Constructing the world – CHALMERS (SS)

CHALMERS, David J. Constructing the world. Oxford:  University Press Oxford, 2012. Resenha de: BARAVALLE, Lorenzo. O demônio de Carnap. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 1, p. 223-32, 2015.

Não é fácil apresentar o último livro de David Chalmers para seu potencial leitor, já que nele, na verdade, escondem-se muitos livros, muitos caminhos alternativos de leitura e, acima de tudo, muitos estímulos para diferentes reflexões filosóficas. De acordo com as intenções do autor, Constructing the world é um texto de “epistemologia metafísica (ou deveria ser metafísica epistemológica?): grosso modo, epistemologia a serviço de uma imagem global do mundo e de nossa concepção deste” (Chalmers, 2012, p. XX).

Pode-se ver o presente livro como procurando realizar uma versão do projeto de Carnap no Aufbau: aproximadamente, construir um plano (blueprint) do mundo ou, ao menos, construir um plano para um plano, providenciando um vocabulário no qual tal plano pode ser dado (p. XVIII).

Ao longo dos oito capítulos que compõem o livro e dos numerosos excursus, que ampliam o alcance da argumentação principal para a elucidação das mais diversas problemáticas conceituais, Chalmers trata temas que vão desde a metafísica da modalidade até a filosofia da mente, desde a semântica até a filosofia da ciência, e desde a interpretação do empirismo lógico até a epistemologia formal. Dada a vastidão e a profundidade do texto, e tendo em conta que o próprio autor (p. XXV-XXVI) reconhece a importância de privilegiar um caminho de leitura por vez, eu seguirei aqui aquilo que, provavelmente, mais pode interessar ao leitor de Scientiae Studia, isto é, o caminho que, partindo de uma original recolocação do problema do conhecimento e passando por uma reconsideração do legado de Carnap, conduz a uma reflexão sobre a unidade das ciências e a estrutura do mundo. Paralelamente, prestarei atenção às qualidades que a análise de Chalmers possui como ferramenta metateórica.

1 CARNAP ENCONTRA LAPLACE

O titulo do livro de Chalmers é uma clara referência, e homenagem, ao Estrutura lógica do mundo (Aufbau) de Rudolf Carnap (cf. 1967 [1928]). Porém, Carnap não é seu único “herói”. Já nas primeiras páginas, o autor introduz a noção central de toda a obra, a saber, a de escrutabilidade, inspirada em Pierre-Simon Laplace.1 Este último autor, em seu célebre tratado sobre probabilidade, apresenta a conhecida imagem de um intelecto – comumente chamado de “demônio de Laplace” – capaz de determinar, a partir de um certo número de informações sobre a realidade física e potência de raciocínio suficiente, a verdade de qualquer acontecimento passado, presente ou futuro (Laplace, 2010 [1814], p. 42-3). Para o demônio de Laplace, diz Chalmers, “todas as verdades sobre o mundo são escrutáveis a partir de algumas verdades básicas” (p. XIII). A noção de escrutabilidade pode ser entendida, em uma primeira aproximação, como a ideia de que “o mundo é em certo sentido compreensível, ao menos dada uma certa classe de verdades básicas sobre o mundo” (p. XIII). Obviamente, a escolha dessa classe de verdades é tudo menos trivial e, a esse propósito, é geralmente aceito que ela é, em Laplace, tendenciosa, já que pressupõe o determinismo, ou ao menos incompleta, dado que o demônio não tem acesso a verdades fenomênicas, matemáticas ou morais, entre outras.

Chalmers (p. XIV, ss; cap. 1) defende que a noção de escrutabilidade, independentemente dos problemas relacionados com a perspectiva laplaceana, possui um grande valor filosófico. Essa noção denota, muito em geral, uma relação entre a classe de verdades básicas e qualquer outra proposição verdadeira p. Ela foi, ao longo da tradição empirista e, em particular, por Carnap, considerada como uma relação de definibilidade entre conceitos. No Aufbau, a definibilidade é, mais especificamente, associada com a possibilidade de construir – isto é, de mostrar a estrutura lógica de – os conceitos mais complexos (das ciências, por exemplo) a partir de uma relação simples e primitiva, a saber, a da similaridade fenomênica entre as experiências. Ao resgatar a inspiração construcionista carnapiana, Chalmers alinha-se – mais ou menos explicitamente – àqueles autores que, como Richardson (1998) ou Friedman (1999), rejeitam a interpretação clássica do Aufbau em termos fundacionalistas e fenomenalistas (cf. Ayer, 1946; Quine, 1951). A escolha da base fenomênica, entendida como coleção de dados dos sentidos (sense-data), para a construção dos conceitos mais complexos, não é essencial na realização do projeto carnapiano. Carnap mesmo, além de admitir explicitamente a possibilidade de partir de outro tipo de base, fisicalista (Carnap, 1967 [1928], §59), para realizar a mesma tarefa, acaba tentando construir a estrutura conceitual do mundo inteira a partir de uma base puramente lógica (§153-5); desfazendo-se, portanto, dos pressupostos fenomenalistas.

Essa flexibilidade na hora de escolher os elementos básicos da construção, porém, não ajuda Carnap frente a outro tipo de crítica. O problema principal do Aufbau, de acordo com Chalmers, é a identificação da escrutabilidade com uma relação de definibilidade puramente extensional. A maioria dos conceitos – ou, em outros termos, a maioria das verdades não básicas – não podem ser reduzidas a outros conceitos (ou verdades) mais básicos de maneira que estes últimos constituam suas condições necessárias e suficientes (cf. Wittgenstein, 1953; Kripke, 1980). Prova disso é que, para quase qualquer definição, é possível encontrar contraexemplos. Carnap, mais uma vez, reconhece esse problema, e tenta resolvê-lo por meio de critérios intencionais (cf. Carnap, 1947; 1955), vale dizer, regras semânticas que identificam apenas contextualmente o valor de verdade de uma determinada expressão. Inspirando-se nessa solução, Chalmers (p. 12-9) nega que a relação de escrutabilidade seja propriamente definicional. Para que sentenças não básicas sejam escrutáveis a partir de sentenças básicas, não é necessário que sejam disponíveis definições extensionais – as quais, quando presentes, são fundadas na relação de escrutabilidade, e não vice-versa –, mas apenas intenções, as quais permitem, por si só, determinar seu valor de verdade com suficiente exatidão, dado um certo cenário epistêmico (p. 204-11; excurso 10). Por exemplo, embora não possuamos nenhuma definição extensional do conceito de “conhecimento” que seja totalmente imune aos contraexemplos de tipo Gettier, ela não parece necessária para que possamos reconhecer que, de fato, os contraexemplos de tipo Gettier não constituem conhecimento: é suficiente uma “definição aproximada” e implícita (cf. p. 204-11; 381-5) do conceito.

Ora, embora Chalmers admita vários tipos de escrutabilidade não definicional,2 para os presentes fins, é suficiente que nos concentremos naquilo que ele considera o mais importante: a escrutabilidade a priori. A noção de escrutabilidade configura-se, nessa interpretação, como uma relação entre uma classe ou “família” (p. 20) de sentenças C, uma sentença S e um sujeito s tal que “S é escrutável a priori desde C por s se e somente se s está na posição de conhecer a priori que se C, então S” (p. 40). A partir dessa relação, Chalmers enuncia a seguinte tese.

Escrutabilidade a priori: existe uma classe compacta de verdades tal que para qualquer proposição p, um intelecto laplaceano estaria na posição de saber a priori que, se as verdades contidas nessa classe são o caso, então p (p. XVI).3

O termo “compacto” define um atributo da classe de verdades básicas, que deve conter sentenças limitadas e evitar trivializações, tais como uma “supersentença” matemática que inclui todos os estados do mundo (cf. p. 20 ss.).4 A característica fundamental da tese é que ela se compromete com a existência de uma base compacta que é suficiente para que um hipotético sujeito (a) tenha acesso a ela, (b) seja capaz de certa potência de raciocínio e (c) possa comprovar que as verdades empíricas contidas nela refletem estados de coisas de nosso mundo ou de algum outro mundo possível, possa escrutar, a priori (isto é, sem precisar recorrer ulteriormente à experiência) a verdade de qualquer sentença. Dessa maneira, o problema de identificar tal base volta a ser central e, para reduzir a complexidade desse problema, Chalmers recorre, nos terceiro e quarto capítulos, a uma idealização análoga ao demônio de Laplace, a saber, o que denomina “cosmocópio”.

2 O PROBLEMA DA BASE: AVENTURAS COM O COSMOCÓPIO

Já no primeiro capítulo, Chalmers introduz ao que, para ele, deveria ser a base a partir da qual “todas as verdades macroscópicas ordinárias são implicadas a priori”.5 Embora, como veremos, seja admitida certa liberdade com respeito à escolha das famílias de sentenças que a compõem, para Chalmers, ela é um conjunto de verdades da física (tanto macroscópicas quanto microscópicas), verdades fenomênicas (referentes a qualia), verdades indexicais (“eu-sou-de-tal-e-tal-maneira”, “agora-é-de-tal-e-tal-maneira”) e uma sentença “isso-é-tudo”, que certifica que não há nada mais (em um determinado mundo possível, ou cenário epistêmico) do que é expressado nas sentenças básicas ou nas sentenças escrutadas a partir delas (p. 111; excurso 5). Para fazer referência a tal base, Chalmers usa o acrônimo PQTI (physics, qualia, that’s all, indexicals). Como antecipei há pouco, para justificar a escolha de PQTI, Chalmers recorre, nos terceiro e quarto capítulos, a uma idealização, o cosmocópio, que se revela muito útil na hora de compreender melhor os problemas filosóficos em jogo e, a meu ver, também como instrumento analítico em geral.

O cosmocópio é um dispositivo imaginário – mas epistemicamente possível – que permite a um determinado usuário, s, estabelecer o valor de verdade de qualquer sentença ordinária M. Ele

armazena todas as informações contidas em PQ[T]I e as torna utilizáveis. Em particular, ele contém (1) um supercomputador que armazena a informação e realiza todos os cálculos necessários; (2) ferramentas que usam P para ampliar uma região qualquer do mundo e para fornecer informações sobre a distribuição da matéria nessas regiões; (3) um dispositivo de realidade virtual que produz conhecimento direto de qualquer estado fenomênico descrito em Q; (4) um marcador “tu estás aqui” que carrega a informação contida em I; e (5) dispositivos de simulação que proporcionam informações sobre contrafáticos, exibindo os estados físicos e fenomênicos que se produziriam sob as várias circunstâncias contrafactuais especificadas por PQ[T]I (p. 114).

Um exemplo ajudará a tornar mais claro o funcionamento do cosmocópio. Imagine-se que queira aferir o valor de verdade da seguinte sentença M: “no dia 10 de outubro de 1820, às 11 horas, Napoleão Bonaparte estava observando uma garrafa de vinho na mesa da sala de sua residência na ilha de Santa Helena”. Ao entrar no cosmocópio, terão acesso a todas as informações relevantes para identificar, sem possibilidade de erro, as características físicas da sala de Napoleão em Santa Helena em 1820. Em particular, poderão conferir que a composição molecular do líquido contido na garrafa na frente de Napoleão corresponde, efetivamente, a, digamos, um Châteauneufdu-Pape de 1812 e não a água colorida, ou a uma ficção produzida por um gênio maligno. Ao mesmo tempo, experimentarão as sensações de Napoleão naquele momento, podendo assim comprovar que ele estava realmente observando (e acreditando estar observando) essa garrafa e não, por exemplo, uma mosca voando na frente dele ou uma alucinação provocada pelo envenenamento por arsênico. Também poderão pedir para o cosmocópio mudar algumas das verdades básicas, de modo a aceder a um mundo possível no qual a garrafa na frente de Napoleão não contém vinho, mas água colorida, e comprovar, assim, se ele continuaria acreditando estar observando uma garrafa de vinho. Novos cenários epistêmicos podem ser obtidos simplesmente inserindo condicionais hipotéticos no cosmocópio, o qual se encarregará de produzir as modificações relevante em PQTI.

A função dessa idealização é mostrar como a base PQTI é suficiente para escrutar qualquer outra verdade, real ou meramente possível. Para isso, é importante notar que o cosmocópio não produz, propriamente, conhecimentos. Ele se limita a fornecer certas informações físicas e representações fenomênicas a partir de PQTI. É o usuário s quem determina o valor de verdade de uma sentença M, à luz das evidências, completas, disponíveis no cosmocópio. Embora amplie impressionantemente os conhecimentos básicos de s e proporcione uma capacidade de raciocínio praticamente ilimitada, o cosmocópio não é nada mais que uma “extensão” de s. Em outras palavras, não é o cosmocópio o demônio de Laplace, mas a união do usuário e do cosmocópio, a qual constitui, em última instância, o sujeito epistêmico ideal. Se aceitamos que o usuário no cosmocópio é efetivamente capaz de determinar o valor de verdade de qualquer sentença ordinária, então aceitamos, ipso facto, que PQTI é a base própria da relação de escrutabilidade. Para quem não estiver convencido, Chalmers mostra, em primeiro lugar – e contra possíveis objeções céticas –, que não é possível que PQTI seja verdadeiro e M falso, que ele chama de “argumento da eliminação” (p. 120-5) e, em segundo lugar, que não há verdades ordinárias que fiquem fora do alcance do cosmocópio, que corresponde ao “argumento da cognoscibilidade” (cf. p. 125-34). Contudo, tudo isso não é suficiente para justificar a tese da escrutabilidade a priori. Para esse fim, Chalmers deve mostrar que, uma vez que s entra no cosmocópio, ele aceita que PQTI→M é verdadeiro independentemente de qualquer experiência, isto é, confiando apenas na relação de escrutabilidade a partir de PQTI.

No quarto capítulo, Chalmers apresenta três argumentos definitivos para aceitar a tese da escrutabilidade a priori com base PQTI. O primeiro é o argumento da suspensão do juízo (p. 159-60). Se nos imaginamos, antes de entrar no cosmocópio, em um cenário cético análogo ao das Meditações metafísicas de Descartes, não é claro em que sentido a experiência jogaria um papel qualquer na aceitação de PQTI→M. Sendo que o cosmocópio, durante o processamento da informação, não é influenciado por nenhuma nova evidência empírica, resulta ao menos plausível que também o usuário que previamente suspendeu o juízo chegue a saber PQTI→M sem recorrer à experiência. O segundo argumento é o da antecipação (cf. p. 160-7). Poder-se-ia pensar que, até depois de uma suspensão do juízo, as evidências empíricas continuem jogando algum papel na posterior aceitação de verdades. Poder-se-ia, então, pensar que s, uma vez entrado no cosmocópio, não sabe realmente PQTI→M, mas PQTI & E→M, onde E é uma evidência empírica. Porém, Chalmers nota que, sendo PQTI suficiente para derivar M, E deve necessariamente estar já incluído em PQTI e, portanto, PQTI & E→M é escrutável a priori. Agora, se somamos todas as evidências empíricas F e tentamos mostrar que elas jogam algum papel na aceitação de PQTI→M, encontrar-nos-emos, analogamente, na situação em que PQTI & F→M é escrutável a priori. Finalmente, com o argumento que poderíamos chamar de “o papel justificativo” (cf. p. 167-9), Chalmers mostra que qualquer referência à experiência durante o uso do cosmocópio (pensem no nosso exemplo acerca de nossas percepções “napoleônicas”) não joga realmente um papel justificativo em PQTI→M, mas apenas causal ou de intermediação.

3 A UNIDADE DA CIÊNCIA E A ESTRUTURA DO MUNDO

Mas afinal quais são exatamente as sentenças que compõem PQTI? Em realidade, mais do que uma base determinada, ele representa, para Chalmers, um ponto de partida para definir, em claro espírito carnapiano, classes de verdades básicas mais fundamentais, isto é, subconjuntos mínimos dotados de alguma prioridade conceitual (cf. cap. 6-7), as quais, por sua vez, permitem formular novas versões de escrutabilidade (cf. cap. 8) – todas rigorosamente a priori –, com as mais diversas finalidades filosóficas. Diferentes bases mínimas servem para defender teses epistemológicas, semânticas ou metafísicas distintas, e é justamente nisso que reside a versatilidade da proposta de Chalmers. Embora, ao longo do livro, o autor expresse suas opiniões pessoais com respeito a várias temáticas, a tese da escrutabilidade a priori é, principalmente, um instrumento metafilosófico que pode ser empregado por pensadores das mais díspares tendências. Para dar um exemplo disso, apresentarei, na última parte desta resenha, a relação entre a escolha de bases restritas e a estrutura científica do mundo, a partir do que, para Chalmers, é uma consequência necessária da tese da escrutabilidade a priori, a saber, a unidade da ciência (cf. excurso 10).

A conexão entre a tese da escrutabilidade a priori e a unidade da ciência é bastante evidente quando pensamos que, conforme a primeira, todas as verdades e, portanto, todas as verdades científicas são escrutáveis a partir de uma certa base. Dado que, intuitivamente, as verdades científicas contidas em PQTI são principalmente verdades da física, resulta quase espontâneo considerar o reducionismo como uma consequência da tese da escrutabilidade a priori; o que é, de acordo com Chalmers (p. 302), admissível, mas deve ser tomado com cuidado. Como já vimos, a relação de escrutabilidade não é uma relação de definibilidade e, portanto, o reducionismo sugerido por ela é muito mais fraco que o reducionismo tradicional, fundado sobre critérios de significado dos empiristas lógicos (cf. Hempel, 1965, cap. 4). A escrutabilidade com base PQTI é compatível com o pluralismo e com diferentes enfoques metateóricos (p. 309). Por exemplo, ela não implica – embora tampouco exclua – o fisicalismo. O fisicalista é alguém que aceita, como verdades básicas, algo como PQTI (p. 290-8), isto é, uma versão de PQTI na qual as verdades contidas em P são apenas verdades microfísicas ou, em um caso mais extremo, apenas PTI ou P, isto é, famílias de sentenças puramente físicas (para este último tipo de fisicalista, as qualidades (qualia) seriam totalmente escrutáveis a partir de estados físicos). Contudo, o fisicalismo não é a única (e, segundo Chalmers, nem a melhor) opção de “redução”.

Os metafísicos discutem se o universo inteiro é mais fundamental do que as simples partes: os monistas sustentam que o todo funda as partes, enquanto os pluralistas sustentam que as partes fundam o todo. Analogamente, os fisicalistas sustentam que o físico é fundamental e funda o mental, enquanto os idealistas sustentam que o mental é fundamental e funda o físico, e os dualistas sustentam que tanto o físico quanto o mental são fundamentais (…). PQTI não resolve essas questões: ele é compatível tanto com a perspectiva monista como com a pluralista, e com as perspectivas fisicalista e dualista e, talvez, com a idealista (p. 270).

Novamente, a inspiração é o próprio Aufbau carnapiano, o qual, além de oferecer bases alternativas (fenomênica, fisicalista ou lógica), mostra indiferença ou, melhor dito, “tolerância” com respeito a várias posições filosóficas (cf. Carnap, 1967 [1928], §75, §177-8; Friedman, 1999, p. 132 ss.). Para Chalmers, todos os conceitos candidatos para formar parte de PQTI podem constituir alternativamente, dependendo de como sejam interpretados, elementos básicos ou derivados da relação de escrutabilidade (exceto T e I, os quais parecem formar necessariamente parte da base). Como demonstração disso, no sétimo capítulo, são explicitadas as principais opções na escolha da classe mínima de conceitos básicos. Com relação a P, por exemplo, é igualmente aceitável definir os conceitos microfísicos como básicos (fisicalismo) ou como escrutáveis, por “ramseyficação” de conceitos macrofísicos e observacionais (p. 319-21). Quanto a Q, podemos considerar as qualidades secundárias (como cores, sons etc.) como primitivas, ou escrutáveis de interações fenomênicas entre sujeitos e objetos (funcionalismo conceitual) (cf. p. 321-4). Há, depois, outros conceitos básicos de difícil classificação, cujo status epistemológico e metafísico é objeto de disputa. Os conceitos de espaço e tempo e todas as expressões nômicas, por exemplo, podem ser considerados primitivos com respeito às entidades físicas e aos estados fenomênicos, mas também escrutáveis, idealisticamente, de conceitos fenomênicos ou, alternativamente, de certas distribuições (micro ou macro) físicas (cf. p. 325-40). É possível ainda que as verdades mais básicas da física sejam escrutáveis, em realidade, de verdades metafísicas mais primitivas (quidditas) (cf. p. 347-53). Tomando certas verdades metafísicas como, por exemplo, a irredutibilidade dos estados psíquicos, isto é, o pampsiquismo, que é uma posição cara a Chalmers (cf. 1996, p. 293-301; 2012, p. 359-61) – como básicas, é possível redefinir inteiramente a ordem das outras verdades escrutadas.

Como consequência dessa liberalidade filosófica, no oitavo capítulo, várias combinações compactas de conceitos básicos são apresentadas explicitando a estrutura do mundo, a qual é, a partir delas, escrutável (p. 406-22). Assim, caracterizar a base como uma classe de sentenças sobre coordenadas espaço-temporais conduz a conceber o mundo como uma estrutura quase matemática; escolher regularidades nômicas implica caracterizar a estrutura do mundo como fundamentalmente legiforme; uma base fenomênica pode definir uma estrutura análoga à do Aufbau ou, se nela são introduzidas certas verdade metafísicas, pampsiquista; finalmente, se a base é metafísica, a estrutura resultante será caracterizada pelas propriedades das quidditas aceitas. Bases híbridas e estruturas intermédias podem satisfazer outras sensibilidades metateóricas. Trata-se, contudo, apenas de esboços, já que (além do fato de não ser esta lista exaustiva), em cada caso, haveria – como Chalmers mesmo reconhece – que dedicar muito mais detalhe ao vocabulário, à forma das verdades básicas e às modalidades de construção das outras verdades. Chalmers declara, no final de sua obra, que

eu não escrevi nenhum desses Aufbaus aqui (…), [mas] na medida em que a tese da escrutabilidade a priori é verdadeira, algum desses Aufbaus será possível. Haverá um vocabulário básico limitado no qual expressar as verdades básicas. Outras verdades serão deriváveis a partir dessas, ou por inferência a priori ou por uma definição aproximada. A estrutura geral dependerá da visão filosófica de cada um sobre a fenomenologia, o espaço-tempo, as leis da natureza, a quidditas, a normatividade, a intencionalidade, a ontologia, e assim por diante. Os detalhes dependerão de questões empíricas sobre física, fenomenologia e outros domínios. Mas temos razão de crer que um Aufbau bem-sucedido existe, em algum lugar do espaço filosófico (p. 429-30).

Estudar o livro de Chalmers, e empregar suas sofisticadas ferramentas analíticas, sem dúvida, aproxima-nos desse lugar.

Notas

1 Há, ainda, um terceiro “herói” no livro de Chalmers, Frege, do qual o autor pretende resgatar, por meio de certas aplicações da noção de escrutabilidade, a teoria do significado e a distinção entre sentido e referência.

2 Estes, além de constituírem-se a partir de bases distintas, podem ser, principalmente, inferenciais ou condicionais. A distinção remete às modalidades de conhecimento próprias de, respectivamente, um demônio laplaceano real ou meramente possível. Com o fim de evitar uma série de consequências paradoxais – in primis, o paradoxo de Fitch sobre a cognoscibilidade (cf. Fitch, 1963; Chalmers, 2012, p. 29 ss.) –, Chalmers expressa uma clara preferência para o segundo tipo de escrutabilidade, mas não precisamos aqui entrar nos detalhes. Para isso, ver Chalmers (2012, cap. 2).

3 Chalmers distingue, no texto, “escrutabilidade” (com caixa baixa), para se referir a uma relação de escrutabilidade, de “Escrutabilidade” (com caixa alta), para introduzir uma tese sobre escrutabilidade (p. 39).

4 Note-se certa ambivalência, por parte de Chalmers, na caracterização das verdades como “sentenças” ou “proposições” verdadeiras, na apresentação de diferentes relações ou teses de escrutabilidade. Em geral, eu não diferenciarei aqui entre os dois termos, mas empregarei de preferência “sentenças”, conforme as recomendações de Chalmers (cf. p. 42-7; excurso 3).

5 São excluídas, das “verdades macroscópicas ordinárias”, as verdades sobre a matemática, a moralidade, a ontologia, a intencionalidade, a modalidade e algumas outras, as quais são tratadas como casos especiais no sexto capítulo. Não apresentarei o conteúdo desse capítulo no corpo da resenha, mas vale a pena precisar duas questões. A primeira, terminológica, é que o atributo “macroscópico”, com relação às verdades escrutáveis, não se opõe necessariamente a “microscópico”. Verdades relacionadas com a estrutura da matéria, por exemplo, são escrutáveis. Apenas algumas verdades no domínio quântico são excluídas pelas verdades macroscópicas ordinárias e representam casos especiais. Em segundo lugar, é importante ressaltar que inclusive essas verdades especiais são escrutáveis, uma vez que sejam aportados certos ajustes na base (discutidos nos sexto e sétimo capítulos).

Referências

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FITCH, F. B. A logical analysis of some value concepts. Journal of Symbolic Logic, 51, p. 135-42, 1963.

FRIEDMAN, M. Reconsidering logical positivism. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

HEMPEL, C. G. Aspects of scientific explanation and other essays in the philosophy of science. New York: The Free Press, 1965.

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WITTGENSTEIN, L. Philosophical investigations. London: Macmillan, 1953.

Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, Brasil. E-mail:  [email protected]

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[DR]

 

Leyes sin causa y causas sin ley – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Leyes sin causa y causas sin ley. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2014. BARAVALLE, Lorenzo. O mosaico causal do mundo orgânico. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 3, p. 685-94, 2015.

No princípio – como muitas vezes acontece na filosofia da ciência – era Hume. E, aos olhos dele, o mundo natural era apenas uma coleção de fenômenos. O ser humano, uma criatura dirigida por uma série de hábitos profundamente arraigados, enxerga necessidade onde nada mais há que uma repetição de eventos contingentes similares, espacialmente próximos e temporalmente ordenados, e chama essa repetição de relação causal. Esta não está lá fora, no mundo, como imaginavam os metafísicos da época, mas em nós, nos observadores, e, por isso, nada nos assegura que, amanhã, das mesmas causas seguir-se-ão os mesmo efeitos.

Por quanto impecável do ponto de vista de um empirismo radical como o de Hume, sua caracterização da relação causal possuía algumas implicações indesejáveis para quem, como os empiristas posteriores a ele, pretendiam distinguir entre certas causas “autênticas” – como aquelas postuladas pelas teorias físicas – e outras meramente aparentes. Se qualquer sequência regular com as características acima descritas pode ser considerada como causal, como Hume parece admitir, então muitos eventos que intuitivamente não são tidos como causalmente relacionados, porque meramente correlacionados, passam a sê-lo. Como impedir a proliferação dessas pseudocausas? A solução do problema, geralmente atribuída a Hempel, embora sua paternidade, como mostra Caponi (cf. p. 15), seja disputada por Popper, consiste em dizer que apenas os eventos subsumidos sob uma lei científica podem ser considerados como causalmente relacionados. Em suma, que sem leis não há causas.

As leis científicas são consideradas, nessa tradição de pensamento, como generalizações universais irrestritas, isto é, enunciados válidos em qualquer porção de espaço-tempo e independentemente da existência, contingente, de objetos que as instanciam. Elas jogam um papel fundamental na explicação científica. Para Hempel, como é sabido, a explicação científica é uma inferência que permite derivar um explanandum (o enunciado que expressa o fato a ser explicado) a partir de um explanans (um conjunto de enunciados que constituem as premissas da inferência). Embora Hempel tivesse proposto vários modelos de explicação científica, o primeiro e mais conhecido é aquele chamado de “dedutivo nomológico particular”, no qual o explanandum, constituído por um enunciado que expressa um fato específico, é deduzido a partir de um explanans que, por sua vez, é constituído por outros enunciados de fatos particulares e por, pelo menos, uma lei. É justamente nisso que reside o caráter “nomológico” do modelo hempeliano, pois a presença de leis na explicação garante a validade da relação explicativa entre explanans e explanandum e, em última instancia, sua cientificidade. Embora nem todas as leis expressem relações causais (um ponto sobre o qual, como veremos em breve, Caponi justamente insiste), uma consequência implicitamente aceita do modelo hempeliano é que a possibilidade de falar de relações causais entre os fenômenos estudados por uma disciplina científica está subordinada à possibilidade de produzir, nessa mesma disciplina, generalizações nomológicas. Isto é, só há causas onde há leis.

A simplicidade e a elegância do modelo explicativo hempeliano escondem, na verdade, um sem fim de problemas epistêmicos mais ou menos graves (cf. Salmon, 1989). Notoriamente, ele colocou por um longo tempo os filósofos da biologia em uma situação bastante embaraçosa. Como observaram, entre outros, Smart (1963) e Beatty (1995), na biologia, é extremamente difícil, se não impossível, encontrar leis no sentido requerido por Hempel (isto é, generalizações universais irrestritas). Entretanto, conforme o modelo dedutivo nomológico, não pode haver explicação científica sem leis e, pelo que acabamos de dizer, parece não haver maneira de identificar relações causais se não por meio de explicações científicas, de modo que não parece possível falar de relações causais propriamente ditas na biologia. Mas, se isso for realmente assim, então a biologia seria uma disciplina de alguma maneira subordinada a disciplinas, tais como a física ou a química, cujo caráter nomológico é inegável.

É aqui que Gustavo Caponi entra em cena com seu novo livro, trazendo ar fresco a um debate que por várias décadas dividiu quem parecia estar disposto a abandonar a biologia a seu destino de ciência sem leis e, portanto, “sem causas” próprias, e quem insistia em encontrar um modelo explicativo ou uma definição de lei menos estritos e, portanto, mais adaptáveis às exigências das ciências especiais. Para Caponi, não é preciso abandonar a noção de lei tradicional para constatar que no domínio da biologia há tanto leis como causas. Se outros filósofos, no passado, pensaram diversamente é porque estabeleceram uma infértil e artificial equação entre essas duas noções. Uma equação que, uma vez dissolvida, permite mostrar o pleno potencial da biologia e reconhecer seu lugar entre as outras ciências explicativas. Para esse fim, Caponi, com sua característica prosa agradável e de clareza exemplar, limpa o caminho de uma serie de confusões conceituais sobre o tema e, articulando ativamente a chamada “concepção experimentalista” da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971; Woodward, 2003), retrata uma imagem da estrutura explicativa das ciências da vida original e fiel à prática epistêmica do biólogo. O livro de Caponi é composto por 4 capítulos, que definem o argumento principal, e um Anexo final sobre a explicação teleológica e a noção de desenho na biologia evolutiva. Tendo em conta o espaço a disposição, e com a finalidade de apresentar com a devida profundidade os elementos mais importantes da concepção defendida por Caponi, limitar-me-ei a discutir a primeira parte do texto, convidando o leitor a descobrir por si próprio como o Anexo completa tal concepção.

1 DO CARÁTER NOMOLÓGICO À INVARIÂNCIA

Nos últimos 20 anos, o pessimismo de Smart e Beatty com respeito à possibilidade de individuar regularidades nomológicas em biologia foi deixando o passo àqueles que, como Brandon (1990), Sober (1984) e muitos outros, argumentam que algo do tipo do princípio da seleção natural, segundo o qual “se a é melhor adaptado que b em um ambiente E, então (provavelmente) a terá um maior sucesso reprodutivo que b em E” (Brandon, 1990, p. 11) ou, de modo mais geral, do tipo das fórmulas da genética de populações são, efetivamente, leis oriundas da biologia. Compartilhando apenas parcialmente o entusiasmo desses filósofos, o problema que Caponi levanta no primeiro capítulo de seu livro é o de saber se é suficiente afirmar o caráter nomológico de tais enunciados para certificar-se da existência de explicações causais autênticas no âmbito da biologia? A resposta de Caponi é negativa, mas é justamente a partir desse desanimador começo que, como veremos, ele pode alcançar uma concepção da estrutura teórica da biologia mais madura e sofisticada. Não apenas o caráter nomológico não é suficiente para definir a causalidade, mas tampouco é necessário.

Mesmo Hempel (1965) admitia que nem todas as leis científicas são leis causais, dado que algumas delas expressam apenas uma relação matemática entre variáveis. Muitas leis não causais – as que Caponi (p. 45 ss.), adotando a terminologia de Sober (1984), chama de “leis consequenciais” – sugerem apenas que, entre certas classes de fenômenos, está ocorrendo alguma relação causal, mas não revelam em que consiste, efetivamente, tal relação. Embora também as leis consequenciais sejam informativas, alguns críticos do modelo dedutivo nomológico (cf. Salmon, 1997) argumentaram que somente as leis causais permitem formular explicações totalmente satisfatórias.

Se tomamos em consideração a física, é fácil ver que as leis físicas em sua maioria, e, portanto, as explicações nelas baseadas, são causais porque “dão conta da origem, da fonte, da constituição, de uma força ou agente de mudanças, e elas também nos indicam a intensidade que essa força ou agente de mudanças deverá ter” (p. 46). É assim também na biologia? Consideremos um exemplo clássico de lei na genética populacional (p. 37):

dp/dt = p (wA – W)/W. (1)

Ela nos diz que a frequência de um fenótipo em uma certa população aumenta na medida em que o valor seletivo (wA) de tal fenótipo supera o valor seletivo pro-médio dos outros fenótipos presentes na mesma população. A noção de “valor seletivo” (ou outras equivalentes, como “sucesso reprodutivo”) é meramente quantitativa, isto é, ela não indica por que a frequência do fenótipo em questão aumenta, já que não especifica as características ecológicas que fazem com que tal fenótipo possua, efetivamente, esse valor seletivo, mas apenas como esse valor influirá nas frequências dos outros fenótipos e, definitivamente, na composição da população. Em outras palavras, ele não indica as causas que estão operando na distribuição dos fenótipos na população. Portanto, (1) é uma lei consequencial. Assim como quase todas as leis da biologia, argumenta Caponi, ela é incapaz de ir para além de uma representação a posteriori de como certos efeitos estão inter-relacionados e, como consequência disso, não pode proporcionar explicações causais.

Há, também na biologia, pelo menos um exemplo de lei causal, a saber, a lei de Fisher sobre a proporção de gêneros (cf. Sober, 1984, p. 51 ss.). Estabelecendo que o fenótipo correspondente ao gênero menos difuso em uma população será aquele com maior valor seletivo, a lei de Fisher explicita, de fato, o que em (1) é deixado sem especificar, isto é, a natureza da característica ecológica que, no contexto em exame, causará uma variação na frequência do fenótipo em questão. Caso fosse possível encontrar outras leis análogas, capazes de determinar, com certo grau de universalidade, quais fenótipos possuirão um maior valor seletivo em uma população dadas certas condições ambientais, então o problema de encontrar explicações causais autênticas na biologia estaria virtualmente resolvido. Porém, Caponi (p. 64-8) argumenta, em minha opinião convincentemente, que elas, embora não impossíveis de encontrar, são extremamente raras, devido ao fato de que, dadas certas condições ambientais, as maneiras pelas quais uma população tem de adaptar-se a elas são muitas e potencialmente imprevisíveis. A lei de Fisher seria, então, a clássica “exceção que confirma a regra”: ela funciona bem como lei causal porque, nas espécies sexuadas, os gêneros são variáveis binárias. Todavia, não podemos esperar que ela funcione como modelo para outras leis, já que essa situação é muito pouco frequente no mundo orgânico.

Talvez, e essa é a grande aposta de Caponi – como ele mesmo sugere no segundo capítulo de seu livro –, não é no caráter nomológico que deveríamos procurar o caráter causal da explicação biológica. Opondo-se à tradição neo-humeana, conforme a qual – como lembrei no começo desta resenha – o caráter nomológico é condição necessária para atribuir causalidade, Caponi propõe reconhecer uma prioridade e independência conceitual à noção de causa com respeito à de lei (p. 69 ss.). Adota, ao fazer isso, a que é conhecida como perspectiva experimental ou manipulativa da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971) e, em particular, a proposta de James Woodward (2003). Conforme esta última proposta, “as atribuições causais (…) são feitas (…) com base na ideia de que a causa de um fenômeno é sempre outro fenômeno cujo controle permitiria, ou nos teria permitido, controlar a ocorrência daquele que chamamos seu efeito” (p. 72). Em outras palavras, a causalidade está relacionada com um fazer, mais do que com um saber: é uma noção, em certa medida, pré-teórica e anterior a nossas atribuições nomológicas.

Para esclarecer essa noção, Caponi introduz um dos exemplos mais recorrentes do livro: a da “rádio calchaquí”, uma rádio pequena e velha, perdida no meio dos vales Calchaquis na Argentina, que, devido à ação do tempo, apresenta um funcionamento anômalo (p. 77 ss.). O dispositivo que regula o volume é invertido. Isto é, movendo-o em sentido horário o volume desce e, movendo-o em sentido anti-horário, sobe. Embora sem conhecimento de uma hipotética lei que regeria o comportamento de nossa rádio, depois de um pouco de prática, reconheceríamos sem problemas que há uma relação causal entre o movimento do potenciômetro e as oscilações do volume. Mas como se justifica tal conhecimento se, de fato, não deriva do conhecimento prévio de uma regularidade nomológica? A resposta de Caponi é que ele é determinado pelo fato mesmo de estarmos “em condições de controlar o estado de uma variável X em virtude de nossa manipulação de outra variável Y” (p. 80). Mais especificamente, embora não saibamos explicar por que a rádio se comporta assim, “temos ao menos o começo de uma explicação quando identificamos fatores ou condições cuja manipulação ou mudança produzirá mudanças no resultado que está sendo explicado” (Woodward, 2003, p. 10).

O funcionamento da rádio calchaquí exibe o que Woodward chama uma “invariância”, isto é, uma regularidade local que, embora sem possuir a universalidade própria de uma lei causal (já que, bem ao contrário, é válida até onde sabemos para um só caso), é suficientemente sólida para suportar condicionais contrafactuais. Woodward (2003, p. 133-45), e com ele Caponi (embora não explicitamente), seguem David Lewis (1993 [1973]) na ideia de que é a capacidade de suportar contrafactuais – e não sua nomicidade, a qual seria, eventualmente, uma consequência de tal capacidade – que revela o conteúdo causal de um enunciado. Porém, em lugar de fundar, como Lewis, essa capacidade em uma particular ontologia dos mundos possíveis, Woodward e Caponi identificam essa capacidade – mais prosaicamente, mas também mais eficazmente – com a propriedade, característica de uma invariante, de manter-se estável em certa quantidade de intervenções.1 No nosso exemplo, observando que a oscilação do volume depende da manipulação do potenciômetro, estamos na posição de estabelecer o valor de verdade de séries de contrafactuais e, consequentemente, certificar a relação causal entre os dois fenômenos. Na medida em que uma invariância suporta um maior número de intervenções, ela é mais abrangente e pode ser considerada, eventualmente, uma lei causal. Todavia, o ponto importante para manter em vista é que “Woodward (…) conseguiu colocar em evidência que a efetividade do vínculo causal estabelecido por um invariante não é diretamente proporcional a sua universalidade, mas a sua estabilidade sob intervenções, ainda quando esta última se cumpra apenas dentro de uma esfera muito restrita” (p. 99), a saber, que o caráter nomológico derive da possibilidade de individuar relações causais e não vice-versa.

2 A EXPLICAÇÃO BIOLÓGICA EM UM MUNDO FÍSICO

Até aqui tudo bem. Mas como a concepção experimental nos ajuda, exatamente, a explicitar, na explicação biológica, aquelas relações causais que ficavam ocultas em suas leis consequenciais? Quando se trata de processos evolutivos não possuímos, na maioria dos casos, a mesma capacidade material de manipular variáveis como no caso de nossa velha rádio calchaquí. Podemos, porém, figurar-nos intervenções hipotéticas a partir de outras factualmente possíveis. Não entraremos aqui nos detalhes sobre este ponto mas, com relação a isso, é interessante lembrar que, na formulação de sua teoria, Darwin inspirou-se – entre outras coisas – na seleção artificial dos pombos domésticos, isto é, uma atividade propriamente manipulativa, extrapolando depois as características fundamentais de tal processo a um outro apenas hipoteticamente manipulável, a seleção natural (cf. p. 83-5). Dada essa possível extensão da noção de manipulabilidade, Caponi propõe considerar, no terceiro capítulo de seu livro, as distintas pressões seletivas, tão diferentes entre si – devido às potencialmente infinitas circunstâncias morfológicas, fisiológicas e comportamentais que jogam um papel na evolução de uma determinada população – como invariantes particulares.

Mais uma vez, Caponi (p. 106 ss.) esclarece sua estratégia com um exemplo. Uma das mais conhecidas ilustrações da ação da seleção natural é, sem dúvida, o fenômeno do melanismo industrial em Biston betularia. Devido a certas características ecológicas – a presença de aves predadoras e a coloração das superfícies de pouso, constituídas por árvores obscurecidas pela ação poluente do fumo das fábricas da região –, nas populações dessa espécie de mariposa onde estão presentes uma variante mais clara e outra mais escura, a variante com a coloração mais escura tende a um maior sucesso reprodutivo. A frequência dos fenótipos, nessas populações, corresponde àquela prevista por (1). Não há, todavia, uma lei causal – universal – que explique por que, nessas populações, acontece essa distribuição. Significa isso que não podemos explicar causalmente o fenômeno? Tal conclusão seria completamente insatisfatória, se levássemos em conta que, do ponto de vista de um biólogo evolutivo, é justamente esse tipo de explicação aquela desejada em casos análogos a esse.

Afortunadamente, alinhados com a análise realizada anteriormente, não precisamos de uma lei causal para obter tal explicação. No caso do melanismo industrial, a relação entre a coloração das mariposas e das superfícies de pouso é estável sob várias intervenções. Isto é, manipulando experimentalmente o segundo fator – obrigando, por exemplo, as fábricas a usar filtros que reduzam a poluição –, é possível controlar o primeiro – a cor das mariposas. Por meio de tal manipulação podemos, em última instância, determinar o fenótipo que será mais adaptativo intervindo em sua ecologia. Estamos, em outras palavras, em presença do que Caponi chama de um “invariante seletivo” da forma.

Se, em populações de insetos de ecologia análoga a essas de Biston betularia, nas quais aconteceu o melanismo industrial, ocorrem colorações alternativas tais que uma seja mais contrastante com as superfícies de pouso que as outras, então, nessas populações, as colorações menos contrastantes serão as ecologicamente mais aptas (p. 116).

Tal invariante admite, como é fácil ver, um sem fim de exceções, já que é virtualmente impossível estabelecer todos os fatores ecologicamente relevante em um caso concreto, mas é suficientemente sólido para servir de base a uma série de contrafactuais. E isso é tudo o que ele tem que fazer. Conforme o enfoque experimental, onde há invariância, há apoio de contrafactuais; onde há apoio de contrafactuais, há relação causal; e onde há relação causal, é possível, ao menos em princípio, fornecer uma explicação causal.

A biologia (em particular a biologia evolutiva – que foi a única a ser tratada explicitamente nesta resenha –, mas não somente) constitui-se, explicativamente, sobre um “mosaico de invariantes” – cito Caponi por inteiro – “sempre locais e caducáveis, que, como a mortalha tecida e destecida por Penélope, está em permanente estado de reconfiguração” (p. 120). Nisso, a biologia distingue-se da física. Embora ambas possuam leis consequenciais as quais proporcionam uma unidade teórica bem característica, apenas a física pode contar com leis causais universais. A biologia – ainda que, como vimos, existam exceções como a lei de Fisher – produz explicações causais a partir de invariantes locais e mutáveis.

A imagem do mosaico não satisfaria aquele que, como o próprio Hempel, considera que, em última instância, deve existir uma base causal subjacente, comum a todas as ciências, com uma forma nomológica: uma estrutura oculta de leis eternas e imutáveis (cf. Woodward, 2003, p. 159 ss.). De acordo com essa perspectiva, as ciências como a biologia estariam em um constante estado de heteronomia nomológica, isto é, forneceriam explicações apoiando-se em leis do domínio da física ou da química.

Para elucidar a relação entre propriedades biológicas e mundo físico – e assim reafirmar a autonomia da explicação biológica –, Caponi defende, no último capítulo de seu livro, uma versão clássica de fisicalismo (cf. Stoljar, 2015), que combina superveniência com múltipla possibilidade de realização. Nessa perspectiva, uma propriedade não física é necessariamente instanciada por uma propriedade física, mas não necessariamente pela mesma propriedade física em todas suas instâncias. Isso implica, diz Caponi, seguindo Sober (2010, p. 226), que “não pode haver diferença biológica sem diferença física, mas pode sim haver semelhança biológica sem semelhança física” (p. 151 ss.).

A originalidade de Caponi é que, em lugar de simplesmente contentar-se com essa posição de compromisso entre reducionismo e autonomia explicativa, articula um critério que pode ajudar-nos a entender, em domínios específicos da biologia, quais são os fenômenos que podem ser proveitosamente explicados em termos físico-químicos e quais, ao contrário, deveriam manter a própria autonomia. Tal critério depende da noção de “grau de superveniência” (p. 154 ss.): “dados dois sistemas ou objetos, quanto menos delimitado ou especificado esteja o conjunto de predicados físicos dos quais depende a correta atribuição, a ambos, de um predicado biológico, mais superveniente será esse predicado” (p. 159). Um predicado concernente à atribuição de um determinado traço anatômico-funcional em fisiologia, embora seja multiplamente realizável, está especificado por um conjunto menor de predicados físicos do que um predicado concernente à atribuição genérica de um traço adaptativo em ecologia evolucionária. Isto é, há menos maneiras de realizar fisicamente, por exemplo, um olho, do que uma complexa propriedade ecológica. Segundo Caponi, embora ambas as propriedades sejam dependentes de uma base física, é mais promissor procurar explicações reducionistas no primeiro caso do que no segundo.

Quanto maior é o grau de superveniência das propriedades estudadas, mais liberdade temos para não nos comprometer em tentativas de explicar os fenômenos a elas associadas que obedeçam a uma perspectiva reducionista, e mais incertos são os lucros cognitivos desse compromisso (p. 160).

Esse enfoque não viola, em nenhum caso, a clausura causal da física (cf. p. 162 ss.), já que não nega que exista uma ontologia básica fisicalista, mas coloca em dúvida que usar os óculos das ciências mais básicas seja sempre a melhor maneira para entender os fenômenos naturais.

3 FINAS MANIPULAÇÕES E MARTELADAS

As vantagens do enfoque experimental sobre o hempeliano, e qualquer outro modelo nomológico (cf. Woodward, 2003, cap. 4), são demasiado importantes para que possam ser ignoradas por qualquer filósofo da ciência. Parafraseando Caponi (p. 161), o qual, por sua vez, inspira-se em Suppe, ele tem todas as vantagens das finas manipulações no software sobre as “marteladas” no hardware. Dentre os que estão atualmente disponíveis, nenhum outro modelo, além do modelo de Woodward é, em minha opinião, capaz de oferecer uma análise epistemológica da causalidade e da explicação causal tão acurada. Ele oferece a possibilidade de levar a análise da explicação científica a um grau de detalhe impensável para o modelo hempeliano, o qual, por suas ambições de universalidade, mal se adapta às exigências das ciências especiais. O grande mérito de Caponi é de ter sido capaz de derivar, esclarecer, organizar e desenvolver todas as principais consequências do modelo de Woodward de uma maneira accessível e “pronta para o uso” dos filósofos da biologia de fala espanhola e portuguesa. Seu livro é rico de estímulos e, com certeza, será o ponto de partida de muitos debates futuros.

Notas

1 De Lewis, é importante lembrá-lo, Woodward e Caponi distanciam-se também pelo caráter não redutivo da análise da noção de causa. Isto é, Woodward e Caponi não pretendem definir o conceito de causa a partir do conceito, supostamente mais elementar e primitivo, de manipulação, mas apenas mostrar como este último, que é também essencialmente causal, é elucidativo com respeito a certas relações causais concretas.

Referências

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Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Humanas e Naturais. Universidade Federal do ABC, Santo André, Brasil. E-mail:  [email protected]

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[DR]

 

A foray into the worlds of animals and humans/ A theory of meaning – UEXKÜLL (SS)

UEXKÜLL, Jakob von. A foray into the worlds of animals and humans/ A theory of meaning. Trad. J. D. O’Neil. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 2010. Resenha de: BARAVALLE, Lorenzo. Valsa para carrapatos. Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 2, p. 379-88, 2014.

Los ojos en que te miras

son ojos porque te ven.

Antonio Machado. Proverbios y cantares, XL.

Um carrapato faminto aguarda paciente, na ponta de um galho, a passagem de sua presa. De repente, a espessa escuridão dessa espera sem eventos quebra-se. Os órgãos receptores do carrapato enchem-se do aroma do ácido butanoico. Suas pequenas pernas abrem-se, e o inseto deixa-se cair entre os pelos de um mamífero. O impacto desperta o carrapato como de um sono. A pele macia e quente de sua vítima é o sinal que chegou a hora de comer.

Com essas imagens começa a incursão de Jakob von Uexküll (1864-1944), brilhante biólogo e precursor da etologia contemporânea, nos mundos (ou, usando a terminologia do autor, nos Umwelten, isto é, os ambientes vitais, os mundos fenomênicos) dos animais e dos humanos. O quesito que acompanha o autor ao longo de sua viagem é o seguinte: pode o carrapato ser uma máquina sem condutor? Em outras palavras, será que ele é apenas um autômato programado para sobreviver? É, para Uexküll, até demasiado evidente que a resposta a essas perguntas é não. Nem a fisiologia behaviorista nem a teoria da seleção natural, com suas ferramentas conceituais fundamentalmente mecanicistas, conseguem explicar a complexidade das respostas comportamentais de um organismo. Para entender porque o carrapato, assim como qualquer outro animal e obviamente também os seres humanos, agem como agem, é preciso explorar o universo de sua interioridade, aquele espaço onde o entremeado das percepções desvela significados ocultos. Esse universo, que o filósofo Gilbert Ryle consideraria povoado apenas por fantasmas, aparece logo cheio de vida nas páginas de Uexküll, inspiradas por um declarado idealismo filosófico.

A nova tradução ao inglês das duas obras clássicas do cientista alemão – que, na verdade, nasceu na atual Estônia –, A foray into the worlds of animals and humans e A theory of meaning, chega talvez tarde mas, ao mesmo tempo, em felizes circunstâncias. Tarde, tendo em conta que as edições originais datam, respetivamente, de 1934 e 1940, e que a primeira tradução do primeiro texto, de 1957, é considerada, pelo tradutor da nova edição, pouco fiel ao cuidado terminológico do autor (cf. O’Neil, 2010). Em felizes circunstâncias, porque hoje, mais do que no passado, o trabalho de Uexküll está na condição de receber o merecido reconhecimento. Seu principal objetivo polêmico era, como já antecipei, a fisiologia behaviorista – cuja figura principal era Jacques Loeb, professor de John B. Watson – predominante na época, em particular nos Estados Unidos, que ao longo do século xx inspirará boa parte da biologia e da psicologia do comportamento (pense-se, por exemplo, nos programas de pesquisa da sociobiologia e da ecologia comportamental). Aliás, Uexküll, embora não explicitamente antidarwinista, não parecia simpatizar com a teoria da seleção natural. Em uma época de grande fervor em torno da nascente síntese moderna da biologia é, portanto, fácil entender por que o trabalho do fisiólogo ultrapassou com dificuldade as fronteiras dos países de língua alemã. Nestes últimos, contudo, a influência dele foi constante e decisiva. Encontramos referências a Uexküll no âmbito da literatura filosófica, por exemplo, em Cassirer (1979, v. 4, p. 242-50) e em Heidegger – a noção de Dasein heideggeriana é reconhecidamente devedora dos Umwelten uexküllianos (cf. Heidegger, 1995, p. 261-7; Agamben, 2006, cap. 10) – e, em âmbito científico, seus trabalhos foram fundamentais na formação de Konrad Lorenz (1974; cf. Baravalle, neste número). Na atualidade, o crescente interesse pelo papel da informação nos processos biológicos tanto moleculares como comportamentais (cf. Godfrey-Smith & Sterelny, 2008; Emmeche & Kull, 2011), em detrimento dos enfoques behavioristas, assim como o questionamento da abrangência do darwinismo e a aceitação da relevância de mecanismos evolutivos alternativos, por exemplo, lamarckianos (cf. Jablonka & Lamb, 2005), são, com certeza, sinais de que chegou o tempo para tentar uma releitura do legado de Uexküll.

Entre A foray into the worlds of animals and humans e A theory of meaning existe uma certa sobreposição de conteúdo. Ambas as obras estudam os fenômenos semióticos no mundo natural e no comportamento animal, a partir da teoria do ciclo funcional. A foray into the worlds of animals and humans deve muito de seu interesse à beleza das descrições e das sugestivas imagens da experiência subjetiva de diversos animais. Não sendo possível reproduzir aqui as características próprias de cada um deles, limitarme-ei a fazer referência a alguns exemplos ao longo da resenha, usando o caso do carrapato como paradigmático e seguindo nisso Agamben (2006, cap. 11). Na seção 1, resumirei os principais resultados teóricos alcançados pelo autor nessa obra, tentando refletir uma ordem conceitual ideal. Entretanto, A theory of meaning é uma obra mais especulativa, que tem em vista oferecer uma visão de conjunto sobre o universo das relações simbólicas. Ela é rica de sugestões filosóficas, nem sempre apresentadas claramente ou discutidas apropriadamente. A seção 2, será portanto dedicada, na medida do possível, a uma exposição dos elementos mais inovadores no pensamento do autor, de maneira a facilitar a tarefa do leitor que queira se aproximar dele.

1 CICLOS FUNCIONAIS E UMWELTEN: OS MUNDOS DOS ANIMAIS E DOS HUMANOS

De modo a poder avaliar ponderadamente a contribuição de Uexküll para o debate filosófico-científico atual, é fundamental compreender o papel que jogam alguns conceitos-chave em sua interpretação dos processos vitais. Antes que tudo, é importante assinalar a insatisfação do biólogo com as explicações mecanicistas causais em fisiologia. Estas tinham como padrão, na época, o modelo do arco reflexo. No caso do carrapato,

as células sensoriais, que ativam a estimulação sensorial, e as células motrizes, que ativam o impulso ao movimento, são conetores que transmitem uma onda de excitação puramente física, produzida pelo receptor nervoso em resposta ao impulso externo. O inteiro arco reflexo funciona por uma transferência de movimento, exatamente como qualquer máquina. Não há evidências da presença de fatores subjetivos em lugar algum (Uexküll, 2010, p. 46, grifo meu).

A esse esquema explicativo, considerado superficial e incompleto em vários trechos de suas obras (cf. p. 46-7, 161-3), Uexküll opõe o já citado modelo do ciclo funcional. A relevância deste último na economia do pensamento do autor é tão grande, que seria possível dizer que o objetivo principal de ambos os escritos aqui discutidos é oferecer sua justificação teórica e estabelecer seu alcance. É, de fato, a partir da plausibilidade científica de tal modelo que Uexküll consegue justificar e articular a noção de Umwelt (traduzido na edição aqui resenhada simplesmente como “mundo” (world), a qual define o horizonte fenomênico, vivencial e simbólico do animal.

Qualquer ciclo funcional de estímulo e resposta é constituído por dois elementos: um sujeito e um objeto. Ambos possuem uma certa estrutura física, porém a interação entre eles não é propriamente física, mas depende de um processo que poderíamos chamar de informacional ou semiótico. O objeto constitui, para o sujeito, um sinal de percepção que ativa conjuntos de células, coordenadas por um “órgão de percepção”, geralmente o cérebro – para tipos distintos mais primitivos de coordenação perceptiva (cf. p. 73-8), nas plantas (cf. p. 150-1). O processamento interno de tal sinal, que é representado como um problema ambiental para o organismo, gera uma resposta comportamental. Esta é, por sua vez, veiculada por outras características do objeto, que constituem, de acordo com a terminologia de Uexküll, o sinal de efeito. A figura 1 ilustra a concatenação de sinais no ciclo funcional:

Mundo da percepção

Mundo dos efeitos

Sinal de efeito

Órgão de efeito

Órgão da percepção Sinal de percepção

Estrutura física

Mundo interno do sujeito

Objeto

Figura 1. O ciclo funcional. O objeto físico, à direita na imagem, é a fonte de informação simbólica captada pelos órgãos perceptivos do animal. Durante a primeira parte do ciclo, correspondente à cauda da seta, o objeto passa a fazer parte do mundo sensível do sujeito, à esquerda da imagem. Isso produz uma estimulação dos órgãos de efeito que desencadeia, por meio de alguma representação no mundo interior do animal, a busca de uma informação ambiental para realizar a ação adequada. Finalmente, o ciclo funcional fecha-se quando o sujeito encontra no objeto o sinal do efeito que estava procurando e torna-se, assim, causa de um evento físico (cf. Uexküll, 2010, p. 49).

A coordenação entre percepção e efeito comportamental não pode ser mecânica nem cega, como acreditam os behavioristas, já que é preciso que nela se dê uma correta interpretação dos sinais produzidos pelo objeto, processo que, é fácil observar na natureza, nem sempre é realizado corretamente. Com relação a isso, Uexküll cita uma série de experimentos dirigidos a dissociar sinais de percepção e sinais de efeito: sobre a chamada de acasalamento nos gafanhotos (cf. p. 88); sobre a recepção dos pedidos de ajuda dos pintinhos à mãe galinha (cf. p. 90-1); sobre o fenômeno do imprinting (cf. 108-13). Tampouco o objeto pode ser simplesmente entendido como objeto físico, já que no ciclo funcional ele não produz certas percepções ou estímulos efetivos apenas em virtude de sua estrutura material e causal, mas também e sobretudo, graças a certas propriedades simbólicas que derivam de sua interação com o sujeito. É relativamente fácil identificar aqui a influência da epistemologia kantiana na teoria de Uexküll. O objeto é principalmente objeto fenomênico, dado funcionalmente ao sujeito conforme suas faculdades perceptivas e efetivas.

No caso do carrapato, o objeto percebido constitui-se a partir do aroma do ácido butanoico. As características que nós humanos consideramos próprias dos mamíferos, assim como as distinções que podemos fazer entre vários deles, são inteiramente desconhecidas para o carrapato. Contudo, ele consegue identificar infalivelmente um mamífero e distingui-lo de qualquer outro animal que não pertença a essa classe, já que nenhum outro animal pode ativar seus receptores (p. 179). Só quando a percepção do ácido butanoico é adequadamente processada o carrapato deixa-se cair entre os pelos da vítima. Aqui ativam-se sinais de efeito de intensidade variada, correspondentes à temperatura e às características da pele do mamífero, que dirigem o carrapato em direção à área melhor para começar a sução de sangue. Esse processo é descrito, com alguma diferença, tanto em A foray into the worlds of animals and humans (p. 44-52) como em A theory of meaning (p. 178-9). Em ambos os textos, Uexküll mostra-se consciente de que um adversário behaviorista poderia questionar esse conhecimento do mundo interior do carrapato. A estratégia de defesa de suas teses é parcialmente diferente nas duas obras. Em A theory of meaning (p. 159), Uexküll invoca as célebres considerações sobre as duas mesas, a física e a fenomênica, de Eddington. O behaviorista, segundo o autor, é ingenuamente antimetafísico por acreditar que toda a realidade é dada em uma teoria física, ou está baseada nela. A observação “ingênua” de como nós e os outros, humanos e animais, interagimos com as coisas deve ser considerada uma evidência, também científica, de que o comportamento não se reduz a mero mecanismo. Em A foray into the worlds of animals and humans, essa tese é apoiada por um grande número de experimentos e experiências diretas.

O mundo interior do sujeito, onde o sinal perceptivo é elaborado e uma determinada classe de efeitos são estimulados, é chamado por Uexküll, como já antecipamos, de Umwelt. O Umwelt é o lugar onde os sinais do mundo exterior se configuram de acordo com uma modalidade fenomênica particular, diferente de animal a animal. Ele é o núcleo do ciclo funcional. Para tentar descrever os distintos Umwelten, Uexküll recorre a metáforas baseadas nas cores ou na música (esta última analogia revelará ter um alcance bem mais amplo ao longo de A theory of meaning). Dados os distintos aparatos perceptivos e as distintas morfologias das espécies animais, os objetos mostramse nos respetivos Umwelten com distintas tonalidades, de acordo com as quais os organismos podem interagir com o ambiente. Um Umwelt manifesta-se primariamente como uma dimensão espaço-temporal (p. 53-72) na qual apenas os objetos funcionalmente disponíveis aparecem ao animal, conforme suas atitudes perceptivas e efetivas. O espaço resulta segmentado de maneira proporcional às necessidades perceptivas do animal – isto é, com um detalhe não superior ao que o ciclo funcional requer para ser ativado – e estende-se conforme os objetos de interesse para o organismo – predadores, comida, refúgio etc. – apresentam-se nele. O espaço característico do Umwelt do carrapato é constituído apenas pela presença ou ausência da tonalidade correspondente ao ácido butanoico. Já a mosca, cuja percepção espacial é atentamente comparada por Uexküll com a nossa (p. 61-9), exibe um comportamento que evidencia a capacidade de localizar várias dimensões de movimento de acordo com a luminosidade. Também o tempo parece influir sobre a capacidade de individuar objetos funcionalmente significativos, como mostram experimentos sobre os diferentes tempos de reação de Betta splendens (o peixe de briga siamês) e dos caracóis comuns (p. 70-2).

Uma vez dadas as coordenadas espaço-temporais, os Umwelten distinguem-se por muitos outros fatores específicos, tais como (1) a arquitetura interna da percepção, seja como soma de estímulos, por exemplo, nas águas vivas ou no ouriço-do-mar (cf. p. 73-8), seja como estímulo centralizado, na maioria dos organismos superiores; (2) o número de tipos de objetos que podem ser considerados como funcionalmente significantes (p. 79-84) e, em particular, (3) a capacidade de representar para si mesmo a interação com o objeto em termos de objetivos e fins (p. 86-92). Esta última não é exclusiva do Umwelt humano, mas, como é mostrado através de uma serie de observações sobre abelhas (p. 84, 180), paguros (p. 93) e cães (p. 93-7), parece estar presente em muitos animais. Obviamente não devemos pensar essa representação em termos conceituais. Ela corresponde, mais concretamente, à capacidade de transformar os sinais de percepção e de efeito em imagens, presentes quando o objeto está ausente (p. 92-8). A abelha que procura a colmeia, o paguro que escolhe sua concha e o cão que obedece às ordens do dono vivem uma situação de, diríamos hoje, soluções de problemas (problem solving), na qual tentam fazer coincidir uma representação, em forma de imagem, com o estímulo real (p. 113-7). A faculdade de representar para si mesmo imagens perceptivas e efetivas abre, para os organismos que a possuem, a possibilidade de ampliar extraordinariamente a extensão do próprio Umwelt. As tonalidades nas quais os objetos se apresentam ao animal tornam-se muito mais variadas, e um mesmo objeto pode estimular diferentes ciclos funcionais.

O Umwelt de boa parte das aves e de quase todos os mamíferos (mas também de alguns insetos) inclui, finalmente, a presença dos companheiros. Os outros animais passam a fazer parte do mundo subjetivo do organismo como possibilidades de percepção e de ação distintas daquela representada pelos objetos inanimados. Dessa maneira, a rede de intersignificação entre os vários habitantes de um certo ambiente ou ecossistema intensifica-se até formar um complexo de relações simbólicas que acaba reinterpretando o ambiente mesmo. Uexküll, a esse propósito, cita o exemplo do carvalho (p. 126-132), que constitui um ambiente compartilhado por um guarda-florestal, uma menina, uma raposa, uma coruja e diversos insetos. O carvalho físico quase desaparece, ocultado pelos inúmeros significados particulares que lhe são atribuídos por cada um dos organismos que interagem com ele.

2 O MUNDO EM UMA CAIXA DE MÚSICA

Se, por um lado, o mecanicismo dos fisiólogos behavioristas, com sua estrita noção de causalidade, não satisfaz Uexküll, por outro lado, como aparece mais claramente em A theory of meaning, também a explicação darwinista das adaptações parece-lhe inadequada. Embora Darwin seja citado apenas uma vez em A foray into the worlds of animals and humans (p. 82), a propósito de um estudo sobre o comportamento das minhocas, é evidente a insatisfação de Uexküll com relação a uma teoria que vê na evolução o fator constitutivo da biodiversidade. Partindo de seus estudos sobre os animais, ele propõe então uma imagem alternativa da vida, baseada na noção de significado. Nessa concepção, a função de um órgão ou de um comportamento é considerada, em certa medida, anterior a sua estrutura, e o conjunto das relações físico-causais é subordinado às regras semânticas que governam as interações entre os organismos.

Diferentemente de um objeto inorgânico, como um sino cujas interações com o exterior estão limitadas a solicitações puramente mecânicas, nós seres orgânicos somos como uma coleção de sinos vivos,

cada um dos quais produz um tom diferente. Podemos formar com eles uma caixa de música que pode operar mecanicamente, quimicamente ou eletricamente, já que cada um dos sinos responde a qualquer tipo de estímulo com seu próprio tom característico. Mas o significado de uma caixa de música viva não consiste nisso, dado que ela seria um mero mecanismo (…), se fosse guiada elétrica ou quimicamente. Uma caixa de música feita por sinos vivos deve possuir a habilidade de tocar sua música não apenas com base em um dispositivo mecânico, mas também guiada por sua melodia (2010, p. 148).

Aliás, os sinos vivos não tocam sozinhos. Eles também produzem música em resposta à música de outros sinos vivos (p. 160).

Deixando a metáfora musical, os organismos desenvolvem-se e evoluem a partir da inclusão, em seus Umwelten, de novos veículos (carrier) de significado (p. 140-1), objetos e sujeitos externos, os quais modificam sua percepção do mundo, seu comportamento e até sua morfologia. Na ontogenia, operam tanto os mecanismos físico-químicos responsáveis do desenvolvimento, quanto os veículos do significado. Como evidência de que os dois processos são distintos, Uexküll cita o experimento de Hans Spemann com transplante de células embrionárias (p. 152-7). Enquanto o processo físico-químico do desenvolvimento determina cegamente certas características morfológicas, a “caixa de música celular”, constituída pelo entorno semanticamente carregado da vida em qualquer nível, determina aquelas características do organismo que o tornam propriamente um sujeito, dotado de um Umwelt e capaz de interpretar os significados para ele relevantes. Na filogenia (p. 170), um processo que Uexküll considera muito menos importante para entender a constituição atual dos seres vivos, age um mecanismo análogo ao que caracteriza a ontogenia. A natureza, contrariamente ao que sustentam os evolucionistas – Uexküll cita, como representante destes, Spencer (p. 185) –, não procura um melhoramento das espécies, uma seleção dos indivíduos mais aptos, mas uma harmonia entre eles e a estabilidade do ecossistema.

A natureza é uma orquestra, na qual cada instrumento encontra seu lugar exato, e toca sua melodia acompanhado pelos outros instrumentos, que constituem seu contraponto (p. 185-7). Os processos físico-químicos, mecânicos, são subordinados a uma regra superior, aquela que Uexküll chama de “regra de significado”, que conecta a totalidade do orgânico de acordo com as capacidades de percepção e de efeito de cada indivíduo (p. 168-73). A música da natureza é aquela que liga o carrapato com o mamífero, o morcego com a mariposa, com a qual compartilha uma mesma frequência de sons (p. 177-8), a árvore de carvalho com a chuva e o sol (p. 173), e todos os seres que ocupam algum nicho no próprio carvalho. É a transmissão de significado entre seres tão diferentes entre si que, do ponto de vista de Uexküll, constitui o verdadeiro mistério da natureza. “Se a flor não fosse abelhada, e se a abelha não fosse florada, a consonância nunca poderia funcionar” (p. 190, grifo no original). A inspiração goethiana é aqui manifesta: “se o olho não fosse ensolarado, não poderia avistar o sol” (Goethe apud Uexküll, 2010, p. 190). Deve existir, além dos ciclos funcionais particulares, um motor universal que coordene as caixas de música vivas, para que o efeito final seja uma harmonia e não uma cacofonia. Nas páginas finais de A theory of meaning, o objetivo do biólogo é claramente caracterizado como a descoberta das “tecnologias da natureza” (p. 192-4, 202-3), entendidas como o conjunto das inúmeras conexões entre os ciclos vitais e de significado. Somente Lamarck, segundo Uexküll, dedicou-se seriamente, até a atualidade, a essa tarefa (p. 194).

Em definitivo, Uexküll abraça sem hesitações uma imagem do mundo orgânico intrinsecamente teleológica, na qual os significados que caracterizam o Umwelt do indivíduo não representam um aspecto secundário e derivado da evolução biológica mas, ao contrário, o verdadeiro elemento característico da vida. A citação de Machado, com a qual abri esta resenha, é ilustrativa. Para Uexküll, a imediatez do mundo vivido, harmonicamente afinado com os objetos da percepção e da ação, é a medida de todas as coisas. O mundo é principalmente Umwelt, e só de maneira derivada mundo físico. O sujeito lança luz sobre a realidade, tornando vivas as coisas mortas, enchendo de significado o que, de outro modo, seria mudo.

Ao leitor contemporâneo, Uexküll poderia parecer um autor anacrônico, devido ao forte elemento metafísico e pré-darwiniano presente em sua obra. Mas essa leitura seria superficial e apressada, já que negligenciaria a grande originalidade e fecundidade científica de alguns temas recorrentes nos textos aqui tratados. Em primeiro lugar, é importante salientar a horizontalidade da visão uexkülliana do mundo orgânico. Não existe, no universo do autor, uma jerarquia de formas de vida, como em boa parte do evolucionismo – biológico e filosófico – do século xix, e ainda do século xx (cf. Lorenz, 1974; Caponi, 2012; Baravalle, neste número). Todo animal tem suas especificidades, nenhum Umwelt é “melhor” que outro. Com certeza, alguns são mais articulados e abrangentes, mas não faz sentido comparar os mundos vividos. Em minha opinião, essa horizontalidade é mais compatível com o darwinismo que a imagem progressivista e antropocêntrica que, ainda hoje, é muito difundida.

Em segundo lugar, a noção uexkülliana de “regra de significado” não tem o propósito de escamotear a recusa da noção de causalidade dos behavioristas, o que faria dela uma complicação supérflua para justificar a irredutibilidade de processos não mecanicistas. Ela é antecipadora, em certa medida, da noção de “informação” que, a partir de Shannon (1948), adquirirá cada vez mais relevância em biologia e que, hoje em dia, joga um papel fundamental na explicação da relação entre os organismos e o ambiente (cf. Godfrey-Smith & Sterelny, 2008). Em particular, ela representa um dos conceitos fundamentais, juntamente com as noções de ciclo vital e de Umwelt, da biosemiótica (Hoffmeyer, 2008; Emmeche & Kull, 2011), uma área disciplinar que se encontra hoje em rápida expansão. Entendida como a confluência da semiótica peirciana com a teoria uexkülliana, a biosemiótica “já não é uma escola de pensamento marginal (…) mas uma nova biologia a ponto de encontrar seu próprio fundamento teórico” (Emmeche & Kull, 2011, p. 4).

Finalmente, a defesa que a obra de von Uexküll oferece do papel da filosofia em biologia é, por si só, louvável. Contrariamente à tendência reducionista dos fisiólogos seus contemporâneos, e longe da epistemologia fisicalista do empirismo lógico, Uexküll marca uma continuidade com o pensamento romântico oitocentista e reivindica o dever intelectual à busca de perguntas mais profundas que as que a ciência atual pode responder, principalmente graças à indagação metafísica. A música esconde estruturas desconhecidas para quem não sabe escutá-la com a devida atenção; as dinâmicas da vida têm a mesma tendência a ocultar-se, até em um carrapato. Só o espírito livre das imposições dos modelos aceitos pode desvendá-las.

Referências

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UEXKÜLL, J. von. A foray into the worlds of animals and humans / A theory of meaning. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 2010.

Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, Brasil. E-mail: [email protected]

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