Hegel and Spinoza: Substance and Negativity – MODER (RFA)

MODER, G. Hegel and Spinoza: Substance and Negativity. Illinois: Northwestern University Press, 2017. Resenha de: CRAIA, Eladio; KELLER, Arion. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.56, p.591-596, maio/ago., 2020.

Poderíamos caracterizar a obra de Gregor Moder, Hegel and Spinoza: Substance and Negativity, como uma obra não ortodoxa dos estudos tanto hegelianos quanto spinozistas, como uma tentativa quase heroica de recepcionar de forma nova e original a tão problemática relação existente entre hegelianismo e spinozismo e, também, como uma tentativa de “fazer justiça” a ambos os lados da discussão.

Tal problemática, no entanto, é tão antiga quanto o próprio texto hegeliano. Sabemos da ambiguidade de Hegel com relação a Spinoza, que oscila desde uma série de elogios e reverências ao holandês, como nas famosas passagens das Lições sobre a história da filosofia, onde afirma que quem não for spinozista não pode sequer ser filósofo, ou que além do spinozismo não há nenhuma filosofia, até o desenvolvimento de ácidas críticas com inspirações semelhantes às direcionadas a Parmênides e ao Oriente, sendo o que está em jogo é o papel desempenhado pela negatividade.

A motivação não ortodoxa que mencionamos, é a tentativa do autor de situar um “ponto pacífico” entre as duas tradições aparentemente incompatíveis. Tradicionalmente, Hegel é colocado como o fundador de um projeto ontológico que privilegia a negatividade, ou melhor, que tenta pensar uma negatividade produtiva no nível da substância, do absoluto. Por outro lado, Spinoza é lido como um autor da afirmação pura, atuando muitas vezes como o “antípoda” dos projetos ditos negativistas. Gregor Moder (2017, p.104) demarca muito bem esse panorama conflitivo no que ele chama de materialismo francês do século XX. Pelo lado hegeliano o autor menciona a psicanálise de Lacan, em que há um primado claro da negatividade, pois a categoria de Sujeito, nuclear à psicanálise lacaniana, é atravessada pela categoria de Falta. Já pelo lado spinozista, é a presença da filosofia de Deleuze que marca o “afirmacionismo” contemporâneo, em que o grande esforço é o de se pensar os processos de diferenciação ontológica sem o apelo à categoria de Negação. Entretanto, e surpreendentemente, o autor situa a filosofia de Althusser como a “própria encarnação do problema Hegel e Spinoza” (MODER, 2017, p.120), como o meio termo dessa tensão. Para Gregor Moder, é a teoria da ideologia althusseriana aquela capaz de trabalhar com os dois modelos ontológicos simultaneamente, onde ambas concepções de negatividade trabalham juntas. No entanto, vejamos como o autor chega a este ponto.

A introdução da obra é intitulada A Questão de Leitura. No decorrer deste texto, Moder situa a recepção de Spinoza na Alemanha em geral, e a recepção de Hegel em particular. Hegel, apesar dos elogios que comentamos acima, combate o spinozismo por uma razão teórica muito específica: Spinoza teria ficado preso ao início, sua substância seria rígida e imóvel, isto é, ela não teria a capacidade de transformar a si mesma, seria apenas uma afirmação pura e abstrata; o spinozismo seria um eleatismo em sua face moderna. Althusserianos, por outro lado, acusam Hegel de uma inversão do modelo neoplatônico de produção do Ser. O problema de Hegel por excelência e também o de Gregor Moder neste caso, será de pensar uma possibilidade de contradição ou movimento no nível substancial que fuja de ambas as acusações. Tudo se passa como uma questão de movimento interno no próprio absoluto.

Além disso, Moder situa em traços gerais várias das objeções da leitura hegeliana de Spinoza. O problema do autor não é, portanto, defender a leitura hegeliana de Spinoza, nem mesmo contra-atacar Hegel como um spinozista, trabalho este já feito pelos estudos de Deleuze, Gueroult, Macherey, etc., mas de pensar ambas as filosofias com o seguinte projeto: distanciar-se dos modelos emanativos de inspiração aristotélica e neoplatônica, caracterizados por sua unilateralidade e hierarquia causais. O autor defenderá que tanto Hegel quanto Spinoza, cada um à sua maneira e com aparatos conceituais muito distintos, tentarão valer-se de uma categoria de causalidade livre de hierarquias, que seja suficiente para se pensar o autodesenvolvimento interno do próprio absoluto. Eis a hipótese não ortodoxa da obra: não será a clássica oposição Hegel versus Spinoza, mas Hegel e Spinoza versus aristotelismo e neoplatonismo (MODER, 2017, p.14-15).

Os três primeiros capítulos da obra são voltados à filosofia de Hegel, com o intuito de desvinculá-la das críticas de inversão do neoplatonismo feitas por Althusser e Deleuze; no entanto, e fazendo certa justiça a Spinoza, o autor sempre desvincula o holandês das críticas equivocadas de Hegel, tirando-o também dessa linhagem aristotélica e neoplatônica. No primeiro capítulo, intitulado A Lógica Hegeliana do Puro Ser e Spinoza, o autor desenvolve a concepção hegeliana de Ser. Em linhas gerais, a problemática hegeliana diz respeito ao clássico debate grego incorporado por Parmênides e Heráclito. Pelo lado de Parmênides, temos o Ser idêntico a si mesmo, carente de negatividade e animado pelo princípio de ex nihilo nihil fit (do nada, nada provém), e por outro lado o princípio de devir puro heraclitiano, aparentemente incompatíveis. A grande virada hegeliana é de estabelecer o devir como a própria verdade/telos dos sistemas de identidade, negando o princípio de ex nihilo nihil fit e estabelecendo o motor da dialética por excelência: a identidade da identidade e da diferença. Essa descoberta de Hegel é o princípio de movimento no Ser imóvel parmenidiano. Com isso, Hegel remove a ideia de um “Ser puro” no sentido aristotélico e neoplatônico (o motor imóvel nada mais é que um princípio de causalidade unilateral, pois move sem ser movido), isto é, já estamos sempre no campo da mediação, estabelecida por uma negatividade produtiva; a igualdade de Ser e Nada propostas no início da Lógica são a própria condição necessária de movimento no absoluto. Moder assim resume esse movimento inovador de Hegel: “na medida em que a lógica do puro ser fala, ela já fala na linguagem da lógica da reflexão” (MODER, 2017, p.30).

O segundo capítulo, intitulado História é Lógica, segue o desenvolvimento do primeiro. No entanto, neste capítulo o autor enfatiza a relação de Hegel com a história da filosofia. Abordando o problema do imediatismo do puro Ser das filosofias orientais e de Parmênides, passando pela resposta de Aristóteles ao problema do movimento no nível substancial, o primeiro motor imóvel, e enfim chegando à teoria da produção de Plotino. Hegel critica todos esses modelos, pois são caracterizados por uma causalidade hierárquica, são um modelo emanativo de produção do Ser. A negatividade produtiva de Hegel, elaborada pela via do princípio de omnis determinatio est negatio, é caracterizada como a determinação do próprio Ser, visto que não há possibilidade de falar do Ser enquanto Puro e indeterminado (pois nesse nível Ser e Nada se equivalem), aparece como uma dupla negativa, instaurando o movimento próprio da Lógica, e consequentemente da História. Esse princípio é chamado pelo autor de “perda da própria perda”, a “morte da morte” (MODER, 2017, p.55 e p. 88). Por fim, o autor novamente retira Spinoza desta linhagem, retomando a leitura deleuziana da causalidade imanente de Spinoza, animada pela teoria da univocidade do Ser.

O terceiro capítulo, Telos, Teleologia e Teleiosis, talvez seja o mais inovador no que diz respeito aos estudos hegelianos. Retomando a problemática da doutrina aristotélica das quatro causas, o autor explica como deve-se entender a ideia de telos em Hegel. Longe de ser uma mera finalidade externa do processo, como por exemplo o Juízo Final da metafísica cristã, Hegel se aproximaria da postura heideggeriana com respeito à doutrina das causas, exposta nas conferências sobre a Habitação e sobre a Técnica. A causa final não pode ser compreendida fora do conjunto total das causas. Ela deve, pelo contrário, ser entendida como o desenvolvimento dinâmico do processo todo, como um telos interno (MODER, 2017, p.71). Cunhando um termo de Franz Brentano para explicar este modo de compreender a causalidade e a finalidade, Moder nomeia este telos imanente ao próprio processo causal de teleiosis. Esse paradoxal movimento em que o telos atua como fim e início ao mesmo tempo é o próprio “motor da história” (MODER, 2017, p.76). A história é teleológica, portanto, enquanto uma teleologia interna ao próprio desenvolvimento do pensar.

O quarto capítulo é intitulado Morte e Finalidade, e nele é desenvolvida uma original leitura sobre uma espécie de negatividade em Spinoza. Como o próprio autor lembra (MODER, 2017, p.123-124), e isto é central para a hipótese da obra, a negatividade não pode ser compreendida em apenas um sentido. A filosofia contemporânea tem inúmeros conceitos que desempenham este papel, tais como falta, vazio, lacuna, torção, ruptura etc. Justamente com essa busca por um princípio motor (negatividade) o autor desenvolve sua leitura de Spinoza como autor fecundo para os debates contemporâneos. E ela é surpreendente. O autor defende, contrariamente à leitura hegeliana, que a substância de Spinoza é ativa, móvel e com capacidade de autodesenvolvimento. Para Moder, a substância de Spinoza não produz sem ser afetada por sua produção (como o motor imóvel de Aristóteles ou o Uno plotiniano), ao contrário, e essa é uma grande descoberta de Spinoza, a substância é causa de si no mesmo sentido que é causa de todas as coisas. A substância não é indiferente em sua produção, ela permanece no efeito (modos finitos) tanto quando os modos permanecem nela. O que parecia, portanto, ser uma continuação da tradição neoplatônica, se mostra como uma radical teoria imanente. A substância nunca está em um estado imediato, mas sempre já modificada. A existência dos modos é a existência da própria substância (MODER, 2017, p.100). O conceito de causa de si, portanto, atua como uma curvatura (negatividade, movimento) na própria substância. É este o princípio de movimento do sistema spinozista. É o próprio Ser em sua modificação original. Por outro lado, o autor se filia a Vinciguerra e Deleuze sobre a teoria da imaginação como constituinte da experiência dos modos finitos. Nesse processo, longe de distorcer a realidade, a imaginação é constitutiva da própria realidade modal, uma aliada da razão na busca do conhecimento de terceiro gênero. Nesse sentido, a outra espécie de “negativo” em Spinoza é a capacidade do imaginário de distorcer a própria realidade (MODER, 2017, p.99).

Esta última consequência é importantíssima para o último capítulo, intitulado Ideologia e a Originalidade do Desvio, em que a filosofia de Althusser aparecerá como aquela que trabalha com ambas as concepções de negatividade, isto é, tanto com a torção spinozista, quanto com a lacuna hegeliana. Surpreendente e nada ortodoxa a postura do autor, visto que Althusser foi um crítico ferrenho da dialética hegeliana. Por um lado, Althusser assume a noção de crença, retirada da filosofia de Spinoza, como o local onde o imaginário constitui a própria existência material da ideologia; na crença religiosa a ideologia devém material. Por outro lado, a superfície material da ideologia não é o suficiente. Há sempre uma ordem real negativa que constitui a base positiva material. E nesse ponto de vista, o autor defende que Althusser tem uma forte influência hegelianalacaniana. Em Althusser, portanto, a ordem real não é a ordem material, ela é a diferença entre o real e o material (um arranjo dialético muito similar à concepção da identidade como identidade da identidade e da diferença). Por conta dessas duas posições althusserianas, Moder pode dizer que ele é a própria encarnação do problema Hegel e Spinoza.

A conclusão da obra, Substância e Negatividade: A Primazia da Negatividade, estabelece, portanto, um primado da negatividade na filosofia contemporânea. Negligenciada pela tradição desde Parmênides, passando por Aristóteles e os neoplatônicos, a negatividade ganha dignidade ontológica a partir de Hegel e se estende por toda a filosofia contemporânea. Curiosamente, mesmo Deleuze, o maior representante do “afirmacionismo”, não fica de fora desta primazia. Ora, a negatividade para Gregor Moder é tudo aquilo que funciona como um princípio motor não hierárquico ou unilateral no nível substancial ou ontológico. Seja esta chamada de negação da negação, teleiosis, diferença, modificação, torção, sujeito, curvatura etc. A originalidade do autor reside, para além de tirar Hegel desta tradição do “imediatismo ingênuo”, o que é evidente por si só, em fazer o mesmo com Spinoza! Para o autor, a única possibilidade de o spinozismo ser relevante na contemporaneidade é através dessa virada da negatividade e, no caso do spinozismo, entendida como torção, como essa autocausação da substância. Isto que o autor chama de “leitura heideggeriana de Spinoza”, ou seja, onde não há transição de substância para modos, não há transição do infinito para o finito, a única maneira de a substância se diferenciar é como suas próprias modificações, garante a continuidade recíproca de ambos. Em Spinoza, Ser só pode ser entendido dessa forma. Para Moder (2017, p.145), portanto, “a substância só pode ser sua própria torção”.

Eladio Craia – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Doutor. E-mail: [email protected]

Arion Keller – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Graduado em Filosofia. E-mail: [email protected]

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Que emoção! Que emoção? Georges Didi-Huberman

A obra “Que emoção! Que emoção?”, traduzida para o português por Cecília Ciscato, é um ensaio-conferência de Georges Didi-Huberman, lançado pela primeira vez em 2016, com reedição em 2018. No breve texto, que aborda autores ocidentais como Darwin, Nietzsche, Hegel e Sartre, o filósofo e historiador de arte pretende pensar as emoções de maneira introdutória e a partir do ato emocionado de chorar.

O choro, essa emoção manifestada em lágrimas, é o ponto de partida da narrativa que propõe, também, a observação de antigos retratos de crianças e desenhos que ilustram expressões faciais de animais e seres humanos, além de fotografias de eventos como velórios, obras de artes e cenas de filmes. São imagens que nos ajudam a perceber semelhanças históricas sobre o jeito de emocionar-se. Com isso, Didi-Huberman chama atenção para a capacidade que temos de não somente expressar, da mesma forma, as mesmas emoções, mas de também aprender, pela passagem do tempo, códigos sociais e modos culturais comuns e legíveis à nossa comunidade. Leia Mais

Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel – NOBRE (C-FA)

NOBRE, Marcos. Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Sobre jovens e velhos: Marcos Nobre entre Fenomenologia e Sistema. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 23 n.2 Jul-Dez, 2018.

Tornou-se comum no último meio século – pense-se paradigmaticamente em Honneth – narrar filosoficamente a história da teoria crítica da sociedade como uma trama de sucessivas oportunidades vislumbradas, porém perdidas, para uma adequada crítica da dominação.2 Numa das variantes desse verdadeiro paradigma narrativo estabelecido, caberia a cada vez recuperar as intuições de juventude não desenvolvidas por filósofos sociais que, em vez de amadurecê-las, delas se extraviaram, se tornando velhos incapazes de ver a emergência da novidade. Em sendo prima facie “apenas” uma (excepcional, diga-se de passagem) leitura estrutural da Introdução da Fenomenologia do espírito, o recente livro de Marcos Nobre, Como nasce o novo, esboça praticamente uma teoria geral desse suposto enrijecimento da crítica e vai buscar de modo metacrítico no jovem Hegel um antídoto contra esse envelhecimento. Seu empreendimento levanta hipóteses fecundas e mostra, sem dúvida, um caminho para escapar do estado há anos estacionado e estéril da teoria crítica neofrankfurtiana. Sugiro aqui, no entanto, uma avaliação de até que ponto o próprio Nobre responde satisfatoriamente a suas pretensões e propósitos. Trata-se de objetivos que o resenhista acredita compartilhar com o autor, de modo que o sentido dessas considerações é o de um debate franco sobre o melhor modo de alcançar certos objetivos comuns.

A ligação entre os dois planos tão díspares do livro, a leitura estrutural de um texto clássico e a metacrítica da (pré-)história da teoria crítica, é feita pela mediação de uma chave de interpretação do texto hegeliano como aquilo que Nobre chama de “modelo filosófico”, isto é, uma interpretação que postula a sua autonomia e subsistência como obra fechada e apartável de uma consideração sistematizante da obra de Hegel como um todo, levando em conta ainda a sua relação não com as intenções subjetivas do filósofo, mas com a experiência objetiva do tempo à qual o livro responde, ou, na expressão reiterada por Nobre, com as suas condições de produção intelectual. Numa palavra, a tese central de Nobre é que a Introdução da Fenomenologia absorveria e registraria na forma de um programa de método filosófico a eufórica experiência da emergência do novo vivida nos tempos de sua redação (a entrada da modernização a cavalo na Prússia), servindo como que de arquétipo de um modo “jovem” de se fazer teoria crítica que deveria ser recuperado. Nobre divide sua exposição em duas partes principais, o “trabalho de análise e comentário do texto da Introdução” e a sua própria “tomada de posição” em relação a ele.

3 Na ordem da apresentação, esta vem antes daquele, com o próprio texto de Hegel intercalado, vertido novamente para o português pelo próprio Nobre. Inverterei aqui esta ordem, passando, entretanto, apenas brevemente pelo comentário ao texto hegeliano e dirigindo o interesse sobretudo à posição de Nobre sobre “a importância desse modelo de pensamento para o momento presente” (p. 9).

A sempre mais estreita especialização imposta pelo modo de operação das universidades e sua distribuição de recursos inibe entre nós a produção de trabalhos como o de Nobre. Reconhecido como um “especialista” nas tradições frankfurtianas, o autor realiza uma exegese de Hegel que não fica aquém da primeira linha de obras de hegelianos brasileiros – o que não surpreende em vista da notória competência transdisciplinar de um filósofo que se destacou nos últimos anos como um dos mais importantes analistas da conjuntura política. O texto é informado em particular pela literatura secundária clássica e mais recente alemã, francesa, estadunidense e brasileira e oferece amparos sólidos para suas teses interpretativas centrais em substanciosas notas de rodapé, entregando ao leitor ainda um panorama das interpretações divergentes encontráveis. Estas teses, para ir logo ao ponto, dizem respeito aos momentos de início e de conclusão da Fenomenologia. Trata-se para Nobre de descerrar o texto desses limites iniciais e finais e mostrar que o livro não começa nem termina onde se costuma fazê-lo começar e terminar. Essa reabertura do texto é justificada ainda extratextualmente pela remissão a dois fatos contextuais: o de que Hegel escreveu a Fenomenologia e, em particular, a sua Introdução, como introdução a um sistema ainda inconcluso (isto é, como a entrada em um sistema fechado ainda aberto ); e isso no exato momento em que os exércitos franceses e, junto com eles, a ordem político-econômica burguesa, conquistavam a Prússia e aceleravam a dissolução da ordem feudal ali vigente (entenda-se: no momento histórico em que um potencial revolucionário se atualiza sem que se saiba ainda aonde vai dar). É como se, na Fenomenologia, Hegel tivesse cristalizado o próprio processo aberto, produzido algo que ainda não sabe o que é, trazendo a abertura de seu próprio tempo ao conceito.4

Intratextualmente, isso significa sustentar, por um lado, que no livro de 1807 o movimento da experiência não tem início, como em geral se sustenta e como a própria obra induz a ser lida, com o momento da certeza sensível, mas já antes na Introdução. Em outras palavras, na Introdução, já estaríamos no interior da experiência fenomenológica, que pega o bonde em movimento no seu exato tempo presente e o toma como pressuposto para poder negá-lo de modo determinado.

Esse pressuposto atual inescapável, no qual a experiência começa apenas a fim de negá-lo, é uma concepção representativa de conhecimento que Nobre, na esteira da primeira frase da Introdução, chama de “representação natural” (correspondente em certa medida, mas não de modo tão determinado, à concepção kantiana de conhecimento). Essa “representação natural” é levada às suas últimas consequências e o resultado é uma concepção “apresentativa” de conhecimento (concepção que se revela, num nível “meta”, como a que acabara de estar em ação nessa apresentação da passagem da representação à apresentação). Tendo entendido a si mesma, vindo a saber que não tem nenhuma “fixidez ontológica” e retirado o entrave da concepção representativa de conhecimento do caminho fenomenológico, a experiência precisa então retornar à certeza sensível como modo de recuperar a história de como se prendeu às positividades prévias e de como delas se desprendeu, e assim reabrir no presente o caminho para o novo. A outra tese interpretativa central é a de que a passagem da razão ao espírito no meio do livro não representa uma ultrapassagem do ponto de vista da experiência, que na verdade caminha até o saber absoluto na conclusão do livro. Também o saber absoluto é, para Nobre (apoiado parcialmente em Hans Friedrich Fulda), experiência da consciência, e não recai, portanto, num ponto de vista de Deus que seria aquele típico do sistema enciclopédico. A tese de Fulda é que o saber absoluto ainda é um saber experimentado, finito, de modo que também ele precisa ainda se pôr em movimento (p. 45). Mesmo que em formulações distintas, essa é por excelência a compreensão “jovem-hegeliana de esquerda” (à qual Nobre se filia (p. 220)), para a qual o sistema pronto e acabado de Hegel, justamente ao ser levado a sério em seu teor de verdade, entrava novamente em contradição na experiência com a realidade irreconciliada, exigindo a emergência de uma nova suprassunção, dessa vez prática.

As duas teses interpretativas de Nobre sobre o início e o fim da Fenomenologia – a) a de que o movimento dialético da experiência tem início já na Introdução e, nesse sentido, inicia sua dança lá onde se encontra a rosa, em sua experiência histórico-filosófica presente, e b) a de que esse movimento não termina onde parece terminar, mas projeta-se para além de si mesmo, uma vez que permanece finito –, essas duas teses convergem para a definição de “modelo filosófico” como obra que responde a seu tempo e que se sustenta sem recurso aos demais momentos da obra do autor. A ideia é que a Fenomenologia, ao contrário do estabelecido hegemonicamente na literatura secundária, não pressuporia o sistema pronto e acabado. Ela é “simplesmente” um engajamento filosófico crítico com o estado de coisas presente, sem ancoramento numa verdade definitiva atemporal (o sistema, do qual Hegel ainda não dispunha), e que começa sua ação partindo não de uma abstrata experiência imediata em geral (certeza sensível), mas sim da sua própria experiência imediata concreta (a concepção representativa de conhecimento), a fim de eliminar os entraves para a emergência de um novo que, de resto, já marchava ao seu encontro. A Introdução da Fenomenologia se destacaria então como texto paradigmático para a determinação da tarefa da crítica em geral porque, no corpus da obra de Hegel, é o local inaugural onde o filósofo se dirige precisamente aos “entraves autoimpostos” de seu tempo, a fim de eliminá-los e de liberar o automovimento do conceito.

Mas a caracterização da Fenomenologia como “modelo” possui ainda um aspecto decisivo para o horizonte do trabalho de Nobre. Não se trata apenas de dizer que o texto de 1807 para em pé sem o escoro da Lógica ou da Enciclopédia, isto é, do sistema em geral. Se a Fenomenologia é um “modelo” que responde a um diagnóstico de tempo específico, o programa filosófico da Enciclopédia, no qual se encaixam, por exemplo, a Lógica e a Filosofia do Direito, é, por sua vez, um “modelo” distinto que só emerge pela necessidade de reagir a um outro diagnóstico. “Mudanças na posição de Hegel estão necessariamente vinculadas a mudanças de diagnóstico de tempo”, diz Nobre (p. 23).5 O autor não é obviamente o primeiro a constatar essa relação, mas sua originalidade está nas consequências teórico-programáticas que deseja dela derivar. Para Nobre, trata-se buscar as “afinidades desse modelo filosófico [da Fenomenologia ] com o momento atual e suas condições de produção intelectual” e “projetar Hegel para além de 1807” (p. 10). A fim de verificar a plausibilidade desse programa hoje, é preciso entender melhor que passagem foi aquela que teria levado Hegel à necessidade de formular um novo “modelo”.

A Fenomenologia se distinguiria enquanto “modelo” por dar conta de uma transformação epocal em curso, a invasão napoleônica na Prússia e a consequente modernização das suas relações políticas, econômicas e sociais, da qual Hegel era, todavia, partidário. O “nascimento do novo” ao qual Hegel quis fazer jus em seu texto corria em paralelo com as transformações radicais que vinham do outro lado do Reno. Em registro filosófico, Hegel deveria dar conta do fato de que “o nascimento do novo se dá em uma situação de descompasso entre uma consciência que ainda não está à altura da real novidade do seu tempo (que corresponderia ao que Hegel chama de consciência ‘natural’) e aquela forma de consciência (chamada de ‘filosófica’ pela bibliografia hegeliana) que alcançou uma compreensão de seu tempo em todos os seus potenciais” (p. 18). A “real novidade” é, obviamente, a deposição do Antigo Regime e a instauração de uma ordem burguesa.

É como se se tratasse então de elevar a filosofia ao nível de racionalidade já atingido pelas relações sociais reais.

Mas há algo de incomodamente delicado nessa tese: o nascimento do novo de Hegel é então não mais do que a atualização do (aqui) atrasado à altura de um novo (alhures) já surgido? Se não quisermos enfraquecer o argumento a tal ponto, é preciso antes compreender que espécie de “novo” Hegel pretende de fato estar vendo emergir, um novo que não apenas acertasse os ponteiros com o fuso francês, mas lhe fizesse avançar mais um grau do relógio histórico. Mas este é o momento em que Nobre diverge e prefere não acompanhar o envelhecimento do filósofo.

Ora, o “novo” que emerge após a Fenomenologia e a ocupação francesa é justamente a Restauração e aquilo que, para Nobre, é seu correlato filosófico: o sistema. Trata-se, aos olhos da obra de maturidade de Hegel, ou, se se quiser, de seu novo “modelo”, efetivamente de uma nova figura do espírito do mundo na qual a própria negatividade que girava em falso e jacobinamente é institucionalizada e pode operar de modo “seguro”, preenchido por “relações éticas”. Em outras palavras, trata-se daquele momento “alemão” do desenvolvimento do espírito, no qual a liberdade sabe a si mesma como fundamento das ordens sociais e assim finalmente se reconcilia consigo mesma e forma sistema. “A modernidade” – e cabe acrescentar, em particular a “modernidade normalizada” após o Congresso de Viena – “é a primeira época a comportar e suportar o negativo dentro de si, a primeira época capaz de ir além de si mesma sem sair de si mesma” (p. 61).

Mas, se assim é, então não tanto a interpretação de Nobre da Fenomenologia, mas sua ideia de recuperá-la como “modelo” para o presente, se encontra diante de um dilema. Pois se a noção de “modelo” associa conteúdos filosóficos às experiências históricas objetivas com as quais tiveram de lidar, é em face de cada diagnóstico que os “modelos” podem ser julgados como “bons” ou “ruins”, se não se quiser recair em um historicismo no qual todos os “modelos” são igualmente bons porque são sempre adequados a seus respectivos presentes.

O próprio Hegel parece ter entendido que o sistema filosófico enciclopédico fechado e a nova organização social alemã “normativamente autocertificada” (para usar uma expressão de Habermas cara a Nobre) correspondem de fato àquele “novo” que deveria ser desbloqueado para perseguir e levar adiante a trilha de transformação reaberta com a Revolução Francesa (como Nobre mostra em pp. 52-61). Cada “modelo” hegeliano seria então igualmente bom, pois encontraria seu critério de avaliação na respectiva experiência histórica. Mesmo que se admita, portanto, que a Fenomenologia é um “modelo” no sentido de não carregar o sistema dentro de si como seu pressuposto, o que faz dela um modelo a ser “atualizado” hoje (p. 61)? Também essa pretensão não é contraditória? Se se trata sempre de modelos e se modelos são dependentes de diagnósticos, que sentido há em projetar um modelo para além de seu diagnóstico? A não ser que se sustente uma analogia de diagnósticos entre o Brasil de 2018 e a Prússia de duzentos anos antes, como essa “atualização” é possível? Qual é a experiência de emergência do novo hoje à qual a filosofia teria de fazer jus? O caminho de atualização de Nobre, no entanto, não passa por um diagnóstico, embora poucos filósofos entre nós estejam tão atentos ao presente e bem preparados para oferecer um quanto ele ( vide sua inteira atividade como intelectual público).6 Em vez disso, Nobre percorre outra vez algumas estações da história do hegelianismo de esquerda a fim de mostrar como alguns dos filósofos dessa tradição (em particular Marx, Lukács e Honneth) apresentariam um modo semelhante de “envelhecer”, passando, como Hegel, de uma fase “fenomenológica” a uma fase “sistêmica” ou “enciclopédica”. A analogia soa apressada e demandaria de Nobre mais material de convencimento.7 Em todo caso, ela se dá pela tradução daquele modo jovem, fenomenológico e aberto ao novo de se fazer teoria social pela chave da “visada da subjetivação da dominação”. Cada um destes autores teria privilegiado em sua obra de juventude a análise de como a dominação social tem vez junto ao próprio processo de formação da subjetividade, mas teria sentido a necessidade de formular outros modelos em razão de seus respectivos diagnósticos ulteriores (Marx, com sua revolução que nunca chega; Lukács, com a redução dos potenciais emancipatórios liberados na Revolução Russa com a burocratização e o socialismo de um só país da União Soviética; Honneth, com a colocação em risco e a necessidade de salvaguardar os “progressos” morais da geração de 68). Obras tão díspares como O Capital, Ontologia do ser social e O direito da liberdade teriam em comum serem obras “enciclopédicas”, cuja compreensão sistemática pronta e acabada do mundo recalcaria o momento fenomenológico, que, na definição do autor, “concede um lugar de destaque aos processos de subjetivação da dominação em toda a sua complexidade e sem a unilateralidade da primazia de uma determinação da subjetividade pelas estruturas de dominação” (p. 63).

Pois bem, se o propósito de “atualizar” o “modelo” da Fenomenologia não é justificado, como parecia necessário, por uma analogia dos diagnósticos de tempo de outrora e de hoje, 8 ele parece sê-lo, então, por essa tomada de partido de Nobre pela prioridade da tarefa de investigação da subjetivação da dominação e das formas de resistência à integração total. Ao cabo, Nobre advoga que a Introdução da Fenomenologia é hoje o modelo que, devidamente “atualizado”, poderia abrir caminho para a teoria crítica escapar do “reconstrutivismo” (velhohegeliano) em que se encontra. Em vez de “reconstruir” critérios da crítica lá onde estão institucionalmente estabelecidos, a teoria deveria se voltar, se leio bem as entrelinhas do texto de Nobre, a uma normatividade reprimida ou que vigora às margens, abafada e refugiada, enquanto mera ideia, na subjetividade de grupos oprimidos. Verificar como a dominação é introjetada seria ao mesmo tempo verificar como ela poderia não o ser. Em conclusão, caberia apenas perguntar se o que Nobre quer recuperar então não seria antes o jovem Honneth que o jovem Hegel.

A formulação sintética dada por Nobre para a caracterização dos modelos “de extração fenomenológica” (a “visada da subjetivação da dominação”) parece, ao fim da leitura da Introdução da Fenomenologia, na verdade mais próxima dos primeiros trabalhos de Honneth do que do dialético Hegel9 Não é claro no texto de Hegel lido por Nobre de que modo o complexo programa de (não-)método desenvolvido pelo filósofo pode ser reduzido a uma consideração teórica das lacunas e falhas da integração social tendencialmente total representadas por aquilo que, nos sujeitos, recalcitra à subsunção no universal. Se a Fenomenologia representa de fato, como sustenta Nobre, um modelo para a crítica radical que visa desbloquear o movimento do seu objeto através da recepção ativa de sua própria negatividade, então a ideia de que a transformação do objeto ocorre pela oposição a ele dos restos e falhas nas quais ele não se efetivou plenamente já é uma projeção subjetiva da teoria sobre o objeto e representa exatamente aquilo que Hegel deseja superar, aquela concepção que Nobre chama de “representação natural”. Isso porque opera implicitamente com a ideia restrita de que a negatividade a ser acolhida pela teoria está localizada nos excessos de subjetividade não integrada. Essa concepção parece confundir, no conceito hegeliano de “experiência”, a subjetividade da consciência que experimenta o movimento do objeto (i.e., a subjetividade do teórico) com a subjetividade do indivíduo não completamente integrado, que só pode aparecer, de fato, como objeto da experiência do teórico. Significa, ademais, tomar as lacunas de integração (as “práticas de resistência e contestação à dominação em suas múltiplas dimensões” (p. 71)) como ponto de ancoragem da crítica e esperar que a superação de um estado atual venha justamente do seu “lado de fora”, daquilo que não está subsumido à sua lógica.10 O objeto é cindido num universal a ser negado e num particular afirmado e a crítica perde a imanência ao objeto, a sociedade, – pois não há crítica imanente onde o seu objeto não pode ser sintetizado especulativamente como um objeto único em movimento (e este sim me parece ser o sentido da Introdução e sua lição para a teoria crítica). O próprio Honneth, que iniciou sua proposta de reformulação da teoria crítica nos termos ora repropostos por Nobre, não a abandonou porque se tornou um velho saudosista de 68, mas porque percebeu as aporias a que aquela posição conduzia: a aparente recalcitrância à integração na ordem de dominação não faz por si só da subjetividade marginal um ponto de ancoramento para a crítica, o que deveria ser claro em tempo de eleitores de Trump, da Alternative für Deutschland ou de Bolsonaro. Na teoria, a subjetividade antagônica apenas posterga o momento em que é preciso diferenciar entre a “boa” oposição e a “ruim”, e nesse caso o critério é extrassubjetivo. Assim, o Lukács de História e Consciência de Classe (que comparece em Nobre como exemplo de autor “jovem”) teve de se apoiar numa análise de crítica da economia política para indicar o proletariado como aquele que poderia se subjetivar em acordo com sua própria essência; e, mais tarde, Honneth teve de buscar nas expressões conceituais das regularidades da integração social funcional o critério das reivindicações de reconhecimento boas e ruins. Se ser “jovem” em filosofia é dedicar-se à análise da subjetivação da dominação, os jovens deixaram de ser jovens justamente quando levaram esse problema a sério e enxergaram que ele não se resolve na subjetividade; ou que a subjetividade é porta de acesso e obviamente não pode ser desprezada, mas precisa passar a uma análise mais aprofundada da pré-constituição objetiva da subjetividade. Em outras palavras, os “velhos” tiveram muitas vezes seus bons motivos para envelhecerem, e fizeram sim, em parte, justiça ao mundo em se tornando sistemáticos, porque a estruturação social possui sim um caráter tendencialmente sistemático. Justamente por o possuir, ela determina a subjetivação até mesmo lá onde parece não determinar, e a subjetividade antagônica é ela mesma também marcada por ser subjetividade antagônica à ordem de dominação e estar, portanto, determinada por essa ordem de dominação, não ser a ela externa e não poder ser tomada por critério de sua crítica.

Por isso compra-se sempre o risco, ao privilegiar a subjetividade já encontrada dada na realidade, de se estar sendo afirmativo do mundo, mas com a aparência de se o estar negando. Adorno disse uma vez que “apenas quem reconhece o mais novo como o mesmo serve àquilo que seria distinto” (Adorno, 2003, p. 376). A proposta de Nobre arrisca-se a, em vez de instigar e participar do “nascimento do novo”, afirmar nostalgicamente o “bom e velho” que ainda não cedeu ao universal e representa assim antes um resquício de uma figura anterior do q ue um anúncio de uma que surge.

Notas

1 O autor agradece o acolhimento gentil do prof. Marcos Nobre na leitura da resenha.

2 Esta espécie de romance de “deformação” dos filósofos-lidos (espelhado numa implícita história da formação do filósofo-leitor) é a estrutura da narrativa conceitual, por exemplo, de Crítica do Poder (Honneth, 1989 [1985]) em geral e de Luta por Reconhecimento (Honneth, 2003 [1992]), no que diz respeito à leitura de Hegel.

3 “E, no entanto, realizar essa necessária tomada de posição juntamente com um trabalho de análise e comentário do texto da Introdução prejudicaria consideravelmente a exposição. A solução foi expor essa tomada de posição separadamente” (p. 9). A opção de exposição/método de Nobre contrasta notavelmente com aquela, todavia de elevadas pretensões, da própria Fenomenologia : “O mais fácil é julgar o que possui um teor e uma solidez, mais difícil do que isso é apreendê-lo, e o mais difícil é produzir a sua exposição, o que unifica a ambos” (Hegel, 1986 [1807], p. 13).

4 “O modelo teórico legado pela Fenomenologia tem, portanto, pelo menos dois aspectos característicos: o de um work in progress em sentido mais restrito, que resultou no próprio livro publicado, e o de um work in progress em que um Sistema da ciência a ser produzido permanece como horizonte, configurado em um diagnóstico de tempo de intenção sistemática” (p. 47).

5 Cf. a distinção útil feita por Nobre entre “diagnóstico de época” e “diagnóstico do tempo presente” (p. 280-1, n. 28).

6 E embora sugira ainda que “a Teoria Crítica poderia deixar para trás o fardo da ‘melhor teoria’ em que se embrenhou nas últimas décadas, voltando a conceder ao diagnóstico de tempo presente a primazia que sempre teve na melhor tradição marxista” (p. 80).

7 Cf. afirmações como a seguinte: “Se História e consciência de classe pode ser entendido como a Fenomenologia de O Capital, a Ontologia do ser social pode ser lida, analogamente, em termos de uma versão materialista da Enciclopédia de Hegel” (p. 64).

8 “Atualização” significa aqui antes um update ao “estado da arte” da filosofia do que uma verificação da sua relação com a situação história presente: “assim como uma atualização do projeto da Fenomenologia teria hoje de proceder a uma reconstrução em termos comunicativos da noção de ‘espírito’ (a ser realizada segundo a noção de ‘experiência’), a ideia de ‘formação’ teria de ser ela mesma reconstruída nesses termos, de maneira a libertá-la do macrossujeito que pressupõe” (p323, n. 95).

9 Trata-se de uma filiação expressa: “É desse ponto de vista que se pretende jogar nova luz sobre um modelo de renoção da Teoria Crítica considerado aqui de extração fenomenológica como o oferecido por Luta por reconhecimento – ou, talvez, mais precisamente, aquele veio de atualização aberto por Crítica do Poder ” (p. 81). Cf. ainda, ilustrativamente, a semelhança quase parafrástica do penúltimo parágrafo de Nobre (“E a crítica dessa invisibilidade é o que faz desse livro [a Fenomenologia ] um modelo filosófico ainda hoje um ponto de partida talvez incontornável para uma Teoria Crítica da sociedade que tenha por objetivo não apenas investigar a cunhagem da subjetividade pelas estruturas de dominação, mas igualmente os processos de subjetivação em que surgem os potenciais não só de resistência, mas também de superação da própria dominação” (p. 238)) e o modo como Honneth define a tarefa da teoria crítica no posfácio de Crítica do poder (“hoje um problema-chave da teoria crítica da sociedade é representado pela questão de como pode ser obtido o quadro categorial de uma análise que seja ao mesmo tempo capaz de abarcar, com as estruturas de dominação social, também os recursos sociais para sua superação prática” (Honneth, 1989 [1985], p. 382).

10 Em termos semelhantes, Nobre se refere a uma passagem de Adorno, na qual este estaria a dizer, na sua intepretação, que “integração” e “resistência” se relacionariam “como água e óleo” (p.75). Tanto a interpretação da passagem parece estar equivocada (o que infelizmente não pode ser discutido aqui), quanto, como dito, essa parece ser antes uma implicação do programa de Nobre

Referências

ADORNO, T. W. (2003 [1942]). „Reflexionen zur Klassentheorie“. In: ________.Soziologische Schriften I (= Gesammelte Schriften, 8 ) (pp.373-391). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

HONNETH, A. (1989 [1985]).Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie. Mit einem Nachwort zur Taschenbuchausgabe. Frankfurt a.M.: Suhrkamp

____________.(2003 [1992]).Luta por reconhecimento : A gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34.

Hegel, G.W.F. (1986 [1807]).Phänomenologie des Geistes (= Werke 3). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

Luiz Philipe de Caux – Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea- CORTI- D

CORTI, L. Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea. Roma: Carocci Editore, 2014. Resenha de: BAVARESCO, Agemir. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018

O autor, Luca Corti, tem a seguinte trajetória intelectual: Obteve sua graduação (2008) e o mestrado (2011) em filosofia na Universidade de Florença. O doutorado (2015) realizou-se na Universidade de Pádua, tendo como tema de tese Mind and Method in Hegel’s Philosophy of Subjective Spirit, sendo o orientador o Prof. Luca Illetterati. Corti tem em seu currículo vários pós-doutorados em universidades europeias, além de desenvolver uma ampla pesquisa expressa em artigos, livros e traduções (ver currículo em http://rub.academia.edu/LucaCorti/CurriculumVitae).

O livro Ritratti hegeliani pode ser considerado uma história da filosofia americana sobre Hegel. O autor mantém a boa tradição italiana de escrever histórias da filosofia. O livro é composto de cinco capítulos em cada um trata de um autor. O primeiro é sobre Wilfrid Selars e seu kantismo normativo (p.29 a 58); o segundo descreve a filosofia de McDowell e o seu espaço de razões na experiência (p.59 a 110); o terceiro é a leitura de Robert Brandom sobre Hegel (p.111 a 180); o quarto é a intepretação de Robert Pipin e sua interpretação normativa institucional de Hegel (p.181 a 234); e o último é a leitura de Terry Pinkard entre história e natureza em Hegel (p.235 a 270).

Luca Corti divide a sua pesquisa a respeito da recepção americana de Hegel em três fases que correspondem a três perguntas: 1ª fase: How Hegel Came to America? Esta fase corresponde a primeira metade do século XIX em que alguns filósofos americanos adotam em seu trabalho algumas ideias alemãs, entre os quais William T. Harris e Henry C. Brokmeyer. Eles foram os primeiros a engajar-se num projeto de tradução de Hegel e sua abordagem é mais eclética do que propriamente filosófica.

A 2ª fase: How Hegel Left America? A resposta foca-se a partir de dois grandes filões da tradição americana: o pragmatismo e a filosofia analítica. Do lado do pragmatismo menciona-se William James que tem uma fase mais crítica e depois de reconciliação em relação a Hegel. Porém, outros pragmatistas como J. Dewey e Charles Peirce têm uma relação mais articulada com o pensamento hegeliano. Do lado da filosofia analítica, mais anti-hegliana temos Moore (Refutation of Idealism) e Russell. Segundo Corti estas duas fases são um tanto ignoradas nos departamentos de filosofia americanos ao longo do século XX. Enfim na 3ª fase: How Hegel Came Back to America? Para Corti, esta fase trata da recepção de Hegel feito pelo mainstream filosófico americano nos últimos 40 anos, cujo livro será dedicado a descrever os cinco autores principais deste período: Sellars, McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard.

No começo dos anos 50, há um renascimento dos estudos hegelianos inspirados pela pesquisa de Sellars que admira Hegel, embora o cite raramente. Porém, as raízes históricas e teóricas deste renascimento encontram-se em Sellars, cujos autores McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard de uma forma ou de outra inspiram-se. Corti afirma que tentará elaborar uma síntese reconstrutiva das suas interpretações e dos debates que gravitam ao seu redor, respondendo a duas questões: “Como Hegel retornou aos Estados Unidos”, mas sobretudo: “Qual Hegel retornou ao centro das atenções nesse contexto filosófico?” (Idem, p.19).

Cabe ponderar que segundo Corti, embora a relação daqueles autores com Sellars seja fundamental, ele não é o único, mas também há a influência do segundo Wittgenstein e da tradição analítica, e de Charles Taylor e de Klaus Hartmann e John N. Findlay que já nos anos 50 e 60 traziam da Europa uma nova leitura de Hegel.

Há um debate sobre a etiqueta da Escola de Pittsburgh e o círculo sellarsiano. Alguns começaram a chama-la de “Escola neohegeliana de Pittsburgh” ou “neohegelianos de Pittsburgh”. Porém, nem todos os membros sentiram-se identificados com tal etiqueta, como por exemplo McDowell. Por isso, eliminou-se o adjetivo hegeliano e manteve-se apenas “Escola de Pittsburgh”.

Para Corti trata-se de constatar qual é o modo peculiar de relação desses autores com a história da filosofia, ou seja, de ler os textos da tradição, ao mesmo tempo, de um modo original e controverso. Sellars tinha um grande interesse pela história da filosofia afirmando que “sem história da filosofia, a filosofia, se ela não é cega ou vazia, pelo menos é muda” (Idem, p.21). Face às variadas leituras propiciadas pela abordagem histórica surge a questão: “Mas isso é realmente Hegel?”. Temos abordagens opostas: ou a crítica frontal que coloca os limites histórico-filológicos de tais leituras e uma aparente estranheza ao texto hegeliano (“este não é o verdadeiro Hegel”); ou então, a adesão ao novo modo de ler os textos, as vezes até fazendo Hegel um predecessor da filosofia analítica (ver p.23). Conti entende que a alternativa não se dá entre esses dois tipos ideais de abordagens, mas explicitando, dialeticamente, suas teorias e leituras históricas.

Tendo presente estes pressupostos, Luca Corti apresentará Sellars e sua interpretação de Kant, pois esta é fundamental para compreender os desdobramentos posteriores e os “retratos” elaborados por McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard. Para elaborar os referidos retratos, Corti apresenta de cada autor, em primeiro lugar, o quadro teórico e os temas de fundo, os aspectos mais discutidos e a herança histórica mais relevante. Depois, ele irá verificar como estes elementos se traduzem na leitura de Hegel. O objetivo de tais retratos é aproximar o leitor dos autores e também fazer emergir algumas semelhanças e problemas comuns entre eles. O esforço é fundir os vocabulários pertencentes a duas tradições distantes: o léxico hegeliano e a tradição do campo analítico.

A chave de leitura e o fundo teórico, segundo Corti, que une estes autores é a normatividade. O tema da ‘norma’ é central neste livro: “Todos os nossos autores partilham a ideia de que o pensamento e a ação sejam fenômenos do tipo normativo, relacionadas ao nosso seguimento de regras” (p.26). Cabendo distinguir que a ordem normativa não se reduz à ordem natural, ou seja, como Sellars diferenciava entre o “espaço das razões”, de natureza normativa, e o “espaço das causas”, próprio das explicações naturais.

O conceito de ‘regra ou norma’ é o que faz a ponte para a interpretação dos textos do idealismo alemão. Sellars aplicará a teoria normativa dos conceitos na leitura de Kant, abrindo a estrada para a passagem a Hegel realizado pelos seus sucessores: “A tese comum a todos estes autores é que Geist é, precisamente, o termo hegeliano para indicar uma dimensão normativa não naturalizável, figura fundamental da racionalidade prática e conceitual” (p.26).

Os termos regra e norma assumem significados múltiplos e controversos: O que são as normas? Qual é o seu estatuto? Como compreender fenômenos enquanto intencionalidade, o conhecimento perceptivo e o significado em termos normativos? As respostas a estas perguntas colocam em diálogo Hegel e Wittgenstein. Para isso é necessário retornar a Sellars e ver como ele aproxima Wittgenstein de Kant que ensina como seguir uma regra e, também, como Kant dialoga com Wittgenstein encontrando o pragmatismo. “Um encontro que produziu visões tão originais, fazendo do filósofo vienense o meio para um diálogo entre o pragmatismo e a filosofia clássica alemã” (p.27).

O livro de Luca Corti é uma obra que nos permite conhecer, de modo sistemático, uma das atualizações hegelianas contemporâneas muito importante: a recepção norte americana. O autor tem o mérito de apresentar os autores de modo didático, introduzindo a teoria de cada autor e a sua relação com Hegel. O leitor pode seguir os passos de apresentação do autor, pois ele usa um estilo simples e direto, evitando diletantismos ou informações desnecessárias, não perdendo o foco de sua pesquisa. Recomendo a leitura dessa obra incontornável para quem necessita conhecer a recepção hegeliana norte-americana.

Agemir Bavaresco – Pontifícia Universidade Católica – RS.

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Hegel-Husserl-Heidegger – GADAMER (FU)

GADAMER, H-G. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2012. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.1, p.84-87, Jan./abr., 2014.

O nome de Hans-Georg Gadamer (1900-2002) se confunde com a ideia de hermenêutica. Esta afirmativa se legitima ao conhecermos as contribuições que o filósofo trouxe a esse campo de saber. Retirar a hermenêutica do registro metódico, que fazia com que esta ainda permanecesse distanciada de seus objetos, trazendo-a para o domínio filosófico (nas esferas estética, histórica e da linguagem) talvez tenha sido o mais significativo acréscimo do pensamento gadameriano (Rohden, 2002). Não se pode, contudo, em detrimento de suas ideias próprias, desconsiderar as apropriações que o autor faz das figuras filosóficas que, de alguma maneira, se encontram atreladas à hermenêutica e fenomenologia contemporâneas. Com vivo interesse hermenêutico, Gadamer comenta pensadores que influíram decisivamente em sua formação acadêmica, em sua síntese filosófica original e, de modo mais amplo, na cena intelectual do século XX. Valendo-se de ensaios, conferências e falas de circunstância, o autor nos oferece, com a clareza que lhe é habitual, interpretações que – além de sempre contar com a atitude hermenêutica fundamental – se beneficiam da experiência deste que não apenas viveu as ideias do século passado quanto conviveu com alguns de seus propositores.

Algumas dessas interpretações estão já disponíveis em português na série Hermenêutica em retrospectiva, editada entre os anos 2007-2008 pela Editora Vozes (Gadamer, 2007a, 2007b, 2007c, 2007d, 2008). Recentemente, sob o mesmo selo editorial, o leitor brasileiro passou também a contar com mais dessas leituras de Gadamer enfeixadas sob o título de Hegel-Husserl-Heidegger. Com esta entrada, chegamos a nutrir expectativas (em parte induzidos pelo distinto e quase homônimo capítulo que Sartre [1997] consagra aos três filósofos no interior de O ser e o nada) quanto ao livro tratar-se de um único e coeso ensaio que tentaria mesclar as ideias dos três filósofos. Entretanto, mesmo vendo nossas expectativas neste sentido dissipadas, a obra, coletânea de textos de diversas épocas, não deixa de gratificar os interessados em questões hermenêuticas e fenomenológicas, bem como, pontualmente, os pesquisadores dos referidos filósofos germânicos.

Equivalendo ao terceiro volume das Obras Reunidas (Gesammelte Werke), Hegel-Husserl-Heidegger traz 28 escritos distribuídos em três partes referentes aos filósofos nomeados no título. Desiguais em número de textos, as partes são também diferentes em extensão e gênero; alguns são longos ensaios e, outros, recensões e alocuções menores.

É isso que se vê na primeira seção, composta por cinco escritos sobre Hegel: “Hegel e a dialética antiga” (p. 13-46), “O mundo às avessas” (p. 47-69), “A dialética da autoconsciência” (p. 70-92), “A ideia da lógica hegeliana” (p. 93-121) e “Hegel e Heidegger” (p. 122-140). No primeiro tópico, temos a tentativa de Gadamer (que também era filólogo clássico) de pensar a dialética antiga em sintonia com a moderna; nos demais, é possível entrever o procedimento hermenêutico do autor ao caracterizar a filosofia da subjetividade hegeliana a partir da noção de “entendimento” na Fenomenologia do espírito e nas doutrinas da Lógica maior. Embora Gadamer seja bem pouco pretensioso frente a estes trabalhos que, para ele, apenas contribuiriam para “se aprender a soletrar Hegel” (p. 8), nosso autor se mostra um distinto leitor de Hegel, mostrando-se familiarizado com a literatura que – de Rosenkranz a Kojève – compõe o repertório crítico junto ao qual os problemas hegelianos se adensam e se esclarecem.

Proporcionalmente reduzida é a seção reservada a Husserl. Isto, no entanto, não significa que Gadamer atribuía importância menor ao fundador da Fenomenologia. Reconhecendo a extensão e magnitude do pensamento de Husserl, Gadamer nos oferece um conjunto de recensões outrora publicadas no periódico Philosophische Rundschau; com essas, pretende escutar, uma vez mais, o que foi dito por Husserl e estabelecer os acentos cabidos aos pontos de convergência e ressonância da fenomenologia. Isso pode ser conferido em textos como: “O movimento fenomenológico” (p. 143-199), “A ciência e o ‘mundo da vida’” (p. 200-216) e “Sobre a atualidade da fenomenologia husserliana” (p. 217-232). Entre os três títulos, voltemos nossas atenções ao primeiro. Neste longo escrito, encontramos uma apresentação muito didática dos termos da fenomenologia husserliana em seus objetivos, aspectos metódicos e, principalmente, seus objetos de crítica (a teoria do conhecimento, a ideia de sujeito e outras hipostasias). Um pouco do nível dos textos que Gadamer consagra a Husserl, e uma ideia do que o leitor interessado nessa fenomenologia encontrará nessa segunda parte do livro, pode ser apreciado nas seguintes linhas:

A fenomenologia não era menos crítica em relação aos hábitos do pensamento da filosofia contemporânea. Ela queria dar voz ao fenômeno, ou seja, ela buscou evitar toda e qualquer construção indemonstrável e colocar à prova criticamente o domínio autoevidente de teorias fi losóficas. Assim, ela considerava, por exemplo, uma construção marcada por preconceitos, quando se procura deduzir todos os fenômenos da vida social humana de um único princípio, por exemplo, a partir do princípio da maior utilidade ou mesmo a partir do princípio do prazer. Mas ela se remete sobretudo contra a construção que imperava na outrora disciplina fundamental da filosofia: a teoria do conhecimento (Gadamer, 2012, p.144).

Dentre as três seções componentes do livro, a mais substancial é a terceira. Inteiramente dedicada a Heidegger (o que denota que é sobre este que recai a ênfase do livro), seus ensaios, conferências e discursos não são inteiramente inéditos, já tendo sido publicados originalmente entre os anos de 1964-1986. Na maioria desses escritos é possível identificar o interesse gadameriano em caracterizar o pensamento de Heidegger em dois tempos: o antes e o depois da chamada “virada hermenêutica”.

Dos 20 textos sobre Heidegger, chama-nos atenção “Existencialismo e filosofia da existência” (p. 235-249). Esta distinção entre o pensamento do filósofo de Freiburg e a dita corrente existencialista poderia ser considerada uma temática “requentada” se fosse desconsiderado o fato de ele ter sido escrito em 1981, época em que se vivia uma verdadeira voga existencial ou um momento em que, como diz Gadamer (2012, p.235): “O que não era existencial não contava”. Problematizando a designação em pauta, nosso comentarista apresenta os termos das filosofias da existência na Alemanha e dos motivos da aversão de Jaspers e Heidegger ao rótulo. Gadamer ainda nos mostra o quanto reflexões desses autores apropriam certo “pathos existencial” presente na obra de pensadores fundamentais como Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Tal texto, se lido diante da consideração de seu contexto de época, ainda se presta a reforçar o quanto a filosofia de Heidegger não é existencialista.

O texto “História da filosofia” (p. 398-412), também de 1981, é outro que se destaca do conjunto. Lançando um olhar inteligente sobre o tema, Gadamer procura estabelecer um lugar para a história da filosofia no pensamento de Heidegger. Com isso, reforça o quanto, em Heidegger, a história da filosofia é menos historiografia dos problemas do pensamento do que questionamento filosófico propriamente.1 Entretanto, ao tomar este caminho, Gadamer se vê instado a tratar, também, do conceito heideggeriano de história, este que, como sabemos, possui acepções diversas em diferentes épocas (como se vê nos primeiros trabalhos de Heidegger, implicando as noções de historicidade e temporalidade existenciais e nos encaminhamentos para a obra tardia do filósofo, na qual a “história do ser” ganha proposição e relevo). Antes, porém, de chegar a esse ponto, Gadamer faz uma reconstrução histórica do conceito de história da filosofia mostrando o quanto ele surge do gesto inaugural de Hegel; como ganharia a acolhida de Schleiermacher; receberia contributos da escola histórica de Berlim e de pensadores a esta ambientados (como é o caso de Dilthey) e mereceria críticas quando é assumido como “história das ideias” no bojo do movimento neokantiano (em especial com Windelband).

“Martin Heidegger, 75 anos” (p. 250-264), “O pensador Martin Heidegger” (p. 298-305), e “Martin Heidegger, 85 anos” (p. 350-361) são discursos comemorativos por ocasião de aniversários do filósofo. Nesses (mais do que o registro de apreço de Gadamer a seu mestre) se encontra uma narrativa detalhada da trajetória de Heidegger, com ênfase em seus excitantes momentos iniciais. Longe do tom retórico e das formalidades (geralmente recorrentes em falas similares), o relato de Gadamer assume, por vezes, o tom de um memorialismo refinado. Em meio ao exercício de apresentar traços personais do filósofo, ilustrar o rigor de sua atitude fenomenológica, compreender seus conceitos fundamentais e revisitar as críticas voltadas à sua filosofia, é possível identificar o esforço de Gadamer em marcar suas posições frente ao pensamento de Heidegger, ou, como confessa o próprio Gadamer (2012, p.9):

Foi necessário o distanciamento que a conquista de um nível próprio pressupõe, até que eu estivesse respectivamente em condições de destacar a tal ponto o meu acompanhamento dos caminhos de Heidegger de minha própria busca por um caminho e uma senda, que eu pudesse apresentar por si mesmo o caminho do pensamento de Heidegger.

É claro que o recorte específico dado por nossa resenha não faz com que prescindamos da leitura dos demais textos do compêndio: “A teologia de Marburgo” (p. 250-264), “O que é metafísica?” (p. 281-285), “Kant e a virada hermenêutica” (p. 286-297), “A linguagem da metafísica” (p. 306-317), “Platão” (p. 318-332), “A verdade da obra de arte” (p. 333-349), “O caminho até a viragem” (p. 362-381), “Os gregos” (p. 382-397), “Há uma medida sobre a terra?” (p. 446-470), “Sobre o início do pensamento” (p. 507-531), “Em meio ao retorno ao início” (p. 532561) e “O caminho uno de Martin Heidegger” (p. 562-580). Afinal, estes escritos ajudam a introduzir o pensamento de Heidegger mostrando o quanto o autor foi tão obstinado quanto intrépido ao se afastar da filosofia e linguagem tradicionais, encaminhando-se a um pensamento novo e renovador.

Ao fim, é preciso indicar que, embora o título sugira apenas o universo de Hegel, Husserl e Heidegger, também comparecem no horizonte da obra autores (direta ou indiretamente) ligados ao pensamento dos primeiros. Destarte, vale conferir como Gadamer se posiciona frente a Natorp, Scheler e Hartmann.

Notas

1 Isso já poderia ser conferido pelo leitor brasileiro na preleção História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant (Heidegger, 2009).

Referências

GADAMER, H-G. 2012. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis, Vozes, 608 p.

GADAMER, H-G. 2007a. Hermenêutica em retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Petrópolis, Vozes, vol. 1, 132 p.

GADAMER, H-G. 2007b. Hermenêutica em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis, Vozes, vol. 2, 212 p.

GADAMER, H-G. 2007c. Hermenêutica em retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática. Petrópolis, Vozes, vol. 3, 95 p.

GADAMER, H-G. 2007d. Hermenêutica em retrospectiva: a posição da filosofia na sociedade. Petrópolis, Vozes, vol. 4, 131 p.

GADAMER, H-G. 2008. Hermenêutica em retrospectiva: encontros filosóficos. Petrópolis, Vozes, vol. 5, 119 p.

HEIDEGGER, M. 2009. História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant. Petrópolis, Vozes, 271p.

ROHDEN, L. 2002. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo, Editora Unisinos, 317 p.

SARTRE, J.P. 1997. Husserl, Hegel, Heidegger. In: J.-P. SARTRE; P. PERDIGÃ O, O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis, Vozes, p.302-325.

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Toledo, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

O conceito de liberdade de imprensa ou de liberdade de comunicação pública na filosofia do direito de G. W. F. Hegel – KONZEN (V)

KONZEN, Paulo Roberto. O conceito de liberdade de imprensa ou de liberdade de comunicação pública na filosofia do direito de G. W. F. Hegel. Porto Alegre: Editora Fi, 2013. 462 p. Veritas, v. 59, n. 1, p. 9-14 jan.-abr. 2014.

A primera vista el tema abordado por este libro podría sugerir que el autor se ha concentrado en un aspecto muy limitado de la filosofía de Hegel, como es la libertad de imprenta y la libertad de comunicación pública. Pues bien, a medida que el lector se adentra en la obra, puede apreciar que el autor desarrolla el tema como un punto clave y certero en donde converge no sólo la concepción política de Hegel en su conjunto, sino también elementos fundamentales de su concepción metafísica y antropológica. Es por ello que Paulo Konzen comienza el examen desde la relación entre categorías metafísicas como diversidad e igualdad, considera luego la relación entre individuo y la comunidad de la que forma parte, hasta investigar el problema de la libertad y sus instanciaciones jurídicas concretas.

Un concepto que recorre todo el primer capítulo es el de diversidad humana. Este capítulo presenta una tensa oscilación entre una igualdad que se les reconoce a los hombres, en el plano del derecho abstracto, y una diversidad que acusa la naturaleza y que da lugar a una serie de desigualdades en el ámbito de la sociedad civil. El autor recorre varios aspectos de esta tensión y llega a una primera solución. Según ella, Hegel busca una integración que en cuanto tal se distancie del individualismo disolvente, pero que a su vez no se transforme en una homologación en la pura identidad, es decir la anulación de la diferencia. Konzen logra mostrar claramente en el pensamiento de Hegel la preocupación por la integración. En cambio, la diversidad llegaría solo a mostrarse como algo “no negativo”. Hasta allí sería difícil convencer a quien objetase la disolución de la significación del individuo en la comunidad. Las diferencias serían aceptadas, sí, pero como mera particularidad, no significativa. Pero esta primera formulación se enriquece luego con la elucidación del concepto de “Estado orgánico”. Explorando la analogía con el organismo, Konzen muestra diversos aspectos por los cuales la diversidad no sólo es un factor a tolerar sino elemento indispensable y funcional al todo. Un organismo viene a menos, incluso puede morir si le falta alguna de sus partes o una de ellas no cumple su función. No obstante, aun así podría objetarse qué tipo de libertad le resta a quien está atado en su significación a una función necesaria, y a qué tipo de unidad se somete toda diversidad en términos funcionales. Después de todo, el organismo es una metáfora; se trata de ver con más precisión cuáles son las implicaciones conceptuales que Hegel está dispuesto a aceptar. Creo que el autor acierta en la delimitación de esta integración y de la metáfora del organismo. La cuestión fundamental que preocupa a Hegel es que la diversidad humana, que puede manifestarse en muchas direcciones y en diversos grados, no someta a su arbitrariedad mediante la generación de desigualdades cada vez mayores, tanto materiales como culturales, el destino de quienes no se encuentran favorecidos por la naturaleza o por la formación. Lejos de buscar anular la diversidad, que como hombre de humanidades es particularmente sensible a la formación y los diversos talentos, como lo muestra Konzen a través de varias citaciones, Hegel acepta limitar el ámbito de esta diversidad sólo en la medida en que pueda llevar a una desigualdad que atente directamente a los menos provistos material y espiritualmente, e indirectamente a la consistencia de la nación o pueblo como un todo, del cual a través de distintas mediaciones abrevan, al fin y al cabo, incluso los talentos y las formaciones destacadas.

Finalmente el autor muestra como en diversos contextos Hegel ha expresado su rechazo hacia aquellos gobiernos que intentan engañar al pueblo, por lo cual una interpretación del valor que tiene para Hegel la libertad de imprenta debe contar con el rechazo de Hegel de cualquier tipo de manipulación posible de un pueblo por parte de un gobierno.

Sin embargo, Konzen ya adelanta que para que un pueblo pueda tener un discernimiento propio y correcto de la cuestión pública, lo cual es un derecho, es necesario que tenga la mayor formación (Bildung) posible. La libertad de comunicación favorece la mediación de la diversidad, en particular a través de su efecto sobre la opinión pública, como veremos luego en su relación con la formación.

La reducción de la noción de libertad de prensa como “libertad de decir y escribir lo que se quiere” es obra del formalismo, análoga a la reducción de la noción de la libertad a “hacer lo que se quiere”; el autor, atento a esta advertencia que Hegel lanza al comienzo de la observación § 319, tomará como cuestión central la elucidación del concepto de libertad de comunicación, en lugar de darla por obvia y limitar la exposición sólo al dilema de si Hegel defendía o no la libertad de imprenta. En el segundo capítulo, entonces, se adentra en la noción de libertad misma y en la importancia que tiene la Bildung para la realización de la libertad del hombre, a fin de mostrar luego cómo la publicidad colabora para dicha formación. Para ello expone al comienzo la recepción que hace Hegel de la noción de estado de naturaleza según Hobbes, noción que Hegel admite como contrafigura de la libertad. La voluntad sólo es imputable en la medida en que ha tenido oportunidad de acceso al conocimiento, en particular de la ley; la falta de formación implica la eventual reducción de un sector de la población al estado de naturaleza, es decir una situación en donde el hombre no es libre y es amenaza y hasta efectiva eliminación de la vida de sus semejantes, y esto sin imputabilidad alguna. En las complejas relaciones entre el querer y el saber, la formación permite al hombre tener un discernimiento correcto. Es por ello que la publicidad es esencial para todos los integrantes de la comunidad. La formación, gracias al saber y a la información de la que se nutre, permite mediar el interés particular con el universal, de modo que la voluntad no padece así lo universal como una imposición externa o alienante, sino como parte aceptada de sí. El autor muestra mediante el examen de la los diversos aspectos de la Bildung en la Filosofía del Derecho, cómo el pasaje del estado de naturaleza a la Eticidad, es decir de la no libertad a la libertad, no es un salto puramente político en sentido estrecho, ni un salto de la voluntad por la cual ella reprime su interés en función de un universal externo, sino que tiene su sendero interno y constitutivo en la formación de la voluntad individual, desde las instancias de la familia hasta el Estado. En esta – me atrevo a traducir – pedagogía política de la voluntad, juega un rol esencial la publicidad, la libertad de comunicación, que en la sociedad moderna se encuentra vinculada con la libertad de imprenta (Konzen, atento al texto del § 319 y también al contexto histórico, admite prácticamente como sinónimos libertad de comunicación pública y libertad de imprenta).

Se trata de formación o trabajo de la cultura (Bildung), que involucra tanto el trabajo cultural personal del individuo como de toda la sociedad, dentro de la cual se encuentra la comunicación y la imprenta. El autor explora también la incidencia de la Bildung en el ámbito de la sociedad civil, por ejemplo en cómo afecta en la participación en el patrimonio en lo que respecta a la formación profesional; y en el ámbito del Estado, por ejemplo en lo que concierne a la competencia e idoneidad de los funcionarios. De la articulación compleja de estas instancias depende el grado de cultura de una nación. Según Konzen, Hegel sostiene al respecto una suerte de círculo virtuoso, pues la libertad de comunicación pública es uno de los mejores medios para la formación cultural de un pueblo y por ende de su capacidad de discernimiento, y a su vez, a mayor grado de cultura, reina con más probabilidad un mayor grado de libertad de comunicación pública, pues es el menos probable el abuso de la libertad en cuestión.

El autor no se limita al examen de los textos y recorre en el capítulo tercero las vicisitudes biográficas e históricas en donde los textos hegelianos fueron ideados, escritos y publicados. Así sale a la luz un Hegel que fue periodista en Bamberg y sintió directa (mientras fue director) e indirectamente la censura (cuando el periódico fue clausurado, poco tiempo después de haber renunciado a su cargo). Pero sobre todo el capítulo se articula sobre la problemática que presentan los Principios de la Filosofía del Derecho, en cuanto obra sorprendida por las Resoluciones de la Convención de Karlsbad poco tiempo antes de publicarse y que se enfrenta con la paradoja de hablar de la libertad de prensa en una época de censura. Konzen afronta el examen de las posiciones principales un arco extremo de intérpretes, desde los que sostienen que los Principios de la Filosofía del Derecho son la consagración filosófica del gobierno prusiano por parte de un Hegel condescendiente, hasta quienes sostienen una dicotomía tajante entre el Hegel de la obra y el de las Lecciones; un arco que recorre numerosas variantes. Pero aquí el autor debe afrontar el problema no de si la censura afectó una de las tantas tesis de la filosofía del derecho, sino justamente a la idea misma de la libertad de comunicación pública. En el examen de las interpretaciones, Konzen encuentra la ocasión para ir presentando al lector su propia posición y sus razones. Aun cuando concede que en particular el §319 y su anotación son confusos, por momentos más bien alusivos y elípticos, sostiene que existe una esencial continuidad entre el Hegel de Bamberg y de las Lecciones de Filosofía del Derecho de 1817 y siguientes, por un lado, y la obra publicada, los Principios de la Filosofía del Derecho, por el otro.

La exposición sistemática del concepto de libertad de comunicación pública y de libertad de imprenta, y la ponderación de sus alcances y límites encuentran lugar en el capítulo final, el cuarto. Mediante un análisis exegético de los elementos decisivos del §319 y su Anotación, determina sucesivamente los elementos fundamentales del concepto. Puesto que gran parte de la exposición hegeliana procede allí mediante negación – se extiende más en señalar cuándo existe abuso de libertad de comunicación que en ofrecer una exposición en términos positivos – Konzen se sirve metodológicamente del dictum que Hegel evoca de Spinoza – toda determinación es negación – para detectar por contraste en cada instanciación de abuso que Hegel señala, el uso legítimo admitido implícitamente. Luego de un extenso relevamiento y confrontación con la bibliografía sobre el tema, el autor presenta una reconstrucción descriptiva de los elementos fundamentales de la libertad de comunicación pública. Y sostiene que la concepción hegeliana de esta instancia de la libertad converge con la que presentan las principales realidades constitucionales de los estados contemporáneos. El autor presenta, entre otros, los siguientes elementos argumentativos. Hegel sin duda no es un defensor de la libertad de imprenta en términos de libertad absoluta. Admite que puedan considerarse ilícitos los abusos. Pero en primer lugar exige una ley; los alcances y límites de la libertad de comunicación pública no pueden depender del mero arbitrio del gobierno. En cuanto a los abusos, siguiendo gran parte de la bibliografía, Konzen destaca cómo los casos que presenta Hegel son más bien casos en donde la libertad de comunicación pública es utilizada como medio para cometer otro delito ya tipificado como tal en general en los códigos, y con entidad autónoma, como ser por ejemplo calumnia e injurias, o la incitación a la revuelta. Por otra parte, el texto presenta una salvaguarda explícita de la libertad de la ciencia, que recordemos que para Hegel incluye a la filosofía como su mayor exponente. Por lo demás, en los casos donde la expresión pública puede ser potencialmente un riesgo, por ejemplo, para la seguridad de la nación, señala que debe considerarse si efectivamente ese riego existe, pues una expresión es sólo peligrosa si el contexto lo justifica. Luego, en todo lo que atañe a la aplicación de sanciones, Konzen subraya cómo Hegel es más bien restrictivo en los casos dudosos, y deja más bien a la misma opinión pública a que los regule con sus propias sanciones, como el desprecio y la atribución de insignificancia.

Pero la reconstrucción que realiza Konzen de los fundamentos en los dos primeros capítulos, no sólo sienta las bases para su posición acerca de la libertad de imprenta en Hegel, sino que también le permite trascender el contexto histórico puntual. La necesidad humana esencial de la formación, en saber y discernimiento, que requiere como uno de sus medios mejores, según Hegel, a la libertad de comunicación pública, puede según Konzen sugerir criterios para la situación actual. En líneas generales, nos puede proveer de criterios para pensar los nuevos problemas que nos acechan hoy, a diferencia de ese entonces, como ser la sobreabundancia y el exceso de información; el aplanamiento de toda información al mismo nivel de importancia, y por tanto la necesidad de un concepto crítico de información en función de la libertad humana, cuestiones hoy medulares en todo planteo de ética y legislación comunicacional. Así también la obligación que exige Hegel del Estado de respetar el ámbito de la libertad subjetiva y la privacidad, limitaría según Konzen por ejemplo la posible injerencia en los correos electrónicos, y exigiría una fundamentación muy estricta de una ley que autorizase en algunos casos su intervención.

Este libro presenta el rigor de una tesis doctoral, sobre la cual se basó originalmente, sin quedar encerrado en el carácter críptico que presentan a veces los textos académicos – sobre todo cuando se trata de Hegel – para el lector que proviene de otras ramas de la filosofía o bien de otras disciplinas como la ciencia política. A lo largo de su investigación, Konzen presenta una paciente y minuciosa labor filológica que recorre con atención el texto de la Filosofía del Derecho y las Lecciones publicadas en diversas ediciones críticas, y considera con el peso debido a los agregados (Zusätze). Considera a la Filosofía hegeliana del Derecho dentro de una lectura directa del resto de la obra de Hegel, en la cual se encuentra el Espíritu Objetivo y articula y atiende continuamente a la terminología en lengua original. El autor lee también los textos hegelianos a partir del trabajo realizado por sus predecesores, con una especial atención a las publicaciones de sus colegas en Brasil, con lo cual acerca al público latinoamericano, como es el caso de quien escribe, no sólo sus propias reflexiones y conclusiones, sino también toda la importante labor que se viene efectuando desde hace años en los círculos brasileños de estudiosos de la obra de Hegel.

Horacio Martín Sisto – Doctor en Filosofía. Profesor Adjunto de Filosofía Moderna en la Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS) <[email protected]>. Jefe de Trabajos Prácticos de Filosofía de la Historia en la Universidad de Buenos Aires (UBA). Universidad de Buenos Aires (UBA). Puán 480 – Barrio de Cabalito. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. E-mail: [email protected].

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Hegel’s critique of Kant – From dichotomy to identity – SEDWICK (V)

SEDGWICK, Sally. Hegel’s critique of Kant – From dichotomy to identity. Chicago: Oxford University Press, 2012. 194 p. Resenha de: COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Veritas, v. 59, n. 1, p. e1-e8, jan.-abr. 2014.

A obra Hegel’s critique of Kant – From dichotomy to identity, de Sally Sedgwick, pesquisadora e professora na Universidade de Illinois em Chicago, que ora se resenha, publicada pela Oxford University Press, no ano de 2012, recolhe, em sua maior parte, um conjunto de consagrados artigos publicados anteriormente pela autora em diversas revistas, coletâneas e Festschrift, a exceção dos capítulos 1 e 6 que são textos especialmente preparados para a presente edição.

Todavia, e em que pese grande parte dos capítulos já haverem, em alguma medida, sido trabalhados em momentos anteriores, os mesmos foram ampliados, incorporaram novas questões e perspectivas, o que os torna mais instigantes e interessantes, tanto para a Hegel-Forschung, como para, a Kant-Forschung. A riqueza das considerações expostas no livro é tão impressionante que cada capítulo possui uma auto-nomia que o permite ser lido em separado, mas que apenas revela todo o seu potencial hermenêutico quando compreendido na totalidade da obra.

O livro Hegel’s critique of Kant – From dichotomy to identity, divide-se em seis capítulos com o propósito de defender a hipótese1 de que Hegel oferece uma convincente crítica e alternativa à concepção de conhecimento estabelecida por Kant em seu período Crítico, nos seguintes termos:

(i) Introdução à crítica hegeliana: forma discursiva versus forma intuitiva do entendimento na filosofia crítica de Kant; (ii) Unidade orgânica como unidade verdadeira do intelecto intuitivo; (iii) Hegel e a subjetividade do idealismo kantiano; (iv) Hegel e a dedução transcendental da primeira Crítica; (v) subjetividade como parte de uma identidade original e, por fim, (vi) A petição de princípio: natureza da crítica kantiana.

A obra, que se apresenta ao público brasileiro, aglutina-se em torno de dois núcleos chaves: (1) o estabelecimento das condições de possibilidade da compreensão do projeto crítico kantiano na perspectiva que Hegel endereça suas críticas a esta pretensão; pensa-se mais especificamente nos capítulos 1, 2, e (2) o confronto entre a perspectiva hegeliana em face da estrutura da filosofia transcendental de Kant.

A autora indica que a motivação originária para a produção e preparação da presente obra colocava-se, inicialmente, na perspectiva da compreensão da crítica de formalismo vazio endereçada por Hegel ao imperativo categórico kantiano como lei suprema da moralidade, e a acusação hegeliana no escopo desta crítica das deficiências da perspectiva moral kantiana, referentes a (i) sua inefetividade para servir como um guia para a derivação de específicos deveres, e (ii) a suspeita hegeliana da incapacidade da lei prática ser eficaz em motivar nossa ação moral.

Ao tematizar as condições de efetividade da crítica hegeliana à Kant, tornou-se evidente à autora que a crítica hegeliana à Filosofia Prática de Kant desenvolvia-se sob a silenciosa perspectiva de uma crítica à sua filosofia teórica. Neste contexto de paralelismo, a crítica hegeliana centra-se numa acusação à filosofia kantiana de ser portadora de um dualismo, no qual, em ambos os domínios, separa-se a mente humana, num poder de gerar a priori conceitos e leis de modo totalmente separado dos objetos desta própria mente.2 No primeiro capítulo da obra, são examinados os recursos da teoria kantiana do conhecimento, especificamente a ideia defendida por Kant de que nosso modo de conhecimento é discursivo, no sentido de que é impossível para nós produzir objetos ou o conteúdo de nosso conhecimento empírico pelo simples uso de nossos poderes cognitivos; explicita-se a ideia kantiana de que a intuição3 não é capaz de produzir conhecimento, entendimento.

Sedgwick defende que Nas obras de seu período crítico, começando com a Crítica da Razão Pura de 1781, Kant defende a tese de que o conhecimento humano é discurso por natureza em vez de intuitivo. Enquanto discursivo, nosso entendimento é um modo dependente de conhecimento nos seguintes termos: em nossos esforços por conhecer a natureza, temos de confiar numa matéria ou conteúdo que é dado na intuição sensível.4

Avaliando a posição kantiana, Sedgwick reconstitui a linha de reflexão do Hegel de Iena, o qual era fascinado pelo papel da intuição na perspectiva kantiana, ao mesmo tempo em que imputava a Kant o erro de insistir numa absoluta oposição ou mesmo uma heterogeneidade entre nossos conceitos e o dado sensível. Neste contexto, após apresentar o ponto de partida do Hegel de Iena e suas diversas correntes interpretativas, conclui com Hegel5, mas contra Kant, que nós podemos saber o que é o conteúdo sensível do dado e utilizar a intuição na produção de conhecimentos, desde que o relacionemos em concordância com nossos conceitos.

Na esteira da crítica de Hegel em Iena a Kant, Sedgwick crê poder superar a distinção em sentido forte estabelecida por Kant entre conceitos e intuições.

No Capítulo II, Sedgwick, perseguindo a linha de crítica levantada por Hegel em face de Kant, reconstrói a inspiração subjacente a tese hegeliana exposta em Fé e Saber de uma verdadeira unidade orgânica, como sendo capaz de superar os dualismos do período Crítico kantiano. Todavia, ao fazê-lo, conclui de modo um tanto surpreendente que Hegel inspira-se, paradoxalmente, no próprio Kant.

Segundo Sedgwick, Hegel para constituir seu argumento de que a verdadeira unidade do intelecto intuitivo é uma unidade orgânica inspira-se numa ideia que ele descobre em Kant, especificamente na Crítica do Juízo. Kant, na Crítica do Juízo, desenvolve a ideia que a unidade descreve-se por uma relação na qual o todo e as partes são reciprocamente determinados. A parte depende em sua forma do todo, e este é sustentado por suas partes.

Neste contexto, Sedgwick, seguindo Hegel, defende que é possível entender a relação entre conceitos e intuições na perspectiva de uma verdadeira unidade do intelecto, um entendimento intuitivo, tal como a relação na qual o todo entende-se pelas partes e estas sustentam o todo, postulando que cada um – conceito e intuição – faz-se necessário para a natureza e a existência do outro. Conceitos e intuições de um entendimento intuitivo o são na exata medida que ao estarem separado são idênticos – desempenham um papel de mesmo nível na cognição – e determinam-se reciprocamente como modos do conhecimento.

Por fim, Sedgwick conclui que se, em Fé e Saber, Hegel não foi capaz, de fato, de apresentar uma proposta convincente ao problema da estruturação dualista proposta pelo Kant crítico, ao menos, ele não adota uma perspectiva reducionista em sua teoria do conhecimento,6 pois ao postular a perspectiva da verdadeira unidade pela analogia ao organismo, Hegel pôde superar a oposição entre o sujeito e o objeto.7 No Capítulo III, Sedgwick desenvolve a noção de que o que impede Kant de apreciar a identidade de conceitos e intuições é seu compromisso com uma forma de idealismo de tipo subjetivo e as possíveis consequências céticas desta perspectiva subjetiva. Em continuação à tematização, explicitação e crítica à concepção de subjetividade e de idealismo em Kant, Sedgwick defende que Hegel estava certo de que podemos evitar esta consequência cética8 e avançar em vista de um genuíno, ou absoluto idealismo, providenciando uma alternativa à subjetividade da teoria kantiana das formas conceituais.

A perspectiva crítica adotada no capítulo III em face de Kant acusa o idealismo transcendental da Primeira Crítica de postular a vacuidade dos conceitos face ao fato de Kant adotar uma perspectiva externalista das formas conceituais em face da intuição sensível. Tal externalismo reside no caráter adotado por Kant da absoluta aprioridade da faculdade do conhecimento em produzir os conceitos, tornando conceitos ou categorias em faculdades pré-dadas e fixas [pre-given and fixed].

Sally Sedgwick9, seguindo a crítica de Hegel, defende que a saída para as consequências subjetiva e cética do idealismo transcendental kantiano reside em desistir [to give up] do compromisso com a externa-lidade da forma conceitual, ante ao fato de que, sendo os nossos conceitos a priori, eles não podem refletir o conteúdo dado pela natureza.

A autora propõe uma nova perspectiva para a ideia kantiana de uma absoluta oposição da forma conceitual, defendendo que a opositividade da forma conceitual face a intuição reside apenas quanto à origem e à natureza e não quanto ao uso.

No capítulo IV, a autora tematiza as críticas endereçadas por Hegel ao uso da dedução transcendental kantiana, tal como elaborada na Primeira Crítica. O capítulo, em comento, inicia-se pelo tratamento especulativo kantiano à questão de como são possíveis juízos sintéticos a priori. Neste modo especulativo exposto por Kant, Hegel, segundo Sedgwick (p.100), identifica para além do esforço de Kant em determinar os limites de nosso conhecimento e providenciar uma alternativa ao ceticismo humeano, uma alternativa à própria limitação kantiana da externalidade da forma conceitual.

E é mediante a original unidade sintética da apercepção como absoluta identidade que, para Hegel e a autora, colocam-se desde Kant as pistas para a saída dos limites do projeto da Primeira Crítica. Ou seja, na unidade sintética da apercepção, os atos de síntese não são nem puras faculdades da intuição, nem puras faculdades de conceitos, ou seja, colocam-se as condições de possibilidade para superar-se a absoluta opositividade entre conceitos e intuições numa unidade sintética original.

Todavia, Kant permanece no seio das dicotomias e na heterogeneidade entre conceitos e intuições, entre sujeito e objeto, ao concluir na sequência da exposição da unidade originária da síntese que esta trata-se de uma atividade conformada pela nossa faculdade conceitual, do entendimento, em sentido kantiano, retirando sua capacidade de ser de fato uma genuína unidade sintética.10 Deste modo, Sedgwick (p. 126) mesmo reconhecendo com Hegel que a mais alta ideia da dedução transcendental kantina reside no caráter originário da unidade sintética da apercepção, acusa-a de vacuidade da subjetividade e imputa-a de uma recusa em sair do caráter externo do uso de nossos conceitos, tornando-se dependente e devedor do senso comum – por mais paradoxal que seja – pois, o caráter absoluto da razão kantiana reside exatamente no fato de que ele basta-se a si mesmo e por independência de toda atitude ordinária do senso comum.11 No capítulo V, intitulado de subjetividade como parte de uma identidade original, Sedgwick tematiza o conhecimento como um meio e de superar as formas de pensamento vazias e externas, pondo novamente o acento sob a limitação da perspectiva kantiana de uma necessidade metafísica a priori, postulando uma revisão da constituição de nossos poderes cognitivos.

Na alternativa colocada por Sedgwick, a subjetividade é posta como parte desta unidade originária, de modo a poder superar os dualismos kantianos. Todavia, a autora (p. 128 ss.) defende, neste contexto, que nossa mente e suas formas são simples produtos da natureza. Neste modelo interpretativo, ocorre uma naturalização de nossas faculdades cognitivas, entretanto tal naturalização é um reducionismo do pensamento ao próprio pensamento, um tipo de naturalismo conceitual.

Sedgwick12 defende que Hegel concorda com Kant acerca da necessária função dos conceitos e daí deriva uma conclusão internalista de que um conteúdo verdadeiramente extraconceitual não pode ter nenhum significado cognitivo para nós. Nesta leitura, o único objeto possível da cognição humana, para Hegel, seria o próprio pensamento.

Na defesa de sua tese do conhecimento como um meio, Sedgwick (p. 133 ss.) resgata o debate e a crítica de Hegel exposta na Fenomenologia do Espírito se o conhecimento como meio é um instrumento (Werkzeug) ou um meio passivo (passives Medium), e o abandono por Hegel da perspectiva da compreensão do ato cognitivo como um meio. O problema, ao contrário, é a suposição de que nos trazemos formas-de-pensamento de nossos atos, se assim o pensarmos, adverte Sedgwick, através da releitura hegeliana, nossos esforços não podem ser satisfeitos, pois é exatamente este o erro que Hegel associa à consciência natural.13 Em continuação, Sedgwick (p.158 ss.) defende a dupla dependência entre conceitos e intuições contra a artificialidade da tese da absoluta heterogeneidade, mediante a tese de que o pensamento compartilha com as paixões e os sentimentos características que não permitem enqua-drá-la como uma simples expressão da espontaneidade.

Sedgwick parece estar nos sugerindo que, em Hegel, e ela está compartilhando desta tese, não há nenhum pensamento ou a aplicação de nossas formas de pensamento que não é condicionada do modo efetivo pelas forças naturais e históricas reais, e que uma implicação desta atividade e os seus resultados não dependem inteiramente de nós.14 O capítulo VI é uma grande tentativa da autora para testar suas teses acerca dos limites do projeto crítico de Kant em face das crítica hegelianas. Um ponto fundamental, nesta instância exploratória da autora, é a acusação de que Kant não fora suficientemente crítico, e para tanto, Sedgwick (p. 166) retoma o tratamento kantiano das antinomias e conclui após expor os passos do tratamento hegeliano das antinomias, tal como exposto na Ciência da Lógica, pela insuficiência da criticidade do projeto crítico.15 The kantian philosophy as a cushion for the indolence of thought é o ultimo momento do livro de Sedgwick (p. 177 ss.), onde a autora expõe o caráter de almofada da filosofia kantiana sob o argumento de uma suposta fraqueza de seus argumentos em contraste com a aparente rigidez de suas afirmações acerca dos dualismos sujeito/objeto, conceito/intuição, do uso equívoco das faculdades racionais no tratamento das antino-mias etc.

Por fim, Sedgwick16 (p. 179-180) encerra seu sugestivo e impressionante livro sugerindo que se suas análises nos capítulos que compõem o livro estiverem acuradas, elas sugerem que do mesmo modo que os poderes do pensamento que Hegel mantém responsável pela subjetividade do idealismo kantiano, é do mesmo modo responsáveis pelo que ele considera serem as irrealistas estimativas kantianas das conquistas da crítica.

Do mesmo modo, o conjunto dos poderes e formas de pensamento que não nos deixam meios de evitar a ‘contingência’ nas relações entre nossos conceitos e coisas, reside na base da afirmação de Kant de haver ganhado um insight de características imutáveis de nossas faculdades de pensamento e de conhecimento.

Seguramente o livro de Sally Sedgwick Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, afirmar-se-á como um clássico na reflexão acerca dos destinos da Filosofia Clássica Alemã, pela clareza no tratamento das fontes, o refinamento no desenvolvimento das teses e argumentos dos autores em confronto. Tal caráter clássico, que se acredita o livro atingirá, não o exime de, em muitos pontos, as críticas levantadas pela autora ao idealismo transcendental kantiano, assim como os desenvolvimentos do idealismo hegeliano, sejam sujeitos a críticas e passíveis de revisão na própria literatura especializada.

Notas

1 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 1. “This is a study of Hegel’s critique of Kant’s theoretical philosophy. Its main purpose is to defend the thesis that Hegel offers us a compelling critique of and alternative to the conception of cognition Kants argues for in his “Critical” period (from 1718 to 1790)”.

2 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 7. “In all domains of Kant’s Critical philosophy, the culprit as far as Hegel is concerned is dualism – a dualism that divides the human mind as a Power of generating a priori concepts and laws from the separate contribution of objects wholly outside the mind”.

3 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 7. “Unlike a mode of cognition that is intuitive we have to rely in our cognitions of nature on a sense content that is independently given”.

4 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 14. “In the works of his Critical period, beginning with the Critique of Pure Reason of 1781, Kant defends the thesis that human cognition is discursive rather than intuitive in nature. As discursive, our understanding is a dependent mode of cognition in the following respect: in our efforts to know nature, we must rely on a matter or content that is given in sensible intuition”.

5 Sally Segwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 44. “At this point we have established only Hegel’s frustration with Kant for not awarding us the Power of an intuitive form of intellect”.

6 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 9. “Although Hegel’s remark in Faith and Knowledge do not explain precisely how he thinks concepts and intuitions reciprocally determine or cause one another, they lend support to the conclusion that he is not committed to a reductive account of the relation between these two components of cognition”.

7 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 56-57. “We don’t yet know just what he has in mind by this; we know only that he opposes the heterogeneity of the universal and the particular to the true or organic unity that he says is the unity of the intuitive intellect. We know that the model of organic unity, in his view, substitutes for heterogeneity the identity of the universal and the particular”.

8 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 71. “Hegel is, in other words, convinced that skepticism results from assumptions these systems share about the respective contributions of the two basics components of empirical knowledge: sensible content and subjective form”.

9 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 97. “As we have seen, the skepticism Hegel takes to plague the ‘metaphysic of subjectivity’ relies on a misguided commitment to the thesis of heterogeneity or ‘absolute opposition’. In relying on this thesis, the metaphysic of subjectivity takes for granted the assumption that human cognitions isindeed God-Like – not because, it is possible for us to literally bring the material world into being – but because, in thinking, we can abstract to a realm of pure thought, to a standpoint wholly outside or ‘absolutely opposed’ to ‘common reality’”.

10 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 11 “As Hegel points out, Kant claim that all combination or synthesis in an act of spontaneity performed by our faculty of concepts (the “understanding”). The faculty he identifies as an original synthetic unity, then, turns out not to be a genuine synthetic unity after all”.

11 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 126 “The idealisms of Kant and Fichte are moreover ultimately “subjective”. It is an implication of these systems that subjective forma is “absolutely opposed” or “external” to content in this respect: subjective forma is taken to owe nothing of its nature and origin to the realm of the empirical. For these philosophers, human reason (or “thinking”) is “absolute” in that it is capable of achieving complete “independence from common reality”.

12 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 129 “On this reading, moreover, Hegel endorses this kantian premise about the necessary role of concepts and derives from it the internalist conclusion that a truly extra-conceptual content can have no cognitive significance for us. On this reading, the only possible object of human cognition, for Hegel, is thought itself.”

13 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 137 “The problem, rather, is its assumption that since we bring thought-forms to our acts of knowing, our efforts to know cannot be satisfied. This is the mistake Hegel associates with natural consciousness. It is what he singles out as the crucial defect of its treatment of cognition as a means.”

14 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 161-162 “What Hegel seem to be suggesting, then, is that there is no thinking or application of our forms of thought that is not conditioned by and thus responsive to actual natural and historical forces. One implication of this the activity of critique, as well as its outcome, is not entirely to us”.

15 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 169-177.

16 Sally Sedgwick, Hegel’s Critique of Kant – From Dichotomy to Identity, p. 179-180. “If our analysis in these chapters is accurate, it suggests that the same account of the powers of thought that Hegel holds responsible for the subjectivity of Kant’s idealism is also responsible for what he takes to be Kant’s unrealistic estimations of the achievements of critique. The same account of the powers and forms of thought that leaves us no means of avoiding contingency in the relation between our concepts and things, is also basis of Kant’s claim to have gained insight into immutable features of our faculties of thinking and knowing”.

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Professor da UNICAP/PE e Doutor em Filosofia pela UFRGS. Universidade Católica de Pernambuco. Rua do Principe, 526 – Boa Vista. 50050-900 Recife, PE, Brasil. E-mail: [email protected]; [email protected].

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Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir – RANIERI (TES)

RANIERI, Jesus. Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, 176 p. Resenha de: MARTINS, Maurício Vieira. Revista Trabalho/ Educação e Saúde, v.11, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2013.

A relação existente entre o pensamento de Marx e o de Hegel sempre foi tema que dividiu os estudiosos do marxismo. Dentre as várias posições que se delinearam a este respeito, podemos citar a de Louis Althusser, que entendia que o corpus teórico marxiano deveria ser expurgado do pensamento de Hegel, para que ele encontrasse finalmente sua cientificidade mais genuína. Na outra ponta do debate (embora sem polemizar explicitamente com Althusser), temos a contribuição de György Lukács, que afirmava que, apesar de suas incontornáveis diferenças frente a Hegel, Marx absorveu de modo crítico alguns temas presentes no mestre de Jena.

O livro de Jesus Ranieri, Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir se filia claramente a esta última tendência. Já na Apresentação de seu trabalho, Ranieri é transparente ao reconhecer que sua leitura de Hegel deve muito às indicações presentes no Lukács tardio, especialmente em sua grande obra da maturidade, Para uma ontologia do ser social (que dedica um extenso capítulo precisamente a um balanço do legado hegeliano para o marxismo).

Sendo assim, Ranieri visa sobretudo recuperar aqueles elementos presentes em Hegel que se mostrem fecundos para uma teoria social de escopo mais amplo, ainda que para isso seja preciso proceder a uma crítica dos aspectos mistificadores igualmente presentes no filósofo alemão. Com este intuito, Trabalho e dialética enfatiza a compreensão hegeliana do mundo como uma processualidade permanente, que não se deixa capturar por uma visão estática da realidade (visão que ainda marcaria mesmo um filósofo tão proeminente como Kant). Com efeito, em Hegel, “a medida da reflexão é a certeza de que o mundo muda e de que a mudança exige um método capaz de acompanhar o movimento de mutação que, em si mesmo, já representa um universo de conexões” (p. 70).

Se é verdade que o primado do devir sobre o ser já havia sido afirmado há séculos por um filósofo como Heráclito, é igualmente verdadeiro que Hegel extrai consequências de fundo de tal compreensão, que se corporificam em sua abordagem propriamente dialética. Destarte, para poder formular adequadamente o devir mundano, é necessário um método que se liberte das antinomias excludentes dentro das quais se movia a tradição filosófica anterior, como essência e aparência, forma e conteúdo, necessidade e acaso etc. Libertação que vem a ser, aliás, outra das grandes contribuições de Hegel enfatizadas por Ranieri, como mostra sua análise das determinações-da-reflexão (Reflexionsbestimmungen, categorias desenvolvidas na Ciência da Lógica hegeliana). Muito resumidamente falando, tais determinações nos mostram o trânsito contínuo entre aquelas mencionadas categorias que haviam sido formuladas de modo dicotômico pela tradição filosófica anterior. Tendo sua origem mais remota no esforço de apreensão do mundo pela consciência sensível, as determinações-da-reflexão, quando corretamente apreendidas, findam por mostrar sua referência ao ‘outro’ do fenômeno isolado: “o conteúdo da ‘consciência sensível’ devia ser, em princípio, o puro singular, mas ele (o conteúdo) é dialético, já que força o singular, no seu excluir de si o outro, a referir-se ao outro, depender dele e, assim, ir além de si mesmo.” (p. 54).

Além da compreensão da realidade como um devir permanente e da correta visualização das determinações-da-reflexão, há que se destacar, ainda, o pensamento de Hegel sobre o trabalho humano como extremamente fecundo para as bases de uma teoria social consistente. De fato, Hegel foi um dos primeiros filósofos a mostrar a descontinuidade introduzida pelo trabalho no mundo natural. Nas argutas palavras do próprio filósofo: “…a ferramenta não possui ainda nela mesma a atividade. É coisa inerte, não retorna [zurückkehren] a si mesma. Obrigo-me a trabalhar com ela. Tenho a astúcia [List] de introduzi-la entre mim e a coisidade externa, a fim de poupar-me e de suprir com ela minha determinação e utilizá-la” (p. 80).

A partir destas indicações, Ranieri mostra que o trabalho humano introduz categorias de finalidade num universo que era antes dominado apenas por relações causais. Este é o núcleo fecundo para uma teorização acerca do ser social, que encontra no trabalho o protótipo mais antigo, incessantemente modificado, de sua constituição. Porém, prossegue Ranieri, o erro de Hegel foi ter projetado a teleologia de fato existente no trabalho para a história como um todo, o que o levou a acreditar numa espécie de teodiceia que supõe que existem finalidades ocultas no transcorrer da história humana: “o idealismo errou ao não compreender que a teleologia (a posição conforme a fins) não existe em outra esfera a não ser aquela do trabalho humano” (p. 116).

O texto aborda também a célebre dialética do senhor e do escravo, momento em que fica evidente o talento de Hegel em mostrar a tensão reflexionante dos papéis inicialmente assumidos por cada um destes personagens: apesar do exercício de sua dominação, o senhor passa a depender cada vez mais do trabalho do escravo para poder se relacionar com a natureza (p. 110). Já nos capítulos finais de seu livro, Ranieri discute como Marx simultaneamente se apropriou e transformou alguns dos mencionados núcleos temáticos desenvolvidos por Hegel.

Apenas como exemplo de tal procedimento, destaquese que o método de exposição marxiano – objeto de tantas controvérsias entre os especialistas – tem inegavelmente uma dívida com Hegel, mas dele se diferencia, já que: “para Marx, expor corretamente significa fundar, para a qualificação correta dos elementos componentes do objeto, uma teoria das abstrações racionais” (p. 147). Aqui, o primado cabe ao esforço de captura das determinações singulares do objeto que está sob análise (e não mais à sua referência mediatizada ao Espírito, princípio motor e culminância da dialética hegeliana). É a partir deste entendimento que se torna possível visualizar, por exemplo, as características do trabalho abstrato – que se desenvolve plenamente apenas na sociedade capitalista – como categoria que se articula ao capital, passando a presidir a lógica contraditória de desenvolvimento desta mesma sociedade. É por esta razão que o “método marxiano leva em conta que a determinação última da realidade é propriamente uma contradição real e não simplesmente um movimento lógico de autoconstituição do conceito (…), tal como é concebida a dialética em Hegel.” (p. 155).

Por fim, cabe o registro acerca de uma questão conceitual quase ausente na bemvinda contribuição de Ranieri. Referimonos ao que Marx certa vez nomeou como o “aspecto negativo do trabalho”, intimamente entrelaçado à sua positividade. Numa passagem decisiva dos Manuscritos de 1844, mesmo reconhecendo a grandeza da teorização de Hegel, Marx nos alerta: “Hegel se coloca no ponto de vista da Economia Política moderna. Concebe o trabalho como a essência do homem, que se prova a si mesma; ele só vê o aspecto positivo do trabalho, não seu negativo” (Marx, 1985, p. 190).1 Ora, este último aspecto está estruturalmente ligado ao estranhamento vigente na sociedade capitalista, ao esvaziamento das capacidades humanas em favor do capital. Assim é que Marx formula o trabalho em sua bivalência: se ele é o fundamento do processo do tornarshomem (destacando-o de sua determinação natural), é também, e ao mesmo tempo, fonte cotidiana de alienação e de mortificação dos trabalhadores. Garimpando mais nos referidos Manuscritos, veremos que há um conceito mais amplo que o de trabalho (Arbeit), que vem a ser o de atividade (Tätigkeit) consciente. E Marx visa claramente expandir esta dimensão da atividade consciente; daí sua insatisfação com o fato de que “até agora toda atividade humana era trabalho, isto é, indústria, atividade estranhada de si mesma” (Marx, 1985, p. 151). Reencontramos esta crítica à unilateralidade do trabalho também em ideologialemã, quando Marx sustenta, sem meias palavras, que a “revolução comunista se dirige contra o modda atividade até nossos dias, elimina o trabalho…”. É apenas neste momento que ocorre a “transformação do trabalho em autoatividade” (Marx e Engels, 2009, p. 56 e p. 59).2 Ora, tais afirmações seriam ininteligíveis se não levássemos em conta as considerações anteriores, referentes à crítica marxiana à negatividade também presente no trabalho. Entendemos que o texto de J. Ranieri se beneficiaria de um desenvolvimento conceitual desta contraditoriedade real. Vale lembrar que, no campo marxista contemporâneo, autores ilustres como Moishe Postone chegam a sustentar que “a análise marxiana do capitalismo (…), não é levada a cabo do ponto de vista do trabalho, mas se baseia mais propriamente numa crítica ao trabalho no capitalismo” (Postone, 2006, p. 59).3

Como se vê, neste ano de 2013 (que marca os 130 anos do falecimento de Marx), o pensamento do filósofo continua nos interpelando nas mais variadas dimensões de nossa experiência mundana. O texto de Jesus Ranieri ilustra de forma eloquente a fecundidade de uma obra.

Notas

1 Marx, Karl. Manuscritos: economía y filosofía. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 190, grifos nossos. Notemos que o próprio Jesus Ranieri traduziu para o português estes densos Manuscritos, aqui publicados pela Boitempo Editorial.

2 Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 56 e p. 109, respectivamente.

3 Postone, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación social. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 59. Não concordamos com a íntegra do argumento de Postone, mas ele é relevante para o ponto aqui sob exame.

Maurício Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Stufen des Wir Gemeinschaft als Basis personalen Handelns – SEDDONE (D)

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Wien: Ed. Peter Lang, 2011. Resenha de:  COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Níveis de nós- a comunidade como base da ação pessoal. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

No livro Níveis do Nós, Guido Seddone estabelece uma intrigante pesquisa para descortinar as diversas etapas de constituição da problemática da ação centrada na prioridade da perspectiva social e não no reducionismo do eu agente, já assumindo de entrada que é o social e não a estrutura transcendental do eu a base e o pressuposto da compreensão da cognição humana e da ação1.

Para Seddone (p. 9) a proposta de um projeto que vise reconstruir os níveis ou etapas do nós fincado na comunidade como base da ação pessoal, deve primeiramente levar em consideração as já diversas tentativas levadas a cabo por autores como Hegel e a perspectiva, por ele desenvolvida, do “eu que é um nós e do nós que é um eu” (Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist), Heidegger e seu “nós despedaçado” (das zerbrochene Wir), assim como filósofos contemporâneos tais como Robert Brandom e sua postura do “Dizer Nós” (das Wir sagen), Sellars, Searle, Tomasello e Tuomela e suas distintas perspectivas acerca da função normativa do nós, como a “intencionalidade do nós” (Wir-Intentionalität), a “autoridade do nós” (Autorität des Wir), entre outras.

Em última instância a introdução da obra nos lega a tese de que a proposta de Sedonne é a afirmação de que a natureza social do homem e da irredutibilidade da ação social tem de ser respondida em consonância com a pergunta, de corte kantiano, sobre o que é o homem? No seio da tentativa reconstrutiva proposta por Guido Seddone o leitor deve estar atento para assumir a importante advertência de Sedonne que tanto a ação social como a pergunta pelo homem, não resultam de uma justaposição mecânica ou de tipo numérico-quantitativo, pois, para o autor2, o indivíduo deve tanto ser considerado no contexto das relações interpessoais, como é preciso reconhecer que há uma autoridade do social na qual o eu se determina.

Nesta perspectiva, o Nós não é reduzido a uma mera soma de indivíduos ou ao grupo no qual um agente se insere, mas sim é algo do qual o eu não pode fugir totalmente. Claro que uma tese tal como a defendida no presente livro que se resenha tem de deparar-se com a crítica das teorias mentalistas e a perspectiva cartesiana e se colocar para além delas no nível de uma base prática capaz de relacionar cognição, linguagem e conhecimento3.

Para a consecução do seu desiderato, Sedonne divide sua obra em uma introdução e 04 (quatro) capítulos respectivamente intitulados, numa tradução livre, de: 1. Linguagem, contexto e intersubjetividade; 2. Hegel e a filosofia do nós; 3. A Ação do Nós no agente já formado; e 4. Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

Seguiremos a tessitura da obra de modo a buscar apresentar as linhas gerais que guiam os capítulos oportunizando ao leitor o percurso descritivo e reflexivo desenvolvido pelo autor.

1 – Linguagem, contexto e intersubjetividade

No primeiro capítulo4, Seddone busca demonstrar as bases para como uma Filosofia do nós pode tornar-se capaz de conquistar as competências cognitivas e lingüísticas hábeis aos contextos intersubjetivos. Neste intento, o primeiro ponto a ser superado é a tendência moderna de constituição do mental que ancora numa perspectiva individualista.

A proposta é mostrar os índices já presentes na contemporaneidade que apontam para a superação tanto do individualismo cognitivo como o que lhe é pressuposto, o individualismo metodológico.

Para a reconstrução e crítica da perspectiva metodológica e cognitiva centrado no indivíduo o autor remonta do empirismo lógico até o segundo Wittgenstein, apoiando-se na virada lingüística como prenúncio de que as competências lingüísticas esgotam uma ancoragem da compreensão do mental desde uma perspectiva individual.

Na continuidade do primeiro capítulo o autor serve-se das contribuições de Richard Rorty, especialmente as desenvolvidas em Filosofia e o espelho da natureza, e Robert Brandom, em seu monumental, Making it Explicit, para alicerçar sua tese da prioridade do Nós sobre o eu e a inconsistência5 de uma teoria do mental ancorada na perspectiva metodológica do eu.

2 – Hegel e a filosofia do nós

No segundo capítulo intitulado Hegel e a filosofia do nós (Hegel und die Philosophie des Wir)6, toda a problemática de apresentação da filosofia hegeliana7, enquanto percussora da socialidade como base das competências explicitadoras da ação, assenta-se na perspectiva de tomar o sujeito como estando sempre referido em relações reciprocamente universais, logo, intersubjetivas.

Um tal ponto de partida implica assumir que o nós é a atividade da unidade intencional do indivíduo no seio mesmo dos seus contextos de efetivação e em tensão com a tradição, formas de vida e a práxis.

Seddone (p. 45) em defesa de sua tese de uma socialidade do nós afirma que a proposição especulativa de Hegel é a retomada e desenvolvimento do juízo reflexivo kantiano e que esta assunção de Kant por Hegel é a base da compreensão de sua tese acerca do Espírito (Geist).

O eu como Espírito8 é a tese forte de partida de Seddone neste capítulo. Segundo o autor, a constituição do espírito dá-se na irredutibilidade do movimento histórico do Selbst, da relação entre pluralidade e unidade, eu e nós, e que sem a experiência da pluralidade o eu não pode se constituir.

O projeto da Fenomenologia do Espírito de assumir a totalidade das configurações históricas como médium capaz de explicitação do eu sempre em contextos práticos de interação suprassubjetivos é segundo Seddone9 a afirmação de que o eu apenas pode se reconhecer enquanto tal como parte do todo, em outros termos, para Seddone, Hegel afirma a irredutibilidade do eu a processos monológicos de constituição.

Para a explicitação da irredutibilidade do Selbst a processos de constituição monológica, Seddone (p. 55 e segs) desenvolve em toda a sua potencialidade a teoria do reconhecimento presente na Fenomenologia hegeliana e a amplia à Filosofia do Direito, colocando-se como problema central o processo de estranhamento (Entfremdung) e sua relação com a reconciliação (Versöhnung).

Neste percurso emerge a tese central da filosofia hegeliana do eu que é um nós e do nós que é um eu, em outros termos e na perspectiva da reconciliação, tal como desenvolvida por Hegel de que o eu apenas pode reconhecer-se como parte do Todo.

Neste contexto de interpretação, a filosofia hegeliana desenvolve a exposição do desenvolvimento da subjetividade no seio mesmo da pergunta pelo Nós, colocando assim as condições reais de tematização da intersubjetividade10 como pré-condição da subjetividade, da anterioridade do Nós sobre o Eu.

Na perspectiva aqui desenvolvida, Hegel já desenvolve as bases do que se pode designar pela comunidade da ação enquanto base para explicitação do sujeito cognoscente.

E é desde esta perspectiva hegeliana da compreensão especulativa da relação entre o eu e o nós, o indivíduo e a comunidade, capaz de esclarecer os pressupostos que orientam lógicas institucionais nas quais o sujeito é coerentemente compreendido à luz de uma identidade autônoma, mas não dualista ou solipsista, que Hegel se coloca como fonte perene na reflexão de Seddone11.

3A ação do Nós no agente já formado

O núcleo duro do capítulo concentra-se na tese de Robert Brandom, tal como exposta no primeiro capítulo de Making it Explicit e que pode se resumir na expressão Saying We, na tradução do autor para o alemão Das Wir-Sagen, que em português optamos por traduzir em o Dizer o Nós, que se caracteriza por demarcar o ato especificamente humano de expressão afirmativa do eu não na perspectiva da afirmação do mental por oposição ao não-mental, mas da primalidade do nexo comunitário como fonte das enunciações que explicitam o eu.

Afirmar e Dizer o nós implica delimitar o especificamente humano daquilo que não é humano, por uma distinção de primeira pessoa que tem por nota específica as várias comunidades nas quais os agentes são reciprocamente não delimitados pela individualidade epistemologicamente deslocada.

Este modo de compreensão assentado na primeira pessoa do plural, o nós, permite a conjugação dos aspectos pragmáticos12 e semânticos, pois as ações devem ser tomadas tanto como práticas sociais, assim como enquanto práticas lingüísticas.

A força da tese de Seddone é que ele prioriza um discurso centrado na primeira pessoa, todavia, a do plural como condição de expressão daquela do singular, por oposição a grande parte da tradição filosófica que partindo da primeira pessoa do singular atingia a primeira pessoa do plural.

O nexo desta relação se condensa na perspectiva de que o pragmatismo se interessa pelas regras que se estruturam no seio mesmo das práticas comunitárias e o aspecto semântico se foca no potencial normativo dos conceitos em explicitar estas mesmas práticas no jogo mesmo de dar e pedir razões.

Esta união entre pragmatismo e semântica autoriza no seio das práticas comunitárias a que cada membro seja obrigado a justificar as suas reivindicações e as suas ações, as quais por sua vez, determinam a natureza do pensamento, cuja validade se faz verificar no espaço da práxis intersubjetiva13.

Seddone neste capítulo esforça-se e com êxito na empreitada de exprimir a novidade do Wir-Sagen que é a articulação da pragmática normativa, da semântica inferencial e dos empenhos discursivos, momentos os quais são centrais para a compreensão do projeto de Brandom em Making it Explicit de  um Saying We, onde o Dizer o Nós rompe a barreira do prescritivo, inaugurando uma tensão na qual um estado intencional se identifica com um normativo, ou seja, o propósito se expressa na e mediante a ação.

No conjunto da filosofia de Brandom, Seddone acentua um aspecto importante e que lhe é fundamental na sua tese da delimitação das etapas do nós, que é a conclusão de que não é de uma propriedade natural do pensamento, uma espécie de a priori, que permite as normas explicitarem o sentido da ação, mas é do próprio caráter institucional da práxis14.

Importa ainda o acentuar que esta ideia não é um privilégio de Brandom mas a retomada de uma antiga tematização de Sellars em Empirismo e filosofia da mente no seio de uma perspectiva intersubjetiva do pensamento.

A proposta de Sedonne15 assume que o nós tal como desenvolvido no texto implica que os membros estejam reciprocamente obrigados a realizarem determinadas ações para atingir certos fins e determinados objetivos.

Uma tal obrigação ou dever posto pela perspectiva da primeira pessoa do plural – o nós – não resulta de um acordo ou união, mas do reconhecimento a autoridade dos grupos e da comunidade sobre a perspectiva particular.

O grupo e ou a comunidade é a modo através do qual e mediante a cooperação dos membros, as tarefas, deveres e direitos são institucionalizados, onde a prioridade do nós demarca o campo do eu.

Seddone assume o ponto de vista de que sempre os indivíduos estão em perspectiva relacional, sejam dos indivíduos entre si, sejam de suas intenções ou mesmo de seus usos. Tal ponto de vista já pode ser visualizado em Wittgenstein, mas é através de Raimo Tuomela que tal tese ganha força e é através dele que Seddone se nutre.

Em Raimo Tuomela16 ocorre uma extensão da tese de Sellars acerca da prioridade da comunidade sobre o indivíduo que ancorava na perspectiva da linguagem e agora se amplifica no sentido de que também as intenções são co-participadas antes de serem capazes de explicitação.

A posição do Wir-Sagen não se estrutura na perspectiva de um modo de dizer o nós que tem por substrato um sujeito ontológico, mas um sujeito intencional17. Ao modo de uma simples atitude que pode descrever os sujeitos particulares, mas não pode esclarecer de que modo o Nós é constitutiva para o eu18.

E é tal limitação da perspectiva do We-intentionality que incita a Guido Sedonne à passagem ao próximo capítulo da obra, através de uma reconstrução ontológica do nós19.

4 – Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

O presente capítulo inicia com a pergunta pela originariedade do nós e de sua natureza pré-reflexiva. E para tanto, Sedonne aduz que a harmonia não é a condição nem necessária, nem suficiente para uma análise do nós. Se o nós é tratado como a estrutura profunda da ação, por exemplo, como unidade original e intencionalmente constitutiva, é necessário, compreender a complexidade da ação partilhada.

Para se atingir a compreensão de uma estrutura pré-reflexiva do nós Sedonne aglutina à sua pesquisa a postura fenomenológica heideggeriana de Ser e Tempo ancorada no Miteinanderseins, ou, ser-com-o-outro.

O ingresso do Miteinanderseins se dá na medida em que tal conceito é pré-flexivo, pois não se configura nem como uma autorreferência cognitiva e, nem tampouco reflexiva, além de não ser ou estar desde já pré-determinada.

Interessante é que no intento de delimitar a estrutura profunda do nós, Seddone após se utilizar do conceito fenomenológico do Miteinanderseins de Heidegger, retoma a pesquisa de Hegel e se pergunta pelos conteúdos práticos e a problema da formação em Hegel .

O pensador idealista alemão é retomado, pois, para Seddone, é deveras importante a posição assumida por Hegel de que a verdade repousa no todo. Tal asserção é interpretada por ele no contexto de que toda a filosofia hegeliana é um projeto de explicação da multiplicidade dos fenômenos assumindo que a compreensão do todo (Das Ganze) é o único modo da compreensão da parte.

Tal postura repropõe a questão da normatividade fazendo a mesma sair da perspectiva kantiana de uma espontaneidade da razão, deslocando-se para o reconhecimento do jogo de dar e pedir razões, lingüístico, intencional e por isto social.

De Hegel à Wittgenstein, eis o percurso que Seddone constitui. Tal mudança de rumo se põe na medida mesmo em que Wittgenstein permite reconstruir a comunidade a partir dos jogos de linguagem e numa perspectiva prática e intersubjetivista.

Com Wittgenstein, Seddone transita de uma perspectiva meramente semântica, na qual o sujeito e sua interação com a linguagem se davam desde a perspectiva de um sujeito observado que era capaz de descrever o mundo, para uma outra, na qual o sujeito é parte dos jogos lingüísticos, que o mesmo já os encontrou operante por trabalho da tradição, e na qual o indivíduo enquanto membro é obrigado a interagir como sujeito que dá e pede razões, responsabilizando-se, gerando compromissos e assumindo responsabilidades.

Para Seddone, após as contribuições de Heidegger20, Hegel21 e Wittgenstein22 é fácil concluir que é a ontologia social o último nível de uma filosofia do Nós. Poder dizer e saber como membro de uma comunidade, ou “a pertença a um Nós é, por conseguinte o resultado de fenômenos complexos que não podem ser explicados pela mera aplicação do princípio da concordância e pelas teorias da promessa ou das obrigações”23.

A ontologia social como último nível do nós se pauta, para Seddone, ante o fato de que esta capacidade que nós temos de designar a Wir- Intentionalität realiza-se como pertença ontológica a determinadas formas da práxis que constituem a matriz de nossas razões subjacentes, por exemplo, de nossa exposição enquanto ser-com-os-outros24.

À guisa de conclusão

O livro de Guido Seddone coloca-se numa perspectiva inovadora e extremamente ousada, pois tem como alvo de sua pesquisa a busca das capacidades humanas para a compreensão da ação desde a perspectiva da anterioridade de uma pertença centrada no nós.

O nós enquanto estrutura profunda da práxis demonstra, na obra de Seddone, que a experiência, a eticidade e a relação cognitiva são coisas que não se reduzem a perspectivas ou padrões conceituais ancorados em noções individualísticas, pois o indivíduo apenas o é por lhe ser antes dado desde formas de ações comunitárias, intencionais e práticas.

A obra que se resenha com certeza se colocará ao lado dos textos obrigatórios para a compreensão da ação humana em contextos complexos.

Notas

1 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original “Diese Arbeit versucht, das Soziale als Voraussetzung der menschlichen Kognition und daher allen Handelns zu erläutern”.

2 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 10. “Dieser Arbeit verteidigt nicht nur de Idee, dass das Individuum im Kontext seiner zwischenmenschlichen Umgebung zu betrachten ist, sondern auch jene, dass es einer primitive Autorität des Sozialen gibt, durch dia das Ich bestimmt wird. In dieser Weise ist das Wir keine blosse Summe von Individuen und auch nicht die Gruppe der Mitmenschen zusammen mit mir, sondern es ist eher etwas, dem sich das Ich nicht völlig entziehen kann”.

3 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. “Eine solche Rekonstruktion erfordert, über die typischen individualistischen Aspekte der Theorien des Mentalen Hinauszugehen. Der cartesianische Ansatz versucht, die Erfahrung auf angeborene und individuelle Fähigkeiten zurück zu beziehen. Aber damit vernachlässigt er, dass sich Kognition, Sprache und Erkenntnis auf eine praktische Basis stützen.”

4 SPRACHE, Kontext und Intersubjektivität, p. 21-42.

5 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original: “Eine Philosophie des Wir erkennt hingegen, dass der Erwerb kognitiver und sprachlicher Fähigkeiten nur durch die Teilnahme an praktischen und intersubjektiven Kontexten möglich ist. Deswegen ist die Idee, dass der mensch angeborene kognitive Fähigkeiten besitz, durch eine Revision der individualistischen Auffassungen der Kognition zu überwinden”.

6 O capítulo estende-se da página 43 até a página 82.

7 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “In unserem Projekt einer Philosophie des Wir spielt die Philosophie Hegels eine wichtige Rolle, da er die Vernunft und das Normative als Tatsachen erklärt, die auf Interaktion basieren”.

8 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “Er beschreibt daher die Auseinendersetzung unter Subjekten, deren Verhältnisse eine Wir-Struktur der Erfahrung und des Handelns darstellen”.

9 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46, defende esta tese através de todo o subcapítulo “Fenomenologia do Espírito e a formação prática do Conceito através da interação” (Phänomenologie des Geistes und die praktische Bildung des Begriffs durch die Interaktion).

10 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 80: “Hegels Philosophie im Rahmen der Frage nach dem Wir stellt eine interessante Analyse der Entwicklung der Subjektivität in Richtung der Intersubjektivität durch den Erwerb sowohl der Sitten als auch der Pflichten dar”.

11 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 81: “Dennoch bleibt Hegel für unser Thema zentral, da sein spekulativer Ansatz zum Verhältnis zwischen Ich und Wir bzw. Individuum und Gemeinschaft vieles über die Logik der Gruppen erklärt und weil er als Erster dem allgemeinen Willen eine kohärente und selbständige Identität gibt”.

12 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Für eine Philosophie des Wir ist daher die Idee der Pragmatisten wichtig, nach der die Wahrheit eine gerechfertige Überzeugung und due Rechtfertigung nur in einer öffentlichen und normativen Dimension möglich sei”.

13 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Jedes mitglied ist verpflichtet, seine Behauptungen und seine Handlungen zu rechtfertigen, und dies wiederum bestimmt die Natur des Denkes, dessen Gültigkeit im Bereich der intersubjetiven Praxen überprüft wird”.

14 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Die Normen bekommen ihren Status nicht von einer natürlichen Eigenschaft des Überlegens, sondern vom institutionellen Charakter der Praxen, welche seitens der Teilnehmer bestimmte Pflichten forden”.

15 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 101: “Im Wir-Modus sind die Mitglieder gegenseitig verpflichtet, bestimmte Handlungen auszuführen und bestimmte Ziele zu erreichen. Diese Verpflichtung ist nicht das Ergebnis einer Vereinbarung, sondern der Anerkennung der Autorität, die Gruppe gegenüber den Einzeln ausübt”.

16 Sedonne cita abundantemente Raimo Tuomela, The philosophy of sociality, 2002.

17 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Es ist eher ein intentionales und nicht ontologisches Subjekt, das durch den Wir-Modus entsteht”.

18 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Aber der Wir-Modus, der eine Blosses Haltung ist, die den einzelnen Subjekten zugeschrieben werden kann, kann nicht erklären, auf welche Weise das Wir konstitutiv gegenüber dem Ich ist”.

19 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 106: “Deswegen erfordert das Wir eine ontologische Rekonstruktion, die das Thema des nächsten und letzten Kapitels ist”.

20 Com estrutura pré-reflexiva do Miteinanderseins e sua teoria das formas de vida contra a perspectiva solipsista.

21 E sua tese da verdade como o todo e a prioridade da reciprocidade do social sobre o individual.

22 E os avanços postos pelas perspectivas do pragmatismo lógico do seguir um regra, da reconstrução da comunidade e do significado de regra.

23 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 148: “Die Zugehörigkeit zu einem Wir ist folglich das Ergebnis von komplexen Phänomenen, welche nicht durch die blosse Anwendung des Prinzips des Einklangs und in den Theorien des Versprechens oder der Verpflichtung erläutert werden können”.

24 Cf. SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 149.

Referências

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main: Ed. Peter Lang, 2011. (Philosophie und Geschichte der Wissenschaften – Studien und Quellen)

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Universidade Católica de Pernambuco

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Das recht der freiheit – HONNETH (NE-C)

HONNETH, Axel. Das recht der freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011. Resenha de: PINZANI, Alessandro. O valor da liberdade na sociedade contemporânea. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade], o livro mais recente de Axel Honneth representa, por um lado, a tentativa mais sistemática de organizar sua teoria, que – como se sabe – tem seu centro no conceito de reconhecimento, e, por outro, a tentativa de atualizar o pensamento hegeliano1. É necessário considerar este último objetivo para melhor entender os alcances e os limites do primeiro. Em geral, tem-se a impressão de que o autor, ao seguir de perto a estrutura da Filosofia do direito de Hegel, coloca sua própria teoria em um corpete rígido e justo demais. A proximidade com Hegel parece mais evidente na segunda parte do livro, a mais propriamente sistemática, que é estruturada de forma tripartida e segue de perto a estrutura da seção “Eticidade” da Filosofia do direito. À parte sobre família do texto hegeliano corresponde, no texto de Honneth, a parte sobre relações pessoais; àquela sobre sociedade civil corresponde a parte sobre o mercado; finalmente, à parte sobre o Estado corresponde a parte sobre o Estado democrático. Não se trata de meras analogias formais, já que a pretensão é atualizar o pensamento hegeliano, livrando-o da sobrecarga metafísica2.

Contra a perspectiva normativa que busca seu ponto de partida em normas, princípios ou procedimentos ideais, e não na empiria e na descrição de sociedades concretas – perspectiva que caracteriza a maioria das teorias da justiça contemporâneas (John Rawls, Ronald Dworkin, etc.) -, Honneth defende uma perspectiva “hegeliana”, que dê relevância central aos acontecimentos históricos e à interpretação deles nos termos do que o autor chama de reconstrução normativa, ou seja

[…] um procedimento que tenta traduzir para o plano da teoria social as intenções normativas de uma teoria da justiça, tomando como fio condutor, para selecionar e elaborar o material empírico, valores justificados de forma imanente [à própria sociedade]: as instituições e práticas existentes são analisadas e apresentadas em relação às suas prestações normativas e na ordem pela qual se tornam significativas para a encarnação e realização dos valores socialmente legitimados3.

A análise das instituições e práticas sociais existentes é, portanto, ao mesmo tempo, uma avaliação com base em sua capacidade de realizar os valores próprios da sua sociedade (e não de outra). Ora, isso levanta um problema metodológico importante, já que a análise histórica de Honneth não é acompanhada, como acontece em Hegel, por uma visão metafísico-racionalista que vê na história das instituições o caminho do Espírito, isto é, um progresso constante, ainda que descontínuo. A renúncia a tal visão abre a possibilidade de que a história não consista em um progresso, mas possa resultar em regressos e recaídas na irracionalidade e na barbárie.

Honneth, contudo, não parece disposto a aceitar completamente essa conclusão, que tornaria questionável a própria noção de uma reconstrução normativa. Portanto, ao longo do livro, descreve os fenômenos históricos, que lhe servem como base para sua reconstrução normativa, como se constituíssem um caminho fundamentalmente progressivo e positivo. Embora reconheça a existência de patologias sociais e de desenvolvimentos errados [Fehlentwicklungen], termina seu livro expressando a esperança (ainda que não a certeza, como o faria Hegel) de que é possível que surja uma “cultura europeia de cuidados compartilhados e de solidariedades ampliadas”4.

Na leitura de Honneth, os valores legítimos característicos das sociedades liberal-democráticas modernas “se fundiram em um único, a saber, na liberdade individual nos seus sentidos plurais que conhecemos”5, não porque a liberdade represente em si um valor superior aos outros, mas porque a própria sociedade moderna ocidental lhe atribui esse valor superior. Neste sentido, Honneth se serve do conceito de justiça a partir de uma perspectiva sociológica e não abstratamente normativa: trata-se de considerar o que uma determinada sociedade considera justo. Portanto, é possível analisar as diferentes esferas que formam nossa sociedade (relações íntimas, mercado e Estado democrático) com base em como e quanto realizam a liberdade individual6. Na leitura de Honneth, todas as lutas por reconhecimento social “escreveram em seus estandartes o lema da liberdade individual”. Mais do que isso: na modernidade “a exigência de justiça pode ser legitimada publicamente somente se faz referência, de uma maneira ou de outra, à liberdade individual”7.

A centralidade da liberdade individual não implica, contudo, a assunção de um paradigma, tipicamente liberal, de individualismo ontológico ou metodológico: Honneth não parte da ideia de que os indivíduos representam um prius ontológico, isto é, que existem anterior e independentemente do seu contexto social; tampouco faz do indivíduo o juiz último da legitimidade das instituições sociais, como na tradição liberal8. Seu conceito de liberdade individual não desconsidera o fato de que o indivíduo está desde sempre inserido em um contexto social caracterizado pela existência de instituições e práticas sociais legítimas.

Hegel tinha dividido sua Filosofia do direito em três partes, dedicadas respectivamente ao direito abstrato, à moralidade e à eticidade. Honneth identifica três diferentes sentidos de liberdade que, grosso modo, correspondem à tripartição hegeliana: a liberdade negativa ou jurídica, a liberdade reflexiva ou moral e a liberdade social9.

A liberdade jurídica está ligada à existência de um sistema de direitos subjetivos, surgido na modernidade por um processo paulatino. Honneth reconhece que inicialmente os direitos subjetivos tiveram primariamente caráter econômico, com o primado do direito à propriedade – primado não somente prático, mas também teórico (de Locke ao próprio Hegel tal direito recebe um lugar de primazia nas relações dos indivíduos entre si e com a comunidade). Contudo, ao longo do tempo, os direitos subjetivos acabaram criando um espaço de proteção do indivíduo, que lhe permite desenvolver autonomamente seu plano de vida independentemente das concepções e dos valores socialmente dominantes. Os direitos subjetivos constituem uma esfera privada, à qual o indivíduo pode retirar-se, subtraindo-se às obrigações comunicativas ligadas à exigência de justificar escolhas de vida e valores individuais10.

Mas na liberdade jurídica estaria presente o risco de uma patologia social: a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os sujeitos tendem a “retirar-se na gaiola de seus direitos subjetivos e a pôr-se perante os outros exclusivamente como pessoas jurídicas”, demandando a resolução de todos os seus conflitos unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim à “soma de suas pretensões jurídicas”11, fechando-se ao fluxo comunicativo que a une às outras pessoas12. Os direitos são usados, portanto, como uma barreira às exigências de justificação que provêm dos outros indivíduos.

O segundo tipo de liberdade, a liberdade moral, coincide com aquilo que na tradição filosófica foi definido como “autonomia moral”, e consiste basicamente na capacidade de pôr em questão normas, exigências ou instituições socialmente válidas com base em razões universais, isto é, com base em argumentos que poderiam encontrar o consenso de todos os envolvidos (manifesta-se aqui a influência da teoria do discurso de Habermas). Em outras palavras, cada indivíduo é livre para questionar as exigências morais que a sociedade lhe impõe, contanto que desde um ponto de vista universal. Neste sentido (como salientava Hegel em sua crítica a Kant), essa liberdade toma uma forma negativa: é a liberdade de rechaçar normas ou instituições sociais que não superem o teste de universalização (isto é, que se fundam sobre argumentos que não podem encontrar o consenso dos envolvidos). Isso implica que – contrariamente ao que acontece no caso da liberdade jurídica – os sujeitos estão dispostos, se necessário, a justificar suas ações e suas escolhas recorrendo a argumentos universalizáveis13. A liberdade moral exige, para ser exercida, não somente que os indivíduos possuam a capacidade de distinguir entre razões corretas ou falsas, mas também que sejam capazes de colocar-se no lugar dos outros.

Justamente essa capacidade, contudo, abre o risco de outras duas patologias sociais: o indivíduo tornar-se um moralista incapaz de situar-se no próprio contexto social, agindo como se tal contexto não existisse, isolando-se socialmente e tendendo a considerar-se como um “legislador” moral todo-poderoso, ou chegar a uma postura de verdadeiro terrorismo com motivações morais, a partir da qual a ordem social é considerada injusta e imoral na sua totalidade, exigindo a sua destruição14.

Ao terceiro tipo de liberdade, à liberdade social, são dedicados quase dois terços do livro, já que nela se realizaria, para Honneth, a liberdade do indivíduo. Em relação às outras duas, Honneth afirma que elas se comportam de forma “parasitária perante uma práxis de vida social que não somente as precede sempre, mas à qual devem também seu direito de existir”15. A liberdade jurídica e a moral permitem que o indivíduo distancie-se ou feche-se perante as exigências ligadas a relações sociais preexistentes, mas são incapazes de criar elas mesmas “esta realidade intersubjetivamente compartilhada no interior do mundo social”16. A tese central de Honneth, nesse sentido, é a de que

a liberdade individual alcança uma realidade socialmente experimentável e socialmente vivida somente em construtos institucionais que dispõem de obrigações complementares ligadas a papéis [sociais], enquanto nas esferas do direito e da moral, previstas “oficialmente” para ela, possui somente o caráter de um mero distanciamento ou de uma revisão reflexiva17.

Isto é, experimentamos nossa liberdade individual somente no contexto de obrigações sociais que surgem do fato de desempenharmos certos papéis sociais (por exemplo, enquanto parceiros, pais, amigos, agentes econômicos, produtores, consumidores, cidadãos, etc.). Essa liberdade é social, pois, longe de isolar o indivíduo do contexto social no qual se encontra, só é vivida em tal contexto, isto é, na interação com outros indivíduos. Isso leva Honneth a não identificar patologias sociais ligadas ao seu exercício, já que tais patologias remetem a um mal-entendido sistemático que leva o indivíduo a atribuir um sentido errado à sua liberdade jurídica ou moral – mal-entendido que, contudo, tem suas causas nas próprias formas de liberdade em questão; no caso da liberdade social, estamos perante desenvolvimentos errados que, segundo Honneth, não seriam provocados pelo próprio sistema da liberdade social. Ora, com isso, o autor abre espaço para uma ambiguidade, pois aparentemente as causas de tais desenvolvimentos não seriam imanentes ao sistema descrito, por exemplo à esfera do mercado ou do Estado democrático. Na realidade, como o próprio Honneth explicou em ocasião de uma discussão sobre seu livro realizada em Berlim em fevereiro de 2012, no caso da liberdade social, os fenômenos negativos se dão quando um certo patamar de desenvolvimento de tal liberdade é atingido e, em seguida, novamente abandonado. Trata-se, em suma, de regressões históricas, que levam a sociedade a perder um nível de liberdade social que já tinha alcançado, e não de patologias individuais. Por isso, contrariamente ao que acontece nos capítulos dedicados à liberdade jurídica e moral, o objeto principal de Honneth nessa parte é uma leitura do desenvolvimento histórico das três esferas nas quais se realiza a liberdade social: as relações pessoais, o mercado e o Estado democrático. Trata-se, nesse caso, de ver qual é a contribuição das três esferas à realização daquela liberdade, na qual se concentram os valores considerados legítimos na sociedade dos países industrializados e democráticos da Europa ocidental. Como acontece com Hegel, contudo, o leitor suspeita que a reconstrução normativa em pauta tenha como objeto uma sociedade específica, a saber, a do autor: a Alemanha, já que boa parte do material empírico apresentado refere-se evidentemente, ainda que não explicitamente, à sociedade alemã e só em parte pode ser visto como uma descrição fiel de outras sociedades, inclusive as de outros países industrializados.

Assim, na reconstrução da evolução das maneiras de viver as relações pessoais, que compreendem amizade, relações íntimas (quer no sentido de relações amorosas, quer no sentido de relações sexuais) e família, Honneth mostra como se passa da visão clássica de amizade masculina a formas de amizade entre pessoas de diferentes gêneros, ou como se passa do amor romântico ao amor “livre” dos anos 1970 e a uma maior abertura em relação a tais questões, ou como a família patriarcal ampliada dá lugar à família nuclear tradicional, na qual os pais ficam presos a seus papéis (o homem trabalha e sustenta a família, a mulher fica em casa cuidando dos filhos), à família moderna, na qual a divisão dos papéis entre os gêneros não é tão rígida, e, finalmente, às novas famílias, não mais compostas por dois pais de gênero diverso e pelos filhos, mas, eventualmente, por pais do mesmo gênero ou por diferentes casais de pais, consequências de divórcios, etc. Essa “história”, embora incompleta (faltam, por exemplo, formas de relações pessoais importantes como clubes, associações, camaradagem, etc.), é, provavelmente, a menos problemática para efetuar uma reconstrução normativa que aponte para um progresso. É significativo que o único risco de um desenvolvimento errado mencionado diga respeito à família e se refira à ausência eventual de políticas públicas de apoio às famílias (portanto, seja atribuível à esfera da política).

A tarefa mais árdua talvez seja mostrar como a esfera do mercado pode ser o lugar onde se realiza a liberdade social dos indivíduos. O próprio Honneth reconhece as dificuldades ligadas a essa tarefa, uma vez que o sistema da economia de mercado capitalista não parece minimamente orientado à construção de uma relação de reconhecimento recíproco, na qual os indivíduos possam ver na liberdade dos outros a condição para o exercício da sua própria liberdade, como exige o conceito de liberdade social que deveria ser realizado pela esfera do mercado18. Destarte, parece difícil ver como “a esfera do mercado organizado de forma capitalista” possa ser considerada uma “instituição ‘relacional’ de liberdade social”19. É verdade que tal esfera pressupõe a institucionalização de direitos individuais que correspondem à criação da liberdade jurídica; e que, portanto, nela os indivíduos possuem um mínimo de liberdade. Contudo, prevalece a concentração no interesse particular e uma visão pela qual cada um vê no outro meramente um meio para alcançar seus fins particulares. O atual mercado capitalista (quer o mercado de trabalho, quer o mercado “tradicional” onde se trocam mercadorias) tende a isolar os indivíduos uns dos outros e a convencê-los de que a única coisa que conta é a maximização dos lucros individuais, não a satisfação das carências sociais. Isso leva os indivíduos a não assumir aquela atitude de confiança e benevolência que, já segundo Adam Smith, representa a condição necessária para o correto funcionamento do sistema20. Em harmonia com essa visão, Honneth pensa, então, que as relações contratuais no mercado de trabalho deveriam obedecer não somente a imperativos econômicos (a “lei” da oferta e da procura, por exemplo), mas também a normas e princípios normativos independentes e, sobretudo, deveriam ser expressão de relações de reconhecimento recíproco: “os atores econômicos devem ter se reconhecido de antemão como membros de uma comunidade cooperativa antes de poderem atribuir-se reciprocamente o direito de maximizar seu lucro no mercado”21.

Na sua reconstrução normativa do desenvolvimento histórico do mercado capitalista, Honneth vê a “realização paulatina dos princípios de liberdade social, que lhe servem de fundamento e asseguram sua legitimação”. Em particular, menciona os mecanismos institucionais que visam garantir um “procedimento discursivo de acordo de interesses” e ancorar juridicamente “a igualdade de oportunidades”22. Na realidade, aqui como em outros momentos, Honneth parece referir-se à realidade alemã, na qual, como se sabe, existe (melhor seria dizer: existia – em consideração das profundas transformações pelas quais passou o modelo de mercado social alemão) um mecanismo de cogestão das empresas e de harmonização dos interesses por meio de contratos nacionais e da mediação do governo. Em outros países, contudo, os mecanismos institucionais mencionados por Honneth permanecem uma utopia, e o mercado de trabalho não obedece a regras estabelecidas discursivamente, nem ao princípio da igualdade de oportunidades. Portanto, a reconstrução normativa, neste caso, parece questionável não somente com base na interpretação do dado empírico (isto é, não somente questionando se até no modelo social de mercado alemão de fato os mecanismos mencionados por Honneth funcionaram da maneira descrita pelo autor), mas também com base nos próprios dados empíricos apresentados.

Além disso, chamam a atenção os fatos de Honneth não tratar o mercado financeiro, hoje tão dramaticamente importante, e não mencionar em momento nenhum a grande cisão histórica marcada pela queda do Muro e pelo fim do socialismo real – o que admira, em uma obra que pretende oferecer uma reconstrução normativa baseada na história das sociedades ocidentais modernas. A situação atual, caracterizada pelo aumento vertiginoso do desemprego na maioria dos países industrializados, pelo desmantelamento do modelo social de mercado alemão, pela progressiva mas constante redução dos direitos trabalhistas, pela concorrência entre países, que querem oferecer às empresas condições mais vantajosas à custa dos empregados, etc., é considerada por Honneth um mero desenvolvimento errado de um processo que, de outra forma, poderia ter levado a uma sociedade mais justa e não, como acham outros autores23, como a consequência inevitável de certa lógica imperante nas últimas décadas de privatizações e desregulamentações.

A última parte do livro é dedicada à reconstrução normativa do processo que levou do Estado liberal de direito ao atual Estado democrático constitucional e social. Em particular, o autor analisa “a instituição da esfera pública democrática como um espaço social intermédio, no qual cidadãs e cidadãos devem formar aquelas convicções passíveis de um consenso geral, que deveriam ser respeitadas pelo processo de legislação parlamentar por meio de procedimentos próprios do Estado de direito”24. Contrariamente ao que acontece com as relações pessoais e o mercado, a realização da liberdade social nessa esfera depende da sua realização nas outras duas. A reconstrução normativa da formação da esfera pública democrática oferecida por Honneth segue em geral a operação análoga realizada por Habermas em 196225. Honneth salienta a importância do Estado-nação nesse processo e fala da necessidade – para o desenvolvimento de uma esfera pública democrática – de “uma certa medida de ‘patriotismo'”, que, contudo, deve assumir hoje o aspecto de um “patriotismo constitucional”, para que se estabeleçam “pontes de comunicação” entre órgãos de governo e população26.

Falando dos desenvolvimentos errados nessa esfera, Honneth menciona o fato de que a mídia deixou de gerar informação para comercializar-se e tornar-se um mecanismo de produção de riqueza através da venda de de espaço publicitário, e lamenta a apatia presente entre os cidadãos, que parecem não ter interesse em participar ativamente do processo de formação da vontade política (que não se limita somente à participação nas eleições, mas compreende a participação nas discussões que acontecem no contexto da esfera pública). Honneth apresenta cinco condições que deveriam permitir um melhor exercício da liberdade social, embora em princípio não possam ser preenchidas todas e completamente27, mas sem as quais não seria possível pensar a esfera pública como esfera de liberdade social. As menos problemáticas dizem respeito à existência de garantias jurídicas para a participação política dos indivíduos e à presença de um espaço comunicativo comum, já a terceira, relativa à existência de um sistema diferenciado de mídia, é mais difícil de ser realizada; extremamente complicada é a realização das duas últimas: a disponibilidade dos cidadãos a se engajarem nas discussões públicas e o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade cívica mantido por uma correspondente cultura política da solidariedade.

As convicções elaboradas nos debates públicos devem transformar-se em estratégias concretas de ação ou em normas jurídicas através da atividade legislativa dos parlamentos, isto é, através da ação do Estado. Honneth define o Estado como “o ‘órgão reflexivo’ ou a rede de instâncias políticas com a ajuda da qual os indivíduos, que se comunicam entre si, tentam transpor na realidade suas visões, alcançadas ‘experimental ou deliberativamente’ relativamente às soluções moral e pragmaticamente adequadas de problemas sociais”28. Nessa visão, o Estado é o instrumento através do qual os cidadãos ativos politicamente realizam suas convicções e, portanto, sua liberdade social. Contudo, os desenvolvimentos errados são particularmente numerosos e concernem à incapacidade concreta do Estado em lidar com os problemas ligados à economia, com a influência dos lobbies, com a burocratização dos partidos políticos, etc. Uma saída possível é identificada por Honneth na capacidade de pressionar os parlamentos demonstrada pelos movimentos sociais e as associações civis29.

Apesar dos diagnósticos negativos sobre os inúmeros desenvolvimentos errados que assombram as esferas do mercado e do Estado, o livro termina com uma nota otimista: a esperança no surgimento de uma cultura política democrática e participativa capaz de retomar o caminho fundamentalmente progressivo registrado por Honneth na sua reconstrução normativa da maneira em que a liberdade social veio afirmando-se como o valor principal da sociedade ocidental moderna. O otimismo de Honneth não é, portanto, crença dogmática no progresso de tal liberdade (como em Hegel), mas um otimismo cauteloso e consciente das dificuldades com as quais ela ainda tem que lidar.

Notas

1 Tarefa que já animava obras anteriores, como Sofrimento de indeterminação (São Paulo: Esfera Pública, 2007) e o próprio Luta por reconhecimento (São Paulo: Editora 34, 2003), até agora seu livro mais conhecido e teoricamente mais denso.
2 Operações análogas foram praticadas nos últimos anos por alguns pensadores norte-americanos. Ver PINKARD, T. Hegel’s Phenomenology. The Sociality of Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; NEUHOUSER, FrederickFoundations of Hegel’s Social Theory. Actualizing Freedom. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2000. Pippin, Robert. Hegel’s Practical Philosophy. Rational Agency as Ethical Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
3 HONNETH, A. Das Recht der Freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011, p. 23. [Citações traduzidas pelo autor.] 4 Ibidem, p. 624.
5 Ibidem, p. 9.
6 Em nota, o autor faz uma afirmação bastante relevante do ponto de vista teórico: “Em seguida não considerarei a ideia de ‘igualdade’, por mais influente e rica de consequências que seja, como um valor independente,” já que pode ser entendida somente em relação à igualdade individual (p. 35, nota 1). Essa breve observação é o único espaço que Honneth reserva em seu livro ao conceito de igualdade, tradicionalmente central nas teorias da justiça (o termo nem sequer aparece no índice analítico).
7 HONNETH, op. cit., p. 38.
8 Como veremos, Honneth considera até certo ponto estas perspectivas patologias sociais.
9 Na primeira parte do livro o autor realiza uma reconstrução histórica dos diferentes conceitos de liberdade, servindo-se da obra de pensadores bastante diversos entre si: Hobbes, Sartre, Nozick, Rousseau, Kant, Rawls, Habermas, os românticos alemães, Herder, Mill, Arendt, Hegel, Marx e Gehlen. Neste contexto não temos espaço para dedicar-nos à análise da leitura que Honneth faz desses autores e que, de qualquer maneira, é funcional à parte mais sistemática do livro, dedicada à exposição teórica dos três conceitos de liberdade.
10 Trata-se, portanto, de direitos meramente negativos, já que os direitos políticos pertencem, segundo Honneth, à esfera da liberdade social.
11 HONNETH, op. cit., pp. 161 e 164.
12 Analogamente, na seção da Filosofia do direito de Hegel dedicada ao direito abstrato, o autor criticava a tendência, típica de muitos juristas e filósofos, a reduzir o indivíduo à mera pessoa jurídica detentora de direitos formais.
13 HONNETH, op. cit., p. 193.
14 Aqui também há um eco da crítica à posição da subjetividade moral efetuada por Hegel na seção “Moralidade” da sua Filosofia do direito.
15 HONNETH, op. cit., p. 221.
16 Ibidem, p. 222.
17 Ibidem, p. 229.
18 Ibidem, p. 318.
19 Ibidem, p. 302.
20 Idem, 330 e ss.
21 Ibidem, p. 349.
22 Ibidem, p. 358.
23 Por exemplo: ROSA, H. Beschleunigung. Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne. 2. ed. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005; Foster, J. B. e Magdoff, F. The Great Financial Crisis. Causes and Consequences. Nova York: Monthly Review Press, 2009; Stieglitz, J. Freefall. Free Markets and the Sinking of the Global Economy. Londres: Penguin, 2009; Dörre, K., Lessenich, S. e Rosa, H. Soziologie – Kapitalismus – Kritik. Eine Debatte. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2009; Chang, H.-J. 23 Things They Don’t Tell You About Capitalism. Londres: Allen Lane, 2010; Harcourt, B. E. The Illusion of Free Markets. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2011.
24 HONNETH, op. cit., p. 471.
25 HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
26 HONNETH, op. cit., pp. 495-9.
27 Ibidem, p. 540, nota 505.
28 Ibidem, p. 570.
29 Ibidem, p. 608.

Alessandro Pinzani – Professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

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L’etica della democrazia – Attualità della filosofia del diritto di Hegel – CORTELLA (V)

CORTELLA, Lucio. L’etica della democrazia – Attualità della filosofia del diritto di Hegel. Genova/Milão: Casa Editrice Marietti, 2011. 270 p. Resenha de: COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 1, p. 180-190, jan./abr. 2012.

A democracia tem necessidade de uma ética? É com uma pergunta que percorre todo o prefácio que se inicia o livro do professor Lucio Cortella, o qual se desenvolve em torno de uma introdução – Moralidade e eticidade: dois conceitos chaves para aceder à concepção hegeliana da política – e quatro capítulos: 1. A liberdade e o absoluto; 2. A época da liberdade universal; 3. A eticidade realizada: a esfera do Estado e, por fim, 4. Linhas de uma eticidade pós-idealística: uma democratização da filosofia política de Hegel.

Ocorre que bem ao estilo hegeliano, o prefácio do livro possui independência e quiçá assume a tarefa de fazer o leitor dar-se conta de que é possível a pergunta de uma democracia em Hegel, algo um tanto e num primeiro olhar paradoxal, e que é também pertinente uma demanda acerca de um ethos próprio aos processos de organização política de viés democrático oriundo desde a vazante hegeliana. Estas duas indagações percorrerão, ora em maior e ora em menor medida, todo o desenvolvimento do livro.

Metodologicamente nossa resenha se dividirá em dois grandes blocos. O primeiro bloco reconstruirá a estrutura argumentativa apresentada pelo professor Lucio Cortella, expondo sua tematização, tendo sempre em vista seu objeto acerca de uma ética da democracia e como este ethos democrático pode ser exposto desde a Filosofia do Direito de Hegel. O segundo bloco de análise do livro se prenderá apresentar criticamente se o livro, que ora se resenha, realiza seu objetivo (uma ética da democracia) através de seu objeto (a filosofia do direito hegeliana).

Assim, esperamos apresentar a resenha ao mesmo tempo de forma informativa e crítica, expondo o desenvolvimento dos conceitos e meditando sobre sua pertinência ou não. Outro ponto que nos motivou a elaboração da presente resenha é suprir uma lacuna no português acerca da obra de Lucio Cortella.

Lucio Cortella é professor do Departamento de Filosofia e Bens Culturais da Università Ca’ Foscari, de Veneza, Itália, e mesmo sendo um reconhecido estudioso, na Europa, da tradição dialética, especial daquela oriunda da Escola de Frankfurt e desta à Hegel, o autor é um ilustre desconhecido entre nós.

1 Desvelando a estrutura do texto A ética da democracia: atualidade da Filosofia do Direito de Hegel

a) Há na democracia necessidade de uma ética? O autor inicia seu prefácio (p. 9) com uma constatação: Hegel não pertence à tradição do pensamento democrático. Contudo, sua reflexão conduz às mesmas aporias do pensamento democrático, que se resume a uma dicotomia a responder se: (i) as normas jurídicas são capazes de por si só regularem os processos políticos nas sociedades ou (ii) é preciso apelar a um sistema de valores compartilhado por todos no sentido de uma ética comum? As tendências democrático-liberais, segundo a análise de Cortella (p. 9-10), claramente afirmarão que é desnecessária uma ética como base da convivência social e reprocharão que tal perspectiva repousa numa indistinção entre o público e o privado, assinalando que o caráter privado dos bens não pode ser confundido com o caráter público da justiça e que a clareza nesta separação é o fundamento estável de um Estado democrático, ao mesmo tempo justo individual e socialmente sem a ocorrência da subsunção de uma esfera pela outra.

Uma outra não menos importante corrente do pensamento político democrático contemporâneo, os comunitaristas, argumentarão que as normas jurídicas são frágeis para serem tomadas em si mesmo e sem o suporte de uma ideia comum de bem e um conjunto de valores, que confiram identidade ao social, poderem constituir a estrutura político-social de uma comunidade jurídica, concluindo pela insuficiência do sistema normativo como modelo para a regulação dos processos sociais. Nesta perspectiva, qualquer compreensão da sociabilização para ser coerente deve apelar simultaneamente a normas e valores.

Lucio Cortella aponta os déficits de ambas às perspectivas, seja a dos liberais e do consequente esgarçamento social provocado pela perspectiva jurídico-abstrata, seja a comunitarista e o sempre iminente

risco de apropriação da liberdade individual pelo Estado, e aponta uma alternativa ancorada na perspectiva institucionalista, afirmando que para tanto “[…] basta individuar e tornar explícita qual ética está já incorporada e operante nas instituições do Estado democrático e por este motivo está já na base do vínculo social entre os cidadãos” (Cortella,p. 11). E é na eleição da perspectiva institucionalista de análise do fenô-meno político democrático contemporâneo por oposição tanto a liberais como a comunitaristas que Cortella (p. 12) consegue conectar o status pós-tradicional do pensamento democrático hodierno com Hegel, articulando o pano de fundo para o desenvolvimento da paradoxal tese de uma ética democrática desde Hegel.

Mas, como afirmar um institucionalismo em Hegel? Para tal tarefa, Cortella (p. 12) defende que

A eticidade hegeliana não é constituída por um sistema particular de valores, nem pretende impor ao Estado uma específica identidade histórica, nem significa a re-proposição dos vínculos comunitários. […] A ideia de Hegel é, porém, que a liberdade, uma vez dissolvida as velhas tradições e o ethos dos pais, se seja feita por sua vez ethos, isto é, tenha plantado raízes, objetivando-se num sistema jurídico, numa práxis social, em instituições políticas e civis.

Cortella postula (p. 13) que foi Hegel quem compreendeu que na Modernidade os processos de emancipação conduzem a uma tradição da liberdade, onde ser livre e reconhecer o outro como livre a partir de vínculos que são ao mesmo tempo individuais e supraindividuais, ou seja, institucionais nos permitem assumirmo-nos como humanos, e por isto, portadores de uma segunda natureza.

Para o autor, “a solução está num ethos comum e compartilhado, que seja ao mesmo tempo universal, participado por todos em linha de princípio, e concreto, isto é, já operante historicamente na prática das instituições políticas.

b) Moralidade e eticidade: dois conceitos chaves para aceder à concepção hegeliana da política Lucio Cortella (p. 19-20) inicia a introdução demarcando a impor-tância da compreensão do conceito de Sittlichkeit por oposição ao de Moralität, enfatizando que já entre os próprios gregos havia a existência no próprio ethos da distinção entre êthos (costume) e éthos (hábito). Cortella acentua, contudo, que o próprio Hegel em nota ao parágrafo 33 assinala que entre os gregos há preponderância no ethos do aspecto da morada, afastando-se os gregos de nossa compreensão da mora-lidade.

Ocorre que o próprio Cortella recoloca o papel da distinção hegeliana entre Sittlichkeit e Moralität, por ser esta aparente distinção etimológica a base de toda a reflexão hegeliana acerca da vida ética, em suas dimensões individual e política.

Esta ligação entre eticidade e a morada, bem presente em Aristóteles e após retomada por Hegel, indica uma conexão da vida ética bem diversa daquela que nós comumentemente atribuímos à esfera moral e é a verdadeira chave para compreendermos o sentido da distinção hegeliana (Cortella, p. 20).

O jogo entre a eticidade e a moralidade desempenha, na filosofia hegeliana, primeiro uma distinção semântica que demarcará as esferas de estruturação no espírito do subjetivo e do objetivo, e em seguida, na própria diferenciação das esferas o ligame que exige que a compreensão tanto do espírito subjetivo, como a do espírito objetivo, seja realizada em estreita conexão entre ambos, pois o moral e o ético são como que faces do mesmo processo de autodesenvolvimento da sociabilidade, o primeiro em sua dimensão individual e o segundo em sua perspectiva pública e social.

Cortella (p. 23) assinala, ademais, que na perspectiva desta distinção, Hegel se coloca na posição de suprassumir a perspectiva kantiana esboçada na Metafísica dos Costumes, que dividia a sociabilidade em apenas dois níveis, aqueles das relações exteriores entre os indivíduos, o direito, e aquele outro das relações interiores dos indivíduos, a virtude. Ao estabelecer que moralidade e eticidade não se opõem, mas se autopõem, Hegel eleva-se para uma perspectiva na qual as relações exteriores, o direito abstrato, pudessem junto com as relações interiores, a moralidade, se desenvolver sob a base de relações nas quais a distinção entre exterior e interior estivessem guardadas e elevadas, pois suportadas pelo movimento da cultura, coroando a sua Filosofia do Direito com a esfera da eticidade.

Neste sentido, o direito para Hegel assume a função não apenas de cuidar de questões jurídicas, mas de ser a explicitação da liberdade num mundo exterior. Cortella (p. 23) enfatiza que A noção hegeliana de direito pode-se legitimamente compreender como aquele mundo complexivo da normatividade que se eleva a partir da específica pretensão de validade indagáveis sob a base dos critérios de justiça.

E dentro desta específica distinção entre eticidade e moralidade, uma diferenciação na qual o diverso se preserva no distinto de si, que

será possível, na leitura que Cortella elabora desde Hegel, a diferença da liberdade dos antigos face à dos modernos. Modernos os quais, nós, devemos nos incluir na perspectiva posta por Cortella ao término do presente capítulo as páginas 30-31.

2 A liberdade e o absoluto

A abertura do capítulo já nos coloca face a tese forte do autor de que, em Hegel, há uma concepção coerentista da liberdade. Tal concepção rompe com as leituras que compreendiam a herança hegeliana nos quadros da Modernidade e de seu ancoramento da liberdade no primado do sujeito por oposição à natureza.

Cortella ressalta que tal oposição, própria dos modernos, entre um mundo pautado por leis mecânicas de causa e efeito, em verdade não se opõe a este outro mundo da liberdade, e que foi Hegel que, ao desenvolver “[…] a liberdade não mais pensada apenas como uma propriedade da interioridade humana e signo da sua superioridade sob a natureza, mas como lógica última do real” (p. 33), colocou as bases de uma compreensão de liberdade ampla, não restrita a compreensão de oposição entre a natureza e sua privação da liberdade e o espírito como reino da liberdade.

Em Hegel, a liberdade perpassa todas as esferas do real, pois ela é seu elemento intrínseco e constitutivo, para tanto e de modo a dar razões desta sua perspectiva, Cortella (p. 34) desenvolve como em Hegel se relacionam liberdade e ontologia.

A seção liberdade e ontologia é a reconstrução da refutação hegeliana do espinosismo, como alternativa para a compreensão desta postulada liberdade coerentista, que Cortella aponta presente em Hegel. Mas, em que consiste refutar o espinosismo e qual o papel de tal refutação? Espinosa compreende a essência como substância e necessidade. Dentro deste horizonte, a liberdade cede lugar à cega necessidade e em havendo Espinosa razão, Hegel estaria equivocado ao colocar o espírito como a verdade da natureza, pois seria a substância a sua verdade. Hegel, ao compreender, segundo Cortella (p. 35), a liberdade como o autoconhecimento do espírito, tem que refutar o espinosismo, demonstrando que a verdade da substância é o sujeito mediante a elevação da natureza ao espírito.

Cortella (p. 35) afirma, inclusive, que, em Hegel, a fundação da liberdade equivale a uma verdadeira fundação do idealismo. Uma tal identidade entre a liberdade e o idealismo em Hegel se manifesta na própria superação do espinosismo, tal qual apresentada, segundo Cortella, por Hegel na seção relação absoluta da Ciência da Lógica

através da noção de ação recíproca, a qual demonstra como a substância se autocondiciona num movimento reciprocamente ativo-passivo.

A superação da cisão entre natura naturans e natura naturata, enquanto divisão do movimento substancialmente entre o ponente e o posto, e o reconhecimento de que a verdade da substancialidade ontológica é o pensar, ou o pensamento em seu movimento reflexivo sobre si é consoante, segundo Cortella (p. 37), com a novidade do idealismo hegeliano da liberdade.

Cortella (p. 38), portanto, defende a tese de que a lógica se manifesta como o sistema categorial da liberdade, e assim é o absoluto liberdade porque suprassumiu a totalidade das determinações finitas do pensamento. O absoluto hegeliano é o próprio movimento da totalidade das determinações compreendidas em sua unidade como manifestando-se a si mesmo.

Neste horizonte epistêmico, Cortella (p. 39) afirma que “em definitivo: a liberdade (como o pensar) não é uma unidade indistinta, mas é um processo, uma multiplicidade, um percurso, no qual o êxito final mantém em si a totalidade das categorias que percorre”.

Cortella (p. 42 e s.) afirma que a primeira característica desta novaconcepção coerentista de liberdade, apresentada por Hegel, é a autorre-flexividade, a qual consiste “naquela especial relação que o pensamento tem consigo mesmo, graças a qual, referindo-se a si, determina a si mesmo e se faz independente de tudo o que não coincide consigo” (p. 42).

Este primeiro nível da liberdade se coloca na condição de ser fiel tanto à concepção aristotélica de homem livre como aquele que detém sua finalidade em si, como à noção moderna e kantiana de autonomia, segundo a qual livre é o homem que se determina de modo independente de qualquer móvil externo à razão prática.

O segundo momento da liberdade hegeliana, na interpretação de Cortella (p. 44), é a negatividade da liberdade, a qual o autor divide em negatividade absoluta e determinada. O uso de absoluto agora, neste contexto, corresponde à universalização ilimitada da negatividade, revelando sua destrutividade inerente. Contudo, a liberdade em sua absolutidade revela-se autodestrutiva; este movimento é a indução à sua determinação. O movimento da liberdade não se limita a ser a destruição de toda a exterioridade, mas sim o movimento de afirmação de si como possuído da propriedade de dar-se leis.

Neste percurso, a liberdade hegeliana se apresenta como liberdade relacional, na qual o dar-se a lei e não se determinar por nada que lhe seja exterior não implica a afirmação da autorreflexividade, mas exatamente sua suspensão, posto que o outro não é mais o que retira ou limita a liberdade, mas a liberdade mesma, em sua plenitude.

Acerca destas conclusões a que chega, Cortella (p. 56) afirma que “se Hegel corrigi os modernos e Kant negando que a liberdade seja uma propriedade do sujeito ou uma faculdade, colocando-a como uma realidade relacional e objetiva, por outro lado, também radicaliza o aspecto subjetivo dela”.

3 A época da liberdade universal

No cotejo da obra hegeliana, Cortella (p 59) identifica as raízes teológicas da concepção hegeliana de liberdade, explicitando que, em Hegel, a encarnação de Cristo implica a assunção e o ingresso no mundo histórico da liberdade de Deus, uma liberdade não apenas como ideia, pois esta não é exterior aos homens, pois estes são ideia.

Segundo Cortella (p. 60), a liberdade universal, oriunda deste evento teológico e realizada na Modernidade é um “mundo complexo de relações e práticas objetivas da qual a liberdade individual é o sustento e a alimentação”. Este complexo de relações que compõe a liberdade universal se realiza mediante três incursões no espírito objetivo: como liberdade jurídica, como liberdade interior e como liberdade social, ou liberdade externa à pessoa, consciência interna da autonomia do sujeito e liberdade do homem econômico e do indivíduo abstrato da sociedade civil.

Dentro deste contexto, toda a exposição do capítulo acerca da liberdade universal recompõe os passos dos três níveis de exercício e efetivação da liberdade num verdadeiro debate com os principais expoentes alemães da Hegel-Forschung, como Theunissen, Bubner, Horstmann, Ritter, Angehrn, Fulda, entre outros, no sentido de demonstrar o equilíbrio em Hegel e nas suas conclusões da unidade entre o descritivo e o normativo, da exposição e da crítica, do ser e da validade.

A busca desta unidade, segundo Cortella, é o que torna possível a compreensão da liberdade universal em Hegel, sem cair nos lugares comuns do quietismo ou do progressismo, entre outros chavões a que se impõe ao texto da Filosofia do Direito de Hegel.

Cortella (p. 120), no cotejo da interpretação de Theunissen, exposta em Sein und Schein, de uma proto-teoria da liberdade comunicativa em Hegel, propõe um modelo de liberdade relacional, na qual os níveis da família, sociedade civil e Estado representariam os graus da relação intersubjetiva da imediatidade, do estranhamento e alienação e da relação propriamente dita, onde assimetria e simetria se colocariam numa permanente tensão constitutiva.

Dentro deste escopo de apreensão da liberdade universal desde Hegel, Cortella (p. 128) se coloca a demanda de apresentar como a passagem da liberdade universal ao Estado, tal como por ele reconstituída

à luz da Filosofia do Direito em Hegel, é capaz de fazer jus à tensão entre liberdade individual, relacional e à própria noção de universalidade, sem cair numa eticidade perdida em seus extremos, tal como descrita, como alerta, pelo próprio Hegel, no § 1841 de sua Filosofia do Direito.

4 A eticidade efetiva: a esfera do Estado

Em Hegel, desenvolve-se uma compreensão de eticidade em termos estritamente próprios e inauditos, pois Hegel não concebe o conceito de eticidade, segundo Cortella (p. 129), “[…] fazendo o retorno ou fazendo retornar a constelação ontológica antiga, na qual ética e política fundavam-se sob a natureza e a tradição”, nem tampouco colocando em xeque os ganhos da Modernidade, os quais Cortella enuncia como sendo: a separação da ideia do bem da natureza e sua compreensão em termos da liberdade, a conexão entre bem, liberdade, e a subjetividade individual.

Todo o terceiro capítulo do livro de Cortella, que ora se prefacia é este intento de demonstrar a gênese da eticidade moderna, que Hegel apresenta na sua filosofia e que se coroa com sua apreensão conceitual da realidade, tal como exposta na Filosofia do Direito. Segundo Cortella, a eticidade seria uma espécie de metatema que perpassa toda a for-mação teológica e filosófica de Hegel, e a prova de seu argumento ele pretende demonstrar reconstruindo, em cada momento, seu percurso formativo.

Para Cortella (p. 130), na juventude, Hegel assume uma eticidade como sustentáculo à crítica do paradigma subjetivístico e à concepção kantiana baseada na universalidade da liberdade, sendo a eticidade o conceito hábil, neste período, a superar as cisões entre o indivíduo e o Estado, a liberdade e a natureza, etc. Em Iena, Cortella pondera que Hegel, ao assumir a perspectiva política aristotélica exposta na obra Política, torna-se capaz de desenvolver a eticidade como habilitada à compreensão de princípios como a natureza da polis, a prioridade do Estado com relação ao indivíduo, desenvolvendo uma perspectiva nitidamente comunitária.

Ainda em Iena, Cortella (p. 131) identifica uma mudança no paradigma da Sittlichkeit hegeliana, o qual na sua leitura consiste no abandono da perspectiva ontológica, herança da influência de Schelling e Espinosa, e que se pode identificar no próprio prefácio da Fenomenologia do Espírito e sua predileção pelo sujeito em detrimento da substância. Esta passagem

de uma perspectiva ontológica para uma perspectiva lógico-subjetiva se põe em Hegel pelo papel que desempenhará o conceito [Begriff] na economia da posterior reflexão hegeliana.

Cortella (p. 131) afirma que “a noção de conceito, a partir deste momento em diante se tornará uma das noções chaves de toda a filosofia hegeliana, possui um significado preciso mesmo nas relações da esfera político-jurídica”. Na estruturação desta nova concepção de eticidade, tal como desenvolvida por Hegel, Cortella é bastante tributário das pesquisas de Manfred Riedel, especialmente de Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, e do famoso artigo de Riedel, Natur und Freiheit in Hegels Rechtsphilosophie.

A eticidade é apresentada se expressando como (i) a unidade entre liberdade e natureza (p. 131), (ii) unidade entre liberdade e história (p. 137), (iii) a conciliação entre universalidade e ethos (p. 144), (iv) a eticidade como uma segunda natureza (p. 146), (v) a condição de recomposição das rupturas da modernidade (p. 153), (vi) unidade prática entre sujeito e objeto (p. 160).

Não obstante este aparente caráter omnicompreensivo da eticidade, Cortella (p. 189) apresenta aquilo que ele designa como a acidentalidade do ético, o qual consiste no caráter de unidade da eticidade apenas nos limites internos ao Estado, ou seja, a eticidade se desenvolveria como um conceito intraestatal, sem condições hermenêuticas de apreender e compreender os processos externos à constituição interna doEstado.

Cortella demarca que a eticidade, tal como a compreende na Filosofia do Direito, fora dos limites do Estado, atua por recíproca exclusão, num verdadeiro fechamento nacionalístico do ethos (p. 194).

Em vista destas colocações e conclusões a que chegara, Cortella (p. 205) se coloca a tarefa de desenvolver uma alternativa de bases ainda hegeliana, mas com nítidas influências da teoria crítica de Frankfurt, à eticidade, e para tanto apresentará, no último capítulo do seu livro, as bases de uma eticidade pós-idealista.

5 As linhas de uma eticidade pós-idealística: uma democratização da filosofia política de Hegel

Para Cortella (p. 207), todo o percurso de constituição da eticidade e do complexo conceitual que ela comporta traduz-se numa verdadeira fratura da liberdade. Tal ruptura reside exatamente nos limites da compreensão hegeliana de liberdade, a qual possui como escopo os limites do Estado nacional por oposição e recíproca exclusão dos demais Estados nacionais.

Na leitura desenvolvida no citado livro, a eticidade hegeliana se mostra por demais singularística, ao reduzir-se ao estabelecimento de nexos hermenêuticos intraestatais, impossibilitando uma compreensão mais universalista da liberdade em contextos, por exemplo: supranacionais, de direitos internacionais e mesmo de demandas acerca dos direito humanos, etc.

A tese surpreendente de Cortella (p. 235) para este dilema é a compreensão da democracia como ethos, e para tanto o autor propõe que se deve Ao invés de considerar a democracia como a mais refinada técnica de distribuição do poder e da obtenção do consenso, tratar-se em verdade de repensá-la como aquela nova comunidade que é a saída do cenário das velhas comunidades tradicionais, àquelas ligadas a ponto específicos, como às memórias de grupos, aos usos e costumes […] (p. 235).

Para Cortella, é falso que inexistam no homem contemporâneo laços comunitários, pois da dissolução do ethos se seguiu a constituição de uma nova eticidade baseada em regras universais e impessoais, com as quais os cidadãos se identificam. Ainda segundo Cortella, O homem contemporâneo faz das regras impessoais do Estado de Direito o seu novo habitat, a sua nova casa. E se habituou à legalidade, à responsabilidade jurídica, à participação ativa numa esfera pública que vai para muito além dos velhos confins que caracterizam a sua casa, sua família e sua cidade (p. 235).

Para Cortella, deve-se assumir que, neste novo momento, vive-se uma espécie de eticidade democrática no seio da qual, habituada a comportamentos liberais e democráticos, se internalizam práticas e regras como virtudes republicanas. Dentro deste contexto de reapropriação das teorizações ético-políticas de Albrecht Welmmer, Cortella (p. 242) afirma que é possível democratizar Hegel e responder a estas novas demandas da contemporaneidade.

Para Cortella, a configuração político democrática não pode admitir a imunização das instituições da tomada de distância crítica dos cidadãos e da sua possível transformação, ou seja, é preciso pensar a compatibilidade entre os comportamentos democráticos com a inexistência de uma subs­tância ética, subtraída das condições da crítica, e é este ponto do modelo hegeliano que deve ser reconsiderado. Pois, segundo Cortella, “o ponto de ruptura fundamental entre a ideia de um ethos democrático e a concepção hegeliana do Estado reside naquela caracterização substancialística da esfera ética que em Hegel desempenha uma função central” (p. 243).

Para Cortella, este novo ethos, constituído após a queda daquele baseado numa concepção naturalística e substancial da tradição, se configura pela primazia do ser construído e pela sua artificialidade, resultante dos processos culturais de formação, logo esta segunda natureza, não é mais natureza, mas convenção. Nisto resulta o caráter pós-tradicional deste novo ethos.

Para tanto, Cortella constrói sua perspectiva pós-tradicional do ethos pela assunção das seguintes notas como lhe sendo constitutivas:a) formalidade, b) pluralismo, c) universalidade e d) deflacionamento da dimensão político estatal. Em tal perspectiva, o ethos pós-tradicional seria capaz de efetivar tanto a autenticidade individual como a justiça universal.

Todavia, nos diz Cortella com Christoph Menke2 que os conflitos entre autonomia e autenticidade à luz das escolhas individuais deve ser resolvido de modo plural e diferenciado, em certa medida assumindo individualmente a Ideia moral de bem como critério de orientação das escolhas.

Cortella assume, para tanto, uma concepção de comunidade de valores (Wertgemeinschaft) pós-tradicional, fundada sobre a liberdade dos singulares, na qual estes acedem livremente, bem como na qual a escolha dos valores e dos planos de vida aos quais querem aderir também o são livres.

Neste contexto, a democracia é menos um modo de organização política e mais uma cultura de valores consensualmente estatuídos e livremente aceitos e reconhecidos.

À guisa de conclusão

A presente obra, que se apresentou em formato de resenha, estabelece a instigante tese de apropriação de Hegel, sem contudo querer atualizá-lo, mas partindo de algumas de suas intuições e desenvolvimentos, assim como de várias de suas conclusões, a fim estabelecer um marco de compreensão razoável para complexos fenômenos da contemporaneidade, mais especificamente a possibilidade de se estabelecer uma ética da democracia em bases não substancialistas.

Apenas por este motivo, a obra possui méritos que lhe irão garantir, por longo período, a sua permanência nos debates políticos e filosóficos acerca das tão conflituosas relações entre o indivíduo, o Estado e a comunidade.

Notas

1. HEGEL. Filosofia do Direito, § 184: “Es ist das System der in ihre Extreme verlorenen Sittlichkeit”.

2. MENKE, Christoph. Tragödie in Sittlichkeit (1996) e, também, Liberalismus in Konflikt (1993).

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Professor da UNICAP. Doutorando em Filosofia na UFRGS. E-mail: [email protected] ou [email protected]

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Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais – HONNETH (C)

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. Resenha de: SALVADORI, Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

A figura mais proeminente dentre os teóricos da terceira geração de Frankfurt é Axel Honneth. Os seus estudos concentram-se nas áreas: filosofia social, política e moral, tratando ,principalmente, da explicação teórica e crítico-normativa das relações de poder, respeito e reconhecimento na sociedade atual.

O objetivo central de Honneth na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, é mostrar como indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual. Isso ocorre por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo e não por autoconservação, como salientavam Maquiavel e Hobbes. As três formas de reconhecimento são as seguintes: o amor, o direito, e a solidariedade. A luta pelo reconhecimento sempre inicia pela experiência do desrespeito dessas formas de reconhecimento. A autorrealização do indivíduo somente é alcançada quando há, na experiência de amor, a possibilidade de autoconfiança, na experiência de direito, o autorrespeito e, na experiência de solidariedade, a autoestima.

Honneth, inspirando-se no conceito de reconhecimento do jovem Hegel, busca fundamentar a sua própria versão da teoria crítica. Com isso, ele pretende explicar as mudanças sociais por meio da luta por reconhecimento e propõe uma concepção normativa de eticidade a partir de diferentes dimensões de reconhecimento. Os indivíduos e os grupos sociais somente podem formar a sua identidade quando forem reconhecidos intersubjetivamente. Esse reconhecimento ocorre em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor, nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social. Essas três formas explicam a origem das tensões sociais e as motivações morais dos conflitos.

A primeira forma de reconhecimento consiste nas emoções primárias, como o amor e a amizade. Para investigar essa esfera, o autor volta-se aos trabalhos da psicologia infantil de Donald Winnicott. O ponto de partida dessa primeira forma é uma fase de simbiose, chamada por Winnicott “dependência absoluta”. A mãe e o filho estão em um estado de indiferenciação. As reações do filho são percebidas pela mão como um único ciclo de ação. Winnicott chama isso “intersubjetividade primária”, em que há uma unidade de comportamento. Porém, para ampliar o seu campo social de atenção, a mãe começa a romper a sua identificação com o bebê. Com isso, o bebê aprende que a mãe é algo do mundo e que não está à sua inteira disposição.

Essa segunda fase é chamada “dependência relativa”. É nesse período que a criança desenvolve a sua capacidade para uma ligação afetiva. A criança reconhece o outro como alguém com direitos próprios, independente. Para Winnicott, a fim de alcançar essa independência do outro, a criança tem que desenvolver dois mecanismos psíquicos: destruição e os fenômenos e objetos transicionais. A destruição (mordidas no corpo da mãe) consiste em atos que a criança pratica quando descobre a independência da mãe. Eles se tornam positivos quando o bebê reconhece a independência da mãe, amando-a sem as fantasias de onipotência. Os fenômenos e objetos transicionais (travesseiro, brinquedo, dedo polegar) são elos de mediação entre a fase da fusão e a da separação.

A criança somente alcança a criatividade quando fica sozinha com os objetos transicionais. Isso é possível devido à dedicação emotiva da mãe, mesmo estando distante da criança. Essa confiança na dedicação materna faz com que a criança desenvolva a autoconfiança. Nessa análise de Winnicott, pode-se concluir que o amor é uma forma de reconhecimento e, por meio dele, o indivíduo desenvolve uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de autorrealização pessoal.

Para Honneth o amor somente surge quando a criança reconhece o outro como uma pessoa independente, ou seja, quando não está mais num estado simbiótico com a mãe. O amor é o fundamento da autoconfiança, pois permite aos indivíduos conservarem a identidade e desenvolverem uma autoconfiança, indispensável para a sua autorrealização. O amor é a forma mais elementar de reconhecimento.

O amor se diferencia do direito no modo como ocorre o reconhecimento da autonomia do outro. No amor, esse reconhecimento é possível, porque há dedicação emotiva. No direito, porque há respeito.

Em ambos, somente há autonomia quando há o reconhecimento da autonomia do outro. A história do direito ensina que, no século XVIII, havia os direitos liberais da liberdade; no século XIX, os direitos políticos de participação e, no século XX, os direitos sociais de bem-estar. De modo geral, essa evolução mostra a integração do indivíduo na comunidade e a ampliação das capacidades, que caracterizam a pessoa de direito. Nessa esfera, a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável ao desenvolver sentimentos de autorrespeito.

A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores.

A passagem progressiva dessas etapas de reconhecimento explica a evolução social. Ela ocorre devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade.

Segundo Honneth, para cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores). A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores.

As mudanças sociais podem ser explicadas por meio do desrespeito, gerador de conflitos sociais. Os conflitos surgem do desrespeito a qualquer uma das formas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas. A identidade moral é formada por essas expectativas. Uma mobilização política somente ocorre quando o desrespeito expressa a visão de uma comunidade.

Portanto, a lógica dos movimentos coletivos é a seguinte: desrespeito, luta por reconhecimento, e mudança social. Honneth, seguindo as ideias de Hegel, afirma que a eticidade é o conjunto de condições intersubjetivas, que funcionam como condições normativas necessárias à autodeterminação e a autorrealização.

A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade, e crítico-normativa, porque fornece um padrão – a eticidade – para identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais. A eticidade, portanto, é o conjunto de práticas e valores, vínculos éticos e instituições, que formam uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento recíproco. Por meio da vida boa, há uma conciliação entre liberdade pessoal e valores comunitários. A identidade dos indivíduos é formada pela socialização, ou seja, é formada na eticidade, inserida em valores e obrigações intersubjetivas. Portanto, não há como pensar a existência de um contrato para o surgimento da sociedade, mas nas transformações das relações de reconhecimento.

Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento.

Na sociedade moderna, o indivíduo tem de encontrar reconhecimento tanto como indivíduo autônomo livre quanto como indivíduo, membro de formas de vida culturais específicas. Essa concepção formal de eticidade fica sempre limitada pelas situações históricas concretas. Portanto, ela não cai num etnocentrismo, nem numa utopia, pois ela é uma estrutura que se encontra inserida nas práticas e instituições da sociedade moderna.

Mateus Salvadori – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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