Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas – GHINS (FU)

GHINS, M. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná, 2013. Resenha de: CID2, Rodrigo Reis Lastra. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.233-243, mai./ago., 2016´.

O livro de Michel Ghins (2013), Uma introdução à metafísica da natureza, é uma interessante tentativa de produção de uma metafísica das ciências. Esse é um projeto relevante, pois, se as nossas teorias científicas têm alguma relação com o mundo, gostaríamos de saber qual é. Uma metafísica das ciências nos diria o que fundamentalmente há no mundo e como isso se relaciona com os objetos teóricos das ciências. Este livro pretende justamente isso a partir de quatro capítulos. No primeiro, o autor introduz o problema da objetividade das nossas teorias científicas, vistas como modelos e leis para explicar fenômenos. No segundo capítulo, explora o debate entre realismo e antirrealismo em filosofia das ciências, defendendo que o mundo pode fazer as nossas teorias aproximadamente verdadeiras. No terceiro, mostra duas das principais concepções em metafísica das leis da natureza, as quais considera inadequadas para fundamentar a regularidade e a contrafactualidade, expondo, posteriormente, sua própria concepção das leis como sustentadas em propriedades disposicionais. Finalmente, no quarto capítulo, apresenta o debate sobre quais são as propriedades fundamentais, as categóricas ou as disposicionais, defendendo um realismo científico moderado com uma metafísica mista, tendo propriedades irredutíveis de ambos os tipos, sendo as leis científicas fundadas nos poderes causais existentes no nosso mundo, o que legitimaria que sejam chamadas de leis da natureza. Embora não tenhamos encontrado problemas em sua concepção de teoria científica, temos algumas críticas à sua adoção de uma metafísica dos poderes.

Ghins começa dizendo que a motivação principal da pesquisa científica é explicar e prever fenômenos. Para isso, os cientistas precisam ter uma atitude objetificante (chamada de “abstração primária”), na qual tomam o objeto do estudo separado de seu contexto holístico e tentam realizar observações independentes de suas subjetividades individuais. Com essa finalidade, eles abstraem algumas propriedades dos fenômenos dignas de interesse (o que se chama de “abstração secundária”) – apreensíveis por outras pessoas nas mesmas condições – e as organizam por meio de relações, formando um sistema. De modo mais específico, um modelo teórico é uma estrutura que satisfaz certas proposições, e ele é construído da seguinte forma, segundo Ghins: (i) estrutura perceptiva – primeiro selecionam-se as propriedades relevantes do fenômeno; (ii) modelo de dados – depois, são feitas medições particulares dessas propriedades com os instrumentos apropriados e esses dados são coletados, sendo os modelos de dados homomórficos à estrutura perceptiva; (iii) (sub)estruturas empíricas (também teóricas) – as informações obtidas nos modelos de dados são generalizadas e relacionadas numa subestrutura teórica de um modelo, de modo a permitir a previsibilidade; (iv) modelo teórico – relaciona as subestruturas empíricas com condições específicas (ceteris paribus); (v) teoria – uma classe de vários modelos que visam a dar conta de todo um domínio abrangente de tipos de objetos. “Por exemplo, a estrutura das medidas dos períodos orbitais pode ser embutida na classe dos modelos de dois corpos da mecânica clássica de partículas” (Ghins, 2013, p.22). Vejamos as Figuras 1 e 2 apresentadas por Ghins.

Para ser científica, além de empiricamente adequada, uma teoria precisa respeitar as condições de universalidade, simplicidade e poder explicativo (Ghins, 2013, p.24). O que será privilegiado depende de critérios pragmáticos, dados os objetivos da teoria, mas ainda assim uma teoria será mais empiricamente adequada quanto mais suas previsões forem precisas em relação às mensurações3. Uma teoria é empiricamente adequada “quando, para qualquer modelo de dados relevante, ela contém subestruturas empíricas homomórficas adequadas” (Ghins, 2013, p.22); é por isso que ela permite a previsibilidade. E ela não é empiricamente adequada “se as predições da teoria não forem conformes às observações nem for possível construir, com base na teoria, uma estrutura empírica homomórfica aos novos resultados” (Ghins, 2013, p.23).

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Figura 1. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas. Figure 1. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.23).

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Figura 2. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas.

Figure 2. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.27).

Sobre a universalidade, para Ghins (2013, p.25), quanto mais geral a teoria, mais preferível. Por exemplo,

a mecânica de Newton unifica a mecânica celeste de Kepler e a mecânica terrestre de Galileu […] A teoria unificadora, além de aumentar em muitas vezes a exatidão das predições, permite também predizer novas observações e, com isso, aumentar o poder preditivo, ou seja, em última instância, construir teorias empiricamente adequadas a um maior número de observações.

Com relação à simplicidade, ao poder explicativo e sua relação, eles geralmente são pensados como opostos, pois, quanto mais poder explicativo uma teoria possui, mais complexa ela se torna; no entanto, a complexidade dificulta o trabalho teórico, de modo que mais simplicidade seria preferível. Todavia, simplicidade demais – como uma teoria que apenas descreve os fatos do mundo – é inadequado, pois nada seria explicado.

Mesmo tendo a relação entre simplicidade e poder explicativo em vista, esta última noção não é facilmente caracterizável, dadas as distinções nas concepções sobre o que é uma teoria. “Hempel e Oppenheim identificam justamente o poder explicativo de uma teoria à sua capacidade de efetuar predições a partir de leis gerais” (Ghins, 2013, p.25); contudo, eles possuem uma concepção sintática de teoria, isto é, pensam uma teoria como um conjunto de proposições, dentre as quais contam as leis como proposições mais gerais. Há também uma outra visão, chamada de “concepção semântica” das teorias, que subestima o papel das leis e toma as teorias como classes de modelos. A alternativa desenvolvida por Ghins, chamada por ele de “teoria sintética”, é híbrida, no sentido de que uma teoria científica é vista como “um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins, 2013, p.26)4. Em sua abordagem, uma teoria só é explicativa quando descreve mecanismos causais. Mas o que é um mecanismo causal?

Para Galileu e Descartes, um mecanismo é um conjunto de partes dotadas de formas geométricas cujas posições e velocidades estão relacionadas entre si. […] Para a ciência matematizada, um mecanismo nada mais é que um conjunto de grandezas – posições, velocidades, acelerações, formas geométricas, massas etc. – que mantêm entre si relações matemáticas. […] De modo bastante amplo, um mecanismo é um modelo, uma estrutura de elementos quantificáveis organizados por relações matemáticas, isto é, leis – e, agora acrescento, leis causais (Ghins, 2013, p.30).

O que são leis causais e o que são leis não causais? Um dos exemplos de lei trabalhado no livro de Ghins é a lei geral dos gases (PV=KT), fundamentada na teoria cinética dos gases. Ela é considerada uma lei de coexistência, por não ser temporal; portanto, ela não seria uma lei causal. Segundo Ghins, uma lei causal deve ser uma equação diferencial com uma derivada em relação ao tempo, já que

um mecanismo explicativo no sentido geral é um sistema cujo domínio, isto é, o conjunto das grandezas que são seus elementos, satisfaz leis de natureza causal. […] [Um] mecanismo não é mais que um sistema de propriedades quantificadas que tornam verdadeiras as leis causais, as quais descrevem a evolução dos valores daquelas propriedades ao longo do tempo. (Ghins, 2013, p.31).

Mesmo assim, a teoria cinética dos gases é explicativa, porque, ainda que a lei dos gases ideais não seja causal e, consequentemente, não descreva mecanismo algum, a teoria cinética explica como a variação nômica indicada na fórmula ocorre, a saber:

[…] a pressão resulta dos choques das moléculas com a parede do recipiente e a temperatura é proporcional à energia cinética média das moléculas do gás. […] A explicação da lei dos gases perfeitos repousa sobre leis5 fundamentais e causais que descrevem o comportamento de corpos considerados como pontos massivos sem extensão (Ghins, 2013, p.28).

Segundo Ghins, “a lei de Boyle-Mariotte não descreve um processo causal. Ela descreve uma situação num estado de equilíbrio. Para obter uma explicação, é necessário se referir às leis causais que descrevem os processos microscópicos” (2013, p.44). Por outro lado, as leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzman, sobre a qual a explicação da lei de Boyle-Mariotte se apoia, são leis causais, já que são proposições que descrevem processos causais possíveis. As leis dessa teoria cinética são leis causais, porque as leis da mecânica são temporais, porque elas permitem explicar as variações temporais de propriedades determinadas ao longo de um processo ao reportá-las a causas definidas e porque “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos. As variações de velocidade – as acelerações – são efeitos cujas causas são as forças pelas quais são produzidas as acelerações” (Ghins, 2013, p.43).

Mas em que medida pode-se aceitar que os modelos de nossas teorias representam corretamente a realidade? Em que medida pode-se acreditar que as leis científicas são verdadeiras? Essas são tanto questões ontológicas sobre a realidade dos objetos teóricos quanto questões epistemológicas sobre os limites do conhecimento científico. Construímos estruturas teóricas para dar conta de fenômenos, que, na realidade, são holisticamente apreendidos, e não isoladamente como o objeto científico. A dúvida, tal como expôs Bas van Fraassen, segundo Ghins, é “como uma entidade abstrata, como uma estrutura matemática, pode representar uma coisa que não é abstrata, uma coisa na natureza?” (2013, p.34). Essa objeção é conhecida pelo nome de “objeção da perda da realidade”.

A resposta de Ghins é dizer que ela se funda na ideia equivocada de que o cientista representa a realidade em seu modelo de dados e, consequentemente, nas subestruturas teóricas, nos modelos e nas teorias. “Quando um cientista afirma que o volume de um gás é igual a 1 dm3, ele pretende afirmar uma verdade a respeito de certas entidades fenomênicas. Asserções desse tipo não são representações” (Ghins, 2013, p. 35), mas são antes tentativas de descrição de certos aspectos da realidade. Para haver qualquer representação possível de uma entidade, tem de haver uma descrição anterior de suas propriedades. Tomar essas descrições de propriedades como se fossem representações implica criar uma distinção difícil de ser sustentada entre a contemplação do fenômeno do ponto de vista de lugar nenhum e as próprias construções representacionais. Toda contemplação de fenômeno é a partir de um ponto de vista, por mais que o ponto de vista seja intersubjetivo. As estruturas perceptivas, embora abstraídas dos objetos, não são estruturas abstratas, mas antes concretas, já que são apreendidas de situações particulares. Por exemplo, observamos uma bola de bilhar e vemos que ela tem a propriedade volume; não estamos representando a propriedade presente na bola como volume, mas estamos abstraindo uma propriedade da bola, a qual chamamos de “volume”, e depois medindo sua quantidade de acordo com uma medida convencionada. O que promove a objetividade, nessa concepção, é o acordo intersubjetivo com relação às estruturas perceptivas e aos modelos de dados (Ghins, 2013, p.38). E a posição metafísica defendida sobre a verdade, em Ghins, é a correspondentista (uma proposição é feita verdadeira – ou aproximadamente verdadeira – por algo do mundo), ainda que se assuma que nenhuma teoria da verdade como correspondência atualmente é satisfatória.

Poder-se-ia contra-argumentar a Ghins dizendo que não são apenas as propriedades abstraídas que têm de ser remetidas ao mundo, mas também as operações matemáticas. Sabemos que “volume” diz respeito a uma certa propriedade observável de um objeto, mas ao que diz respeito o termo “+”? Certamente, não significa “juntar”, pois podemos somar sem juntar coisas. Pode significar “reunir num conjunto”; mas conjunto é também um objeto matemático, que ainda não está se relacionando com a realidade. A objeção da perda da realidade, quando entra no domínio dos operadores matemáticos, leva a difíceis problemas… Não temos uma solução satisfatória para eles, mas cremos que Ghins também não. Talvez ninguém tenha. Se for o caso que ninguém tenha, então a melhor solução é deixarmos o nosso juízo em suspenso enquanto não obtivermos uma resposta satisfatória e continuarmos utilizando as operações matemáticas até lá.

Uma outra objeção que poderia ser feita, expressa pelo próprio Ghins, é que, embora não haja representação na estrutura perceptiva, nem no modelo de dados, nem na subestrutura teórica, existe representação quando começamos a criar modelos teóricos e teorias nas quais falamos sobre entidades inobserváveis.

No caso dos gases, é fácil verificar, por observações imediatas, que aquilo que está contido dentro de um recipiente tem de fato um volume, uma pressão e também o que podemos chamar de grau de calor. […] Por outro lado, a identificação de um gás com um conjunto de partículas que se movem e são dotadas das propriedades de possuir uma massa e de mover-se a certa velocidade é muito mais problemática. […] As partículas constitutivas de um gás não são visíveis e suas velocidades médias não são nem observáveis nem individualmente mensuráveis (Ghins, 2013, p.40-41).

Veja que a objeção aqui não é contra as observações imediatas, mas antes contra a explicação com inobserváveis que a teoria fornece para o fenômeno.

A resposta do autor é que, na medida em que a teoria tem adequação empírica, além das condições já descritas, isso é um forte indício, embora não uma razão suficiente, em favor de sua interpretação realista moderada, na qual as leis científicas podem ser aproximadamente verdadeiras. E não é razão suficiente por causa de uma objeção conhecida pelo nome de “argumento da subdeterminação da teoria” pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados: “[…] visto que, em princípio, é sempre possível construir várias teorias incompatíveis entre si, mas que salvam as estruturas perceptivas relevantes, não temos nenhuma razão para acreditar na verdade, ao menos aproximada, de apenas uma dentre elas” (Ghins, 2013, p.41).

A resposta de Ghins (2013, p.41) é dizer que não basta indicar que pode haver teorias alternativas, mas deve-se fornecer alguma ou mostrar que uma já está sendo construída. Ele aceita que as teorias são realmente subdeterminadas pelos dados e, por isso, acaba aceitando que apenas a adequação empírica não garante a verdade de uma teoria. Ainda que se coloque a capacidade explicativa na história, haverá as dificuldades de dizer o que é uma boa explicação e como o fato de algo ser uma boa explicação, que é algo patentemente epistêmico, se relaciona com a verdade, que é algo metafísico. Pode-se dizer que uma teoria explicativa nos abre um acesso cognitivo a certas realidades externas e inobserváveis. E isso pode ser feito, sem muita dificuldade, segundo Ghins, ao aceitarmos a verdade das leis causais e uma noção de explicação baseada em mecanismos descritos por leis causais. O que Ghins defende é que (2013, p.45)

Nossas crenças na existência de objetos inobserváveis, tais como as moléculas, as partículas elementares, o campo gravitacional, os vírus, os genes, as placas tectônicas etc., encontram sua justificação a partir de considerações análogas àquelas que justificam nossas crenças na existência de entidades observáveis […] Da mesma forma, nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades de carga, spin e massa por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes.

A possibilidade do erro existe nessa concepção, e ela é remetida à própria possibilidade do erro no que diz respeito a entidades observáveis pelos nossos sentidos. Porém nós conseguimos diminuí-la ao repetirmos as observações, utilizando também outros sentidos além da visão e verificando se nossas observações são concordantes – o que, no caso do objeto científico, pode ser pensado como os instrumentos de mensuração. Por exemplo, no caso das moléculas (Ghins, 2013, p.44),

temos que dispor de métodos de mensuração que permitam determinar o valor da velocidade média, da massa e do número de moléculas. Além disso, é preciso que esses processos de medida da velocidade média e do número de moléculas sejam independentes dos métodos de mensuração da temperatura e da pressão.

Isso já ocorre, dado que podemos medir o mol de um gás por métodos independentes que fornecem resultados que convergem com um alto grau de precisão.

Outro argumento avaliado pelo autor é o conhecido “argumento do milagre” (ou no-miracle argument). Este nos diz que o realismo é a melhor explicação do sucesso empírico (previsões de mensurações bem-sucedidas) de nossas teorias, pois, se nossas teorias não são ao menos aproximadamente verdadeiras, então seu sucesso empírico é um milagre. Assim, ou aceitamos que as propriedades inobserváveis postuladas por uma teoria bem-sucedida seriam de entidades reais cuja existência é independente de nossos desejos, de nossas medidas e da nossa linguagem, ou aceitamos o sucesso, por milagre, da teoria.

Segundo Ghins, pode-se objetar a esse argumento que ele não é um argumento decisivo a favor do realismo e tem um caráter científico contestável, já que não tem a forma da explicação científica, baseada em leis causais, para dar conta da relação entre a verdade e o sucesso empírico. A solução de Ghins (2013, p.47) é dizer que a concordância entre as mensurações é mais exigente que o sucesso empírico, de modo que pode fundamentar melhor a verdade – ao menos a verdade aproximada – de uma teoria. Além disso, ele não pretende “explicar – e, certamente, não de modo científico – a concordância entre as mensurações de uma propriedade pela existência de uma entidade que a possui” (p. 47). O objetivo de Ghins, com o argumento do milagre, não é contrastar uma pseudoexplicação milagrosa com uma explicação de fato, mas fazer uma analogia entre razões para crer na existência de, por exemplo, um abacaxi, com diversas propriedades observáveis, e de um objeto, como um elétron, que só tem propriedades inobserváveis.

É possível, no entanto, objetar ainda que, na medida em que não conhecemos o mecanismo causal operante nos nossos instrumentos de mensuração, não podemos conhecer os mecanismos causais que viemos a conhecer a partir dos instrumentos de mensuração. Entretanto, isso não leva em consideração que, na experiência sensível ordinária, os mecanismos causais dos nossos sentidos (nossos instrumentos sensíveis de medição) não nos são totalmente conhecidos. Na experiência científica, diz-nos Ghins, os mecanismos causais dos instrumentos científicos de medição são bem conhecidos e descritos por meio de leis causais fundamentais. Ainda que isso não seja bem o caso e que não conheçamos perfeitamente o mecanismo causal dos nossos instrumentos de medida, conhecê-lo perfeitamente não é necessário para coletarmos dados com precisão; por exemplo, Galileu conseguiu dados precisos sobre os corpos celestes, mesmo sem conhecer as leis óticas envolvidas no telescópio.

O objetivo de Ghins até aqui é defender uma versão moderada – dado permitir a falsificação de teorias – de realismo cientifico, a qual ele pensa dar conta das objeções da perda da realidade e da subdeterminação da teoria, “argumentando [sobre entidades observáveis] que o êxito de nossas construções representacionais sustenta-se na verdade de proposições predicativas acerca dessas entidades” (2013, p.49-50). E sobre as entidades inobserváveis, Ghins crê que a razão pela qual as teorias têm poder explicativo permite-lhe falar verdadeiramente (aproximadamente) sobre elas. No entanto, o poder explicativo é uma exigência epistêmica, que o mundo não precisa cumprir, de modo que aquele não forneceria razões suficientes para crermos nas entidades inobserváveis das teorias. Por isso, Ghins critica o argumento do milagre como uma razão para crermos nas entidades inobserváveis postuladas pelas teorias. Embora esse argumento favoreça sua analogia entre razões para crer na existência de entidades observáveis e de não observáveis, ele não é aceito como conclusivo pelo autor. Sua razão principal a favor do realismo dessas entidades teóricas é que “estabelecemos nossas crenças na existência de entidades observáveis por observações repetidas e variadas, [e] defendemos a existência de entidades inobserváveis por meio de métodos de mensuração que sejam diversos e que proporcionem resultados concordantes” (Ghins, 2013, p.50). Seja qual for o caso, Ghins nos diz que, para crer na existência de certas entidades, seja um abacaxi ou um elétron, realizamos observações rigorosas e concordantes. Em nossas teorias científicas, segundo Ghins, expressamos, além de certas propriedades de certas entidades, também leis gerais que são satisfeitas pelos modelos teóricos de nossas teorias. Mas há uma grande divergência filosófica sobre a existência dessas leis científicas como leis da natureza. Por exemplo, segundo Ghins, Bas van Fraassen e Ronald Giere, seguidores da abordagem semântica das teorias científicas, defendem que o conceito de lei, além de ser problemático, é simplesmente inútil para compreender a natureza das teorias e da prática científica, que se utilizaria apenas de modelos. Outros filósofos, como Hempel e Oppenheim, defendem uma concepção sintática, na qual uma teoria é apenas um conjunto de proposições, das quais algumas são leis. Ghins discorda de ambos, por pensar que eles empobrecem as teorias científicas, já que não as representam adequadamente; por isso, ele constrói uma teoria híbrida, chamada por ele de “teoria sintética”, que aceita que as teorias são constituídas de modelos (teoria semântica) com leis (teoria sintática) satisfatíveis por tais modelos.

Mas o que seriam, na realidade, essas leis? Para responder essa pergunta, o caminho de Ghins é o seguinte: (i) avaliar a teoria regularista das leis; (ii) avaliar o necessitarismo contingencialista das leis; (iii) defender sua teoria necessitarista das leis metafisicamente necessárias como (Ghins, 2013, p.51, sic.)

proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas, [e (…)] consideradas como sendo aproximada e parcialmente verdadeiras a propósito de sistemas reais. Uma teoria científica é composta de um conjunto de modelos e de proposições [d]entre as quais algumas alcançam o estatuto de leis.

Uma lei científica poderia ser considerada também uma lei da natureza, “se for possível elaborar argumentos em favor da existência de entidades metafísicas, tais como, por exemplo, disposições naturais ou poderes causais, que a tornassem aproximadamente verdadeira” (Ghins, 2013, p.52), e Ghins tenta fazer isso, mostrando que a regularidade e a contrafactualidade das leis se fundamentam nas propriedades disposicionais.

O regularismo (pelo menos na sua forma ingênua) toma as leis como proposições condicionais materiais, quantificadas universalmente, que são feitas verdadeiras pelos estados de coisas particulares, ou seja, toma-as como regularidades. Nessa concepção, as leis são verdadeiras, porém não necessárias. O primeiro problema que surge para o regularista é o chamado “problema da identificação”, que é a conjunção de dois problemas, a saber, (i) o problema (epistêmico) de saber como distinguir leis de regularidades meramente acidentais e (ii) o problema (ontológico) de indicar qual é o fato acerca do mundo que confere a uma regularidade seu estatuto nomológico. Por exemplo, seria dizer o que faz ser uma lei a regularidade de que toda pedra de urânio tem menos de 1 km3 e que não está presente na regularidade de que toda pedra de ouro tem menos de 1 km3 (já que consideramos este último como um mero fato contingente), e dizer quais critérios utilizaremos para distinguir um tipo de generalização de outro.

O regularismo sofisticado de Mill-Ramsey-Lewis, para responder 1, o problema epistêmico, diz-nos que uma lei é uma proposição universal que figura “como teorema (ou axioma) em todos os sistemas dedutivos verdadeiros que combinam simplicidade e força da melhor maneira” (Ghins, 2013, p. 54). Como simplicidade e força explicativa são opostos, seria adequado que mantivéssemos a melhor combinação entre eles. E ser um teorema ou axioma faz as leis serem algo mais que meras regularidades, a saber, elas são regularidades que estão presentes em todos os sistemas dedutivos verdadeiros equilibrados. Leis vácuas, como a lei newtoniana, que não são satisfeitas por nenhum sistema real, seriam leis na medida em que contribuem para maior simplicidade da totalidade da construção axiomática. Essa resposta certamente alivia um pouco o problema da identificação para o regularista, ao menos em sua parte epistêmica; porém, com relação à parte ontológica, “Lewis permanece silencioso sobre o que, na realidade do mundo, torna um sistema axiomático mais satisfatório que outro segundo seu critério de ‘melhor equilíbrio de simplicidade e força’” (Ghins, 2013, p.55). Outros problemas dessa forma de regularismo são que: (a) poucas teorias são axiomatizadas no sentido de Lewis e algumas não são nem axiomatizáveis, (b) o equilíbrio entre os critérios de simplicidade e força não foi precisado adequadamente, (c) e esses critérios são subjetivos, já que são epistêmicos e que não há necessidade alguma de a realidade os respeitar.

O neorregularismo de Psillos (2002, p.154 in Ghins, 2013, p.57), por sua vez, “defende uma posição realista segundo a qual a simplicidade de um sistema axiomático reflete a simplicidade objetiva da organização das regularidades fatuais”. Isso salva o regularismo do problema ontológico, mas, supostamente, segundo Ghins, o deixa à mercê do problema epistêmico, pois, ainda que identifique as leis com um tipo de regularidade e atribua simplicidade e uma estrutura nomológica para o próprio mundo, a contrapartida objetiva da lei não é acessível à observação direta, tal como desejaria que fosse o espírito empirista do regularista, e, consequentemente, não seria possível para o regularista distinguir as leis das regularidades que não são leis.

Não sabemos se esse argumento é bom, pois, se já aceitamos que o regularista pode distinguir leis de acidentes pelo fato de as leis possuírem uma posição especial nos melhores sistemas dedutivos, então o fato de ele atribuir a simplicidade desses sistemas dedutivos à existência de simplicidade no mundo não o impede de manter a distinção que resolveria o problema epistêmico. Ele não precisa de uma contraparte empiricamente acessível da lei; precisa somente de uma distinção, que, a princípio, poderia ser mantida, ao manter-se o espírito lewisiano, pela distinção de a lei ser um teorema ou axioma dentro de todos os melhores sistemas dedutivos para os fatos do mundo.

Um outro problema sério e persistente para qualquer forma de regularismo – na verdade, para qualquer forma de contingencialismo com relação às leis – é o problema da contrafactualidade. Se as leis do regularista são contingentes, elas não podem garantir a verdade de condicionais contrafactuais – condicionais cujo valor de verdade do antecedente é o falso. Tais condicionais são considerados trivialmente verdadeiros segundo a lógica de predicados de primeira ordem, se vistos como condicionais materiais comuns, já que um condicional material só é falso no caso de a antecedente ser verdadeira e a consequente ser falsa, e verdadeira em qualquer outra situação. Mas, na literatura filosófica, há muito trabalho sobre as condições de verdade dos contrafactuais que não os trivializariam. O fato de as leis regularistas não garantirem a verdade não trivial dos contrafactuais as deixa mais afastadas das leis científicas, já que estas garantiriam a contrafactualidade, diz-nos Ghins.

No entanto, pensamos nós, há uma objeção realizável por Lewis (1973), que tem uma teoria na qual ele tenta dar condições de verdade para os contrafactuais em termos de o que é o caso no mundo possível mais próximo. Um dos critérios para a proximidade entre os mundos é a semelhança de leis. Assim, no regularismo lewisiano, um contrafactual tal como “se Fa fosse o caso, Ga teria sido o caso” seria verdadeiro, se no mundo possível mais próximo Fa e Ga são o caso. Esse mundo possível é aquele com as mesmas leis que o nosso, mas com a antecedente do contrafactual sendo verdadeira. Uma objeção ao pensamento de Lewis é que seu contrafactual seria verdadeiro em muito menos situações do que as que esperaríamos. Um contrafactual cuja verdade surge a partir da verdade em todos os mundos possíveis relevantes, em vez de apenas no mais próximo, garante essa abrangência da verdade contrafactual, que não está presente na garantia da verdade contrafactual de Lewis. A abrangência científica da verdade dos contrafactuais chega a casos em que até algumas das leis não se mantêm (i.e., no caso de alguns contrafactuais contralegais), enquanto o mesmo não podemos dizer da teoria de Lewis.

O necessitarismo de Dretske-Armstrong-Tooley também não escapa das críticas do autor. Aquele nos diz que uma lei da natureza é uma relação universal contingente de necessitação entre universais imanentes, que garante (mais que a total contingência) a verdade no mundo atual, mas não em todos os mundos possíveis. E a relação de necessidade que opera ao nível dos universais implica também uma relação de necessidade ao nível dos indivíduos particulares que os exemplificam: N(F,G) → (x) N(Fx,Gx). Mas, a partir dessa definição, temos um problema, conhecido pelo nome de “problema da inferência”, de explicar a conexão entre a necessidade armstronguiana (necessitação) no nível dos universais e a do nível dos particulares6. A resposta de Armstrong é que a relação causal do domínio dos particulares e a necessitação são uma e a mesma relação, dado que os universais estão presentes nos particulares – o que tornaria a inferência acima, em algum sentido, analítica. Diferentemente do regularismo, o necessitarismo de Armstrong permitiria que a necessitação fosse observável, já que ele diz que observamos a necessitação, isto é, a causalidade, quando, por exemplo, sentimos o peso do nosso corpo. Um governista ante rem (teórico das leis como relações universais entre propriedades universais transcendentes), pensamos nós, também poderia dar conta desse problema ao dizer que a causalidade singular é instância da necessitação e que observamos, indiretamente, a necessitação por meio da observação da causalidade singular, tal como observamos, indiretamente, o azul universal ao observarmos uma instância sua em algo particular. De todo modo, observar os poderes das coisas também não é algo tão incontroverso assim.

Além de tomar essa observabilidade como bastante controversa, Ghins julga que há um problema não resolvido por necessitaristas (problema esse também para regularistas), a saber, distinguir propriedades naturais de não naturais. O problema é que, se não houver distinção e as propriedades de Goodman (propriedades como verzul) forem avaliadas pelos cientistas, teremos leis mutáveis no nosso sentido, embora imutáveis no de Goodman.7 Outros problemas, ainda, para o necessitarismo de Armstrong é que ele não dá conta de leis probabilísticas adequadamente – segundo Ghins, van Fraassen, em Laws and symmetries (1989, p.109-116), mostrou que a solução armstronguiana não era adequada – e nem de leis não causais (como as leis de conservação), além de não mostrar que a necessitação e a causalidade singular são a mesma relação.

Pensamos que é possível, tanto para teorias aristotélicas como a de Armstrong quanto para as teorias platônicas como a de Tooley, dar conta de leis de conservação como deriváveis de outras leis; por exemplo, se toda lei diz como uma forma de energia se transforma em outra, mas não há leis que determinem como a energia se extingue ou aumenta, então, por lógica apenas, chegamos à conclusão de que a quantidade total de energia deve ser sempre a mesma. Há proposições necessárias (se as leis forem necessárias) implicadas por leis que não são elas próprias leis, pois não são relações de necessitação entre universais. As leis probabilísticas, no entanto, são problemáticas; mas acreditamos que são problemáticas para qualquer teórico que seja: regularista, conectivista (metafísico dos poderes), governista in rebus (leis como universais imanentes) ou governista ante rem (leis como universais transcendentes).

Dados os problemas que Ghins (2013, p.64) aponta nessas concepções, sua proposta é

identificar epistemicamente as leis científicas como sendo proposições de forma lógica universal e (aproximadamente) verdadeiras, empregadas para construir teorias científicas explicativas empiricamente bem sucedidas. […] Segundo essa proposta, proposições universais podem ser chamadas de leis somente no contexto de uma teoria, como na concepção de Mill-Ramsey-Lewis. […] [Sua ideia é que] não se resolve o problema da identificação determinando o fundamento da necessidade das leis, mas estabelecendo sua verdade no contexto de uma teoria científica.

Assim, uma proposição é uma lei científica se ela fizer parte, como um teorema ou axioma, de uma teoria científica, interpretada realisticamente, que contém, entre outras coisas, proposições gerais com o status de lei. E essas leis científicas seriam leis da natureza na medida em que a verdade aproximativa das leis científicas é sustentada em poderes universais realmente existentes, que se expressam nas disposições essenciais das entidades naturais. Acreditamos que a proposta de identificar a lei científica com um teorema/axioma de alguma teoria científica é interessante, pois captura nossas intuições sobre a lei científica, mas identificar as leis científicas com poderes, e não com leis da natureza, essa proposta já é um tanto debatível.

A ideia de uma metafísica dos poderes é justamente apresentar qual é o fundamento modal que as leis científicas teriam, já que, a princípio, se elas são proposições descritivas, não podem logicamente implicar proposições que contenham modalidades, como os contrafactuais. Portanto, se há algo que conecta leis e proposições contrafactuais, temos de saber o que é. E, além disso, temos de explicar a existência de regularidades na natureza. As teorias anteriormente apresentadas têm problemas com a contrafactualidade, por causa da contingência; o regularismo, mais especificamente, têm problemas também com explicar a existência de regularidades na natureza, pois, se o que torna as leis verdadeiras são meras regularidades, aquelas apenas descrevem estas e não explicam por que estas acontecem; e o necessitarismo de Armstrong, embora dê conta da explicação da regularidade, tem os problemas indicados anteriormente, acredita Ghins. Se tivermos conseguido fugir dos problemas que afetam também a concepção conectivista de Ghins, então a posição governista seria, pelo menos, equivalente, em poder explicativo, àquela.8

A concepção de Ghins é de que o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei,’ fundamentando assim a força modal de p, é a existência de poderes causais irredutíveis e essenciais às entidades que os têm (constituem necessariamente suas identidades). Mas o que é ter um poder causal, isto é, uma propriedade disposicional? Diz-nos Ghins (2013, p.69-70):

Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M. Formalmente, temos (Bird, 2007, p.36-37):

D A,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx      (a)

Esse último enunciado pode ser considerado uma definição da propriedade disposicional D A,T,M . Então, é analiticamente verdadeiro e necessário que □DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx     (b)

Por exemplo, os copos de certos tipos de vidro têm a capacidade de se quebrar em certos tipos de circunstâncias (como quando sofrem certa quantidade de impacto e estão ausentes circunstâncias que agiriam como “antídotos” do processo causal). É em virtude dessa capacidade, poder ou propriedade disposicional que é necessário que o copo se quebre quando submetido a uma tal circunstância. E a relação entre essas disposições e a identidade de certos objetos é necessária; elas fazem parte da essência de tais objetos. Assim, seria parte da essência dos corpos frágeis que eles tenham uma disposição para se quebrar em certas circunstâncias. Se algo não tem esse poder de se quebrar, simplesmente não é um corpo frágil.

Um primeiro problema que vemos nessa concepção é a imaterialidade de um poder. Um copo de vidro tem o poder de se quebrar. Onde está esse poder? Você pega o vidro, leva para o microscópio e tudo que você vê são moléculas, uma junto à outra. Não vê poder algum de se quebrar; na verdade, não vê poder algum. Se há poderes nas coisas, eles são imateriais, estão presentes de algum modo estranho nas coisas. O teórico dos poderes tem de explicar como as coisas têm poderes. O teórico das leis, se for também categoricalista, dirá que a capacidade dos objetos advém de suas propriedades categóricas estarem submetidas a leis da natureza, e não que há capacidades ocultas em cada um dos objetos. É contra-argumentável que a imaterialidade das leis também atesta contra elas. Duas respostas são possíveis. Se defendemos o substantivismo armstronguiano, as leis podem ser cridas como materiais, pelo fato de os universais estarem presentes nas coisas particulares, e, se defendemos o substantivismo ante rem, ao estilo de Tooley (1977), podemos dizer que a imaterialidade das leis é menos problemática que a imaterialidade dos poderes, pois os poderes se movem junto com seus hospedeiros, enquanto as leis não se movem, e o movimento de algo imaterial é algo que, patentemente, precisa de explicação.

Uma objeção que consideramos ainda mais poderosa contra o teórico dos poderes é que ele não consegue descrever algo que um teórico categoricalista conseguiria, como, por exemplo, o resultado do contato de duas partículas como um resultado do contato das capacidades ou potencialidades ou poderes dessas partículas. Veja a seguir (Cid, 2011, p.40).

O conectivista poderia tentar dizer que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo Y9 e que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo X, e que não há nada mais para a lei de que XY manifesta F do que esses poderes de X e de Y. O problema de dizer tal coisa é que a manifestação de F estaria sobredeterminada, já que ambas as partículas fariam F ser manifestado. Uma forma de tentar solucionar tal problema é dizendo que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F1 quando interagem com as partículas do tipo Y, que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F2 quando interagem com as partículas do tipo X, e que (F1˄F2)→F. Poderíamos objetar a essa resposta dizendo que teríamos que explicar, então, como (F1˄F2)→F; e o conectivista não é capaz de explicar isso sem cair novamente no problema da sobredeterminação ou num regresso ao infinito. Pois se (F1˄F2)→F, então: (i) ou F1 está disposto a manifestar F quando estimulado por F2, e F2 está disposto a manifestar F quando estimulado por F1, (ii) ou F1 está disposto a manifestar F3 quando estimulado por F2, F2 está disposto a manifestar F4 quando estimulado por F1, e (F3˄F4)→F. O caso (i) faria F estar sobredeterminado. E com relação ao caso (ii), o problema seria ter que explicar a implicação de F3˄F4 para F, que só seria possível criando um caso como (i), que sobredeterminaria F, ou criando um outro caso como (ii) ad infinitum.

Ainda uma objeção, esta apontada por Ghins, contra uma teoria das disposições é chamada de “objeção da virtude dormitiva”: explicar a capacidade do vidro de se quebrar recorrendo a uma disposição para se quebrar (fragilidade) não nos explica nada sobre a capacidade de se quebrar; é apenas nomear a capacidade que já sabíamos que lá estava. A resposta de Ghins é dizer que, embora atribuir uma disposição não explique o fenômeno, ela nos fornece uma informação importante, de modo que permite que, por exemplo, nos previnamos da manifestação da disposição (protegendo o copo, talvez), além de constituir um convite a buscar o processo físico, químico, psicológico, etc. subjacente à manifestação das disposições. Com essa atribuição de propriedade disposicional, “acrescentamos um elemento suplementar, a saber, que a base desse comportamento regular é uma propriedade disposicional enraizada numa entidade. Ao afirmar tal coisa, operamos uma transição do nível puramente descritivo para o nível modal” (Ghins, 2013, p.73, grifo meu). Como pensamos ter mostrado, um teórico categoricalista, que não aceita a existência de disposições, descreveria a atribuição de propriedade disposicional de uma outra forma, com propriedades categóricas e leis (embora, em seu discurso superficial, possa achar conveniente apenas falar como se houvesse disposições, mas mantendo, em seu discurso profundo, que não há).

Contudo, Ghins sabe o quão debatível é falar de propriedades disposicionais irredutíveis e ele acaba adentrando na discussão sobre se, fundamentalmente, o que há na realidade são propriedades disposicionais irredutíveis ou se são propriedades categóricas irredutíveis. As propriedades categóricas seriam as propriedades primárias das coisas sobre as quais estariam fundamentadas todas as outras propriedades. Por exemplo, Armstrong (1983) pensa que as propriedades primárias são a forma, o tamanho e a organização interna, e que cores, sabores e disposições em geral são qualidades secundárias fundadas nas primárias. A ideia é que “as qualidades primárias, conforme se supõem, são definíveis independentemente de qualquer disposição das entidades que as possuem […] as qualidades primárias tornam possível a ação dos corpos uns sobre os outros e, em particular, a ação deles sobre os nossos órgãos sensoriais” (Ghins, 2013, p.75); elas seriam propriedades espaçotemporais.

Algumas objeções a essa ideia, feitas por Ghins, são que quantidades, tais como a carga ou a constante de Coulomb, não poderiam ser reduzidas a propriedades espaçotemporais e que é duvidoso que a estrutura do elétron, se ela existir, seja espacial. Para sanar esse problema, ele sugere que, na classe das propriedades categóricas, devemos incluir as propriedades e relações correspondentes aos símbolos matemáticos empregados na formulação das teorias científicas. Isso permitiria ainda a distinção entre propriedades categóricas e disposicionais, já que um elétron possuiria uma massa e uma carga, independentemente da possibilidade de interagir com outras massas e cargas. A dificuldade que prevemos com essa concepção é explicar o que seriam cargas, por exemplo, sem reduzi-las a algo que contenha uma disposição para atrair/repelir. Certamente o categoricalismo estrito não poderia aceitar cargas como propriedades categóricas. Ele teria de reduzir essas capacidades de atrair/repelir a propriedades categóricas governadas por leis. Sobre os símbolos matemáticos, a dificuldade é explicar o que, ontologicamente, são eles; mas essa é uma dificuldade, inserida no seio da filosofia da matemática, que todos os teóricos, das leis e dos poderes, enfrentam.

A teoria de Ghins, diferentemente de teorias estritamente categoricalistas (como o regularismo e o necessitarismo armstronguiano), é mista, por aceitar a existência tanto de propriedades categóricas, pensadas de modo abrangente, quanto de propriedades disposicionais – em vez de tentar reduzir estas últimas a propriedades categóricas. Ele pensa assim, porque, por exemplo, “ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, as leis de Maxwell” (Ghins, 2013, p.84).

A razão para essa concepção mista é que, embora seja razoável supor o categoricalismo e, consequentemente, que as propriedades A, T e M – de DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx – possam ser caracterizadas exclusivamente por propriedades categóricas, ainda seria preciso que a definição não recorra a modalidades, já que as propriedades categóricas não seriam propriedades modais. O categoricalismo toma as propriedades como tendo uma natureza passiva; nele, “as propriedades modais não são inerentes às entidades que exemplificam as propriedades F e G, mas lhe são externamente impostas. Se o sal possui a disposição a dissolver-se em água, é porque existe uma relação de necessitação que liga a propriedade de ser sal à propriedade – complexa – de dissolver-se em água” (Ghins, 2013, p.81-82). Assim, o categoricalista deveria dar conta da implicação modal □→, à direita da bicondicional, sem usar, no lado esquerdo, propriedades modais. Isso parece uma tarefa impossível de realizar, segundo Ghins. Ele nos diz que isso é o “suficiente para fazer fracassar toda tentativa de reduzir inteiramente o significado de uma propriedade disposicional àquele de propriedades categóricas” (Ghins, 2013, p.81) e para fornecer razões para a crença em poderes irredutíveis a propriedades categóricas.

O que poderíamos responder a isso é que, em primeiro lugar, a tentativa de redução não é semântica, mas ontológica. Os categoricalistas estritos querem reduzir toda disposição a propriedades categóricas governadas por leis, e não o significado desses termos. Eles têm do lado esquerdo a necessitação conectando as propriedades, constituindo assim a lei. A lei, junto com as instâncias das propriedades governadas pela lei, fazem as coisas terem de acontecer em conformidade com a lei. A disposição do vidro de se quebrar é reduzida à lei sobre como se quebram conexões físicas entre certos tipos de moléculas junto com as instâncias das propriedades da lei presentes no copo de vidro. Nenhum dos universais da lei é ele mesmo modal, nem a necessitação e nem as propriedades relacionadas. As razões para uma lei ser necessária não estão na forma da lei, mas em outros argumentos (alguns deles apresentados em Cid, 2016). Assim, o substantivismo também pode respeitar o requisito de mostrar como algo naturalmente não modal implica frases modais. De todo modo, é ainda possível de se responder que não há necessidade alguma de redução das modalidades, que elas são um aspecto primitivo. Não acreditamos que este seja o melhor caminho de resposta – preferimos o primeiro –, mas também é viável.

As disposições, diz-nos Ghins, por conectarem necessariamente certos tipos de ocorrências com certos tipos de manifestações, dão conta da contrafactualidade. Elas também fornecem uma explicação das regularidades descritas pelas leis científicas. De fato, as leis científicas são suscetíveis de nos informar sobre a natureza interna das coisas de certos tipos de um modo preciso. Além disso, as disposições também podem dar conta das leis probabilísticas de modo elegante, diz-nos o autor, pois podemos identificar as tendências das coisas com as disposições probabilísticas.

Mas todas as entidades têm disposições irredutíveis? Precisamos postular a existência de poderes causais? Ghins pensa que sim, por causa de três argumentos (2013, p.89), os quais apresento a seguir.

  • Argumento I:

Se somos dotados de poderes causais, então temos a capacidade de agir sobre sistemas que são prima facie “inanimados” e “inertes”, isto é, sistemas que são à primeira vista passivos e desprovidos de poderes internos. […] Visto que reagem de modo diferenciado e previsível a determinadas ações nossas, parece razoável supor que os sistemas externos sejam dotados de uma capacidade interna de reagir de uma maneira específica.

Diríamos aqui que, se somos dotados de poderes causais, nada se segue sobre se os objetos também são dotados de poderes causais. Pode ser o caso que poderes causais venham apenas do livre-arbítrio e que apenas seres com livre-arbítrio os tenham (já que os exemplos paradigmáticos de capacidades que temos envolvem situações com opções, como a capacidade de se levantar, quando se está sentado). Além disso, se esse for um argumento a favor de adotar poderes causais irredutíveis, ele assume que somos dotados de poderes causais. Mas um categoricalista estrito nunca aceitaria isso. O que temos são propriedades categóricas, e sua subsunção a leis torna existente a ilusão de que temos capacidades. O modo diferenciável e previsível em que as coisas reagem pode igualmente ser explicado por propriedades categóricas governadas por leis.

  • Argumento II:

Poucas pessoas duvidam que um elétron submetido a um campo eletromagnético se comportará em conformidade com as equações de Maxwell. Se admitirmos que tais contrafactuais sejam verdadeiros, seremos conduzidos a postular a existência de disposições internas, poderes ou potências, que obrigam os sistemas que as possuem a comportarem-se de certa maneira precisamente porque esse comportamento corresponde à sua natureza ou essência.

Tal como argumentamos no parágrafo anterior, não há razões para postular a existência de disposições internas para as coisas; só precisamos de leis da natureza (obrigando os sistemas) e as propriedades categóricas (constituindo os sistemas). Além disso, se postulamos disposições, postulamos infinitas disposições para cada objeto existente, pois são infinitas as situações nas quais podem ocorrer diferentes coisas com os objetos. Costumamos pensar que os objetos particulares têm um número finito de propriedades, e não um número infinito de propriedades disposicionais.

  • Argumento III:

Se postularmos a existência de poderes causais que se manifestam nos processos descritos pelas leis científicas, alcançaremos uma imagem geral e coerente da realidade cujo comportamento tem como base as essências das substâncias.

Isso pode até ser verdade. A imagem geral numa metafísica dos poderes é coerente; no entanto, de modo mais preciso, ela tem certos problemas com a noção de poder que têm de ser solucionados, para que essa coerência se mantenha nas perspectivas menos gerais. De todo modo, é argumentável que uma concepção que não se utilize de poderes e fique apenas nas propriedades categóricas é, além de coerente, mais simples e mais intuitiva. Não estou argumentando em favor disso aqui, neste texto, mas apenas dizendo que isso é argumentável, já que uma concepção governista pode dar conta dos problemas apresentados por Ghins.

Em resumo, a concepção de Ghins (2013, p.85-86) nos diz que

As propriedades categóricas são as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas. […] [As] disposicionais, em circunstâncias favoráveis, lhes permitem comportar-se em conformidade com leis. […] A modelização restringe-se às propriedades categóricas. O que torna as leis verdadeiras são, antes de tudo, os modelos, os quais são estruturas matemáticas. Somente quando consideramos a aplicação desses modelos a sistemas reais é que entram em jogo as propriedades modais de tais sistemas. […] As leis científicas são proposições universalmente verdadeiras que integram teorias científicas bem estabelecidas e que descrevem regularidades existentes na natureza. As regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos. De acordo com essa interpretação metafísica, o problema ontológico da identificação está solucionado, e as leis científicas também adquirem o estatuto de leis necessárias da natureza. Se as leis fossem outras, um campo eletromagnético ou um elétron não poderia continuar sendo a entidade que é pela simples razão de que uma mudança nas leis se traduziria ipso facto numa mudança nas essências das coisas.

No entanto, ainda que fosse possível mostrar que a existência de poderes causais na natureza nos oferece a melhor explicação possível das regularidades observadas e da verdade dos contrafactuais, isso não justificaria a crença na existência de poderes causais, simplesmente porque não há qualquer garantia a priori de que a realidade respeite nossos critérios de inteligibilidade. Por isso, diz-nos Ghins, para validar qualquer afirmação de existência, a evidência empírica é imprescindível. E, de fato, nós temos uma experiência pessoal dos poderes causais: enquanto sentado, por exemplo, estou consciente da minha capacidade de me levantar e caminhar. Ainda que os fundamentos metafísicos das leis sejam os poderes universais, o nosso acesso epistêmico a elas e às demais propriedades naturais depende exclusivamente do sucesso dos modelos científicos e da observação de regularidades recorrentes. Se há disposições irredutíveis, que fundamentam a verdade aproximada dos modelos teóricos, ao sustentar as leis científicas que seriam satisfeitas por esses mesmos modelos, que, por sua vez, foram criados a partir da abstração da realidade nas estruturas perceptivas e nos modelos de dados, então o objetivo de Ghins de criar uma teoria sintética, realista moderada e que fundamente metafisicamente as ciências terá sido cumprido. De modo geral, o que Ghins pretende com esse livro é mostrar que não é irracional acreditar nas disposições essenciais das entidades naturais como fundamentos da verdade aproximativa das leis científicas. E nós concordamos que irracional não é, embora a ideia de poder esteja cercada de mistérios e dificuldades; pensamos, ainda, que, mesmo que não existam poderes irredutíveis, toda a perspectiva de ciência de Ghins pode ser mantida, pois leis da natureza realmente existentes poderiam fundamentar a verdade aproximada das leis científicas, por sustentarem os mecanismos que as leis e os modelos científicos tentam descrever.

Notas

1 Agradeço à CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche, na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Belgique), com a qual foi possível obter a orientação do Dr. Alexandre Guay e ter conversas pessoais com o Dr. Michel Ghins.

2 Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Av. Serra da Piedade, 299, Morada da Serra, Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

3 Aqui vale uma nota, a saber, que uma teoria “mística” – como a previsão do futuro por meio dos búzios – pode acabar sendo empiricamente adequada, no sentido de Ghins, se ela obtém previsões bem-sucedidas e se mede algo no mundo para isso; no entanto, na medida em que essas teorias místicas não costumam ser estatisticamente bem-sucedidas em suas previsões, elas não são empiricamente adequadas. O fato de que elas poderiam ser bem-sucedidas e, assim, empiricamente adequadas nos mostra que ou o conceito de empiricamente adequado não é adequado para restringir o domínio das ciências e para justificar suas práticas ou, no caso de uma teoria mística ser bem-sucedida, teríamos que aceitá-la como empiricamente adequada (tão empiricamente adequada quanto as ciências). Mas o que justifica a prática científica, distinguindo-a de teorias místicas, acredito que nos diria Ghins, é a intersubjetividade da estrutura perceptiva e do modelo de dados.

4 Há um conflito aparente entre a ideia de que as leis são tornadas verdadeiras por modelos e a ideia de que os poderes causais são o fundamento das leis. Se os poderes causais fundam as leis, então são eles, e não os modelos, que as fazem verdadeiras. Além disso, se modelos e proposições têm o mesmo estatuto ontológico de serem entidades representacionais, portadores de valor de verdade (truth bearers) ou de algum outro valor (como adequação/inadequação), um não pode ser o veridador do outro, já que veridadores não são entidades representacionais. Mas é argumentável que um modelo é justamente o modelo de um poder causal. Se esse for o caso, então, se for o poder ou se for o modelo do poder que tornam a lei verdadeira, isso não fará diferença. O ponto, talvez, aqui, seja apenas um preciosismo terminológico, no qual diríamos que um modelo é feito verdadeiro (ou aproximadamente verdadeiro), tal como uma lei científica, por um poder causal, embora o modelo satisfaça sempre a lei científica. Embora uma lei científica e um modelo teórico só sejam aproximadamente verdadeiros, dada a distância entre a teoria e a realidade, a relação de satisfação entre o modelo e a lei não é aproximada. Se um modelo não satisfaz a lei, ele tem de ser mudado ou a lei tem de ser mudada. A escolha entre mudar o modelo ou a lei é pragmática.

5 Leis mais gerais da mecânica estatística de partículas.

6 O problema da inferência também pode ser expresso em outros termos, com menos compromissos ontológicos, se pensarmos que o que devemos explicar é a condicional: N(F,G) → (x)(Fx→Gx). Esta formulação é preferível, se quisermos tratar do problema sem a pressuposição de que há também o universal da necessitação no domínio dos particulares (o autor usa sua própria formulação, pois se direciona contra a concepção armstronguiana, que, de fato, pensa que a necessitação é idêntica à causalidade singular e, por isso, age também nos particulares). Um universalista transcendentalista crente da necessitação, por exemplo, poderia querer dizer que a necessitação, como universal, transcende os particulares, mas que a causalidade singular entre estados de coisas é apenas uma instância da necessitação. No entanto “(x)(Fx→Gx)” é neutro o suficiente para não pressupor nem a instanciação da necessitação. A condicional nos diz que a necessitação N, relacionando as propriedades universais F e G, implica que tudo que é um F é também um G. Como explicar essa implicação?

7 Michel Ghins, numa conversa privada, disse-me que tem plena noção de que esse problema também se aplica à sua metafísica dos poderes. Sua solução é dizer que ele identifica as propriedades naturais com as propriedades definidas pelas teorias científicas; no entanto, essa solução não é exclusiva ao metafísico dos poderes, mas logicamente possível também a qualquer teórico das leis. Por exemplo, Armstrong (1983), como defensor da necessitação contingente das leis, e Cid (2011), como defensor da necessidade metafísica das leis, sustentam, ambos, que devemos pensar as propriedades naturais como as propriedades indicadas pelas ciências.

8 De fato, eu acredito que o poder explicativo do conectivismo é menor que o do substantivismo, principalmente do substantivismo ante rem. Podem-se encontrar argumentos em Cid (2011). Vou apresentar alguns a seguir.

9 Ou, alternativamente, no caso do defensor dos átomos metafísicos, quando duas partículas do tipo X (do tipo átomo metafísico) interagem do modo Y, elas produzem F.

Referências

ARMSTRONG, D. 1983. What is a law of nature? Cambridge, Cambridge University Press, 180 p.

BIRD, A. 2007. Nature’s Metaphysics. Laws and Properties. Oxford, Clarendon Press, 246 p.

CID, R. 2011. O que é uma lei da natureza? Rio de Janeiro, RJ. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 114 p.

CID, R. 2016. São as leis da natureza metafisicamente necessárias? Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 184 p.

LEWIS, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge, Harvard University Press, 168 p.

PSILLOS, S. 2002. Causation and Explanation. Montreal, McGill-Queen’s University Press, 336 p.

TOOLEY, M. 1977. The Nature of Laws. Canadian Journal of Philosophy, 7(4):667-698. https://doi.org/10.1080/00455091.1977.10716190

VAN FRAASSEN, B. 1989. Laws and Symmetry. Oxford, Oxford University Press, 416 p.

Rodrigo Reis Lastra Cid – Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Leyes sin causa y causas sin ley – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Leyes sin causa y causas sin ley. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2014. BARAVALLE, Lorenzo. O mosaico causal do mundo orgânico. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 3, p. 685-94, 2015.

No princípio – como muitas vezes acontece na filosofia da ciência – era Hume. E, aos olhos dele, o mundo natural era apenas uma coleção de fenômenos. O ser humano, uma criatura dirigida por uma série de hábitos profundamente arraigados, enxerga necessidade onde nada mais há que uma repetição de eventos contingentes similares, espacialmente próximos e temporalmente ordenados, e chama essa repetição de relação causal. Esta não está lá fora, no mundo, como imaginavam os metafísicos da época, mas em nós, nos observadores, e, por isso, nada nos assegura que, amanhã, das mesmas causas seguir-se-ão os mesmo efeitos.

Por quanto impecável do ponto de vista de um empirismo radical como o de Hume, sua caracterização da relação causal possuía algumas implicações indesejáveis para quem, como os empiristas posteriores a ele, pretendiam distinguir entre certas causas “autênticas” – como aquelas postuladas pelas teorias físicas – e outras meramente aparentes. Se qualquer sequência regular com as características acima descritas pode ser considerada como causal, como Hume parece admitir, então muitos eventos que intuitivamente não são tidos como causalmente relacionados, porque meramente correlacionados, passam a sê-lo. Como impedir a proliferação dessas pseudocausas? A solução do problema, geralmente atribuída a Hempel, embora sua paternidade, como mostra Caponi (cf. p. 15), seja disputada por Popper, consiste em dizer que apenas os eventos subsumidos sob uma lei científica podem ser considerados como causalmente relacionados. Em suma, que sem leis não há causas.

As leis científicas são consideradas, nessa tradição de pensamento, como generalizações universais irrestritas, isto é, enunciados válidos em qualquer porção de espaço-tempo e independentemente da existência, contingente, de objetos que as instanciam. Elas jogam um papel fundamental na explicação científica. Para Hempel, como é sabido, a explicação científica é uma inferência que permite derivar um explanandum (o enunciado que expressa o fato a ser explicado) a partir de um explanans (um conjunto de enunciados que constituem as premissas da inferência). Embora Hempel tivesse proposto vários modelos de explicação científica, o primeiro e mais conhecido é aquele chamado de “dedutivo nomológico particular”, no qual o explanandum, constituído por um enunciado que expressa um fato específico, é deduzido a partir de um explanans que, por sua vez, é constituído por outros enunciados de fatos particulares e por, pelo menos, uma lei. É justamente nisso que reside o caráter “nomológico” do modelo hempeliano, pois a presença de leis na explicação garante a validade da relação explicativa entre explanans e explanandum e, em última instancia, sua cientificidade. Embora nem todas as leis expressem relações causais (um ponto sobre o qual, como veremos em breve, Caponi justamente insiste), uma consequência implicitamente aceita do modelo hempeliano é que a possibilidade de falar de relações causais entre os fenômenos estudados por uma disciplina científica está subordinada à possibilidade de produzir, nessa mesma disciplina, generalizações nomológicas. Isto é, só há causas onde há leis.

A simplicidade e a elegância do modelo explicativo hempeliano escondem, na verdade, um sem fim de problemas epistêmicos mais ou menos graves (cf. Salmon, 1989). Notoriamente, ele colocou por um longo tempo os filósofos da biologia em uma situação bastante embaraçosa. Como observaram, entre outros, Smart (1963) e Beatty (1995), na biologia, é extremamente difícil, se não impossível, encontrar leis no sentido requerido por Hempel (isto é, generalizações universais irrestritas). Entretanto, conforme o modelo dedutivo nomológico, não pode haver explicação científica sem leis e, pelo que acabamos de dizer, parece não haver maneira de identificar relações causais se não por meio de explicações científicas, de modo que não parece possível falar de relações causais propriamente ditas na biologia. Mas, se isso for realmente assim, então a biologia seria uma disciplina de alguma maneira subordinada a disciplinas, tais como a física ou a química, cujo caráter nomológico é inegável.

É aqui que Gustavo Caponi entra em cena com seu novo livro, trazendo ar fresco a um debate que por várias décadas dividiu quem parecia estar disposto a abandonar a biologia a seu destino de ciência sem leis e, portanto, “sem causas” próprias, e quem insistia em encontrar um modelo explicativo ou uma definição de lei menos estritos e, portanto, mais adaptáveis às exigências das ciências especiais. Para Caponi, não é preciso abandonar a noção de lei tradicional para constatar que no domínio da biologia há tanto leis como causas. Se outros filósofos, no passado, pensaram diversamente é porque estabeleceram uma infértil e artificial equação entre essas duas noções. Uma equação que, uma vez dissolvida, permite mostrar o pleno potencial da biologia e reconhecer seu lugar entre as outras ciências explicativas. Para esse fim, Caponi, com sua característica prosa agradável e de clareza exemplar, limpa o caminho de uma serie de confusões conceituais sobre o tema e, articulando ativamente a chamada “concepção experimentalista” da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971; Woodward, 2003), retrata uma imagem da estrutura explicativa das ciências da vida original e fiel à prática epistêmica do biólogo. O livro de Caponi é composto por 4 capítulos, que definem o argumento principal, e um Anexo final sobre a explicação teleológica e a noção de desenho na biologia evolutiva. Tendo em conta o espaço a disposição, e com a finalidade de apresentar com a devida profundidade os elementos mais importantes da concepção defendida por Caponi, limitar-me-ei a discutir a primeira parte do texto, convidando o leitor a descobrir por si próprio como o Anexo completa tal concepção.

1 DO CARÁTER NOMOLÓGICO À INVARIÂNCIA

Nos últimos 20 anos, o pessimismo de Smart e Beatty com respeito à possibilidade de individuar regularidades nomológicas em biologia foi deixando o passo àqueles que, como Brandon (1990), Sober (1984) e muitos outros, argumentam que algo do tipo do princípio da seleção natural, segundo o qual “se a é melhor adaptado que b em um ambiente E, então (provavelmente) a terá um maior sucesso reprodutivo que b em E” (Brandon, 1990, p. 11) ou, de modo mais geral, do tipo das fórmulas da genética de populações são, efetivamente, leis oriundas da biologia. Compartilhando apenas parcialmente o entusiasmo desses filósofos, o problema que Caponi levanta no primeiro capítulo de seu livro é o de saber se é suficiente afirmar o caráter nomológico de tais enunciados para certificar-se da existência de explicações causais autênticas no âmbito da biologia? A resposta de Caponi é negativa, mas é justamente a partir desse desanimador começo que, como veremos, ele pode alcançar uma concepção da estrutura teórica da biologia mais madura e sofisticada. Não apenas o caráter nomológico não é suficiente para definir a causalidade, mas tampouco é necessário.

Mesmo Hempel (1965) admitia que nem todas as leis científicas são leis causais, dado que algumas delas expressam apenas uma relação matemática entre variáveis. Muitas leis não causais – as que Caponi (p. 45 ss.), adotando a terminologia de Sober (1984), chama de “leis consequenciais” – sugerem apenas que, entre certas classes de fenômenos, está ocorrendo alguma relação causal, mas não revelam em que consiste, efetivamente, tal relação. Embora também as leis consequenciais sejam informativas, alguns críticos do modelo dedutivo nomológico (cf. Salmon, 1997) argumentaram que somente as leis causais permitem formular explicações totalmente satisfatórias.

Se tomamos em consideração a física, é fácil ver que as leis físicas em sua maioria, e, portanto, as explicações nelas baseadas, são causais porque “dão conta da origem, da fonte, da constituição, de uma força ou agente de mudanças, e elas também nos indicam a intensidade que essa força ou agente de mudanças deverá ter” (p. 46). É assim também na biologia? Consideremos um exemplo clássico de lei na genética populacional (p. 37):

dp/dt = p (wA – W)/W. (1)

Ela nos diz que a frequência de um fenótipo em uma certa população aumenta na medida em que o valor seletivo (wA) de tal fenótipo supera o valor seletivo pro-médio dos outros fenótipos presentes na mesma população. A noção de “valor seletivo” (ou outras equivalentes, como “sucesso reprodutivo”) é meramente quantitativa, isto é, ela não indica por que a frequência do fenótipo em questão aumenta, já que não especifica as características ecológicas que fazem com que tal fenótipo possua, efetivamente, esse valor seletivo, mas apenas como esse valor influirá nas frequências dos outros fenótipos e, definitivamente, na composição da população. Em outras palavras, ele não indica as causas que estão operando na distribuição dos fenótipos na população. Portanto, (1) é uma lei consequencial. Assim como quase todas as leis da biologia, argumenta Caponi, ela é incapaz de ir para além de uma representação a posteriori de como certos efeitos estão inter-relacionados e, como consequência disso, não pode proporcionar explicações causais.

Há, também na biologia, pelo menos um exemplo de lei causal, a saber, a lei de Fisher sobre a proporção de gêneros (cf. Sober, 1984, p. 51 ss.). Estabelecendo que o fenótipo correspondente ao gênero menos difuso em uma população será aquele com maior valor seletivo, a lei de Fisher explicita, de fato, o que em (1) é deixado sem especificar, isto é, a natureza da característica ecológica que, no contexto em exame, causará uma variação na frequência do fenótipo em questão. Caso fosse possível encontrar outras leis análogas, capazes de determinar, com certo grau de universalidade, quais fenótipos possuirão um maior valor seletivo em uma população dadas certas condições ambientais, então o problema de encontrar explicações causais autênticas na biologia estaria virtualmente resolvido. Porém, Caponi (p. 64-8) argumenta, em minha opinião convincentemente, que elas, embora não impossíveis de encontrar, são extremamente raras, devido ao fato de que, dadas certas condições ambientais, as maneiras pelas quais uma população tem de adaptar-se a elas são muitas e potencialmente imprevisíveis. A lei de Fisher seria, então, a clássica “exceção que confirma a regra”: ela funciona bem como lei causal porque, nas espécies sexuadas, os gêneros são variáveis binárias. Todavia, não podemos esperar que ela funcione como modelo para outras leis, já que essa situação é muito pouco frequente no mundo orgânico.

Talvez, e essa é a grande aposta de Caponi – como ele mesmo sugere no segundo capítulo de seu livro –, não é no caráter nomológico que deveríamos procurar o caráter causal da explicação biológica. Opondo-se à tradição neo-humeana, conforme a qual – como lembrei no começo desta resenha – o caráter nomológico é condição necessária para atribuir causalidade, Caponi propõe reconhecer uma prioridade e independência conceitual à noção de causa com respeito à de lei (p. 69 ss.). Adota, ao fazer isso, a que é conhecida como perspectiva experimental ou manipulativa da causalidade (cf. Gasking, 1955; Von Wright, 1971) e, em particular, a proposta de James Woodward (2003). Conforme esta última proposta, “as atribuições causais (…) são feitas (…) com base na ideia de que a causa de um fenômeno é sempre outro fenômeno cujo controle permitiria, ou nos teria permitido, controlar a ocorrência daquele que chamamos seu efeito” (p. 72). Em outras palavras, a causalidade está relacionada com um fazer, mais do que com um saber: é uma noção, em certa medida, pré-teórica e anterior a nossas atribuições nomológicas.

Para esclarecer essa noção, Caponi introduz um dos exemplos mais recorrentes do livro: a da “rádio calchaquí”, uma rádio pequena e velha, perdida no meio dos vales Calchaquis na Argentina, que, devido à ação do tempo, apresenta um funcionamento anômalo (p. 77 ss.). O dispositivo que regula o volume é invertido. Isto é, movendo-o em sentido horário o volume desce e, movendo-o em sentido anti-horário, sobe. Embora sem conhecimento de uma hipotética lei que regeria o comportamento de nossa rádio, depois de um pouco de prática, reconheceríamos sem problemas que há uma relação causal entre o movimento do potenciômetro e as oscilações do volume. Mas como se justifica tal conhecimento se, de fato, não deriva do conhecimento prévio de uma regularidade nomológica? A resposta de Caponi é que ele é determinado pelo fato mesmo de estarmos “em condições de controlar o estado de uma variável X em virtude de nossa manipulação de outra variável Y” (p. 80). Mais especificamente, embora não saibamos explicar por que a rádio se comporta assim, “temos ao menos o começo de uma explicação quando identificamos fatores ou condições cuja manipulação ou mudança produzirá mudanças no resultado que está sendo explicado” (Woodward, 2003, p. 10).

O funcionamento da rádio calchaquí exibe o que Woodward chama uma “invariância”, isto é, uma regularidade local que, embora sem possuir a universalidade própria de uma lei causal (já que, bem ao contrário, é válida até onde sabemos para um só caso), é suficientemente sólida para suportar condicionais contrafactuais. Woodward (2003, p. 133-45), e com ele Caponi (embora não explicitamente), seguem David Lewis (1993 [1973]) na ideia de que é a capacidade de suportar contrafactuais – e não sua nomicidade, a qual seria, eventualmente, uma consequência de tal capacidade – que revela o conteúdo causal de um enunciado. Porém, em lugar de fundar, como Lewis, essa capacidade em uma particular ontologia dos mundos possíveis, Woodward e Caponi identificam essa capacidade – mais prosaicamente, mas também mais eficazmente – com a propriedade, característica de uma invariante, de manter-se estável em certa quantidade de intervenções.1 No nosso exemplo, observando que a oscilação do volume depende da manipulação do potenciômetro, estamos na posição de estabelecer o valor de verdade de séries de contrafactuais e, consequentemente, certificar a relação causal entre os dois fenômenos. Na medida em que uma invariância suporta um maior número de intervenções, ela é mais abrangente e pode ser considerada, eventualmente, uma lei causal. Todavia, o ponto importante para manter em vista é que “Woodward (…) conseguiu colocar em evidência que a efetividade do vínculo causal estabelecido por um invariante não é diretamente proporcional a sua universalidade, mas a sua estabilidade sob intervenções, ainda quando esta última se cumpra apenas dentro de uma esfera muito restrita” (p. 99), a saber, que o caráter nomológico derive da possibilidade de individuar relações causais e não vice-versa.

2 A EXPLICAÇÃO BIOLÓGICA EM UM MUNDO FÍSICO

Até aqui tudo bem. Mas como a concepção experimental nos ajuda, exatamente, a explicitar, na explicação biológica, aquelas relações causais que ficavam ocultas em suas leis consequenciais? Quando se trata de processos evolutivos não possuímos, na maioria dos casos, a mesma capacidade material de manipular variáveis como no caso de nossa velha rádio calchaquí. Podemos, porém, figurar-nos intervenções hipotéticas a partir de outras factualmente possíveis. Não entraremos aqui nos detalhes sobre este ponto mas, com relação a isso, é interessante lembrar que, na formulação de sua teoria, Darwin inspirou-se – entre outras coisas – na seleção artificial dos pombos domésticos, isto é, uma atividade propriamente manipulativa, extrapolando depois as características fundamentais de tal processo a um outro apenas hipoteticamente manipulável, a seleção natural (cf. p. 83-5). Dada essa possível extensão da noção de manipulabilidade, Caponi propõe considerar, no terceiro capítulo de seu livro, as distintas pressões seletivas, tão diferentes entre si – devido às potencialmente infinitas circunstâncias morfológicas, fisiológicas e comportamentais que jogam um papel na evolução de uma determinada população – como invariantes particulares.

Mais uma vez, Caponi (p. 106 ss.) esclarece sua estratégia com um exemplo. Uma das mais conhecidas ilustrações da ação da seleção natural é, sem dúvida, o fenômeno do melanismo industrial em Biston betularia. Devido a certas características ecológicas – a presença de aves predadoras e a coloração das superfícies de pouso, constituídas por árvores obscurecidas pela ação poluente do fumo das fábricas da região –, nas populações dessa espécie de mariposa onde estão presentes uma variante mais clara e outra mais escura, a variante com a coloração mais escura tende a um maior sucesso reprodutivo. A frequência dos fenótipos, nessas populações, corresponde àquela prevista por (1). Não há, todavia, uma lei causal – universal – que explique por que, nessas populações, acontece essa distribuição. Significa isso que não podemos explicar causalmente o fenômeno? Tal conclusão seria completamente insatisfatória, se levássemos em conta que, do ponto de vista de um biólogo evolutivo, é justamente esse tipo de explicação aquela desejada em casos análogos a esse.

Afortunadamente, alinhados com a análise realizada anteriormente, não precisamos de uma lei causal para obter tal explicação. No caso do melanismo industrial, a relação entre a coloração das mariposas e das superfícies de pouso é estável sob várias intervenções. Isto é, manipulando experimentalmente o segundo fator – obrigando, por exemplo, as fábricas a usar filtros que reduzam a poluição –, é possível controlar o primeiro – a cor das mariposas. Por meio de tal manipulação podemos, em última instância, determinar o fenótipo que será mais adaptativo intervindo em sua ecologia. Estamos, em outras palavras, em presença do que Caponi chama de um “invariante seletivo” da forma.

Se, em populações de insetos de ecologia análoga a essas de Biston betularia, nas quais aconteceu o melanismo industrial, ocorrem colorações alternativas tais que uma seja mais contrastante com as superfícies de pouso que as outras, então, nessas populações, as colorações menos contrastantes serão as ecologicamente mais aptas (p. 116).

Tal invariante admite, como é fácil ver, um sem fim de exceções, já que é virtualmente impossível estabelecer todos os fatores ecologicamente relevante em um caso concreto, mas é suficientemente sólido para servir de base a uma série de contrafactuais. E isso é tudo o que ele tem que fazer. Conforme o enfoque experimental, onde há invariância, há apoio de contrafactuais; onde há apoio de contrafactuais, há relação causal; e onde há relação causal, é possível, ao menos em princípio, fornecer uma explicação causal.

A biologia (em particular a biologia evolutiva – que foi a única a ser tratada explicitamente nesta resenha –, mas não somente) constitui-se, explicativamente, sobre um “mosaico de invariantes” – cito Caponi por inteiro – “sempre locais e caducáveis, que, como a mortalha tecida e destecida por Penélope, está em permanente estado de reconfiguração” (p. 120). Nisso, a biologia distingue-se da física. Embora ambas possuam leis consequenciais as quais proporcionam uma unidade teórica bem característica, apenas a física pode contar com leis causais universais. A biologia – ainda que, como vimos, existam exceções como a lei de Fisher – produz explicações causais a partir de invariantes locais e mutáveis.

A imagem do mosaico não satisfaria aquele que, como o próprio Hempel, considera que, em última instância, deve existir uma base causal subjacente, comum a todas as ciências, com uma forma nomológica: uma estrutura oculta de leis eternas e imutáveis (cf. Woodward, 2003, p. 159 ss.). De acordo com essa perspectiva, as ciências como a biologia estariam em um constante estado de heteronomia nomológica, isto é, forneceriam explicações apoiando-se em leis do domínio da física ou da química.

Para elucidar a relação entre propriedades biológicas e mundo físico – e assim reafirmar a autonomia da explicação biológica –, Caponi defende, no último capítulo de seu livro, uma versão clássica de fisicalismo (cf. Stoljar, 2015), que combina superveniência com múltipla possibilidade de realização. Nessa perspectiva, uma propriedade não física é necessariamente instanciada por uma propriedade física, mas não necessariamente pela mesma propriedade física em todas suas instâncias. Isso implica, diz Caponi, seguindo Sober (2010, p. 226), que “não pode haver diferença biológica sem diferença física, mas pode sim haver semelhança biológica sem semelhança física” (p. 151 ss.).

A originalidade de Caponi é que, em lugar de simplesmente contentar-se com essa posição de compromisso entre reducionismo e autonomia explicativa, articula um critério que pode ajudar-nos a entender, em domínios específicos da biologia, quais são os fenômenos que podem ser proveitosamente explicados em termos físico-químicos e quais, ao contrário, deveriam manter a própria autonomia. Tal critério depende da noção de “grau de superveniência” (p. 154 ss.): “dados dois sistemas ou objetos, quanto menos delimitado ou especificado esteja o conjunto de predicados físicos dos quais depende a correta atribuição, a ambos, de um predicado biológico, mais superveniente será esse predicado” (p. 159). Um predicado concernente à atribuição de um determinado traço anatômico-funcional em fisiologia, embora seja multiplamente realizável, está especificado por um conjunto menor de predicados físicos do que um predicado concernente à atribuição genérica de um traço adaptativo em ecologia evolucionária. Isto é, há menos maneiras de realizar fisicamente, por exemplo, um olho, do que uma complexa propriedade ecológica. Segundo Caponi, embora ambas as propriedades sejam dependentes de uma base física, é mais promissor procurar explicações reducionistas no primeiro caso do que no segundo.

Quanto maior é o grau de superveniência das propriedades estudadas, mais liberdade temos para não nos comprometer em tentativas de explicar os fenômenos a elas associadas que obedeçam a uma perspectiva reducionista, e mais incertos são os lucros cognitivos desse compromisso (p. 160).

Esse enfoque não viola, em nenhum caso, a clausura causal da física (cf. p. 162 ss.), já que não nega que exista uma ontologia básica fisicalista, mas coloca em dúvida que usar os óculos das ciências mais básicas seja sempre a melhor maneira para entender os fenômenos naturais.

3 FINAS MANIPULAÇÕES E MARTELADAS

As vantagens do enfoque experimental sobre o hempeliano, e qualquer outro modelo nomológico (cf. Woodward, 2003, cap. 4), são demasiado importantes para que possam ser ignoradas por qualquer filósofo da ciência. Parafraseando Caponi (p. 161), o qual, por sua vez, inspira-se em Suppe, ele tem todas as vantagens das finas manipulações no software sobre as “marteladas” no hardware. Dentre os que estão atualmente disponíveis, nenhum outro modelo, além do modelo de Woodward é, em minha opinião, capaz de oferecer uma análise epistemológica da causalidade e da explicação causal tão acurada. Ele oferece a possibilidade de levar a análise da explicação científica a um grau de detalhe impensável para o modelo hempeliano, o qual, por suas ambições de universalidade, mal se adapta às exigências das ciências especiais. O grande mérito de Caponi é de ter sido capaz de derivar, esclarecer, organizar e desenvolver todas as principais consequências do modelo de Woodward de uma maneira accessível e “pronta para o uso” dos filósofos da biologia de fala espanhola e portuguesa. Seu livro é rico de estímulos e, com certeza, será o ponto de partida de muitos debates futuros.

Notas

1 De Lewis, é importante lembrá-lo, Woodward e Caponi distanciam-se também pelo caráter não redutivo da análise da noção de causa. Isto é, Woodward e Caponi não pretendem definir o conceito de causa a partir do conceito, supostamente mais elementar e primitivo, de manipulação, mas apenas mostrar como este último, que é também essencialmente causal, é elucidativo com respeito a certas relações causais concretas.

Referências

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Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Humanas e Naturais. Universidade Federal do ABC, Santo André, Brasil. E-mail:  [email protected]

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