidiano dos Cavalcanti, levando-os a tomar posições opostas ao governo. Todos os seis filhos do Coronel envolveram-se na política brasileira. O mais destacado deles, Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque, o Hollanda dos anais do parlamento brasileiro, quase foi regente em 1835 ao concorrer com Feijó. Depois dos arroubos de 1808 e 1817, a família trilhou um caminho mais conservador, apoiando Pedro I contra a Confederação do Equador (1824) e dali foram tecendo alianças e ocupando espaços políticos que, explica Paulo Cadena, tiveram correspondência direta com o sucesso econômico dos anos seguintes. Os Cavalcanti e seus aliados ocuparam imensos cargos e posições constituindo-se numa oligarquia sem par na história de Pernambuco.

A história de formação de potentados locais e da elite política no Brasil Império é fascinante, sobretudo quando associada a processos mais amplos, como a Independência do Brasil, que, nas províncias, não foi um processo homogêneo, unidirecional. No Piauí, o anochave foi 1823, quando as tropas leais a Portugal foram definitivamente expulsas por um exército patriota, articulado pelas elites locais, com intensa participação dos grupos populares. Gente que, em sua maioria, era motivada por um discurso de nacionalidade construído ali mesmo em meio aos acontecimentos. É isso que nos mostra em detalhe o artigo de Johny Santana de Araújo, ao fazer um estudo de caso sobre a Independência, no qual evidencia a posição estratégica do Piauí, como uma “região de fronteira” entre o novo Império do Brasil e a nova Colônia portuguesa no norte. Menos de um ano depois dos eventos de 1823, as lideranças políticas que haviam tomado parte no processo de independência no Piauí, estavam divididas entre jurar a nova Constituição, promulgada por Pedro I, ou aderir à “república pernambucana”: a Confederação do Equador.

Nesses processos, a violenta cisão entre as elites locais, abria espaço para que outros protagonistas atuassem de forma mais incisiva na cena política maior, esgarçando ou mesmo rompendo relações clientelistas consolidadas pelas contingências locais. Na Confederação do Equador estava em debate (e em conflito) projetos políticos divergentes, conferindo outras dimensões ao jogo político entre os potentados locias e as demais camadas e estratos da sociedade. Assim, em Pernambuco e Alagoas, os acontecimentos de 1824 atingiram e envolveram também a população indígena. É este o tema do artigo de Mariana Albuquerque Dantas, que analisa com precisão a participação dos aldeamentos de Barreiros e Cimbres (em Pernambuco) e Jacuípe (em Alagoas) nos conflitos armados daquele ano. A partir de suas próprias demandas – a defesa da terra das aldeias, a administração desses espaços e a oposição ao recrutamento – a população indígena posicionou-se diante dos debates sobre projetos políticos coevos. Mesmo que enleados nas malhas do clientelismo local, os índios aldeados foram protagonistas de sua própria história naquele momento crucial do processo de formação do Estado nacional brasileiro.

O artigo seguinte é de autoria de Lídia Rafaela Nascimento dos Santos que contempla o leitor com um estudo sobre as festas comemorativas do Sete de Setembro no Recife em 1829. Embora tenha sido uma tradição inventada em 1826 por uma lei que definiu as datas cívicas da nova nação, esta foi a primeira vez que aquela celebração foi registrada e debatida pela imprensa de Pernambuco. O texto apresenta um repertório de interpretações coevas sobre aquele momento, quando a cidade inteira viu-se envolvida nas solenidades que contou com cortejos, carros alegóricos, ruas e praças apinhadas de gente. Mas nada era linear, unívoco. Cada detalhe era significado à sua maneira pelos diferentes agentes enredados nas tramas das festas. As diferentes facções políticas manifestavam-se através da imprensa e participavam, ou não, dos diversos eventos programados, conforme seus poderes relativos, suas opiniões e lealdades. A cidade ainda vivia o rescaldo dos movimentos de 1817 e 1824. Eram muitas as discordâncias, veladas ou não, expressas nos periódicos, que posicionavam-se de forma crítica sobre o que ocorria na cidade. A festa não era apenas uma festa, era muito mais.

Maria Luiza Ferreira de Oliveira inova estudando as guerras nas matas entre Alagoas e Pernambuco na década de 1840, construindo uma nova periodização e uma narrativa singular daqueles eventos. Seu texto mostra que os cabanos não foram totalmente derrotados em 1835, pois a luta ainda iria continuar na década seguinte até a prisão final de Vicente de Paula e de Pedro Ivo, em 1850, e a fundação de duas colônias militares na região, uma em cada província. A gente das matas agia dentro de uma lógica própria. É preciso perscrutá-la para entender suas motivações, seu envolvimento numa guerra sem fim. Mas além dos combates corpo a corpo, das incontáveis mortes, a autora percebe uma outra luta na imprensa e no debate político partidário pela construção de uma memória daqueles acontecimentos e das pessoas envolvidas. Os conservadores tentaram despolitizar o debate público, mostra a autora, celebrando os “melhoramentos materiais” dos anos 1850 em confronto com o que seria um Brasil selvagem, incivilizado. Pedro Ivo desponta como o personagem mais disputado, apontado como herói ou bandido, como símbolo de um liberalismo purista ou um reles desertor das tropas imperiais. Essa luta pela memória foi, principalmente, política, indo além do que permite entender uma cronologia estática dos fatos. É essa a trama tecida nesse instigante texto.

Só resta aos organizadores deste dossiê agradecer aos autores que possibilitaram manter acesa a discussão sobre o tema Nação, cidadania, insurgência e práticas políticas, 1817-1848.

Marcus J. M. de Carvalho – UFPE.

Bruno Augusto Dornelas Câmara – UPE.


CARVALHO, Marcus J. M. de; CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.33, n.2, jul / dez, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Nação, cidadania, insurgências e práticas políticas, 1817-1848 (I) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2015

Foi na primeira metade do dezenove que ocorreu uma série de eventos, que a historiografia tradicional costumava chamar de forma um tanto quanto acrítica de “Ciclo das Insurreições Liberais do Nordeste”. Longe de se limitar apenas a esse pedaço do Brasil, aquele foi um momento marcante para a formação política e social da Nação em seus primeiros e decisivos anos de construção. Anos esses de fundação (para não dizer também de descolonização), organização, afirmação e consolidação do Estado Nação. Aqueles acontecimentos em suas múltiplas articulações são ainda reveladores das noções de nacionalidade e cidadania que foram se constituindo entre a chegada da família real e a década de 1850, a melhor década de Pedro II, segundo o monarquista Joaquim Nabuco. Ficaram claros processos políticos e sociais complexos, que sem a explosão de violência, sem a panfletagem, sem a repressão brutal, talvez tivessem ficado abafados pelas paredes dos centros de decisão nas províncias e na corte.

Não surpreende, portanto, que esse período e temática tenham sempre atraído a atenção de tantos historiadores brasileiros e estrangeiros. Entender esse tal “Ciclo das Insurreições Liberais do Nordeste” – que nem sempre foi liberal e raramente tão limitado geograficamente – é uma boa chave para perscrutar processos mais amplos de formação de uma cultura política singular, moldada em meio a contradições e conflitos – tendo a escravidão como um pano de fundo que se espalhava por todo o palco da ação. Para além dos aspectos políticos e da violência desses movimentos insurrecionais que tanto chamaram a atenção dos observadores mais imediatistas, a historiografia vem se dedicando a outras nuances, a outros processos que ocorreram dentro ou de forma paralela aos grandes acontecimentos políticos da primeira metade do século XIX. As balizas cronológicas desse dossiê englobam, portanto, momentos cruciais da construção da nacionalidade, da consolidação da monarquia bragantina, do apogeu do contrabando de cativos da África, ao transitar e buscar entender vários movimentos contestatórios que envolveram distintas camadas sociais em turbilhões explicáveis, desde que admitido o debate, a discordância, a pesquisa sempre inconclusa porque está sempre a recomeçar.

Atualmente, a já anunciada efeméride dos 200 anos da Revolução de 1817 constitui-se um poderoso fator de aglutinação de pesquisas sobre esses acontecimentos, “momentos de perigo” como dizia a historiografia mais antiga, da primeira metade do século XIX. Longe das comemorações oficiais e dos discursos laudatórios que estão por vir, a intenção deste dossiê, intitulado Nação, cidadania, insurgências e práticas políticas, 1817-1848, é justamente abordar o que realmente interessa para a comunidade acadêmica e para a sociedade em geral: fazer público e acessível a todos os novos estudos sobre esse período. O que o leitor apreciará aqui é um panorama do estado da discussão, do avanço das pesquisas a partir da compreensão mais ampla da história das insurreições, da cultura política e da cidadania no Brasil Império. Esses trabalhos, frutos da consolidação dos programas de Pós-Graduação no país, contribuem para uma melhor compreensão da história política e social do Brasil e abrem janelas para outros estudos, sucessivamente, avançando o debate, como deve ocorrer na aventura da busca pelo conhecimento histórico.

Sendo muitos os artigos, foi decidido dividir o dossiê em dois volumes. Neste primeiro volume, abre o dossiê o artigo de um veterano historiador dos movimentos sociais e políticos da primeira metade do século XIX. Flávio Cabral levará o leitor a percorrer os caminhos da minuciosa atuação diplomática nos Estados Unidos do comerciante Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, como emissário do governo revolucionário de 1817. Contrariando a historiografia que diminuía a importância dessa e de outras missões diplomáticas promovidas pelo governo revolucionário, Flávio discute o legado dessa missão, que esteve longe de ser frustrada, insignificante ou sem uma visão política mais ampla. Segundo o autor, Cabugá teve trânsito livre entre políticos e autoridades norteamericanos: celebrou tratados de comércio, acordos diplomáticos, fez articulações com pessoas influentes e com militares franceses exilados naquele país que serviram a Napoleão Bonaparte, comprou armamentos, munições e alimentos. Fez ainda propaganda positiva da revolução e da jovem república instalada no Nordeste do Brasil. Como ressalta Flávio, mil oitocentos e dezessete diverge de outros movimentos brasileiros, pois talvez nenhum outro tenha tido tanta repercussão no exterior.

Se Flávio faz um retrato preciso da experiência diplomática de uma das figuras mais emblemáticas de 1817, este dossiê não ficaria completo sem um estudo da gente comum que se envolveu nas querelas políticas daqueles tempos. O artigo do jovem historiador Wanderson Édipo de França, fruto de sua recém-defendida dissertação de mestrado, busca entender a participação do povo na política nacional, tendo como pano de fundo os acontecimentos de 1817 e da Confederação do Equador, em 1824. A própria expressão “povo”, escrita entre aspas, é um conceito que o autor vai tentar delinear no contexto da época. São objeto de sua pesquisa as práticas políticas das pessoas mais simples, suas condutas, questionamentos e incertezas. Essas pessoas, que se constituíam no “povo de Pernambuco”, não se curvaram às convenções e lutaram à sua maneira para construir suas próprias noções de pátria e cidadania.

O processo de construção da Nação foi marcado por inúmeros embates entre autoridades locais e agentes do governo central. Em 1831, com a abdicação de Pedro I e a implantação da Regência, outros pontos e detalhes dessa relação foram se constituindo. Porém, longe de ser um processo pacífico e cordato, o que se viu foi o aumento das tensões. Entender esse processo é o que propõe Manoel Nunes Cavalcanti Junior, em um artigo em que revisita as Carneiradas, uma sucessão de motins orquestrados pelos irmãos Francisco Carneiro Machado Rios e Antônio Carneiro Machado Rios. Ocorrida nas ruas do Recife no tumultuado ano de 1835, as Carneiradas um reflexo da disputa entre as facções políticas que lutavam pelo poder local. Um processo bipolar que tinha ressonância na Corte do Rio de Janeiro e era influenciado pelo que ocorria lá. As intrínsecas relações entre poder local e política partidária ganhavam novos contornos naqueles embates.

Na década de 1840, liberais e conservadores vivenciaram suas divergências na imprensa que mobilizou inúmeros escritores públicos. Ariel Feldman analisa a imprensa que antecede a Insurreição Praieira (1848 / 49), estudando produção jornalística do Padre Lopes Gama, entre 1845 e 1846. Os jornais e pasquins serviam para mobilizar votantes e não votantes, atingindo até as paróquias do interior. Mas era no Recife que estava o maior colégio eleitoral, o palco de inúmeras disputas e onde a pena afinada de Lopes Gama atuava com mais precisão. Ariel destaca a grande dificuldade do partido que não era situação para chegar ao poder, já que a máquina eleitoral era controlada pela presidência da província e seus representantes nas localidades. Diante das dificuldades, a oposição usava várias estratégias para arregimentar votantes. A imprensa de caráter popular era uma delas. Em seus escritos, Lopes Gama conclama o povo a participar mais da vida política da província, assumindo um jornalismo mais popular visando atingir setores mais amplos da população. Uma de suas estratégias era o uso de versos rimados para discutir política. Versos que mexiam com os sentimentos e imaginário popular.

A primeira parte deste dossiê fecha com um artigo de Renata Saavedra sobre a Guerra dos Maribondos, uma série de revoltas populares contra o registro civil e o censo geral do Império, entre dezembro de 1851 e janeiro de 1852, envolvendo povoações do interior de Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Alagoas e Ceará. O governo imperial não imaginou que a população rural pobre interpretasse aquelas medidas como uma tentativa de (re)escravizar a população não branca. Além da destruição dos papéis com esses editais, houve depredações nos povoados, engenhos foram atacados, autoridades presas e pelo menos um juiz de paz morreu nos conflitos. Para além da violência desses motins, a autora faz uma sucinta descrição do repertório de mobilização e luta dos homens livres pobres, discutindo as noções de justiça coevas, contrárias a uma cidadania imposta “de cima para baixo”, que não respeitava os costumes e os valores tradicionais daquela população. Rediscutindo a historiografia sobre a gente livre pobre no Brasil imperial, a autora busca entender as dimensões políticas dessa revolta popular.

Só resta aos organizadores deste dossiê agradecer aos autores que possibilitaram acender tantas discussões neste número da Clio.

Marcus J. M. de Carvalho – UFPE.

Bruno Augusto Dornelas Câmara – UPE.


CARVALHO, Marcus J. M. de; CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.33, n.1, jan / jun, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História dos Povos Indígenas / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2007

CARVALHO, Marcus J. M. de; SILVA, Edson. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.25, n.2, jul / dez, 2007. Acesso apenas pelo link original [DR]

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