O Corpo na História e a História do Corpo / Revista Transversos / 2015

CORPO ESPARGINDO

Captar a irregular existência que vem à luz no que se faz e diz.

Michel Foucault

A forma vibrante da nomeada maja tosca (Nery, 2013) figura feminina ou afeminada, estirada num canapé amarelo que emerge da sensualidade congelada de outros tempos, modos de ver e de transcrever ilumina as múltiplas representações ou reapresentação, ativa saberes / poderes nesse e desse dossiê. Assim, faz pensar o outro do corpo em suas problematizações como materialidade da natureza sensível, logo vulnerável. Um enigma que cada um enfrenta, constantemente, de maneira subjetiva e histórica. Como objeto de reflexão significa romper o dualismo entre a superioridade das ideias (espírito) contra a inferioridade do corpo (carne). Após a fratura provocada por Nietzsche, Freud, Foucault, Beauvoir e Butler entre outros / as como negar suas potencialidades de transgressão sociopolítica e de construção de subjetividade que transcendem a marca do sexo de modo a revisar a opressão, inclusive a da regulação sexual, questionando as dissonâncias entre identidades de gêneros e práticas sexuais que, como ponto de interlocução, abrem novas possibilidades epistemológicas

O Corpo na História e a História do Corpo foi tema de uma oficina do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O experimento aconteceu no segundo semestre de 2014 como uma atividade da linha de pesquisa Vulnerabilidades e Controle Social. Pesquisadores / as de diferentes instituições se reuniram para compartilhar seus estudos sobre a emergência de um corpo / discurso que informa e conforma as complexas relações com a sociedade em sua invenção de si. O desafio era desnaturalizar o corpo / objeto para além da disciplina, procurando iluminar a violência dos regimes de verdade e suas obviedades que o aprisiona no biológico.

(…) o que é evidente é violento, mesmo se essa evidência é representada suavemente, liberalmente, democraticamente; o que é paradoxal, o que não cai sob o sentido, é menos violento, mesmo se for imposto arbitrariamente: um tirano que promulgasse leis extravagantes seria, finalmente, menos violento do que uma massa que se contentasse com enunciar o óbvio: o ‘natural’ é, em suma, o último dos ultrajes. (BARTHES, 1975: p. 92).

Está claro que existe uma bios neste corpo transformado em logos, em discursos da natureza e de natureza. O que se pretendeu foi inquirir para além do a priori de uma certa história natural que no século XVIII fundou as pesquisas e / ou debates sobre a existência dos gêneros, estabilidade das espécies, transmissão dos caracteres através das gerações e, que ainda define a sistematização de um certo corpo visível como domínio de saber.

A mutação da oficina ao dossiê e suas sistematizações só se justifica se não o reduzirmos ao procedimento pedagógico de um texto / produto mas, ao contrário, se ficarmos atentos às condições de possibilidades de saberes poderes que em seus discursos científicos ou ficcionais construíram enunciados sobre o corpo subjetivado como pornográfico, erótico, belo, escravizado, generificado, prostituído, violentado, encarcerado, clinicalizado ou matematizado. Como analisa Fábio Henrique Lopes, em Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes, a relação entre violência e transgêneros. Por meio de casos apresentados pela imprensa, o historiador problematiza os mecanismos de regulamentação, controle e naturalização da matriz heterossexual; bem como as diversas modalidades de agressão direcionadas aos “diferentes”: aqueles que desfronteralizam a divisão binária de gênero e sexualidade e que, por isso, são alvo do “ódio heterossexista, cissexista e transfóbico”.

A seguir em Corpos encarcerados em cena, Marilene Rosa Nogueira da Silva experimenta e se experimenta nos possíveis diálogos entre linguagem imagética e linguagem escrita. Estas criam novas identidades: a dos sujeitos dos documentários selecionados, as do Grupo de Informação sobre a prisão (GIP) e a do sujeito sobrevivente do diário / depoimento de um ex-presidiário do Carandiru. Um texto afetado que inquire a naturalização da carceralização e denuncia a banalização da violência e o descaso que a sociedade direciona aos indivíduos excluídos pela inclusão carcerária.

Problematizar a produção de jornais e contos considerados pornográficos no Rio de Janeiro, no momento da chamada Belle Époque é o que propõe Marina Vieira de Carvalho, em A ficcionalização do desejo: a pornografia e o erotismo como objetos de consumo na modernização da cidade do Rio de Janeiro. Com esse fim, traça os diferentes significados que os termos pornografia e erotismo tiveram na modernidade ocidental, para assim compreender o desenvolvimento do mercado editorial de temas lascivos na capital do país. A historiadora analisa os potenciais de transgressão e crítica que a pornografia de então tecia em suas relações com a sociedade carioca.

Antropologia criminal e prostituição: a matematização do corpo segundo Pauline Tarnowsky emerge das inquietações provocadas na sala de aula pelo filme L’Apollonide: Os amores da Casa de Tolerância ( 2011). A Professora Laura Nery e os graduandos José Roberto Silvestre Saiol e Beatriz do Nascimento Prechet discutem a normalização e controle moral na sociedade vitoriana, especificamente, a relação entre antropologia criminal e prostituição no final do século XIX. Em destaque o estudo da médica Pauline Tarnowsky, no Hospital de Kalinkine, em São Petersburgo, (1889) na classificação das prostitutas como degeneradas moral e fisicamente, identificação fundamentada na matematização dos seus corpos.

José Ricardo Ferraz em Ninguém nasce bela, torna-se bela. ‘Miss Brasil’: beleza e gênero (1950 – 1980), elege o concurso da Miss Brasil como possibilidade de análise da constituição do gênero feminino no Brasil, no período de 1950 a 1980 como modelo de beleza e seus efeitos de poder para além do estético. A partir de Beauvoir, com elaborações que transcendem a marca do sexo como por exemplo em Judith Butler, procura destacar o dualismo que matematizava o corpo feminino por meio de um olhar masculino. Logo, tornar-se bela emerge como um dispositivo que (con)formava o comportamento considerado adequado para as mulheres, reforçando os valores da chamada “boa sociedade”.

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro, literalmente, ilumina em Fotografia e história, a existência e o vestígio remanescente: corpos negros de mulheres no ‘teatro de enunciados’ do Brasil oitocentista. São corpos ressignificados como cativos, que podem ser adquiridos, comprados, consumidos, vendidos. Apresenta a ama de leite como corpo / monumento de famílias que desejavam demonstrar sua distinção social, demarcar e, ao mesmo tempo, suavizar, fronteiras hierárquicas entre as “mães pretas” e seus pequenos / grandes senhores brancos. Imagens que não ilustram, mas sim constituem essa realidade social e que, por isso, possibilitam as memórias / dizíveis de como a “sociedade de bem” gostaria de ser lembrada pela posteridade.

Para encerrar Corpos escravizados: que histórias contam?, Iamara da Silva Viana analisa os manuais médicos sobre os corpos dos escravos, com destaque para o médico francês JeanBaptiste Alban Imber que chegou ao Brasil em 1831, momento em que as leis contra o tráfico de escravos estavam em pauta. O discurso médico é pensado como estratégia biopolítica que orienta os senhores na hora de comprar e de preservar a produtividade do escravo como corpo / mercadoria. O estudo propõe investigar os efeitos desta normatividade no debate sobre o fim do tráfico de africanos que eleva o saber médico como um mecanismo de ampliação da vida útil do corpo escravizado.

Esses são apenas alguns fios de uma complexa trama do movimento contínuo da transgressão no sentido de um dos ditos de Foucault (1983) em homenagem a Bataille:

A transgressão é um gesto relativo ao limite; O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente, se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos: ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento, rapidamente, se embaraça por querer apreendê-las (…) A transgressão não está, portanto, para o limite como o negro está para o branco, o proibido para o permitido, o exterior para o interior, o excluído para o espaço protegido da morada. Ela está mais ligada a ele por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir. Talvez alguma coisa como o relâmpago na noite que, desde tempos imemoriais, oferece um ser denso e negro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de alto a baixo, deve-lhe entretanto sua viva claridade, sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e, por fim, se cala, tendo dado um nome ao obscuro. Nada é negativo na transgressão. Ela afirma o ser limitado, afirma o ilimitado no qual ela se lança, abrindo-o pela primeira vez à existência.

Desta feita o Dossiê se inscreve como um vestígio, uma caixa de ferramenta, propondo-se a desnudar o êxtase da naturalização. Enfim, um exercício que objetiva fazer aparecer o corpo como um sujeito histórico, mutável, insistente e visível como um lugar onde habita o poder. Compartilhem da transgressão positivada de pesquisadores / as que ousaram apresentar suas reflexões de forma problemática, sem as certezas e verdades acabadas, ainda em plena dinâmica e provocação como sua maja que se quer tosca.

Marina Vieira de Carvalho

Marilene Rosa Nogueira da Silva

Rio de Janeiro 30 de novembro de 2015


CARVALHO, Marina Vieira de; SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 5, n.5, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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20 anos do PPGH-UERJ / Revista Maracanan / 2015

É preciso despedaçar o que permitiria o jogo consolante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa “reencontrar” e, sobretudo, não significa “reencontrar-nos”. A História será “efetiva” na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimentos, dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo (…). É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.

Michel Foucault

A epígrafe anuncia uma provocação: não existe uma história definitiva, pois esta sempre será escrita sob o signo da mudança. Esse sentido ilumina o número especial da Revista Maracanan 20 anos de PPGH. A data memorável, ou melhor, tornada memorável pela comemoração, destaca a criação, mas não historiciza as dificuldades. Será que a palavra esclarece a coisa nomeada por ela? Não basta afirmar como política a história que fazemos, é preciso discutir de que história se está falando? E, como pensar a política como um campo de produção de conhecimento sem cair na armadilha da “verdadeira” História, nem nos limites de suas fronteiras como explicante do universal?. Ao contrário, é justamente esse apelo que exige explicação. Sabemos também que os campos da nossa disciplina são múltiplos espaços de exercícios de pensamento e não de regras de procedimentos e muito menos de recitação dos “mitos fundadores” de nós mesmos como nação. O que obriga a problematizar o lugar da História Política na formação de “singularidades somáticas” diversas do já entendido como indivíduos ou cidadãos. História como exercício de pensamento no desmonte dos resgates, das narrativas cronológicas contínuas e seguras, cuja memorização visaria a criar “cidadãos críticos” em “velhos corpos disciplinados”. Uma maneira eficiente de questionar a inevitabilidade de nossas práticas correntes, por mais evidentes que estas possam parecer.

Simultaneamente registro e rememoração do caminho iniciado há duas décadas, esta edição realça os momentos de criação e amadurecimento do Programa, que obteve nota cinco na última avaliação trienal da CAPES. Examinando aspectos do projeto inicial, é possível perceber a vitalidade do compromisso que rendeu frutos: mestres e doutores formados, pesquisas que se consolidaram e hoje são referência, profissionais ligados ao Programa e que, mesmo em outras casas, são interlocutores assíduos e dão continuidade às propostas surgidas na UERJ. Transformação e adaptação fazem parte desse percurso, no qual eventuais “correções de rota”, ao contrário de comprometerem, confirmam o acerto da aposta inicial. Mantendo-se fiel à proposta de “renovação da história política” que animou o plano original, o Programa busca constante atualização teórica e historiográfica em suas duas linhas de pesquisa – Política e Sociedade e Política e Cultura –, fortalecendo assim sua identidade no cenário acadêmico nacional.

O Dossiê destaca as complexas maneiras do fazer não apenas da história política, mas as especificidades e dilemas do fazer História. O estudo da documentação, os lugares socioinstitucionais da produção do discurso historiográfico e as indispensáveis premissas teórico-metodológicas da pesquisa reafirmam as exigências da escrita da História como trabalho de um profissional submetido às regras e normalizações ditadas pelo ofício. O artigo de Lúcia Maria Bastos e Tânia Maria Bessone abre o percurso criterioso, oferecendo um mapa dos fazeres e das diferentes ancoragens historiográficas que conformaram o Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. A reflexão permite não apenas familiarizar-se com a trajetória do PPGH desde sua fundação, em 1995, bem como perceber seu dinamismo: na avaliação das autoras, além do aprimoramento de seu papel no interior do mundo acadêmico, a pós-graduação deve reavaliar constantemente sua contribuição para a sociedade, investindo num projeto educacional que resulte também na “melhoria do ensino básico, médio e de graduação”. Lúcia Bastos e Tânia Bessone apontam ainda os esforços no sentido de assegurar a visibilidade nacional do Programa e a sua gradual internacionalização, aspecto no qual se destacam alguns dos laboratórios de pesquisa que mantêm, hoje, um sólido intercâmbio com instituições de ensino no exterior, bem como com pesquisadores estrangeiros.

A seguir Bruno Groppo traz a questão da fragmentação e da incompletude que marca a relação memória e história. Les problèmes non résolus de la mémoire russe (Problemas não resolvidos da memória russa) propõe uma densa reflexão acerca da identidade russa após a dissolução da União Soviética. Enfrentando o problema da constituição de uma memória coletiva separada da memória oficial, Groppo descreve os impasses da Rússia diante do “ajuste de contas” com um passado de violência do Estado, em especial no período stalinista. Para o historiador, trata-se de um percurso não linear, no interior do qual modificam-se historicamente as avaliações sobre o passado soviético, desde a rejeição total à União Soviètica até a reconsideração de aspectos mais favoráveis num quadro de desilusão política e crise econômica. Com Wladimir Putin, por exemplo, voltam a se acentuar as realizações do periodo soviético, como a dinamização da indústria, a expansão territorial e política e a conquista do espaço. A reabilitação mostrou-se eficiente, uma vez que a maior parte da população russa hoje endossa uma percepção positiva, de acento nacionalista, acerca do seu passado recente. No entanto, o que dizer da memória dos milhões de vítimas da violência em massa praticada pelo “Partido-Estado”? A memória russa permanece incompleta e fragmentária e a restituição da experiência pretérita se vê ainda confrontada com a negação de seus aspectos sombrios.

As zonas de sombra impostas à história, o direito à memória e os limites do esquecimento são também temas da análise de Heloisa Starling em Silêncios da ditadura. Num artigo que é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o passado recente do Brasil e uma oportunidade de avaliação sobre a historiografia acerca deste período, a professora titular em História do Brasil da UFMG avalia de modo preciso o que considera uma “narrativa simplificadora” sobre o passado. A partir da indagação sobre quem promoveu, sustentou e apoiou a ditadura civil e militar, Starling reflete sobre o que chamou os “três silêncios” que organizam a memória recente do Brasil: sobre a participação dos empresários na estrutura repressiva, sobre a violência cometida pelo Estado contra populações e comunidades específicas – em especial os camponeses e a população indígena – e, finalmente, sobre a estrutura de informação e repressão que se produz sob uma “burocracia da violência”, cristalizada numa rotina de interrogatórios, desaparecimentos e tortura. Diante de fatos extremos, escreve a historiadora, é o papel da testemunha que deve ter realce. Não apenas aquela que viu e viveu o acontecimento, mas também a memória dos que vêm depois dos que viveram efetivamente a experiência. Estes, que somos nós, são convidados a ampliar o conceito de testemunha; instigados a “passar e repassar o Rio dos Mortos, para transgredir deliberadamente a fronteira do passado e do presente, ouvir as vozes sem se recusar diante delas”, como escreve Starling.

A oportunidade de rever certa tradição de abordagem teórica das fontes imagéticas e visuais entre os pesquisadores brasileiros é o ponto de partida de James Roberto Silva, professor da Universidade Federal do Amazonas, em Ver é conhecer? Representações visuais na pesquisa em Ciências Humanas. O artigo apresenta pistas importantes para o amadurecimento do campo entre historiadores e cientistas sociais. O ponto central da argumentação de Silva é a problematização de certa tradição do pensamento científico e especulativo no que concerne à reflexão sobre a imagem em si ou sobre a compreensão da experiência histórica por intermédio da imagem. O autor questiona, justamente, a convicção de que a fonte visual possui significados inatos e oferece-se ao observador como transparência de sentidos. Para tanto, remonta à tradição dos métodos fisionômicos, amparados na confiança nas analogias e semelhanças observáveis nas imagens e nos supostos correlatos “morais” entre o visível e o significado por ele encerrado. Silva mostra como a representação visual, ao apresentar-se como dimensão sensível da experiência exige, a cada caso, uma abordagem singular, não uniformizadora, aberta aos muitos sentidos que se constroem através do visível no interior do grande campo de investigação das representações sociais.

A religião no Império compreendida a partir de manuscritos pessoais, artigo da historiadora Beatriz Piva Momesso, da Universidade Federal Fluminense, explora os arquivos do político José Thomáz Nabuco de Araújo (1813-1878), depositados no IHGB. Um conjunto de bilhetes, cartas e cópias de fragmentos de obras europeias seguidas de comentários pessoais permite compor a visão do senador do Império acerca do “catolicismo liberal brasileiro”, enfatizando o jogo político entre a maçonaria e a Igreja e permitindo vislumbrar o modo como a religião oficial é praticada e também avaliada no contexto local. Partindo da aposta na verificação das “origens” das ideias e da apropriação intelectual, a autora propõe um exame da “gênese de uma nova cultura política em seu aspecto relativo às práticas católicas no Segundo Reinado”. Num exercício de reflexão que incorpora o dinamismo do próprio conceito de “cultura política”, Momesso mostra a importância de Nabuco de Araújo na afirmação de uma liberdade religiosa proporcionada por mecanismos internos do Estado brasileiro e não diretamente obediente a Roma.

Uma análise de um caso singular de controle social do operariado brasileiro no pós-1930, identificado nas ações das visitadoras sociais, é o eixo do artigo de Ana Lúcia Vieira, professora da Universidade Federal do Amazonas, em Normalizando as formas de viver: uma política de gestão do capital humano. A autora aprofunda e debate a utilização de situações de “vulnerabilidade social” como argumento legitimador do cerceamento de modos de viver de parcelas significativas da sociedade. Ana Lúcia explora as consequências não triviais da exigência de conformação do operário e de suas famílias ao modo de produção capitalista. A partir da consideração de diversas matrizes discursivas, a historiadora investiga os modos de gerir a vida – ou a “biopolítica normativa”, na terminologia de Michel Foucault – que acabam por submeter o trabalhador ao controle social.

Tatyana de Amaral Maia, da Universidade Severino Sombra, encerra o Dossiê com o artigo Uma comunidade de espírito e de cultura: a construção do ideário luso-brasileiro na Sociedade de Geografia de Lisboa (1956-1974). Trata-se da problematização de uma definição única capaz de integrar Brasil, Portugal e seus domínios no Ultramar na condição de projeto cultural e político. Como mostra a autora, tal esforço de qualificação foi marcado por clivagens intelectuais, apropriações políticas, leituras e ênfases distintas, mobilizando projetos políticos que atendessem às realidades nacionais e aos ambientes culturais específicos.

Na seção Depoimentos, combinam-se memória afetiva e profissional, dando ao leitor uma percepção mais próxima das expectativas, interesses e, mesmo, dos conflitos vividos no momento de construção do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. Mantidos no presente, os vestígios do passado organizam-se em três tipos de discursividades: a da testemunha, a do historiador e a do comemorador, como explica Tzevtan Todorov,

(…) enquanto testemunhas e historiadores podem facilmente completar-se uns aos outros , entre e o historiador e o comemorador há uma diferença tanto de objetivos quanto de métodos, que dificilmente compatiliza as posições deles (…). A história complica o nosso conhecimento do passado; a comemoração a simplifica, já que seu objetivo mais frequente é o de nos fornecer ídolos a venerar ou inimigos a abominar. A primeira é sacrílega, a segunda sacrilizante.1

Na condição de protagonistas e instigados pela comemoração, historiadoras e historiadores convidados para compor a seção mostram diferentes “lugares de fala” em seus depoimentos, confirmando a pluralidade de vozes que constituiu e ainda constitui a pós-graduação. Através de Lena Medeiros de Menezes é possível acompanhar o grande esforço institucional e o engajamento dos professores-pesquisadores num projeto que se destacasse no cenário acadêmico nacional. Entre os fios da trama: o vir a ser do PPGH registra os desafios enfrentados pelo grupo que se envolveu na luta para que o Programa pudesse ser viabilizado e, principalmente, para que pudesse obter o necessário credenciamento perante a CAPES. Trata-se da rememoração de um combate que não pode ser esquecido ou naturalizado, como se o Programa tivesse, desde os primórdios de sua existência, trilhado caminhos fáceis e previsíveis no dizer da historiadora.

Lúcia Maria Paschoal Guimarães procura inquirir a densa historicidade que enforma a criação do Programa de Pós-Graduação em História, destacando a opção pela concentração em História Política e sua renovação como campo autônomo como o maior diferencial do projeto. O depoimento destaca a formação comum aos professores que viriam a criar o PPGH. Doutorados pela USP em sua maioria, os pesquisadores da UERJ conduziam pesquisas individuais que, entretanto, partilhavam o interesse pela cultura política, alinhando-se a uma abordagem que ganhava cada vez mais força no cenário da teoria e da historiografia internacionais. Conforme Lúcia Guimarães, embora não tivesse sido compreendida de imediato, a proposta assegurava ao Programa um lugar de “vanguarda” no contexto acadêmico dos anos 90. Em seu depoimento, a historiadora destaca que a fidelidade ao projeto inicial não significa abrir mão de novas reflexões: novas tendências historiográficas são incorporadas com sucesso ao Programa, através da oferta de cursos e seminários, confirmando assim a vitalidade da aposta inicial. O depoimento é também um roteiro da emergência do PPGH e ajusta o foco às condições de possibilidades da história dos estudos historiográficos sobre a política, identificando suas matrizes discursivas.

Da cena “autoral” – ou fundadora – passa-se à trajetória particular. Dois depoimentos enriquecem ainda mais a seção. Valdei Lopes de Araujo, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, e Ana Carolina Eiras Coelho Soares, da Universidade Federal de Goiás, pesquisadores cujos laços com a UERJ, desde a graduação, se mostraram decisivos na escolha da carreira do magistério superior, compartilham sua experiência pessoal e institucional, expondo, assim, a conexão entre a história que se fez e a história que os fez.

Em Uma experiência integral de vida acadêmica, destaca-se a articulação feita por Valdei Lopes de Araujo entre o projeto da UERJ e o contexto político brasileiro, um enlace em que sobressai a importância da universidade nos processos de inclusão e democratização do ensino, especialmente a partir dos anos 80. Uma articulação na qual as conquistas sociais da própria universidade constituem oportunidade decisiva no seu percurso individual. A recomposição da trajetória particular, contudo, se oferece ao historiador como ocasião para refletir sobre a especificidade da UERJ como projeto de universidade pública no Brasil, com todo o seu “vigor e fragilidade”. Entre os pontos salientados no depoimento, está o caráter inovador do PPGH num cenário acadêmico ainda dominado pela história social: “Não seria exagero afirmar que o retorno ao político e ao indivíduo como fenômenos historiográficos têm como marco no Brasil a criação do Mestrado em História Política da UERJ”, destaca o professor.

Em As mulheres afinal têm história? Uma trajetória profissional e acadêmica, Ana Carolina Eiras Coelho Soares divide com o leitor recordações que entrelaçam memória pessoal e descoberta de um percurso intelectual. A historiadora compartilha a definição de seu interesse em pesquisas voltadas para a área de estudos de gênero, foco no qual teve papel decisivo a formação no campo de estudos da história cultural e política. A partir da perspectiva interdisciplinar experimentada na UERJ, acompanha-se o processo de constituição de seu objeto de pesquisa, em torno dos discursos que normatizam e definem os limites sociais dos gêneros. O interesse conduz ao aprofundamento do estudo sobre o discurso jurídico e as leis que materializavam a regulação legal dos papéis sociais feminino e masculino. Da mesma forma, outros campos e fontes se apresentaram como centrais para o desenvolvimento da pesquisa: a literatura e a imprensa – configurações das “sensibilidades construídas na história”.

Em Notas de Pesquisa abre-se espaço para os questionamentos, métodos, riscos e diferentes trajetórias intelectuais. Destaca-se, aqui, a proposta de conhecer um “trabalho em progresso”, possibilitando uma aproximação com a produção da tese no momento dinâmico de sua construção: em seu movimento e em sua forma problemática.

Os Arquivos das Ordens e Congregações Religiosas do séc. XX português: fonte para a História da missionação na África lusófona, de Nuno de Pinho Falcão, da Universidade do Porto, ilumina o universo religioso, social e econômico das missões cristãs na África. O pesquisador mergulha em documentação privada, pouco conhecida, recuperando parte do quotidiano colonial e pós-colonial do continente. A importância do arquivo é igualmente o ponto de destaque na investigação de Daniel Thomaz Mandur. No texto Quando um documento nos descobre: notas sobre a dimensão aurática da documentação, somos colocados diante da dimensão do imprevisto e do acaso durante o processo de pesquisa. Seguindo a chave da desconstrução e questionando a “monumentalização” do arquivo, Mandur relata o seu contato com os arquivos do escritor Antônio Callado conservados na BBC, em Reading, Inglaterra, e lacrados desde a década de 1940. A Nota apresenta uma nova possibilidade de reavaliar a obra do autor e de articular essa experiência particular à análise mais ampla da participação, em solo europeu, de intelectuais brasileiros e latino-americanos na Segunda Guerra Mundial, examinando o impacto do conflito em suas trajetórias políticas e estéticas. Antônio Carlos da Silva, por sua vez, desloca o olhar de arquivos como inventários post-mortem, relatórios governamentais e relatos de viajantes para investigar o cotidiano oitocentista do Vale do Paraíba Fluminense através das páginas de jornal. Em O cotidiano da imprensa e a imprensa no cotidiano: Surgimento e consolidação de espaços públicos na Vila de Valença no século XIX o objetivo é identificar agentes e estratégias que garantiram a consolidação e a permanência no poder de algumas famílias locais. A pesquisa se concentra no reconhecimento dos interesses comuns que garantiram o posicionamento de destaque político, social e econômico dessas famílias, investindo na leitura desafiadora de “algo imaterial”, como as ideias que circulam sob a forma de jornal.

A duas colaborações que compõem a seção Artigos Avulsos resultam do fluxo contínuo que alimenta o banco de textos da revista. Mariano Bonnano, da Universidad Nacional de La Plata, propõe rever a cosmologia egípcia a partir dos espaços destinados ao castigo dos condenados e representados nos Livros das Cavernas. Em La Htmjt en los Textos de las Cavernas como espacio de disolución ontológica, o autor explora um aspecto que vem merecendo pouca atenção nos estudos do campo: a questão do “lugar de aniquilação”, ou Htmjt, espaço em que se efetua a chamada “segunda morte” como garantia da restituição do equilíbrio divino. Sérgio Barra, da PUC do Rio de Janeiro, explora o potencial polissêmico da experiência boêmia a partir de um dos seus principais cronistas. No artigo Luiz Edmundo e a boemia literária do seu tempo, o autor apresenta uma reflexão acerca dos diferentes sentidos dados à boemia pelo escritor e memorialista, relacionando tais variações às percepções que se reconfiguram na escrita sob o influxo de diferentes temporalidades vividas pelo autor.

Da heterogeneidade de abordagens e temas tratados nessa edição da Revista Maracanan, a memória – sempre “fiel e móvel”, como escreveu certa vez Jacques Le Goff – é o fio que une as diferentes colaborações aqui reunidas. Por fim, a atual edição é um convite à atividade leitora que, no dizer de Michel de Certeau, “faz das palavras as soluções de história mudas”. O acontecimento se transforma, ganha historicidade, rompe com a rotina e se inscreve numa história do possível e de seus efeitos de saber e de poder.

Nota

1. TODOROV, Tzevtan. Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o século XX. São Paulo: Arx, 2002, p.151.

Marilene Rosa Nogueira da Silva – Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro lotada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, com atuação no Departamento de História; membro efetivo do Programa de Pós-Graduação em História desde 1997; Coordenadora do Laboratório do Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais / LEDDES.

Laura Moutinho Nery – Doutora pela PUC-Rio, é professora visitante do Departamento de História da UERJ, onde atua como pesquisadora dos Laboratórios Redes de Poder e Relações Culturais (Redes) e do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais / LEDDES.


SILVA, Marilene Rosa Nogueira da; NERY, Laura Moutinho. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.12, julho, 2015. Acessar publicação original [DR]

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