Em nome da ordem e do progresso: educação, trabalho e infância no Brasil / Revista de História e Historiografia da Educação / 2017

Como construir uma nação?

Em agosto de 1883, o livro “O abolicionismo” tornou público o diagnóstico elaborado pelo estadista e intelectual Joaquim Nabuco a respeito das mazelas da sociedade brasileira. Defensor de inúmeras reformas, Joaquim Nabuco considerava o abolicionismo, ou seja, a necessidade de eliminar a escravidão da constituição do povo brasileiro, como o mais premente antídoto aos infortúnios nacionais e como uma medida que deveria preceder a todas as demais. Raiz de todos os males e vícios da sociedade e de suas instituições, eliminá-la colocava fim à excepcionalidade negativa do país frente ao mundo civilizado; mundo ao qual o Brasil e grande parte de suas gentes desejava participar e integrar. Mais do que isto, o abolicionismo abria possibilidade para a fundação de uma nova nação e para o soerguimento de um povo imbuído de valores civilizados e mais adaptado às mudanças políticas prenunciadas ao final daquele século. Para o autor, o vício da escravidão inutilizava a ambos, senhores e escravos, para uma vida livre. Daí suas proposições em torno da necessidade de operar profundas reformas, reformas que visavam constituir um “povo forte, inteligente, patriota e livre”.

A instrução pública, a associação de imprensa, a imigração espontânea, a religião purificada e a elaboração de um novo ideal de Estado apresentavam-se como veículos e como estratégias para a produção de um sentimento de responsabilidade cívica entre homens e mulheres; suprimindo, definitivamente, as marcas que a escravidão havia impresso na constituição física, mental e social do país e de seus habitantes. Note-se que estas reformas de cunho individual, ou seja, este aprimoramento de corpos e almas possuía, aos olhos de seu defensor, uma importância muito mais significativa do que as mudanças promovidas pela força das leis. Nos últimos parágrafos de “O abolicionismo”, Joaquim Nabuco conclamava àqueles que possuíam “força, coragem e honradez” para utilizarem-se dos jornais, dos livros, das associações, das escolas e da palavra na difusão daqueles princípios próprios às “nações modernas, fortes, felizes e respeitadas” (NABUCO, 2000, p. 172).

Mais de 100 anos nos separam das preocupações de Joaquim Nabuco sobre o futuro da nação e do povo brasileiro. Contudo, deparamo-nos, ainda hoje, com o desafio de responder à sua questão: como construir uma nação? Ou a uma outra questão da mesma grandeza e importância: qual cidadão é preciso formar? Nesse sentido, discutir historicamente as relações existentes entre a infância, a educação e o trabalho torna-se um exercício vital para a compreensão dos processos que marcaram de forma indelével a construção dessa nação, de dimensões continentais, que é o Brasil. E não há dúvidas de que nessas relações muitas escolhas foram realizadas; escolhas que, de modo geral, culminaram com a valorização de um modelo de trabalhador e cidadão, lapidado conforme os anseios de uma elite dirigente que estava empenhada em manter a Ordem e em alcançar o Progresso.

As dinâmicas próprias à vida social, no entanto, nos lançam no universo da história “a contrapelo”, ou seja, fazem-nos reconhecer que homens e mulheres experienciam as situações cotidianas e constroem uma compreensão particular a respeito delas, porque além de se apropriarem das referências produzidas na coletividade possuem expectativas, necessidades e interesses que lhes são próprios. Neste movimento de construção, homens e mulheres, mesmo ainda quando crianças, reelaboram e reinterpretam os elementos que compõem a cultura e a vida social. Elaboram, assim, “uma política da vida cotidiana que tem seu centro na utilização estratégica das regras sociais” (LEVI, 1989 apud REVEL, 1998, p. 22). O que os artigos reunidos nesse dossiê demonstram é que na articulação entre infância, educação e trabalho, pessoas e grupos sociais distintos construíram visões também distintas de cidadania e de trabalho e buscaram caminhos nem sempre “retos” para concretizá-las.[1] As possibilidades de resistência – e porque não de “acomodação” – às estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes propiciam, a nosso ver, uma visão matizada dos poderes institucionalizados em uma sociedade. Analisar como estes poderes submeteram-se às lógicas sociais particulares de indivíduos e grupos sociais enriquece, portanto, a compreensão das múltiplas facetas de um dado momento histórico.

Lançar luzes sobre essas dinâmicas sociais é a tarefa a que se propõe o grupo de autores deste dossiê. A partir de diferentes projetos de pesquisa, desenvolvidos por professores vinculados a importantes grupos de pesquisa do campo da Educação, bem como da História, foram descobertas e reunidas aqui diferentes histórias e personagens; narrativas que ao serem entrecruzadas permitem identificar e reconstituir algumas das muitas facetas das dinâmicas sociais e históricas, nas quais estiveram imersos homens e mulheres, velhos, jovens e, especialmente, crianças. Importa destacar a originalidade dos artigos reunidos nesse dossiê, assim como, a diversidade de fontes históricas as quais os autores recorreram no intuito de trazer à tona as vivências dos atores sociais em foco. Finalmente, esperamos contribuir para que este campo de investigação, ainda incipiente, se consolide entre os pesquisadores da Educação e da História.

Nota

1. Caminho “reto”, da forma como propusemos aqui, é uma analogia ao texto bíblico. Não é demais lembrar, a relação das intenções e ações descritas neste livro com o provérbio: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele” (Provérbios, cap. 22, vers. 6).

Fabiana da Silva Viana – Professora Doutora. Universidade do Estado de Minas Gerais.

Marileide Lázara Cassoli – Professora Doutora. Universidade do Estado de Minas Gerais.

Organizadoras do dossiê temático


VIANA, Fabiana da Silva; CASSOLI, Marileide Lázara. Apresentação. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 1, n. especial, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

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