Leyes sin causa y causas sin ley – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Leyes sin causa y causas sin ley. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2014. BARAVALLE, Lorenzo. O mosaico causal do mundo orgânico. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 3, p. 685-94, 2015.

No princípio – como muitas vezes acontece na filosofia da ciência – era Hume. E, aos olhos dele, o mundo natural era apenas uma coleção de fenômenos. O ser humano, uma criatura dirigida por uma série de hábitos profundamente arraigados, enxerga necessidade onde nada mais há que uma repetição de eventos contingentes similares, espacialmente próximos e temporalmente ordenados, e chama essa repetição de relação causal. Esta não está lá fora, no mundo, como imaginavam os metafísicos da época, mas em nós, nos observadores, e, por isso, nada nos assegura que, amanhã, das mesmas causas seguir-se-ão os mesmo efeitos.

Por quanto impecável do ponto de vista de um empirismo radical como o de Hume, sua caracterização da relação causal possuía algumas implicações indesejáveis para quem, como os empiristas posteriores a ele, pretendiam distinguir entre certas causas “autênticas” – como aquelas postuladas pelas teorias físicas – e outras meramente aparentes. Se qualquer sequência regular com as características acima descritas pode ser considerada como causal, como Hume parece admitir, então muitos eventos que intuitivamente não são tidos como causalmente relacionados, porque meramente correlacionados, passam a sê-lo. Como impedir a proliferação dessas pseudocausas? A solução do problema, geralmente atribuída a Hempel, embora sua paternidade, como mostra Caponi (cf. p. 15), seja disputada por Popper, consiste em dizer que apenas os eventos subsumidos sob uma lei científica podem ser considerados como causalmente relacionados. Em suma, que sem leis não há causas.

As leis científicas são consideradas, nessa tradição de pensamento, como generalizações universais irrestritas, isto é, enunciados válidos em qualquer porção de espaço-tempo e independentemente da existência, contingente, de objetos que as instanciam. Elas jogam um papel fundamental na explicação científica. Para Hempel, como é sabido, a explicação científica é uma inferência que permite derivar um explanandum (o enunciado que expressa o fato a ser explicado) a partir de um explanans (um conjunto de enunciados que constituem as premissas da inferência). Embora Hempel tivesse proposto vários modelos de explicação científica, o primeiro e mais conhecido é aquele chamado de “dedutivo nomológico particular”, no qual o explanandum, constituído por um enunciado que expressa um fato específico, é deduzido a partir de um explanans que, por sua vez, é constituído por outros enunciados de fatos particulares e por, pelo menos, uma lei. É justamente nisso que reside o caráter “nomológico” do modelo hempeliano, pois a presença de leis na explicação garante a validade da relação explicativa entre explanans e explanandum e, em última instancia, sua cientificidade. Embora nem todas as leis expressem relações causais (um ponto sobre o qual, como veremos em breve, Caponi justamente insiste), uma consequência implicitamente aceita do modelo hempeliano é que a possibilidade de falar de relações causais entre os fenômenos estudados por uma disciplina científica está subordinada à possibilidade de produzir, nessa mesma disciplina, generalizações nomológicas. Isto é, só há causas onde há leis.

A simplicidade e a elegância do modelo explicativo hempeliano escondem, na verdade, um sem fim de problemas epistêmicos mais ou menos graves (cf. Salmon, 1989). Notoriamente, ele colocou por um longo tempo os filósofos da biologia em uma situação bastante embaraçosa. Como observaram, entre outros, Smart (1963) e Beatty (1995), na biologia, é extremamente difícil, se não impossível, encontrar leis no sentido requerido por Hempel (isto é, generalizações universais irrestritas). Entretanto, conforme o modelo dedutivo nomológico, não pode haver explicação científica sem leis e, pelo que acabamos de dizer, parece não haver maneira de identificar relações causais se não por meio de explicações científicas, de modo que não parece possível falar de relações causais propriamente ditas na biologia. Mas, se isso for realmente assim, então a biologia seria uma disciplina de alguma maneira subordinada a disciplinas, tais como a física ou a química, cujo caráter nomológico é inegável.

É aqui que Gustavo Caponi entra em cena com seu novo livro, trazendo ar fresco a um debate que por várias décadas dividiu quem parecia estar disposto a abandonar a biologia a seu destino de ciência sem leis e, portanto, “sem causas” próprias, e quem insistia em encontrar um modelo explicativo ou uma definição de lei menos estritos e, portanto, mais adaptáveis às exigências das ciências especiais. Para Caponi, não é preciso abandonar a noção de lei tradicional para constatar que no domínio da biologia há tanto leis como causas. Se outros filósofos, no passado, pensaram diversamente é porque estabeleceram uma infértil e artificial equação entre essas duas noções. Uma equação que, uma vez dissolvida, permite mostrar o pleno potencial da biologia e reconhecer seu lugar entre as outras ciências explicativas. Para esse fim, Caponi, com sua característica prosa agradável e de clareza exemplar, limpa o caminho de uma serie de confusões conceituais sobre o tema e, articulando ativamente a chamada “concepção experimentalista” da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971; Woodward, 2003), retrata uma imagem da estrutura explicativa das ciências da vida original e fiel à prática epistêmica do biólogo. O livro de Caponi é composto por 4 capítulos, que definem o argumento principal, e um Anexo final sobre a explicação teleológica e a noção de desenho na biologia evolutiva. Tendo em conta o espaço a disposição, e com a finalidade de apresentar com a devida profundidade os elementos mais importantes da concepção defendida por Caponi, limitar-me-ei a discutir a primeira parte do texto, convidando o leitor a descobrir por si próprio como o Anexo completa tal concepção.

1 DO CARÁTER NOMOLÓGICO À INVARIÂNCIA

Nos últimos 20 anos, o pessimismo de Smart e Beatty com respeito à possibilidade de individuar regularidades nomológicas em biologia foi deixando o passo àqueles que, como Brandon (1990), Sober (1984) e muitos outros, argumentam que algo do tipo do princípio da seleção natural, segundo o qual “se a é melhor adaptado que b em um ambiente E, então (provavelmente) a terá um maior sucesso reprodutivo que b em E” (Brandon, 1990, p. 11) ou, de modo mais geral, do tipo das fórmulas da genética de populações são, efetivamente, leis oriundas da biologia. Compartilhando apenas parcialmente o entusiasmo desses filósofos, o problema que Caponi levanta no primeiro capítulo de seu livro é o de saber se é suficiente afirmar o caráter nomológico de tais enunciados para certificar-se da existência de explicações causais autênticas no âmbito da biologia? A resposta de Caponi é negativa, mas é justamente a partir desse desanimador começo que, como veremos, ele pode alcançar uma concepção da estrutura teórica da biologia mais madura e sofisticada. Não apenas o caráter nomológico não é suficiente para definir a causalidade, mas tampouco é necessário.

Mesmo Hempel (1965) admitia que nem todas as leis científicas são leis causais, dado que algumas delas expressam apenas uma relação matemática entre variáveis. Muitas leis não causais – as que Caponi (p. 45 ss.), adotando a terminologia de Sober (1984), chama de “leis consequenciais” – sugerem apenas que, entre certas classes de fenômenos, está ocorrendo alguma relação causal, mas não revelam em que consiste, efetivamente, tal relação. Embora também as leis consequenciais sejam informativas, alguns críticos do modelo dedutivo nomológico (cf. Salmon, 1997) argumentaram que somente as leis causais permitem formular explicações totalmente satisfatórias.

Se tomamos em consideração a física, é fácil ver que as leis físicas em sua maioria, e, portanto, as explicações nelas baseadas, são causais porque “dão conta da origem, da fonte, da constituição, de uma força ou agente de mudanças, e elas também nos indicam a intensidade que essa força ou agente de mudanças deverá ter” (p. 46). É assim também na biologia? Consideremos um exemplo clássico de lei na genética populacional (p. 37):

dp/dt = p (wA – W)/W. (1)

Ela nos diz que a frequência de um fenótipo em uma certa população aumenta na medida em que o valor seletivo (wA) de tal fenótipo supera o valor seletivo pro-médio dos outros fenótipos presentes na mesma população. A noção de “valor seletivo” (ou outras equivalentes, como “sucesso reprodutivo”) é meramente quantitativa, isto é, ela não indica por que a frequência do fenótipo em questão aumenta, já que não especifica as características ecológicas que fazem com que tal fenótipo possua, efetivamente, esse valor seletivo, mas apenas como esse valor influirá nas frequências dos outros fenótipos e, definitivamente, na composição da população. Em outras palavras, ele não indica as causas que estão operando na distribuição dos fenótipos na população. Portanto, (1) é uma lei consequencial. Assim como quase todas as leis da biologia, argumenta Caponi, ela é incapaz de ir para além de uma representação a posteriori de como certos efeitos estão inter-relacionados e, como consequência disso, não pode proporcionar explicações causais.

Há, também na biologia, pelo menos um exemplo de lei causal, a saber, a lei de Fisher sobre a proporção de gêneros (cf. Sober, 1984, p. 51 ss.). Estabelecendo que o fenótipo correspondente ao gênero menos difuso em uma população será aquele com maior valor seletivo, a lei de Fisher explicita, de fato, o que em (1) é deixado sem especificar, isto é, a natureza da característica ecológica que, no contexto em exame, causará uma variação na frequência do fenótipo em questão. Caso fosse possível encontrar outras leis análogas, capazes de determinar, com certo grau de universalidade, quais fenótipos possuirão um maior valor seletivo em uma população dadas certas condições ambientais, então o problema de encontrar explicações causais autênticas na biologia estaria virtualmente resolvido. Porém, Caponi (p. 64-8) argumenta, em minha opinião convincentemente, que elas, embora não impossíveis de encontrar, são extremamente raras, devido ao fato de que, dadas certas condições ambientais, as maneiras pelas quais uma população tem de adaptar-se a elas são muitas e potencialmente imprevisíveis. A lei de Fisher seria, então, a clássica “exceção que confirma a regra”: ela funciona bem como lei causal porque, nas espécies sexuadas, os gêneros são variáveis binárias. Todavia, não podemos esperar que ela funcione como modelo para outras leis, já que essa situação é muito pouco frequente no mundo orgânico.

Talvez, e essa é a grande aposta de Caponi – como ele mesmo sugere no segundo capítulo de seu livro –, não é no caráter nomológico que deveríamos procurar o caráter causal da explicação biológica. Opondo-se à tradição neo-humeana, conforme a qual – como lembrei no começo desta resenha – o caráter nomológico é condição necessária para atribuir causalidade, Caponi propõe reconhecer uma prioridade e independência conceitual à noção de causa com respeito à de lei (p. 69 ss.). Adota, ao fazer isso, a que é conhecida como perspectiva experimental ou manipulativa da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971) e, em particular, a proposta de James Woodward (2003). Conforme esta última proposta, “as atribuições causais (…) são feitas (…) com base na ideia de que a causa de um fenômeno é sempre outro fenômeno cujo controle permitiria, ou nos teria permitido, controlar a ocorrência daquele que chamamos seu efeito” (p. 72). Em outras palavras, a causalidade está relacionada com um fazer, mais do que com um saber: é uma noção, em certa medida, pré-teórica e anterior a nossas atribuições nomológicas.

Para esclarecer essa noção, Caponi introduz um dos exemplos mais recorrentes do livro: a da “rádio calchaquí”, uma rádio pequena e velha, perdida no meio dos vales Calchaquis na Argentina, que, devido à ação do tempo, apresenta um funcionamento anômalo (p. 77 ss.). O dispositivo que regula o volume é invertido. Isto é, movendo-o em sentido horário o volume desce e, movendo-o em sentido anti-horário, sobe. Embora sem conhecimento de uma hipotética lei que regeria o comportamento de nossa rádio, depois de um pouco de prática, reconheceríamos sem problemas que há uma relação causal entre o movimento do potenciômetro e as oscilações do volume. Mas como se justifica tal conhecimento se, de fato, não deriva do conhecimento prévio de uma regularidade nomológica? A resposta de Caponi é que ele é determinado pelo fato mesmo de estarmos “em condições de controlar o estado de uma variável X em virtude de nossa manipulação de outra variável Y” (p. 80). Mais especificamente, embora não saibamos explicar por que a rádio se comporta assim, “temos ao menos o começo de uma explicação quando identificamos fatores ou condições cuja manipulação ou mudança produzirá mudanças no resultado que está sendo explicado” (Woodward, 2003, p. 10).

O funcionamento da rádio calchaquí exibe o que Woodward chama uma “invariância”, isto é, uma regularidade local que, embora sem possuir a universalidade própria de uma lei causal (já que, bem ao contrário, é válida até onde sabemos para um só caso), é suficientemente sólida para suportar condicionais contrafactuais. Woodward (2003, p. 133-45), e com ele Caponi (embora não explicitamente), seguem David Lewis (1993 [1973]) na ideia de que é a capacidade de suportar contrafactuais – e não sua nomicidade, a qual seria, eventualmente, uma consequência de tal capacidade – que revela o conteúdo causal de um enunciado. Porém, em lugar de fundar, como Lewis, essa capacidade em uma particular ontologia dos mundos possíveis, Woodward e Caponi identificam essa capacidade – mais prosaicamente, mas também mais eficazmente – com a propriedade, característica de uma invariante, de manter-se estável em certa quantidade de intervenções.1 No nosso exemplo, observando que a oscilação do volume depende da manipulação do potenciômetro, estamos na posição de estabelecer o valor de verdade de séries de contrafactuais e, consequentemente, certificar a relação causal entre os dois fenômenos. Na medida em que uma invariância suporta um maior número de intervenções, ela é mais abrangente e pode ser considerada, eventualmente, uma lei causal. Todavia, o ponto importante para manter em vista é que “Woodward (…) conseguiu colocar em evidência que a efetividade do vínculo causal estabelecido por um invariante não é diretamente proporcional a sua universalidade, mas a sua estabilidade sob intervenções, ainda quando esta última se cumpra apenas dentro de uma esfera muito restrita” (p. 99), a saber, que o caráter nomológico derive da possibilidade de individuar relações causais e não vice-versa.

2 A EXPLICAÇÃO BIOLÓGICA EM UM MUNDO FÍSICO

Até aqui tudo bem. Mas como a concepção experimental nos ajuda, exatamente, a explicitar, na explicação biológica, aquelas relações causais que ficavam ocultas em suas leis consequenciais? Quando se trata de processos evolutivos não possuímos, na maioria dos casos, a mesma capacidade material de manipular variáveis como no caso de nossa velha rádio calchaquí. Podemos, porém, figurar-nos intervenções hipotéticas a partir de outras factualmente possíveis. Não entraremos aqui nos detalhes sobre este ponto mas, com relação a isso, é interessante lembrar que, na formulação de sua teoria, Darwin inspirou-se – entre outras coisas – na seleção artificial dos pombos domésticos, isto é, uma atividade propriamente manipulativa, extrapolando depois as características fundamentais de tal processo a um outro apenas hipoteticamente manipulável, a seleção natural (cf. p. 83-5). Dada essa possível extensão da noção de manipulabilidade, Caponi propõe considerar, no terceiro capítulo de seu livro, as distintas pressões seletivas, tão diferentes entre si – devido às potencialmente infinitas circunstâncias morfológicas, fisiológicas e comportamentais que jogam um papel na evolução de uma determinada população – como invariantes particulares.

Mais uma vez, Caponi (p. 106 ss.) esclarece sua estratégia com um exemplo. Uma das mais conhecidas ilustrações da ação da seleção natural é, sem dúvida, o fenômeno do melanismo industrial em Biston betularia. Devido a certas características ecológicas – a presença de aves predadoras e a coloração das superfícies de pouso, constituídas por árvores obscurecidas pela ação poluente do fumo das fábricas da região –, nas populações dessa espécie de mariposa onde estão presentes uma variante mais clara e outra mais escura, a variante com a coloração mais escura tende a um maior sucesso reprodutivo. A frequência dos fenótipos, nessas populações, corresponde àquela prevista por (1). Não há, todavia, uma lei causal – universal – que explique por que, nessas populações, acontece essa distribuição. Significa isso que não podemos explicar causalmente o fenômeno? Tal conclusão seria completamente insatisfatória, se levássemos em conta que, do ponto de vista de um biólogo evolutivo, é justamente esse tipo de explicação aquela desejada em casos análogos a esse.

Afortunadamente, alinhados com a análise realizada anteriormente, não precisamos de uma lei causal para obter tal explicação. No caso do melanismo industrial, a relação entre a coloração das mariposas e das superfícies de pouso é estável sob várias intervenções. Isto é, manipulando experimentalmente o segundo fator – obrigando, por exemplo, as fábricas a usar filtros que reduzam a poluição –, é possível controlar o primeiro – a cor das mariposas. Por meio de tal manipulação podemos, em última instância, determinar o fenótipo que será mais adaptativo intervindo em sua ecologia. Estamos, em outras palavras, em presença do que Caponi chama de um “invariante seletivo” da forma.

Se, em populações de insetos de ecologia análoga a essas de Biston betularia, nas quais aconteceu o melanismo industrial, ocorrem colorações alternativas tais que uma seja mais contrastante com as superfícies de pouso que as outras, então, nessas populações, as colorações menos contrastantes serão as ecologicamente mais aptas (p. 116).

Tal invariante admite, como é fácil ver, um sem fim de exceções, já que é virtualmente impossível estabelecer todos os fatores ecologicamente relevante em um caso concreto, mas é suficientemente sólido para servir de base a uma série de contrafactuais. E isso é tudo o que ele tem que fazer. Conforme o enfoque experimental, onde há invariância, há apoio de contrafactuais; onde há apoio de contrafactuais, há relação causal; e onde há relação causal, é possível, ao menos em princípio, fornecer uma explicação causal.

A biologia (em particular a biologia evolutiva – que foi a única a ser tratada explicitamente nesta resenha –, mas não somente) constitui-se, explicativamente, sobre um “mosaico de invariantes” – cito Caponi por inteiro – “sempre locais e caducáveis, que, como a mortalha tecida e destecida por Penélope, está em permanente estado de reconfiguração” (p. 120). Nisso, a biologia distingue-se da física. Embora ambas possuam leis consequenciais as quais proporcionam uma unidade teórica bem característica, apenas a física pode contar com leis causais universais. A biologia – ainda que, como vimos, existam exceções como a lei de Fisher – produz explicações causais a partir de invariantes locais e mutáveis.

A imagem do mosaico não satisfaria aquele que, como o próprio Hempel, considera que, em última instância, deve existir uma base causal subjacente, comum a todas as ciências, com uma forma nomológica: uma estrutura oculta de leis eternas e imutáveis (cf. Woodward, 2003, p. 159 ss.). De acordo com essa perspectiva, as ciências como a biologia estariam em um constante estado de heteronomia nomológica, isto é, forneceriam explicações apoiando-se em leis do domínio da física ou da química.

Para elucidar a relação entre propriedades biológicas e mundo físico – e assim reafirmar a autonomia da explicação biológica –, Caponi defende, no último capítulo de seu livro, uma versão clássica de fisicalismo (cf. Stoljar, 2015), que combina superveniência com múltipla possibilidade de realização. Nessa perspectiva, uma propriedade não física é necessariamente instanciada por uma propriedade física, mas não necessariamente pela mesma propriedade física em todas suas instâncias. Isso implica, diz Caponi, seguindo Sober (2010, p. 226), que “não pode haver diferença biológica sem diferença física, mas pode sim haver semelhança biológica sem semelhança física” (p. 151 ss.).

A originalidade de Caponi é que, em lugar de simplesmente contentar-se com essa posição de compromisso entre reducionismo e autonomia explicativa, articula um critério que pode ajudar-nos a entender, em domínios específicos da biologia, quais são os fenômenos que podem ser proveitosamente explicados em termos físico-químicos e quais, ao contrário, deveriam manter a própria autonomia. Tal critério depende da noção de “grau de superveniência” (p. 154 ss.): “dados dois sistemas ou objetos, quanto menos delimitado ou especificado esteja o conjunto de predicados físicos dos quais depende a correta atribuição, a ambos, de um predicado biológico, mais superveniente será esse predicado” (p. 159). Um predicado concernente à atribuição de um determinado traço anatômico-funcional em fisiologia, embora seja multiplamente realizável, está especificado por um conjunto menor de predicados físicos do que um predicado concernente à atribuição genérica de um traço adaptativo em ecologia evolucionária. Isto é, há menos maneiras de realizar fisicamente, por exemplo, um olho, do que uma complexa propriedade ecológica. Segundo Caponi, embora ambas as propriedades sejam dependentes de uma base física, é mais promissor procurar explicações reducionistas no primeiro caso do que no segundo.

Quanto maior é o grau de superveniência das propriedades estudadas, mais liberdade temos para não nos comprometer em tentativas de explicar os fenômenos a elas associadas que obedeçam a uma perspectiva reducionista, e mais incertos são os lucros cognitivos desse compromisso (p. 160).

Esse enfoque não viola, em nenhum caso, a clausura causal da física (cf. p. 162 ss.), já que não nega que exista uma ontologia básica fisicalista, mas coloca em dúvida que usar os óculos das ciências mais básicas seja sempre a melhor maneira para entender os fenômenos naturais.

3 FINAS MANIPULAÇÕES E MARTELADAS

As vantagens do enfoque experimental sobre o hempeliano, e qualquer outro modelo nomológico (cf. Woodward, 2003, cap. 4), são demasiado importantes para que possam ser ignoradas por qualquer filósofo da ciência. Parafraseando Caponi (p. 161), o qual, por sua vez, inspira-se em Suppe, ele tem todas as vantagens das finas manipulações no software sobre as “marteladas” no hardware. Dentre os que estão atualmente disponíveis, nenhum outro modelo, além do modelo de Woodward é, em minha opinião, capaz de oferecer uma análise epistemológica da causalidade e da explicação causal tão acurada. Ele oferece a possibilidade de levar a análise da explicação científica a um grau de detalhe impensável para o modelo hempeliano, o qual, por suas ambições de universalidade, mal se adapta às exigências das ciências especiais. O grande mérito de Caponi é de ter sido capaz de derivar, esclarecer, organizar e desenvolver todas as principais consequências do modelo de Woodward de uma maneira accessível e “pronta para o uso” dos filósofos da biologia de fala espanhola e portuguesa. Seu livro é rico de estímulos e, com certeza, será o ponto de partida de muitos debates futuros.

Notas

1 De Lewis, é importante lembrá-lo, Woodward e Caponi distanciam-se também pelo caráter não redutivo da análise da noção de causa. Isto é, Woodward e Caponi não pretendem definir o conceito de causa a partir do conceito, supostamente mais elementar e primitivo, de manipulação, mas apenas mostrar como este último, que é também essencialmente causal, é elucidativo com respeito a certas relações causais concretas.

Referências

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Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Humanas e Naturais. Universidade Federal do ABC, Santo André, Brasil. E-mail:  [email protected]

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