Leyes sin causa y causas sin ley – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Leyes sin causa y causas sin ley. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2014. BARAVALLE, Lorenzo. O mosaico causal do mundo orgânico. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 3, p. 685-94, 2015.

No princípio – como muitas vezes acontece na filosofia da ciência – era Hume. E, aos olhos dele, o mundo natural era apenas uma coleção de fenômenos. O ser humano, uma criatura dirigida por uma série de hábitos profundamente arraigados, enxerga necessidade onde nada mais há que uma repetição de eventos contingentes similares, espacialmente próximos e temporalmente ordenados, e chama essa repetição de relação causal. Esta não está lá fora, no mundo, como imaginavam os metafísicos da época, mas em nós, nos observadores, e, por isso, nada nos assegura que, amanhã, das mesmas causas seguir-se-ão os mesmo efeitos.

Por quanto impecável do ponto de vista de um empirismo radical como o de Hume, sua caracterização da relação causal possuía algumas implicações indesejáveis para quem, como os empiristas posteriores a ele, pretendiam distinguir entre certas causas “autênticas” – como aquelas postuladas pelas teorias físicas – e outras meramente aparentes. Se qualquer sequência regular com as características acima descritas pode ser considerada como causal, como Hume parece admitir, então muitos eventos que intuitivamente não são tidos como causalmente relacionados, porque meramente correlacionados, passam a sê-lo. Como impedir a proliferação dessas pseudocausas? A solução do problema, geralmente atribuída a Hempel, embora sua paternidade, como mostra Caponi (cf. p. 15), seja disputada por Popper, consiste em dizer que apenas os eventos subsumidos sob uma lei científica podem ser considerados como causalmente relacionados. Em suma, que sem leis não há causas.

As leis científicas são consideradas, nessa tradição de pensamento, como generalizações universais irrestritas, isto é, enunciados válidos em qualquer porção de espaço-tempo e independentemente da existência, contingente, de objetos que as instanciam. Elas jogam um papel fundamental na explicação científica. Para Hempel, como é sabido, a explicação científica é uma inferência que permite derivar um explanandum (o enunciado que expressa o fato a ser explicado) a partir de um explanans (um conjunto de enunciados que constituem as premissas da inferência). Embora Hempel tivesse proposto vários modelos de explicação científica, o primeiro e mais conhecido é aquele chamado de “dedutivo nomológico particular”, no qual o explanandum, constituído por um enunciado que expressa um fato específico, é deduzido a partir de um explanans que, por sua vez, é constituído por outros enunciados de fatos particulares e por, pelo menos, uma lei. É justamente nisso que reside o caráter “nomológico” do modelo hempeliano, pois a presença de leis na explicação garante a validade da relação explicativa entre explanans e explanandum e, em última instancia, sua cientificidade. Embora nem todas as leis expressem relações causais (um ponto sobre o qual, como veremos em breve, Caponi justamente insiste), uma consequência implicitamente aceita do modelo hempeliano é que a possibilidade de falar de relações causais entre os fenômenos estudados por uma disciplina científica está subordinada à possibilidade de produzir, nessa mesma disciplina, generalizações nomológicas. Isto é, só há causas onde há leis.

A simplicidade e a elegância do modelo explicativo hempeliano escondem, na verdade, um sem fim de problemas epistêmicos mais ou menos graves (cf. Salmon, 1989). Notoriamente, ele colocou por um longo tempo os filósofos da biologia em uma situação bastante embaraçosa. Como observaram, entre outros, Smart (1963) e Beatty (1995), na biologia, é extremamente difícil, se não impossível, encontrar leis no sentido requerido por Hempel (isto é, generalizações universais irrestritas). Entretanto, conforme o modelo dedutivo nomológico, não pode haver explicação científica sem leis e, pelo que acabamos de dizer, parece não haver maneira de identificar relações causais se não por meio de explicações científicas, de modo que não parece possível falar de relações causais propriamente ditas na biologia. Mas, se isso for realmente assim, então a biologia seria uma disciplina de alguma maneira subordinada a disciplinas, tais como a física ou a química, cujo caráter nomológico é inegável.

É aqui que Gustavo Caponi entra em cena com seu novo livro, trazendo ar fresco a um debate que por várias décadas dividiu quem parecia estar disposto a abandonar a biologia a seu destino de ciência sem leis e, portanto, “sem causas” próprias, e quem insistia em encontrar um modelo explicativo ou uma definição de lei menos estritos e, portanto, mais adaptáveis às exigências das ciências especiais. Para Caponi, não é preciso abandonar a noção de lei tradicional para constatar que no domínio da biologia há tanto leis como causas. Se outros filósofos, no passado, pensaram diversamente é porque estabeleceram uma infértil e artificial equação entre essas duas noções. Uma equação que, uma vez dissolvida, permite mostrar o pleno potencial da biologia e reconhecer seu lugar entre as outras ciências explicativas. Para esse fim, Caponi, com sua característica prosa agradável e de clareza exemplar, limpa o caminho de uma serie de confusões conceituais sobre o tema e, articulando ativamente a chamada “concepção experimentalista” da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971; Woodward, 2003), retrata uma imagem da estrutura explicativa das ciências da vida original e fiel à prática epistêmica do biólogo. O livro de Caponi é composto por 4 capítulos, que definem o argumento principal, e um Anexo final sobre a explicação teleológica e a noção de desenho na biologia evolutiva. Tendo em conta o espaço a disposição, e com a finalidade de apresentar com a devida profundidade os elementos mais importantes da concepção defendida por Caponi, limitar-me-ei a discutir a primeira parte do texto, convidando o leitor a descobrir por si próprio como o Anexo completa tal concepção.

1 DO CARÁTER NOMOLÓGICO À INVARIÂNCIA

Nos últimos 20 anos, o pessimismo de Smart e Beatty com respeito à possibilidade de individuar regularidades nomológicas em biologia foi deixando o passo àqueles que, como Brandon (1990), Sober (1984) e muitos outros, argumentam que algo do tipo do princípio da seleção natural, segundo o qual “se a é melhor adaptado que b em um ambiente E, então (provavelmente) a terá um maior sucesso reprodutivo que b em E” (Brandon, 1990, p. 11) ou, de modo mais geral, do tipo das fórmulas da genética de populações são, efetivamente, leis oriundas da biologia. Compartilhando apenas parcialmente o entusiasmo desses filósofos, o problema que Caponi levanta no primeiro capítulo de seu livro é o de saber se é suficiente afirmar o caráter nomológico de tais enunciados para certificar-se da existência de explicações causais autênticas no âmbito da biologia? A resposta de Caponi é negativa, mas é justamente a partir desse desanimador começo que, como veremos, ele pode alcançar uma concepção da estrutura teórica da biologia mais madura e sofisticada. Não apenas o caráter nomológico não é suficiente para definir a causalidade, mas tampouco é necessário.

Mesmo Hempel (1965) admitia que nem todas as leis científicas são leis causais, dado que algumas delas expressam apenas uma relação matemática entre variáveis. Muitas leis não causais – as que Caponi (p. 45 ss.), adotando a terminologia de Sober (1984), chama de “leis consequenciais” – sugerem apenas que, entre certas classes de fenômenos, está ocorrendo alguma relação causal, mas não revelam em que consiste, efetivamente, tal relação. Embora também as leis consequenciais sejam informativas, alguns críticos do modelo dedutivo nomológico (cf. Salmon, 1997) argumentaram que somente as leis causais permitem formular explicações totalmente satisfatórias.

Se tomamos em consideração a física, é fácil ver que as leis físicas em sua maioria, e, portanto, as explicações nelas baseadas, são causais porque “dão conta da origem, da fonte, da constituição, de uma força ou agente de mudanças, e elas também nos indicam a intensidade que essa força ou agente de mudanças deverá ter” (p. 46). É assim também na biologia? Consideremos um exemplo clássico de lei na genética populacional (p. 37):

dp/dt = p (wA – W)/W. (1)

Ela nos diz que a frequência de um fenótipo em uma certa população aumenta na medida em que o valor seletivo (wA) de tal fenótipo supera o valor seletivo pro-médio dos outros fenótipos presentes na mesma população. A noção de “valor seletivo” (ou outras equivalentes, como “sucesso reprodutivo”) é meramente quantitativa, isto é, ela não indica por que a frequência do fenótipo em questão aumenta, já que não especifica as características ecológicas que fazem com que tal fenótipo possua, efetivamente, esse valor seletivo, mas apenas como esse valor influirá nas frequências dos outros fenótipos e, definitivamente, na composição da população. Em outras palavras, ele não indica as causas que estão operando na distribuição dos fenótipos na população. Portanto, (1) é uma lei consequencial. Assim como quase todas as leis da biologia, argumenta Caponi, ela é incapaz de ir para além de uma representação a posteriori de como certos efeitos estão inter-relacionados e, como consequência disso, não pode proporcionar explicações causais.

Há, também na biologia, pelo menos um exemplo de lei causal, a saber, a lei de Fisher sobre a proporção de gêneros (cf. Sober, 1984, p. 51 ss.). Estabelecendo que o fenótipo correspondente ao gênero menos difuso em uma população será aquele com maior valor seletivo, a lei de Fisher explicita, de fato, o que em (1) é deixado sem especificar, isto é, a natureza da característica ecológica que, no contexto em exame, causará uma variação na frequência do fenótipo em questão. Caso fosse possível encontrar outras leis análogas, capazes de determinar, com certo grau de universalidade, quais fenótipos possuirão um maior valor seletivo em uma população dadas certas condições ambientais, então o problema de encontrar explicações causais autênticas na biologia estaria virtualmente resolvido. Porém, Caponi (p. 64-8) argumenta, em minha opinião convincentemente, que elas, embora não impossíveis de encontrar, são extremamente raras, devido ao fato de que, dadas certas condições ambientais, as maneiras pelas quais uma população tem de adaptar-se a elas são muitas e potencialmente imprevisíveis. A lei de Fisher seria, então, a clássica “exceção que confirma a regra”: ela funciona bem como lei causal porque, nas espécies sexuadas, os gêneros são variáveis binárias. Todavia, não podemos esperar que ela funcione como modelo para outras leis, já que essa situação é muito pouco frequente no mundo orgânico.

Talvez, e essa é a grande aposta de Caponi – como ele mesmo sugere no segundo capítulo de seu livro –, não é no caráter nomológico que deveríamos procurar o caráter causal da explicação biológica. Opondo-se à tradição neo-humeana, conforme a qual – como lembrei no começo desta resenha – o caráter nomológico é condição necessária para atribuir causalidade, Caponi propõe reconhecer uma prioridade e independência conceitual à noção de causa com respeito à de lei (p. 69 ss.). Adota, ao fazer isso, a que é conhecida como perspectiva experimental ou manipulativa da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971) e, em particular, a proposta de James Woodward (2003). Conforme esta última proposta, “as atribuições causais (…) são feitas (…) com base na ideia de que a causa de um fenômeno é sempre outro fenômeno cujo controle permitiria, ou nos teria permitido, controlar a ocorrência daquele que chamamos seu efeito” (p. 72). Em outras palavras, a causalidade está relacionada com um fazer, mais do que com um saber: é uma noção, em certa medida, pré-teórica e anterior a nossas atribuições nomológicas.

Para esclarecer essa noção, Caponi introduz um dos exemplos mais recorrentes do livro: a da “rádio calchaquí”, uma rádio pequena e velha, perdida no meio dos vales Calchaquis na Argentina, que, devido à ação do tempo, apresenta um funcionamento anômalo (p. 77 ss.). O dispositivo que regula o volume é invertido. Isto é, movendo-o em sentido horário o volume desce e, movendo-o em sentido anti-horário, sobe. Embora sem conhecimento de uma hipotética lei que regeria o comportamento de nossa rádio, depois de um pouco de prática, reconheceríamos sem problemas que há uma relação causal entre o movimento do potenciômetro e as oscilações do volume. Mas como se justifica tal conhecimento se, de fato, não deriva do conhecimento prévio de uma regularidade nomológica? A resposta de Caponi é que ele é determinado pelo fato mesmo de estarmos “em condições de controlar o estado de uma variável X em virtude de nossa manipulação de outra variável Y” (p. 80). Mais especificamente, embora não saibamos explicar por que a rádio se comporta assim, “temos ao menos o começo de uma explicação quando identificamos fatores ou condições cuja manipulação ou mudança produzirá mudanças no resultado que está sendo explicado” (Woodward, 2003, p. 10).

O funcionamento da rádio calchaquí exibe o que Woodward chama uma “invariância”, isto é, uma regularidade local que, embora sem possuir a universalidade própria de uma lei causal (já que, bem ao contrário, é válida até onde sabemos para um só caso), é suficientemente sólida para suportar condicionais contrafactuais. Woodward (2003, p. 133-45), e com ele Caponi (embora não explicitamente), seguem David Lewis (1993 [1973]) na ideia de que é a capacidade de suportar contrafactuais – e não sua nomicidade, a qual seria, eventualmente, uma consequência de tal capacidade – que revela o conteúdo causal de um enunciado. Porém, em lugar de fundar, como Lewis, essa capacidade em uma particular ontologia dos mundos possíveis, Woodward e Caponi identificam essa capacidade – mais prosaicamente, mas também mais eficazmente – com a propriedade, característica de uma invariante, de manter-se estável em certa quantidade de intervenções.1 No nosso exemplo, observando que a oscilação do volume depende da manipulação do potenciômetro, estamos na posição de estabelecer o valor de verdade de séries de contrafactuais e, consequentemente, certificar a relação causal entre os dois fenômenos. Na medida em que uma invariância suporta um maior número de intervenções, ela é mais abrangente e pode ser considerada, eventualmente, uma lei causal. Todavia, o ponto importante para manter em vista é que “Woodward (…) conseguiu colocar em evidência que a efetividade do vínculo causal estabelecido por um invariante não é diretamente proporcional a sua universalidade, mas a sua estabilidade sob intervenções, ainda quando esta última se cumpra apenas dentro de uma esfera muito restrita” (p. 99), a saber, que o caráter nomológico derive da possibilidade de individuar relações causais e não vice-versa.

2 A EXPLICAÇÃO BIOLÓGICA EM UM MUNDO FÍSICO

Até aqui tudo bem. Mas como a concepção experimental nos ajuda, exatamente, a explicitar, na explicação biológica, aquelas relações causais que ficavam ocultas em suas leis consequenciais? Quando se trata de processos evolutivos não possuímos, na maioria dos casos, a mesma capacidade material de manipular variáveis como no caso de nossa velha rádio calchaquí. Podemos, porém, figurar-nos intervenções hipotéticas a partir de outras factualmente possíveis. Não entraremos aqui nos detalhes sobre este ponto mas, com relação a isso, é interessante lembrar que, na formulação de sua teoria, Darwin inspirou-se – entre outras coisas – na seleção artificial dos pombos domésticos, isto é, uma atividade propriamente manipulativa, extrapolando depois as características fundamentais de tal processo a um outro apenas hipoteticamente manipulável, a seleção natural (cf. p. 83-5). Dada essa possível extensão da noção de manipulabilidade, Caponi propõe considerar, no terceiro capítulo de seu livro, as distintas pressões seletivas, tão diferentes entre si – devido às potencialmente infinitas circunstâncias morfológicas, fisiológicas e comportamentais que jogam um papel na evolução de uma determinada população – como invariantes particulares.

Mais uma vez, Caponi (p. 106 ss.) esclarece sua estratégia com um exemplo. Uma das mais conhecidas ilustrações da ação da seleção natural é, sem dúvida, o fenômeno do melanismo industrial em Biston betularia. Devido a certas características ecológicas – a presença de aves predadoras e a coloração das superfícies de pouso, constituídas por árvores obscurecidas pela ação poluente do fumo das fábricas da região –, nas populações dessa espécie de mariposa onde estão presentes uma variante mais clara e outra mais escura, a variante com a coloração mais escura tende a um maior sucesso reprodutivo. A frequência dos fenótipos, nessas populações, corresponde àquela prevista por (1). Não há, todavia, uma lei causal – universal – que explique por que, nessas populações, acontece essa distribuição. Significa isso que não podemos explicar causalmente o fenômeno? Tal conclusão seria completamente insatisfatória, se levássemos em conta que, do ponto de vista de um biólogo evolutivo, é justamente esse tipo de explicação aquela desejada em casos análogos a esse.

Afortunadamente, alinhados com a análise realizada anteriormente, não precisamos de uma lei causal para obter tal explicação. No caso do melanismo industrial, a relação entre a coloração das mariposas e das superfícies de pouso é estável sob várias intervenções. Isto é, manipulando experimentalmente o segundo fator – obrigando, por exemplo, as fábricas a usar filtros que reduzam a poluição –, é possível controlar o primeiro – a cor das mariposas. Por meio de tal manipulação podemos, em última instância, determinar o fenótipo que será mais adaptativo intervindo em sua ecologia. Estamos, em outras palavras, em presença do que Caponi chama de um “invariante seletivo” da forma.

Se, em populações de insetos de ecologia análoga a essas de Biston betularia, nas quais aconteceu o melanismo industrial, ocorrem colorações alternativas tais que uma seja mais contrastante com as superfícies de pouso que as outras, então, nessas populações, as colorações menos contrastantes serão as ecologicamente mais aptas (p. 116).

Tal invariante admite, como é fácil ver, um sem fim de exceções, já que é virtualmente impossível estabelecer todos os fatores ecologicamente relevante em um caso concreto, mas é suficientemente sólido para servir de base a uma série de contrafactuais. E isso é tudo o que ele tem que fazer. Conforme o enfoque experimental, onde há invariância, há apoio de contrafactuais; onde há apoio de contrafactuais, há relação causal; e onde há relação causal, é possível, ao menos em princípio, fornecer uma explicação causal.

A biologia (em particular a biologia evolutiva – que foi a única a ser tratada explicitamente nesta resenha –, mas não somente) constitui-se, explicativamente, sobre um “mosaico de invariantes” – cito Caponi por inteiro – “sempre locais e caducáveis, que, como a mortalha tecida e destecida por Penélope, está em permanente estado de reconfiguração” (p. 120). Nisso, a biologia distingue-se da física. Embora ambas possuam leis consequenciais as quais proporcionam uma unidade teórica bem característica, apenas a física pode contar com leis causais universais. A biologia – ainda que, como vimos, existam exceções como a lei de Fisher – produz explicações causais a partir de invariantes locais e mutáveis.

A imagem do mosaico não satisfaria aquele que, como o próprio Hempel, considera que, em última instância, deve existir uma base causal subjacente, comum a todas as ciências, com uma forma nomológica: uma estrutura oculta de leis eternas e imutáveis (cf. Woodward, 2003, p. 159 ss.). De acordo com essa perspectiva, as ciências como a biologia estariam em um constante estado de heteronomia nomológica, isto é, forneceriam explicações apoiando-se em leis do domínio da física ou da química.

Para elucidar a relação entre propriedades biológicas e mundo físico – e assim reafirmar a autonomia da explicação biológica –, Caponi defende, no último capítulo de seu livro, uma versão clássica de fisicalismo (cf. Stoljar, 2015), que combina superveniência com múltipla possibilidade de realização. Nessa perspectiva, uma propriedade não física é necessariamente instanciada por uma propriedade física, mas não necessariamente pela mesma propriedade física em todas suas instâncias. Isso implica, diz Caponi, seguindo Sober (2010, p. 226), que “não pode haver diferença biológica sem diferença física, mas pode sim haver semelhança biológica sem semelhança física” (p. 151 ss.).

A originalidade de Caponi é que, em lugar de simplesmente contentar-se com essa posição de compromisso entre reducionismo e autonomia explicativa, articula um critério que pode ajudar-nos a entender, em domínios específicos da biologia, quais são os fenômenos que podem ser proveitosamente explicados em termos físico-químicos e quais, ao contrário, deveriam manter a própria autonomia. Tal critério depende da noção de “grau de superveniência” (p. 154 ss.): “dados dois sistemas ou objetos, quanto menos delimitado ou especificado esteja o conjunto de predicados físicos dos quais depende a correta atribuição, a ambos, de um predicado biológico, mais superveniente será esse predicado” (p. 159). Um predicado concernente à atribuição de um determinado traço anatômico-funcional em fisiologia, embora seja multiplamente realizável, está especificado por um conjunto menor de predicados físicos do que um predicado concernente à atribuição genérica de um traço adaptativo em ecologia evolucionária. Isto é, há menos maneiras de realizar fisicamente, por exemplo, um olho, do que uma complexa propriedade ecológica. Segundo Caponi, embora ambas as propriedades sejam dependentes de uma base física, é mais promissor procurar explicações reducionistas no primeiro caso do que no segundo.

Quanto maior é o grau de superveniência das propriedades estudadas, mais liberdade temos para não nos comprometer em tentativas de explicar os fenômenos a elas associadas que obedeçam a uma perspectiva reducionista, e mais incertos são os lucros cognitivos desse compromisso (p. 160).

Esse enfoque não viola, em nenhum caso, a clausura causal da física (cf. p. 162 ss.), já que não nega que exista uma ontologia básica fisicalista, mas coloca em dúvida que usar os óculos das ciências mais básicas seja sempre a melhor maneira para entender os fenômenos naturais.

3 FINAS MANIPULAÇÕES E MARTELADAS

As vantagens do enfoque experimental sobre o hempeliano, e qualquer outro modelo nomológico (cf. Woodward, 2003, cap. 4), são demasiado importantes para que possam ser ignoradas por qualquer filósofo da ciência. Parafraseando Caponi (p. 161), o qual, por sua vez, inspira-se em Suppe, ele tem todas as vantagens das finas manipulações no software sobre as “marteladas” no hardware. Dentre os que estão atualmente disponíveis, nenhum outro modelo, além do modelo de Woodward é, em minha opinião, capaz de oferecer uma análise epistemológica da causalidade e da explicação causal tão acurada. Ele oferece a possibilidade de levar a análise da explicação científica a um grau de detalhe impensável para o modelo hempeliano, o qual, por suas ambições de universalidade, mal se adapta às exigências das ciências especiais. O grande mérito de Caponi é de ter sido capaz de derivar, esclarecer, organizar e desenvolver todas as principais consequências do modelo de Woodward de uma maneira accessível e “pronta para o uso” dos filósofos da biologia de fala espanhola e portuguesa. Seu livro é rico de estímulos e, com certeza, será o ponto de partida de muitos debates futuros.

Notas

1 De Lewis, é importante lembrá-lo, Woodward e Caponi distanciam-se também pelo caráter não redutivo da análise da noção de causa. Isto é, Woodward e Caponi não pretendem definir o conceito de causa a partir do conceito, supostamente mais elementar e primitivo, de manipulação, mas apenas mostrar como este último, que é também essencialmente causal, é elucidativo com respeito a certas relações causais concretas.

Referências

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Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Humanas e Naturais. Universidade Federal do ABC, Santo André, Brasil. E-mail:  [email protected]

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[DR]

 

Função e desenho na biologia contemporânea – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Função e desenho na biologia contemporânea. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiae Studia, 2012. Resenha de: BRZOZOWSKI, Jerzy. Quando não ser pluralista é bom. Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 1, p. 169-78, 2014.

Longe de constituir um obstáculo epistemológico bachelardiano (cf. Bachelard, 1996 [1938]), o conceito de “função” é partícipe indissociável dos modos pelos quais a biologia contemporânea conhece os organismos e suas partes. A despeito disso, a elucidação filosófica desse conceito tem estado cercada por uma “confusa e emaranhada polêmica” (p. 13) entre a concepção sistêmica e a concepção etiológica de função, polêmica essa que o livro de Gustavo Caponi, Função e desenho na biologia contemporânea, pretende desenredar. A nosso ver, a beleza da solução apresentada por Caponi reside no fato de ela não cair em uma – nas palavras dele – “previsível saída pluralista” (p. 14) como tantas outras que estão em voga na filosofia da biologia.

A solução de Caponi também é atípica no sentido de que toma como mais fundamental uma concepção não hegemônica de função associada à sistêmica: a concepção consequencial. Porém, para entender esses detalhes, já se torna necessário incorrermos em uma apresentação mais pormenorizada das duas posições e do caminho argumentativo realizado por Caponi.

O livro é dividido em quatro capítulos, sendo que o primeiro deles busca caracterizar e imediatamente impugnar a concepção etiológica. Tal concepção remonta à análise do conceito de função proposta por Larry Wright em 1973. De acordo com essa concepção, dizer “a função de x (no processo z) é y” supõe que (1) x produz ou causa y e (2) x está ali (em z) pelo próprio fato de produzir ou causar y (p. 24). Essa visão é dita etiológica porque, nesse esquema, a função (y) de uma característica ou parte (x) de um processo (z) explica a origem e a presença dessa característica nesse processo. Para citar o exemplo mais célebre encontrado nos debates sobre função, do ponto de vista etiológico, dizer “a função do coração é bombear o sangue” significa dizer que o coração é parte do sistema circulatório porque bombeia o sangue.

Por sua vez, a concepção processual ou sistêmica tem origem em um artigo de 1975 de Robert Cummins. Para ele, a exigência de que a caracterização funcional de uma parte ou característica tenha de explicar a presença dessa parte ou característica é injustificada e até mesmo prejudicial. Por isso, a análise proposta por Cummins para o conceito de função é de certo modo agnóstica no que diz respeito à origem do objeto da caracterização funcional. Sob a análise de Cummins, dizer “a função de x (no processo z) é y” significa dizer que (1) x produz y e (2) y tem um papel causal na ocorrência, operação ou funcionamento de z (p. 38). Enquadrando o exemplo do coração nesse esquema, dizer “a função do coração (no sistema circulatório) é bombear o sangue” nada mais significa do que dizer que (1) o coração bombeia o sangue e (2) a circulação sanguínea tem um papel causal no funcionamento do sistema circulatório. À diferença da concepção etiológica, a análise processual não arrisca nenhuma conjectura sobre a história do surgimento do coração.

Para os defensores da concepção etiológica, uma consequência disso é que a concepção processual não é capaz de diferenciar a função própria da função acidental, isto é, essa concepção não tem força normativa. Para usar um exemplo de Caponi (p. 24), o cano superior (que une o guidão ao selim) de uma bicicleta pode ser usado para levar um passageiro extra. O problema, para o defensor da etiologia, é que se pode aplicar a análise processual nesse caso – sendo z o processo “transporte de um passageiro extra na bicicleta” –, ainda que essa parte da bicicleta não tenha sido projetada com esse fim. Suportar um passageiro extra, diriam os defensores da etiologia, é uma função acidental, e não a função própria do cano superior.

Desse modo, conforme salienta Caponi, inspirado em Margarita Ponce (1987),1 a concepção processual reduz o conceito de “função” à ideia de ter um papel causal em um processo. Diante disso, a principal objeção que o defensor da etiologia poderia levantar é se a perda da capacidade de distinguir a função própria da função acidental não é um preço alto demais a pagar pela adoção do conceito processual. A resposta de Caponi a essa pergunta é um “não” qualificado: não somente o preço não é alto demais, como a noção de processo causal é anterior à própria distinção entre função própria e função acidental.

É hora de nos voltarmos sobre os detalhes dessa discussão no contexto específico das atribuições funcionais em biologia. Nesse contexto, a abordagem etiológica de Wright foi reformulada por Karen Neander (1991), Ruth Millikan (1989) e Sandra Mitchell (1995). Resumidamente, a versão biológica do esquema de Wright seria assim: dizer “a função de x (no processo z) é y” implica que “(1) x produz ou causa y e (2) x está ali (em z) porque a seleção natural premiou a realização de y nas formas ancestrais de z” (p. 25).

Caponi vê duas principais dificuldades com essa abordagem. A primeira delas é o fato de que estruturas não selecionadas podem vir a tornar-se funcionais; a segunda é o fato de que as imputações funcionais podem ser feitas independentemente da postulação de histórias adaptativas. No primeiro caso, Caponi cita o exemplo já bastante conhecido do clitóris hipertrofiado das fêmeas de hiena pintada (Crocuta crocuta) (cf. Gould & Vrba, 1982). Embora essa estrutura tenha uma importante função na chamada “cerimônia do encontro”, um ritual social praticado por esses animais, a hipótese mais plausível é que o órgão não deve sua atual configuração a um processo de seleção. O clitóris hipertrofiado das hienas é, com maior probabilidade, um subproduto da alta taxa de hormônios andrógenos secretados por esses animais. Por sua vez, a secreção de andrógenos constituiria, agora sim, uma adaptação relacionada aos comportamentos de agressividade e dominância das fêmeas dessa espécie (cf. Gould & Vrba, 1982).

Em relação à segunda dificuldade, Caponi utiliza um argumento histórico. Fazendo referência à distinção entre a biologia funcional e a biologia evolutiva proposta por Ernst Mayr (1998 [1982]), Caponi nota que o desenvolvimento da fisiologia, que é um ramo da biologia funcional, foi tanto independente quanto anterior ao desenvolvimento da biologia evolutiva (cf. Caponi, 2001). Isso não impediu que fisiologistas préevolucionistas, como William Harvey, fizessem atribuições funcionais. Aliás, conforme salienta Caponi, pode-se dizer que o principal imperativo metodológico do biólogo funcional – desde Harvey, mas melhor evidenciado em Claude Bernard – é algo como se segue: “para todo processo ou estrutura normalmente presente em um ser vivo, devese mostrar qual é o papel causal que este ou esta cumpre, ou tem, no funcionamento total do organismo” (p. 31).

Desse modo, o ponto central da impugnação da concepção etiológica feita por Caponi é o seguinte: a leitura etiológica exige que as atribuições funcionais dependam de explicações selecionistas; ademais, essas explicações só podem ser fornecidas depois que as imputações funcionais (no sentido próximo ao processual) já tiverem sido feitas (p. 34).

Faz-se necessária, portanto, uma concepção de “função biológica” que seja independente de explicações selecionistas, e que com isso seja capaz de distinguir entre as funções e as adaptações (conceitos que são confundidos pela concepção etiológica). A tarefa de diferenciar entre a função própria e a função acidental, conforme argumenta Caponi, não é uma atribuição do conceito de “função”, mas sim das explicações selecionistas (p. 37). Ainda assim, a concepção de função biológica que Caponi propõe como alternativa à etiológica tem um caráter fracamente normativo que permite comparar graus de eficácia do desempenho das funções e que, por isso, torna-se uma condição de possibilidade das explicações selecionais (p. 38). É sobre essas linhas que Caponi encaminha sua discussão no capítulo 2.

Para desenvolver seu conceito de “função biológica”, Caponi recorre à ideia de metas sistêmicas intrínsecas. Pode-se dizer que alguns sistemas estão orientados por metas codificadas em seu próprio desenho. Esse é o caso de termostatos e mísseis teleguiados, mas Caponi fornece um exemplo mais simples. Pensemos nas cisternas que mantêm o nível de água constante por meio da operação conjunta de uma boia e uma válvula que regula a entrada de água. O nível de água para o qual o sistema está regulado é uma espécie de meta intrínseca dele. De modo análogo, “a meta inerente, intrínseca e definidora de todo organismo é estabelecer e preservar sua autonomia organizacional perante as contingências e perturbações do entorno” (p. 46). Caponi traduz esse processo em termos de três outros conceitos clássicos: “autopoiese”, “autorreprodução” e “ciclo vital”. Podemos reunir os três em um único conceito de “função biológica”, de modo que, ao dizer “a função biológica de x é y”, supomos que (p. 46-7): (1) x faz parte do sistema autopoiético/sistema autorreprodutivo/ciclo vital z; (2) x produz ou causa y; (3) y tem um papel causal em z, ou é uma resposta a uma perturbação sofrida por z.

Para Caponi, essa formulação é suficientemente geral para incorporar as duas principais concepções de função biológica que, seguindo Garson (2008), poderíamos chamar de “consequenciais”.2 As concepções consequenciais são aquelas que associam a função de uma entidade à consequência ou efeito que essa entidade produz em um sistema do qual faz parte (cf. Garson, 2008, p. 527), sem entrar na discussão sobre a origem da entidade em questão. As duas teorias consequenciais que a definição de Caponi consegue abarcar são (utilizando a tradução proposta por ele próprio) as “teorias de efeito benéfico” (good-contribution theories) e as “darwinianas” (fitness contribution theories).

As concepções de efeito benéfico são aquelas que fazem referência à contribuição que determinada parte de um ser vivo tem para a realização de seu ciclo vital (o exemplo do coração pode ser caracterizado nesses termos). Por outro lado, algumas características dos seres vivos podem não contribuir diretamente na realização do ciclo vital, mas sim mediante o aumento da aptidão (fitness) darwiniana desses organismos, de modo que tais características são mais bem compreendidas sob a ótica das teorias consequenciais darwinianas.

É importante perceber que, embora façam referência a processos de seleção natural, as teorias consequenciais darwinianas têm um viés diferente das teorias etiológicas. Na visão consequencial, o aumento da aptidão é um efeito da presença da estrutura em questão; na visão etiológica, é a causa. Além disso, para Caponi, a concepção consequencial darwiniana é muito próxima à concepção de função baseada na noção de metas orgânicas intrínsecas: “se por aptidão se entende êxito reprodutivo, teremos que dizer que toda estrutura ou processo orgânico que contribui para a realização do ciclo vital de um ser vivo contribui também para sua fitness” (p. 52).

Em suma, Caponi termina esta primeira metade de seu livro defendendo que sua concepção de função biológica permite abarcar os principais modos de atribuição funcional realizados na biologia. Estão excluídos dessa categoria, conforme já salientado, as explicações selecionistas, pois “explicações selecionistas e análises funcionais são duas operações cognitivas diferentes, que apontam para objetivos cognitivos também diferentes” (p. 60). Porém, essas operações são, de certo modo, complementares; o próximo capítulo do livro explora o modo como essa complementaridade pode ocorrer e extrai dela algumas consequências.

O capítulo 3, “A noção de desenho biológico”, tem dois objetivos relacionados entre si. O primeiro é desemaranhar os conceitos de “parte” e “caráter”, frequentemente confundidos na literatura recente; o segundo é estabelecer a relação entre o conceito de “função” e as explicações selecionistas. Segundo Caponi, a distinção entre parte e caráter é fundamental para que possamos diferenciar as explicações selecionais das atribuições funcionais, essas duas modalidades de cognição que a concepção etiológica havia mesclado.

O ponto da primeira parte do capítulo é que, enquanto partes de organismos podem ser tocadas, dissecadas e, assim, receber atribuições funcionais, o mesmo não pode ser dito sobre os caracteres das linhagens. A distinção é exemplificada por Caponi através da figura do “sovaco da cobra”, na qual a ausência de membros nas cobras é um caráter desse grupo e pode, por exemplo, ser submetido a uma análise filogenética que permita determinar se esse caráter é primitivo ou derivado. Porém, obviamente, a ausência de membros não é uma parte, ou seja, o tipo de coisa que poderia ter um sovaco.

Essa distinção é importante, pois uma explicação selecionista, segundo Caponi, é sempre uma explicação sobre por que um caráter (e não uma parte) apresenta-se no estado derivado e não primitivo em determinada linhagem (p. 72). De acordo com um estudo filogenético recente, a “perda” de membros nos atuais grupos de serpentes é algo que ocorreu cerca de 25 vezes na história evolutiva da ordem Squamata (lagartos e cobras) (Sites, Reeder, & Wiens, 2011). Desse modo, há 25 episódios na história evolutiva dos Squamata em que “ausência” é um estado derivado do caráter “membros”, e cada um desses episódios demanda sua própria explicação selecionista.

Dito isso, Caponi ainda tem de demonstrar que o conceito de “função” participa das explicações selecionistas. A etapa inicial nessa fase da argumentação é definir o conceito de “objeto desenhado”. Caponi apresenta uma definição que pretende contemplar tanto ferramentas quanto seres vivos: “X é um objeto desenhado na medida em que algum de seus perfis seja o resultado de um processo de mudança, pautado por incrementos na eficácia com que as configurações, que exibem esse perfil, cumprem uma função dentro desse objeto” (p. 73). Aqui, “função” deve ser entendida como “papel causal que algo cumpre em um processo”, e “perfil”, no sentido mais amplo e abstrato possível, de modo a aproximar-se do significado de “característica”.

Dois exemplos simples fornecidos por Caponi permitem mostrar que é possível haver funções sem que os objetos que as cumprem tenham sido desenhados para fazêlo, já que “ter uma função” não é o mesmo que estar desenhado ou “ter uma razão de ser” (p. 74). A Lua, por exemplo, tem uma função (papel causal) no movimento das marés, mas não diríamos que essa é sua razão de ser, ou que ela foi desenhada para isso. Da mesma maneira, pedras achatadas são melhores para o jogo de quicar na água que as pedras esféricas, mas isso não quer dizer que o perfil achatado tenha sido expressamente desenhado para cumprir essa função.

Agora, é possível utilizar esse conceito de objeto desenhado para definir sob quais circunstâncias um estado de caráter pode ser considerado um perfil naturalmente desenhado, isto é, resultado de um processo de desenho sem que tenha havido um desenhista. O (estado de) caráter X está naturalmente desenhado para desempenhar a função y se e somente se:

(1) y é uma função biológica das configurações orgânicas x que exibem X;

(2) o estado X é produto da seleção natural, o que significa que as configurações orgânicas que exibiam X foram mais eficientes na realização de y do que aquelas que exibiam outros estados de caráter alternativos a X (p. 76).

Por não confundir parte com caráter, essa formulação apresenta uma clara vantagem em relação a algumas variantes da concepção etiológica que tentam apresentar definições semelhantes (cf. p. 78). Caponi defende que há uma lacuna ontológica entre as configurações orgânicas – designadas como x na definição acima, às quais faz sentido atribuir funções – e os caracteres X, os quais podem ser objetos de explicações selecionistas. Por isso, dizer de determinada parte de um organismo que ela é uma adaptação é, na melhor das hipóteses, um abuso de linguagem. A seleção natural, na visão de Caponi, “não modifica partes de organismos, modifica caracteres de linhagens” (p. 85).

A relação que se pode estabelecer entre os caracteres e as configurações orgânicas concretas é de instanciação, e só pode ser identificada a partir da perspectiva populacional. Determinada configuração orgânica pode até instanciar um caráter, mas isso jamais poderá ser constatado através de um estudo puramente fisiológico:

Por muito que se analise um organismo, se distingam as suas partes e se tente identificar a possível contribuição destas no seu ciclo vital, nem por isso estarão sendo identificadas adaptações. Para que isso seja possível, é necessário que essas partes sejam consideradas como exibindo estados de caracteres. Mas isso só se consegue assumindo uma perspectiva histórica, evolutiva (p. 85-6).

Esse ponto está alinhado a uma tese de Caponi segundo a qual há dois modos fundamentais de individualidade na biologia – os sistemas e as linhagens –, sendo que cada um deles implica uma relação mereológica diferente (cf. Caponi, 2012). Grosso modo, a biologia funcional e a ecologia tratam de sistemas, enquanto a biologia evolutiva trata de linhagens. Os sistemas são marcados por interações causais sincrônicas entre suas partes, coisa que não precisa ocorrer no caso das linhagens (cf. Caponi, 2012).

Ora, se tanto a biologia funcional quanto a ecologia tratam de sistemas, o que nos impede de incorrer em um organicismo em ecologia e conceber os ecossistemas como organismos? É aí que Caponi, uma vez mais e ainda que indiretamente, argumenta contra a concepção etiológica de função. Se admitíssemos que a concepção etiológica de função é a única válida e, ao mesmo tempo, sustentássemos que a ecologia realiza análises funcionais legítimas, seríamos obrigados a aceitar a conclusão de que os ecossistemas resultam de processos de desenho natural. Caponi, ao longo do último capítulo de seu livro, procura desvincular a legitimidade do discurso funcional em ecologia da ideia de que os ecossistemas são objetos naturalmente desenhados.

A ecologia, defende Caponi, faz atribuições funcionais em um sentido que é muito parecido com aquelas efetuadas pela biologia funcional, ou seja, que podem ser diretamente traduzidas em termos dos papéis causais que certas partes cumprem em certos sistemas. Porém, o que justifica a afinidade entre as duas disciplinas, segundo Caponi, não é uma perspectiva organicista sobre seus respectivos objetos de estudo, mas sim algo sobre seus ideais de ordem natural (cf. Toulmin, 1961). Brevemente, um ideal de ordem natural é um princípio, enunciado desde o ponto de vista de uma teoria ou domínio de investigação, que determina quais são os fenômenos que fazem parte de uma “ordem esperada” e que, portanto, não precisam ser explicados. Os fenômenos que, por outro lado, emergem por sobre esse horizonte ideal de regularidade são os que devem ser analisados e explicados por essa teoria.

Caponi explica a proximidade entre a biologia funcional e a ecologia como uma proximidade de ideais de ordem natural. Os ideais de ordem natural dessas duas disciplinas, segundo Caponi, envolvem a pressuposição de que os estados organizados dos sistemas são configurações improváveis, que merecem ser explicadas; a desordem, o aumento da entropia, por sua vez, é o estado esperado ao qual tendem todos os sistemas. Que um sistema mantenha, por homeostasia, um arranjo organizado frente às contingências do entorno é algo que supõe “uma articulação, uma sintonia afinada, de uma multiplicidade de fatores cuja condição de possibilidade e cuja ocorrência é necessário explicar” (p. 108).

Fazendo um trocadilho, Caponi afirma que a sustentabilidade é a questão-chave da ecologia. Os ecossistemas são arranjos frágeis de processos e partes que parecem passíveis de serem desarticulados ao menor desajuste. Assim, os ecólogos estão interessados em saber como esses estados de equilíbrio delicado se sustentam, isto é, como suas diferentes partes e processos contribuem para a manutenção desses arranjos. Desse modo, enquanto o componente maior (z) era, no caso da análise funcional, um sistema autopoiético, nas análises ecológicas ele corresponde à persistência de um ecossistema, de uma comunidade ou população (p. 109).

Julgamos que uma pequena objeção pode ser levantada contra a argumentação de Caponi, mas, ainda assim, essa objeção pode ser resolvida por meio de um esclarecimento. A objeção é a de que pode haver uma circularidade no argumento, pois, se os organismos são sistemas orientados por metas intrínsecas, não seria lícito supor que elas derivam de algum processo de desenho (ainda que natural)? Se sim, há circularidade no argumento, pois um processo natural de desenho precisa, em primeiro lugar, de um sistema orientado por metas intrínsecas para poder ocorrer. Por isso, pensamos que a resposta tenha de ser negativa. A origem dessas metas deve estar em algum processo de auto-organização anterior e complementar à ação da seleção natural. Certamente, podemos dizer que a imensa variedade de modos pelos quais os organismos perseguem essas metas seja resultante de processos de seleção natural; porém, basta que o pontapé inicial, o primeiro sistema autopoiético, tenha surgido por outro processo natural e espontâneo, para que a aparente circularidade da argumentação seja dissolvida.

Ora, talvez pela própria natureza heterogênea e anômala dos fenômenos biológicos, as posições pluralistas são altamente atraentes na filosofia da biologia. É claro que não é possível julgar a legitimidade dessas soluções em abstrato, independentemente dos debates particulares. As soluções pluralistas têm sido consideradas atraentes nos debates sobre os conceitos de “espécie” (cf. Ereshefsky, 2001) e de “gene” (cf. Waters, 2004), para citar dois dos muitos exemplos que podem ser encontrados na literatura. Conforme já mencionamos, o livro de Caponi contraria essa tendência ao mostrar que é possível fazer, com um único conceito de “função”, aquilo que se pensava que só era possível fazer com dois.

Aliás, outra tendência recente da argumentação na filosofia da biologia é que ela tende a ser meramente destrutiva e cética, sem apontar alternativas às posições que pretende derrubar. Nesse ponto, a argumentação de Caponi também é exemplar, pois vai além de uma simples refutação da posição etiológica e constrói efetivamente todo um arcabouço teórico que permite explicar uma série de fenômenos da prática da biologia. Esperamos que parte desse arcabouço possa ter sido vislumbrado aqui com os conceitos de “função biológica” e de “objeto (naturalmente) desenhado”, bem como as distinções parte/caráter e sistema/linhagem. Entretanto, esta resenha não teve a pretensão de substituir a leitura do livro, a qual recomendamos mesmo aos biólogos e filósofos da biologia que não estejam diretamente trabalhando com conceitos afins a seu conteúdo. A forma de argumentar de Caponi já é suficientemente inspiradora a ponto de recompensar a leitura.

Notas

1 Cabe ressaltar que, embora não tenhamos espaço para detalhar esse ponto aqui, em diversos pontos-chave do livro Caponi estabelece discussões com autores brasileiros e latino-americanos. As referências principais nesse sentido são Chediak (2011), El-Hani & Nunes (2009) e Ginnobili (2009).

2 Até aqui, nesta resenha, opusemos a concepção etiológica à processual. Isto é um tanto impreciso e injusto em relação ao livro de Caponi, que sugere desde o início (p. 19) que a distinção proposta por Garson é mais geral e precisa.

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Jerzy Brzozowski – Departamento de Filosofia. Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  [email protected]

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