Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel – NOBRE (C-FA)

NOBRE, Marcos. Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Sobre jovens e velhos: Marcos Nobre entre Fenomenologia e Sistema. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 23 n.2 Jul-Dez, 2018.

Tornou-se comum no último meio século – pense-se paradigmaticamente em Honneth – narrar filosoficamente a história da teoria crítica da sociedade como uma trama de sucessivas oportunidades vislumbradas, porém perdidas, para uma adequada crítica da dominação.2 Numa das variantes desse verdadeiro paradigma narrativo estabelecido, caberia a cada vez recuperar as intuições de juventude não desenvolvidas por filósofos sociais que, em vez de amadurecê-las, delas se extraviaram, se tornando velhos incapazes de ver a emergência da novidade. Em sendo prima facie “apenas” uma (excepcional, diga-se de passagem) leitura estrutural da Introdução da Fenomenologia do espírito, o recente livro de Marcos Nobre, Como nasce o novo, esboça praticamente uma teoria geral desse suposto enrijecimento da crítica e vai buscar de modo metacrítico no jovem Hegel um antídoto contra esse envelhecimento. Seu empreendimento levanta hipóteses fecundas e mostra, sem dúvida, um caminho para escapar do estado há anos estacionado e estéril da teoria crítica neofrankfurtiana. Sugiro aqui, no entanto, uma avaliação de até que ponto o próprio Nobre responde satisfatoriamente a suas pretensões e propósitos. Trata-se de objetivos que o resenhista acredita compartilhar com o autor, de modo que o sentido dessas considerações é o de um debate franco sobre o melhor modo de alcançar certos objetivos comuns.

A ligação entre os dois planos tão díspares do livro, a leitura estrutural de um texto clássico e a metacrítica da (pré-)história da teoria crítica, é feita pela mediação de uma chave de interpretação do texto hegeliano como aquilo que Nobre chama de “modelo filosófico”, isto é, uma interpretação que postula a sua autonomia e subsistência como obra fechada e apartável de uma consideração sistematizante da obra de Hegel como um todo, levando em conta ainda a sua relação não com as intenções subjetivas do filósofo, mas com a experiência objetiva do tempo à qual o livro responde, ou, na expressão reiterada por Nobre, com as suas condições de produção intelectual. Numa palavra, a tese central de Nobre é que a Introdução da Fenomenologia absorveria e registraria na forma de um programa de método filosófico a eufórica experiência da emergência do novo vivida nos tempos de sua redação (a entrada da modernização a cavalo na Prússia), servindo como que de arquétipo de um modo “jovem” de se fazer teoria crítica que deveria ser recuperado. Nobre divide sua exposição em duas partes principais, o “trabalho de análise e comentário do texto da Introdução” e a sua própria “tomada de posição” em relação a ele.

3 Na ordem da apresentação, esta vem antes daquele, com o próprio texto de Hegel intercalado, vertido novamente para o português pelo próprio Nobre. Inverterei aqui esta ordem, passando, entretanto, apenas brevemente pelo comentário ao texto hegeliano e dirigindo o interesse sobretudo à posição de Nobre sobre “a importância desse modelo de pensamento para o momento presente” (p. 9).

A sempre mais estreita especialização imposta pelo modo de operação das universidades e sua distribuição de recursos inibe entre nós a produção de trabalhos como o de Nobre. Reconhecido como um “especialista” nas tradições frankfurtianas, o autor realiza uma exegese de Hegel que não fica aquém da primeira linha de obras de hegelianos brasileiros – o que não surpreende em vista da notória competência transdisciplinar de um filósofo que se destacou nos últimos anos como um dos mais importantes analistas da conjuntura política. O texto é informado em particular pela literatura secundária clássica e mais recente alemã, francesa, estadunidense e brasileira e oferece amparos sólidos para suas teses interpretativas centrais em substanciosas notas de rodapé, entregando ao leitor ainda um panorama das interpretações divergentes encontráveis. Estas teses, para ir logo ao ponto, dizem respeito aos momentos de início e de conclusão da Fenomenologia. Trata-se para Nobre de descerrar o texto desses limites iniciais e finais e mostrar que o livro não começa nem termina onde se costuma fazê-lo começar e terminar. Essa reabertura do texto é justificada ainda extratextualmente pela remissão a dois fatos contextuais: o de que Hegel escreveu a Fenomenologia e, em particular, a sua Introdução, como introdução a um sistema ainda inconcluso (isto é, como a entrada em um sistema fechado ainda aberto ); e isso no exato momento em que os exércitos franceses e, junto com eles, a ordem político-econômica burguesa, conquistavam a Prússia e aceleravam a dissolução da ordem feudal ali vigente (entenda-se: no momento histórico em que um potencial revolucionário se atualiza sem que se saiba ainda aonde vai dar). É como se, na Fenomenologia, Hegel tivesse cristalizado o próprio processo aberto, produzido algo que ainda não sabe o que é, trazendo a abertura de seu próprio tempo ao conceito.4

Intratextualmente, isso significa sustentar, por um lado, que no livro de 1807 o movimento da experiência não tem início, como em geral se sustenta e como a própria obra induz a ser lida, com o momento da certeza sensível, mas já antes na Introdução. Em outras palavras, na Introdução, já estaríamos no interior da experiência fenomenológica, que pega o bonde em movimento no seu exato tempo presente e o toma como pressuposto para poder negá-lo de modo determinado.

Esse pressuposto atual inescapável, no qual a experiência começa apenas a fim de negá-lo, é uma concepção representativa de conhecimento que Nobre, na esteira da primeira frase da Introdução, chama de “representação natural” (correspondente em certa medida, mas não de modo tão determinado, à concepção kantiana de conhecimento). Essa “representação natural” é levada às suas últimas consequências e o resultado é uma concepção “apresentativa” de conhecimento (concepção que se revela, num nível “meta”, como a que acabara de estar em ação nessa apresentação da passagem da representação à apresentação). Tendo entendido a si mesma, vindo a saber que não tem nenhuma “fixidez ontológica” e retirado o entrave da concepção representativa de conhecimento do caminho fenomenológico, a experiência precisa então retornar à certeza sensível como modo de recuperar a história de como se prendeu às positividades prévias e de como delas se desprendeu, e assim reabrir no presente o caminho para o novo. A outra tese interpretativa central é a de que a passagem da razão ao espírito no meio do livro não representa uma ultrapassagem do ponto de vista da experiência, que na verdade caminha até o saber absoluto na conclusão do livro. Também o saber absoluto é, para Nobre (apoiado parcialmente em Hans Friedrich Fulda), experiência da consciência, e não recai, portanto, num ponto de vista de Deus que seria aquele típico do sistema enciclopédico. A tese de Fulda é que o saber absoluto ainda é um saber experimentado, finito, de modo que também ele precisa ainda se pôr em movimento (p. 45). Mesmo que em formulações distintas, essa é por excelência a compreensão “jovem-hegeliana de esquerda” (à qual Nobre se filia (p. 220)), para a qual o sistema pronto e acabado de Hegel, justamente ao ser levado a sério em seu teor de verdade, entrava novamente em contradição na experiência com a realidade irreconciliada, exigindo a emergência de uma nova suprassunção, dessa vez prática.

As duas teses interpretativas de Nobre sobre o início e o fim da Fenomenologia – a) a de que o movimento dialético da experiência tem início já na Introdução e, nesse sentido, inicia sua dança lá onde se encontra a rosa, em sua experiência histórico-filosófica presente, e b) a de que esse movimento não termina onde parece terminar, mas projeta-se para além de si mesmo, uma vez que permanece finito –, essas duas teses convergem para a definição de “modelo filosófico” como obra que responde a seu tempo e que se sustenta sem recurso aos demais momentos da obra do autor. A ideia é que a Fenomenologia, ao contrário do estabelecido hegemonicamente na literatura secundária, não pressuporia o sistema pronto e acabado. Ela é “simplesmente” um engajamento filosófico crítico com o estado de coisas presente, sem ancoramento numa verdade definitiva atemporal (o sistema, do qual Hegel ainda não dispunha), e que começa sua ação partindo não de uma abstrata experiência imediata em geral (certeza sensível), mas sim da sua própria experiência imediata concreta (a concepção representativa de conhecimento), a fim de eliminar os entraves para a emergência de um novo que, de resto, já marchava ao seu encontro. A Introdução da Fenomenologia se destacaria então como texto paradigmático para a determinação da tarefa da crítica em geral porque, no corpus da obra de Hegel, é o local inaugural onde o filósofo se dirige precisamente aos “entraves autoimpostos” de seu tempo, a fim de eliminá-los e de liberar o automovimento do conceito.

Mas a caracterização da Fenomenologia como “modelo” possui ainda um aspecto decisivo para o horizonte do trabalho de Nobre. Não se trata apenas de dizer que o texto de 1807 para em pé sem o escoro da Lógica ou da Enciclopédia, isto é, do sistema em geral. Se a Fenomenologia é um “modelo” que responde a um diagnóstico de tempo específico, o programa filosófico da Enciclopédia, no qual se encaixam, por exemplo, a Lógica e a Filosofia do Direito, é, por sua vez, um “modelo” distinto que só emerge pela necessidade de reagir a um outro diagnóstico. “Mudanças na posição de Hegel estão necessariamente vinculadas a mudanças de diagnóstico de tempo”, diz Nobre (p. 23).5 O autor não é obviamente o primeiro a constatar essa relação, mas sua originalidade está nas consequências teórico-programáticas que deseja dela derivar. Para Nobre, trata-se buscar as “afinidades desse modelo filosófico [da Fenomenologia ] com o momento atual e suas condições de produção intelectual” e “projetar Hegel para além de 1807” (p. 10). A fim de verificar a plausibilidade desse programa hoje, é preciso entender melhor que passagem foi aquela que teria levado Hegel à necessidade de formular um novo “modelo”.

A Fenomenologia se distinguiria enquanto “modelo” por dar conta de uma transformação epocal em curso, a invasão napoleônica na Prússia e a consequente modernização das suas relações políticas, econômicas e sociais, da qual Hegel era, todavia, partidário. O “nascimento do novo” ao qual Hegel quis fazer jus em seu texto corria em paralelo com as transformações radicais que vinham do outro lado do Reno. Em registro filosófico, Hegel deveria dar conta do fato de que “o nascimento do novo se dá em uma situação de descompasso entre uma consciência que ainda não está à altura da real novidade do seu tempo (que corresponderia ao que Hegel chama de consciência ‘natural’) e aquela forma de consciência (chamada de ‘filosófica’ pela bibliografia hegeliana) que alcançou uma compreensão de seu tempo em todos os seus potenciais” (p. 18). A “real novidade” é, obviamente, a deposição do Antigo Regime e a instauração de uma ordem burguesa.

É como se se tratasse então de elevar a filosofia ao nível de racionalidade já atingido pelas relações sociais reais.

Mas há algo de incomodamente delicado nessa tese: o nascimento do novo de Hegel é então não mais do que a atualização do (aqui) atrasado à altura de um novo (alhures) já surgido? Se não quisermos enfraquecer o argumento a tal ponto, é preciso antes compreender que espécie de “novo” Hegel pretende de fato estar vendo emergir, um novo que não apenas acertasse os ponteiros com o fuso francês, mas lhe fizesse avançar mais um grau do relógio histórico. Mas este é o momento em que Nobre diverge e prefere não acompanhar o envelhecimento do filósofo.

Ora, o “novo” que emerge após a Fenomenologia e a ocupação francesa é justamente a Restauração e aquilo que, para Nobre, é seu correlato filosófico: o sistema. Trata-se, aos olhos da obra de maturidade de Hegel, ou, se se quiser, de seu novo “modelo”, efetivamente de uma nova figura do espírito do mundo na qual a própria negatividade que girava em falso e jacobinamente é institucionalizada e pode operar de modo “seguro”, preenchido por “relações éticas”. Em outras palavras, trata-se daquele momento “alemão” do desenvolvimento do espírito, no qual a liberdade sabe a si mesma como fundamento das ordens sociais e assim finalmente se reconcilia consigo mesma e forma sistema. “A modernidade” – e cabe acrescentar, em particular a “modernidade normalizada” após o Congresso de Viena – “é a primeira época a comportar e suportar o negativo dentro de si, a primeira época capaz de ir além de si mesma sem sair de si mesma” (p. 61).

Mas, se assim é, então não tanto a interpretação de Nobre da Fenomenologia, mas sua ideia de recuperá-la como “modelo” para o presente, se encontra diante de um dilema. Pois se a noção de “modelo” associa conteúdos filosóficos às experiências históricas objetivas com as quais tiveram de lidar, é em face de cada diagnóstico que os “modelos” podem ser julgados como “bons” ou “ruins”, se não se quiser recair em um historicismo no qual todos os “modelos” são igualmente bons porque são sempre adequados a seus respectivos presentes.

O próprio Hegel parece ter entendido que o sistema filosófico enciclopédico fechado e a nova organização social alemã “normativamente autocertificada” (para usar uma expressão de Habermas cara a Nobre) correspondem de fato àquele “novo” que deveria ser desbloqueado para perseguir e levar adiante a trilha de transformação reaberta com a Revolução Francesa (como Nobre mostra em pp. 52-61). Cada “modelo” hegeliano seria então igualmente bom, pois encontraria seu critério de avaliação na respectiva experiência histórica. Mesmo que se admita, portanto, que a Fenomenologia é um “modelo” no sentido de não carregar o sistema dentro de si como seu pressuposto, o que faz dela um modelo a ser “atualizado” hoje (p. 61)? Também essa pretensão não é contraditória? Se se trata sempre de modelos e se modelos são dependentes de diagnósticos, que sentido há em projetar um modelo para além de seu diagnóstico? A não ser que se sustente uma analogia de diagnósticos entre o Brasil de 2018 e a Prússia de duzentos anos antes, como essa “atualização” é possível? Qual é a experiência de emergência do novo hoje à qual a filosofia teria de fazer jus? O caminho de atualização de Nobre, no entanto, não passa por um diagnóstico, embora poucos filósofos entre nós estejam tão atentos ao presente e bem preparados para oferecer um quanto ele ( vide sua inteira atividade como intelectual público).6 Em vez disso, Nobre percorre outra vez algumas estações da história do hegelianismo de esquerda a fim de mostrar como alguns dos filósofos dessa tradição (em particular Marx, Lukács e Honneth) apresentariam um modo semelhante de “envelhecer”, passando, como Hegel, de uma fase “fenomenológica” a uma fase “sistêmica” ou “enciclopédica”. A analogia soa apressada e demandaria de Nobre mais material de convencimento.7 Em todo caso, ela se dá pela tradução daquele modo jovem, fenomenológico e aberto ao novo de se fazer teoria social pela chave da “visada da subjetivação da dominação”. Cada um destes autores teria privilegiado em sua obra de juventude a análise de como a dominação social tem vez junto ao próprio processo de formação da subjetividade, mas teria sentido a necessidade de formular outros modelos em razão de seus respectivos diagnósticos ulteriores (Marx, com sua revolução que nunca chega; Lukács, com a redução dos potenciais emancipatórios liberados na Revolução Russa com a burocratização e o socialismo de um só país da União Soviética; Honneth, com a colocação em risco e a necessidade de salvaguardar os “progressos” morais da geração de 68). Obras tão díspares como O Capital, Ontologia do ser social e O direito da liberdade teriam em comum serem obras “enciclopédicas”, cuja compreensão sistemática pronta e acabada do mundo recalcaria o momento fenomenológico, que, na definição do autor, “concede um lugar de destaque aos processos de subjetivação da dominação em toda a sua complexidade e sem a unilateralidade da primazia de uma determinação da subjetividade pelas estruturas de dominação” (p. 63).

Pois bem, se o propósito de “atualizar” o “modelo” da Fenomenologia não é justificado, como parecia necessário, por uma analogia dos diagnósticos de tempo de outrora e de hoje, 8 ele parece sê-lo, então, por essa tomada de partido de Nobre pela prioridade da tarefa de investigação da subjetivação da dominação e das formas de resistência à integração total. Ao cabo, Nobre advoga que a Introdução da Fenomenologia é hoje o modelo que, devidamente “atualizado”, poderia abrir caminho para a teoria crítica escapar do “reconstrutivismo” (velhohegeliano) em que se encontra. Em vez de “reconstruir” critérios da crítica lá onde estão institucionalmente estabelecidos, a teoria deveria se voltar, se leio bem as entrelinhas do texto de Nobre, a uma normatividade reprimida ou que vigora às margens, abafada e refugiada, enquanto mera ideia, na subjetividade de grupos oprimidos. Verificar como a dominação é introjetada seria ao mesmo tempo verificar como ela poderia não o ser. Em conclusão, caberia apenas perguntar se o que Nobre quer recuperar então não seria antes o jovem Honneth que o jovem Hegel.

A formulação sintética dada por Nobre para a caracterização dos modelos “de extração fenomenológica” (a “visada da subjetivação da dominação”) parece, ao fim da leitura da Introdução da Fenomenologia, na verdade mais próxima dos primeiros trabalhos de Honneth do que do dialético Hegel9 Não é claro no texto de Hegel lido por Nobre de que modo o complexo programa de (não-)método desenvolvido pelo filósofo pode ser reduzido a uma consideração teórica das lacunas e falhas da integração social tendencialmente total representadas por aquilo que, nos sujeitos, recalcitra à subsunção no universal. Se a Fenomenologia representa de fato, como sustenta Nobre, um modelo para a crítica radical que visa desbloquear o movimento do seu objeto através da recepção ativa de sua própria negatividade, então a ideia de que a transformação do objeto ocorre pela oposição a ele dos restos e falhas nas quais ele não se efetivou plenamente já é uma projeção subjetiva da teoria sobre o objeto e representa exatamente aquilo que Hegel deseja superar, aquela concepção que Nobre chama de “representação natural”. Isso porque opera implicitamente com a ideia restrita de que a negatividade a ser acolhida pela teoria está localizada nos excessos de subjetividade não integrada. Essa concepção parece confundir, no conceito hegeliano de “experiência”, a subjetividade da consciência que experimenta o movimento do objeto (i.e., a subjetividade do teórico) com a subjetividade do indivíduo não completamente integrado, que só pode aparecer, de fato, como objeto da experiência do teórico. Significa, ademais, tomar as lacunas de integração (as “práticas de resistência e contestação à dominação em suas múltiplas dimensões” (p. 71)) como ponto de ancoragem da crítica e esperar que a superação de um estado atual venha justamente do seu “lado de fora”, daquilo que não está subsumido à sua lógica.10 O objeto é cindido num universal a ser negado e num particular afirmado e a crítica perde a imanência ao objeto, a sociedade, – pois não há crítica imanente onde o seu objeto não pode ser sintetizado especulativamente como um objeto único em movimento (e este sim me parece ser o sentido da Introdução e sua lição para a teoria crítica). O próprio Honneth, que iniciou sua proposta de reformulação da teoria crítica nos termos ora repropostos por Nobre, não a abandonou porque se tornou um velho saudosista de 68, mas porque percebeu as aporias a que aquela posição conduzia: a aparente recalcitrância à integração na ordem de dominação não faz por si só da subjetividade marginal um ponto de ancoramento para a crítica, o que deveria ser claro em tempo de eleitores de Trump, da Alternative für Deutschland ou de Bolsonaro. Na teoria, a subjetividade antagônica apenas posterga o momento em que é preciso diferenciar entre a “boa” oposição e a “ruim”, e nesse caso o critério é extrassubjetivo. Assim, o Lukács de História e Consciência de Classe (que comparece em Nobre como exemplo de autor “jovem”) teve de se apoiar numa análise de crítica da economia política para indicar o proletariado como aquele que poderia se subjetivar em acordo com sua própria essência; e, mais tarde, Honneth teve de buscar nas expressões conceituais das regularidades da integração social funcional o critério das reivindicações de reconhecimento boas e ruins. Se ser “jovem” em filosofia é dedicar-se à análise da subjetivação da dominação, os jovens deixaram de ser jovens justamente quando levaram esse problema a sério e enxergaram que ele não se resolve na subjetividade; ou que a subjetividade é porta de acesso e obviamente não pode ser desprezada, mas precisa passar a uma análise mais aprofundada da pré-constituição objetiva da subjetividade. Em outras palavras, os “velhos” tiveram muitas vezes seus bons motivos para envelhecerem, e fizeram sim, em parte, justiça ao mundo em se tornando sistemáticos, porque a estruturação social possui sim um caráter tendencialmente sistemático. Justamente por o possuir, ela determina a subjetivação até mesmo lá onde parece não determinar, e a subjetividade antagônica é ela mesma também marcada por ser subjetividade antagônica à ordem de dominação e estar, portanto, determinada por essa ordem de dominação, não ser a ela externa e não poder ser tomada por critério de sua crítica.

Por isso compra-se sempre o risco, ao privilegiar a subjetividade já encontrada dada na realidade, de se estar sendo afirmativo do mundo, mas com a aparência de se o estar negando. Adorno disse uma vez que “apenas quem reconhece o mais novo como o mesmo serve àquilo que seria distinto” (Adorno, 2003, p. 376). A proposta de Nobre arrisca-se a, em vez de instigar e participar do “nascimento do novo”, afirmar nostalgicamente o “bom e velho” que ainda não cedeu ao universal e representa assim antes um resquício de uma figura anterior do q ue um anúncio de uma que surge.

Notas

1 O autor agradece o acolhimento gentil do prof. Marcos Nobre na leitura da resenha.

2 Esta espécie de romance de “deformação” dos filósofos-lidos (espelhado numa implícita história da formação do filósofo-leitor) é a estrutura da narrativa conceitual, por exemplo, de Crítica do Poder (Honneth, 1989 [1985]) em geral e de Luta por Reconhecimento (Honneth, 2003 [1992]), no que diz respeito à leitura de Hegel.

3 “E, no entanto, realizar essa necessária tomada de posição juntamente com um trabalho de análise e comentário do texto da Introdução prejudicaria consideravelmente a exposição. A solução foi expor essa tomada de posição separadamente” (p. 9). A opção de exposição/método de Nobre contrasta notavelmente com aquela, todavia de elevadas pretensões, da própria Fenomenologia : “O mais fácil é julgar o que possui um teor e uma solidez, mais difícil do que isso é apreendê-lo, e o mais difícil é produzir a sua exposição, o que unifica a ambos” (Hegel, 1986 [1807], p. 13).

4 “O modelo teórico legado pela Fenomenologia tem, portanto, pelo menos dois aspectos característicos: o de um work in progress em sentido mais restrito, que resultou no próprio livro publicado, e o de um work in progress em que um Sistema da ciência a ser produzido permanece como horizonte, configurado em um diagnóstico de tempo de intenção sistemática” (p. 47).

5 Cf. a distinção útil feita por Nobre entre “diagnóstico de época” e “diagnóstico do tempo presente” (p. 280-1, n. 28).

6 E embora sugira ainda que “a Teoria Crítica poderia deixar para trás o fardo da ‘melhor teoria’ em que se embrenhou nas últimas décadas, voltando a conceder ao diagnóstico de tempo presente a primazia que sempre teve na melhor tradição marxista” (p. 80).

7 Cf. afirmações como a seguinte: “Se História e consciência de classe pode ser entendido como a Fenomenologia de O Capital, a Ontologia do ser social pode ser lida, analogamente, em termos de uma versão materialista da Enciclopédia de Hegel” (p. 64).

8 “Atualização” significa aqui antes um update ao “estado da arte” da filosofia do que uma verificação da sua relação com a situação história presente: “assim como uma atualização do projeto da Fenomenologia teria hoje de proceder a uma reconstrução em termos comunicativos da noção de ‘espírito’ (a ser realizada segundo a noção de ‘experiência’), a ideia de ‘formação’ teria de ser ela mesma reconstruída nesses termos, de maneira a libertá-la do macrossujeito que pressupõe” (p323, n. 95).

9 Trata-se de uma filiação expressa: “É desse ponto de vista que se pretende jogar nova luz sobre um modelo de renoção da Teoria Crítica considerado aqui de extração fenomenológica como o oferecido por Luta por reconhecimento – ou, talvez, mais precisamente, aquele veio de atualização aberto por Crítica do Poder ” (p. 81). Cf. ainda, ilustrativamente, a semelhança quase parafrástica do penúltimo parágrafo de Nobre (“E a crítica dessa invisibilidade é o que faz desse livro [a Fenomenologia ] um modelo filosófico ainda hoje um ponto de partida talvez incontornável para uma Teoria Crítica da sociedade que tenha por objetivo não apenas investigar a cunhagem da subjetividade pelas estruturas de dominação, mas igualmente os processos de subjetivação em que surgem os potenciais não só de resistência, mas também de superação da própria dominação” (p. 238)) e o modo como Honneth define a tarefa da teoria crítica no posfácio de Crítica do poder (“hoje um problema-chave da teoria crítica da sociedade é representado pela questão de como pode ser obtido o quadro categorial de uma análise que seja ao mesmo tempo capaz de abarcar, com as estruturas de dominação social, também os recursos sociais para sua superação prática” (Honneth, 1989 [1985], p. 382).

10 Em termos semelhantes, Nobre se refere a uma passagem de Adorno, na qual este estaria a dizer, na sua intepretação, que “integração” e “resistência” se relacionariam “como água e óleo” (p.75). Tanto a interpretação da passagem parece estar equivocada (o que infelizmente não pode ser discutido aqui), quanto, como dito, essa parece ser antes uma implicação do programa de Nobre

Referências

ADORNO, T. W. (2003 [1942]). „Reflexionen zur Klassentheorie“. In: ________.Soziologische Schriften I (= Gesammelte Schriften, 8 ) (pp.373-391). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

HONNETH, A. (1989 [1985]).Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie. Mit einem Nachwort zur Taschenbuchausgabe. Frankfurt a.M.: Suhrkamp

____________.(2003 [1992]).Luta por reconhecimento : A gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34.

Hegel, G.W.F. (1986 [1807]).Phänomenologie des Geistes (= Werke 3). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

Luiz Philipe de Caux – Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung – HONNETH (K)

HONNETH, A. Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung. Berlim: Suhrkamp, 2015. 168 p. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Kriterion vol.58 no.137 Belo Horizonte Mayo/Aug. 2017

Referindo-se à sua tentativa de renovação da teoria crítica da sociedade a partir de uma teoria do reconhecimento, os mais precipitados críticos de Axel Honneth costumam caricaturá-lo como um teórico que, em face do sempre crescente enrijecimento das relações sociais de dominação no mundo contemporâneo e da imensa dificuldade de retomar de maneira promissora a sua crítica, prescreve tão somente que deveríamos “nos reconhecer mais”. Ocorre que cada nova obra de Honneth parece jogar mais água no moinho de tais críticos e tornar essa caricatura cada vez mais realista.

Em outubro de 2015, foi publicado pela Suhrkamp seu mais recente opúsculo, “Die Idee des Sozialismus”, uma tentativa, como reza o subtítulo, de atualização da ideia de socialismo, ideia envelhecida, para Honneth, desde o momento em que perdeu o amparo histórico que encontrava nas sociedades ocidentais de economia industrial do século XIX. Honneth esforça-se por mostrar que a ideia é velha, por certo, mas não caduca. Para isso, no entanto, precisa retraçar seus contornos com tal inventividade que, ao cabo, não lhe assusta que poucos dos “partidários” do socialismo estariam prontos para reconhecê-lo em sua nova imagem (p. 163). Mas Honneth não acredita estar desfigurando, mas apenas depurando de contingências históricas e trazendo a ideia a um nível de abstração mais elevado. A expectativa, por paradoxal que pareça, é que, nessa nova forma altamente abstrata e quiçá irreconhecível, a ideia ganhe força motivacional, alcance novamente a “virulência” que teria perdido (p. 20).

O novo livro é admitidamente motivado pela recepção do livro anterior, “O Direito da Liberdade”, recentemente traduzido para o português.1 Numa resposta aos debatedores de um simpósio sobre o livro realizado em Londres em maio de 2014, Honneth relata seu estranhamento em se ver reconhecido, após “O Direito da Liberdade”, não como um hegeliano de esquerda, como entende a si próprio, mas como “um daqueles hegelianos de direita dos quais eu nunca tive problemas em explicitamente me afastar”.2 O livro de 2011, uma atualização bastante direta das “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito” para o mundo contemporâneo, que, contra o espírito hegeliano, trata a tripartição de esferas sociais do livro de Hegel como um esquema formal passível de ser aplicado como que do exterior a uma sociedade incomparavelmente mais complexa, foi recebido por parte da crítica como uma virada de orientação de Honneth em direção a uma perspectiva mais conservadora ou não afinada com os objetivos de uma teoria crítica da sociedade.3 Ao partir da premissa de método (em sua assim chamada reconstrução normativa) de que uma teoria crítica da sociedade precisaria ancorar-se apenas nos valores superiores aos quais a integração social remete sempre já como sua condição de possibilidade, Honneth expôs-se à acusação justa de ter se colocado do ponto de vista da mera reprodução do estado de coisas existente. Assim, o novo opúsculo é escrito em parte como um esclarecimento ou uma tentativa de desvincular-se de tal imagem e de filiar-se a um mais progressista revidierter Sozialismus, um “socialismo revisado”. O primeiro passo será a busca da ideia do socialismo no momento mesmo de seu nascimento, para, num procedimento contraditório que vai à origem para negá-la, desembaraçar a ideia não apenas das distorções que teria vindo a sofrer, mas também já de seus Geburtsfehler, de suas, digamos, malformações congênitas.

A ideia de socialismo nasce, para Honneth, como consequência do mal-estar da impossibilidade da efetivação simultânea dos três ideais da Revolução Francesa tão logo ela se completa. Na medida em que a forma individualista de liberdade da recém-instaurada esfera do mercado capitalista se põe no caminho tanto da efetivação da igualdade material e não apenas jurídico-formal quanto da fraternidade ou da solidariedade, levando ao risco da anomia, à efetiva pauperização e aos consequentes sentimentos de aviltamento, vergonha e injustiça da parte dos trabalhadores e suas famílias, surge o socialismo, ou antes, sua ideia, como uma “reação normativa” (p. 27). Como já espera o leitor a ele familiarizado, Honneth quer enfatizar o caráter moral, e não apenas econômico-utilitário do socialismo. Os primeiros socialistas, os denominados socialistas utópicos (alcunha que Honneth evita), teriam todos concebido a futura forma comum, não privada, da propriedade não como um fim em si, mas como um pressuposto para fins morais já estabelecidos – que poderiam, portanto, ser perseguidos por outros meios por um socialismo revisado. Na medida em que, para os primeiros socialistas, o egoísmo privado instaurado no mercado, fundado por sua vez na propriedade privada dos meios de produção, é fonte da incompatibilidade constatada entre os três princípios da Revolução de 1789, cabe superá-lo numa nova concepção de liberdade, não compreendida mais como a limitação recíproca que permite a mera compatibilização externa das vontades individuais, mas como a complementação mútua e internamente vinculada das vontades, em que a realização das finalidades de um indivíduo é vista por todos como condição para a realização de suas respectivas finalidades. Honneth apenas reencontra, em suma, sua noção de liberdade social como já reconstruída em “O Direito da Liberdade”, noção que ali estrutura as esferas de “eticidade democrática” (a dos “relacionamentos pessoais”, a da “ação numa economia mercado” e a da “formação democrática da vontade”).4 A ideia de socialismo, como grafado na contracapa do livro, seria, de fato e propriamente, a ideia de liberdade social. O primeiro dos erros dos socialistas seria tê-la tentado efetivar apenas em uma das três esferas socialmente diferenciadas na modernidade nas quais ela já estaria inscrita, em detrimento das outras duas. Ela seria, todavia, mais ampla do que os primeiros socialistas teriam percebido. Os três ideais da referida revolução burguesa compatibilizar-se-iam na noção de liberdade social; e o socialismo, que não é senão o movimento cujo objetivo é sua realização, seria, assim, uma “crítica imanente” do capitalismo (p. 33), isto é, no sentido de Honneth: uma busca de realização de suas promessas não cumpridas.

O próximo passo de Honneth é mostrar de que modo o espírito das sociedades industriais do século XIX teria contaminado a ideia central de liberdade social com certas “ficções da ciência” (p. 101), desveladas na era de um dito capitalismo pós-industrial. No entanto, o socialismo cujas características são recusadas por Honneth é, de fato, um “cachorro morto”, para o qual dificilmente se encontrariam defensores, mesmo no mais ortodoxo dos partidos comunistas. Sua refutação não apenas é supérflua, como cumpre na argumentação o papel pouco leal de deixar na penumbra todo o pensamento socialista (ou, mais amplamente, o de inspiração marxiana em geral) que igualmente recusa os pressupostos aduzidos, ou, quando os aceita, oferece justificações razoáveis e não consideradas por Honneth. São três os pressupostos do socialismo na era industrial repelidos por Honneth: a) a centralidade da esfera econômica, a consequente recusa da gramática dos direitos na luta social e o déficit democrático do movimento; b) a vinculação reflexiva da teoria a um portador, o proletariado, cujos interesses objetivos representados são presumidos sem verificação empírica; e c) a concepção determinista de história como um processo regido por leis e para o qual a ação livre humana é indiferente. Não cabe aqui discutir nenhum dos três “descaminhos” do socialismo pintado por Honneth, aliás, correspondente, de fato, a uma concepção outrora existente e que os assumia de modo enfático. O que importa é o que essas três recusas dizem sobre Honneth, pois ele as faz para a cada vez assumir uma posição diametralmente oposta. Em primeiro lugar, ad a) o autor considera absolutamente irrenunciável em quaisquer condições futuras ou imagináveis o recurso ao código do direito, aplicável coercitivamente pelo Estado. Direitos subjetivos são, para Honneth, uma conquista histórica inultrapassável e definitiva, que em nenhuma condição poderá se tornar obsoleta. Em segundo lugar, ad b) Honneth veda-se metodologicamente a imputação de quaisquer interesses objetivos a indivíduos ou grupos sociais; isso significa, por um lado, que apenas devem valer como interesses aqueles verificados empiricamente por declaração do agente e, por outro lado e mais importante, que, por princípio, os agentes não podem estar enganados acerca dos próprios interesses (ou seja, não existem ilusões socialmente necessárias). Por fim, ad c) o processo histórico como pensado por Honneth não é influenciado por tendências materiais, mesmo que fracas; o avanço técnico não condiciona de nenhum modo o desenvolvimento moral. Este último é tomado por um fato, possui autonomia e é impulsionado por sua própria força, uma tendência espontânea interna às próprias relações intersubjetivas pela progressiva eliminação de seus bloqueios e coerções de toda espécie (mesmo que essa tendência histórica afirmada dogmaticamente por Honneth, com ajuda de Dewey (p. 100), carregue um ônus metafísico tanto maior do que aquela que constituiria a crença dos socialistas).

Com isso, chega-se ao terceiro passo, propriamente propositivo, da argumentação do opúsculo. Sublimada de seus acidentes, a ideia de socialismo não seria senão a ideia de liberdade social, que precisa ser atualizada para as condições sociais do século XXI. A palavra socialismo ganha agora um sentido totalmente novo, mas não inesperado para o leitor de Honneth. O socialismo não é agora senão a realização do social, o “tornar-se social da sociedade” (p. 89). A formulação causa espécie caso não se compreenda o sentido do adjetivo em Honneth,5 que aparece plenamente explícito no novo opúsculo. O social é um conceito normativo para Honneth, ou antes, descritivo-normativo, pois designa não um dever-ser externo, mas a normatividade estruturante da sociedade (p. 105). A sociedade é social, “no sentido pleno da palavra” (p. 166), quando as relações de reconhecimento recíproco estão plenamente desenvolvidas, sem bloqueios à comunicação, em todas as esferas de ação por elas estruturadas. Apenas a sociedade socialista de Honneth é uma tal “sociedade social”.

Mas como alcançá-la? Honneth não se preocupa em apontar quais são os obstáculos sistemáticos que se opõem à realização da liberdade social, mas antes delega a tarefa de sua superação a um “experimentalismo histórico”. Em razão de sua ontologia social normativista, Honneth é incapaz de apontar causas materiais para as patologias sociais e desenvolvimentos normativos desviantes que constata. Apesar de contarem de saída com um empuxo transcendental em direção à emancipação, as lutas por reconhecimento não a alcançam, e isso, em Honneth, como que por mero acaso: deveria acontecer, mas não acontece.6 O mundo social de Honneth é frouxamente estruturado: ainda aqui, a concepção marxiana de capitalismo como uma totalidade, na qual certas determinações estão interna e logicamente interligadas, é recusada em prol de uma afirmação vazia e implausível de que o mercado capitalista não é mais do que um agregado de componentes absolutamente díspares e artificialmente conjuntados (pp. 91 e 109-110). Assim, a solução “experimentalista” de Honneth tampouco chega a surpreender. Experimentar novas configurações sociais a fim de romper barreiras e obstáculos à comunicação e à inclusão de novos atores em esferas de liberdade social é algo que está à disposição dos atores para Honneth, que desconsidera o fato de que justamente tais barreiras e obstáculos impedem tal experimentalismo de ter algum sucesso significativo. Em todo caso, apoiado na ideia mecânico-naturalista e ao mesmo tempo especulativa de John Dewey de que, em todos os âmbitos da realidade (do físico-químico ao social, passando pelo biológico e pelo psíquico), o aumento do volume das interações entre os seus elementos (no caso do âmbito social, os indivíduos) leva à efetivação de potenciais ali já existentes (no caso, à efetivação da liberdade social), Honneth considera que apenas o contínuo experimentalismo, isto é, a repetida variação das formas de interação pode progressivamente levar ao socialismo.

Assim, é marcante que Honneth não se pergunte, por exemplo, por que o capitalismo precisa necessária e logicamente engendrar sua crescente financeirização, mas antes proponha impotentemente que experimentemos um mercado não financeirizado; que afirme a incompatibilidade normativa entre, de um lado, as noções de mérito ou de recompensa do desempenho diferencial que estrutura o mercado e, de outro, os ganhos nele obtidos por meio da especulação financeira, sem se perguntar que tipo de processo material leva a que uma tal contradição real possa subsistir (pp. 108-109). O horizonte da crítica de Honneth, seu “end in view” (Dewey) é uma pouco definida noção de “socialismo de mercado”, pelo que não se deve entender, como de costume, algo como o sistema econômico vigente na China contemporânea (de resto, obviamente capitalista), mas simplesmente uma economia estruturada pelo mercado (que conta em qualquer caso como uma esfera de eticidade, i.é., de liberdade social) e que não seja, ao mesmo tempo, capitalista, se é que isso é conceitual e empiricamente possível. Honneth não deseja sequer definir de antemão se seu “socialismo de mercado” deverá se estruturar como um livre mercado (à la Smith), como uma “associação de produtores livres” (Marx) ou como uma espécie de capitalismo de Estado, desde que, em qualquer destas configurações, esteja garantida a realização recíproca e complementar dos fins individuais, como prescreve a liberdade social, na ação econômica (pp. 94-95). Não lhe parece um passo necessário investigar se sua liberdade social é de fato compatível com qualquer destas três formas de organização econômica.

Por fim, a ideia do socialismo revisado determina ainda a efetivação da liberdade social não apenas na esfera econômica, mas nas outras duas esferas de eticidade hegeliana atualizadas por Honneth em “O Direito da Liberdade”. Não apenas no mercado, mas no âmbito das relações pessoais íntimas e no das relações políticas é preciso fazer valer o mesmo princípio de complementação mútua das liberdades. Para Honneth, os primeiros socialistas, localizados num momento de desenvolvimento histórico ainda incipiente, não foram capazes de notar o movimento de diferenciação funcional em esferas de ação distintas na modernidade (embora seja curioso que Honneth apenas replique, em contraposição, uma diferenciação social mínima constatada por Hegel numa Prússia ainda semifeudal). A acusação é obviamente injusta, na medida em que, por exemplo, a elaboração teórica já do jovem Marx tem início justamente a partir de uma reconceituação da diferenciação moderna entre Estado e sociedade civil-burguesa em Hegel. Em todo caso, é porque ou não teriam notado essa diferenciação funcional ou não a teriam apreendido como um objetivo a ser alcançado, isto é, como uma injunção pela busca da efetiva autonomização tanto das relações privadas quanto das relações políticas em relação à sobredeterminação econômica, que os primeiros socialistas teriam apreendido o socialismo apenas como uma forma de governo e não, como quer Honneth, como uma abrangente forma de vida.

Na mesma réplica aos debatedores do supracitado simpósio de Londres sobre “O Direito da Liberdade”, Honneth oferece uma surpreendente releitura da tese de Hegel sobre o fim da história. Questionado por Jörg Schaub acerca da impossibilidade por parte do método da reconstrução normativa de dar conta de revoluções normativas, isto é, de abalos fundamentais na própria estrutura normativa da sociedade,7 Honneth recorre à abominada tese hegeliana, a fim de aceitar a objeção e insistir sobriamente em sua posição.

E se Hegel não quisesse realmente avançar a estranha e certamente falsa ideia de que, com o começo da era da subjetividade institucionalizada, as lutas sociais teriam chegado a um fim, mas antes estivesse avançando o argumento distinto e mais fraco de que somos completamente incapazes de imaginar um futuro no qual o princípio da subjetividade livre é substituído por um princípio superior, mais elevado? A fala sobre o ‘fim da história’ significaria então que temos uma boa razão para eliminar a possibilidade de uma ‘revolução’ na estrutura normativa da sociedade; e que, na medida em que as lutas e os amargos conflitos ao redor da implementação correta de nossos princípios modernos fundamentais possam continuar, eles não excederão o horizonte normativo da sociedade moderna.8

Mais do que seu mestre Habermas, que defende até razoavelmente que ainda nos movemos no horizonte da modernidade,9 Honneth acredita que nunca o iremos ultrapassar, mas apenas realizar progressivamente os seus potenciais. Se é verdade, com e contra Honneth, que os movimentos socialistas de toda espécie visaram e ainda visam uma superação do capitalismo não apenas como estrutura de distribuição material, mas sobretudo como horizonte ético-normativo (basta pensar n’ “A Questão Judaica” ou na “Crítica ao Programa de Gotha”), então o socialismo de Honneth, como mal consegue disfarçar, não passa, em qualquer de suas versões, de um derrotismo resignado. Se, segundo um de seus historiadores, o traço teórico marcante da assim chamada Escola de Frankfurt foi a sua impressionante capacidade de “imaginação dialética”, a falta, ou antes, a renúncia à imaginação por parte de seu atual representante oficial, que termina até na adesão à tese da inultrapassabilidade da estrutura normativa da modernidade, justifica o seu crescente reconhecimento não como representante desta tradição, mas, malgré lui, como legítimo herdeiro dos velhos hegelianos.

Notas

1HONNETH, A. “O direito da liberdade”. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

2HONNETH, A. “Rejoinder”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, p. 205, 2015.

3Para citar alguns exemplos: HEINS, V. “Zwischen Habermas und Burke: Axel Honneths Kritikstil in Das Recht der Freiheit”. In: ROMERO, J. (ed.). Immanente Kritik heute: Grundlagen und Aktualität eines sozialphilosophischen Begriffs. Bielefeld: transcript, 2014, pp. 143-156; MOHAN, R. “Normative Reconstruktion und Kritik: Die Subsumtion der Gesellschaftsanalyse unter die Gerechtigkeitstheorie bei Axel Honneth”. Zeitschrift für kritische Sozialtheorie und Philosophie, Vol. 2, Nr. 1, pp. 34-66, 2015; SCHAUB, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions: Normative reconstruction as method of critical theory”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, pp. 107-130, 2015; WILDING, A. “The problem with normative reconstruction”. In: 6th International Critical Theory Conference. Comunicação, Roma, Itália, maio de 2013. Disponível em: https://www.academia.edu/5115504/The_Problem_With_Normative_Reconstruction. Acesso em 3 de agosto de 2016.

4HONNETH, A. “O direito da liberdade”, op. cit.

5Cf. DE CAUX, L. Ph. “Contorno e limites do conceito do social em Axel Honneth”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Vol. 3, Nr. 1, pp. 28-48, 2015.

6DE CAUX, L. Ph. “Um mundo que, por acaso, não é como deveria ser: crítica e explicação em Axel Honneth”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 2017 (no prelo).

7SCHAUBE, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions”, op. cit.

8HONNETH, A. “Rejoinder”, op. cit., p. 209.

9HABERMAS, J. “O discurso filosófico da modernidade: doze lições”. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Luiz Philipe de Caux – UFMG. [email protected]