Gênero, mulheres e imagem: diálogos interdisciplinares (II) / Domínios da Imagem / 2017

Os estudos de gênero têm impulsionado pesquisas de múltiplas áreas. Um meio de compreender os sentidos e as relações complexas entre diversas formas de interação humana, gênero se refere, conforme postulado por Joan Scott, às construções históricas, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres. Percepções, gestos, sentimentos, pensamentos, hábitos e as maneiras de perceber a si e aos demais oferecem suporte para uma compreensão acurada acerca das relações de gênero. Nesse sentido, ganha relevância a aproximação dos estudos de gênero e a cultura visual, uma vez que as imagens desempenham um papel primordial na contemporaneidade por tocar os imaginários sociais e contribuir para a construção das visões de mundo dos indivíduos. As reflexões que possibilitam, permitem problematizar a constituição e distribuição de poder e prestígio nas sociedades.

O Dossiê II que ora apresentamos, mostra a convergência de interesses e preocupações de um conjunto de investigadoras (es), advindos de diferentes campos disciplinares, na tentativa de contemplar uma pluralidade de abordagens tendo como foco gênero, mulheres e imagem. Por isso, uma vez mais, agradecemos a generosa colaboração de todas (os).

Na continuidade das reflexões, esperamos que os resultados das inúmeras perspectivas abertas – criativas e instigantes -, contribuam para desconstruir os papéis, os lugares ocupados, como também por focalizar as funções das mulheres e dos homens ao longo da história e possa favorecer a continuidade dos debates e suas repercussões nas práticas sociais.

Neste segundo volume do dossiê, iniciamos com o artigo de Mariana de Paula Cintra. Tendo como foco o surgimento das crônicas de modas na imprensa do Rio de Janeiro oitocentista e tomando como fonte o jornal Correio das Modas, a autora discute a circulação de periódicos escritos por homens e dedicados às mulheres, no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX. Ao indagar sobre o intento dos editores, as temáticas eleitas e para quais mulheres propunha-se o jornal, em seu artigo O nascimento da moda feminina na imprensa carioca oitocentista, a autora reflete sobre a contribuição desse periódico para o surgimento da imprensa nacional e o universo complexo – e ainda pouco explorado – da produção de jornais femininos no século XIX. Ao tomar como referência a história da imprensa periódica feminina carioca apresenta-nos em que medida os meios de comunicação fizeram parte do cotidiano das mulheres, influenciando seus comportamentos, ditando regras e forjando novos papéis sociais.

A partir de uma coleção costumbrista que tematizou mulheres, produzida na década de 70 do século XIX na Espanha, Edméia Ribeiro problematiza a produção visual e as relações de gênero que caracterizam a coleção Las mujeres españolas, portuguesas y americanas. Argumenta a autora que a simbologia feminina ali presente configura-se em uma construção exclusivamente masculina, uma vez que toda a produção, desde a concepção até a execução final foi feita por homens. Dessa forma, poderemos perceber em Representar mulheres: produção visual e relações de gênero numa coleção costumbrista espanhola no final do século XIX que tanto as litografias como os textos monográficos que formam a coleção, reforçam e reverberam concepções idealizadas de mulheres no oitocentos.

A representação de mulheres no muralismo, nas décadas de 1930 e 40 na capital da Argentina, é o tema que encontraremos no artigo Detrás de escena: mujeres en los murales de Buenos Aires (1933-1946), de Cecilia Belej. Analisando fragmentos de pinturas murais realizadas em edifícios públicos e privados, percebe imagens que naturalizam papeis de gênero, nas quais a mulher figura como ícone de maternidade e complemento do homem, disseminando e/ou referendando valores tradicionais. Partindo do princípio que tais imagens possuem um propósito político, social e cultural, a autora busca compreender o que tais relatos visuais buscavam transmitir naquele momento histórico.

Em Iconografias sarcásticas na imprensa feminista brasileira: Mulherio e Chanacomchana (1981-1985), Júlia Glaciela da Silva Oliveira fez uso, em suas análises, de charges, cartuns e outras formas de humor gráfico publicados em periódicos feministas da segunda metade do século XX, mais especificamente aqueles publicados na década de 1980. Em Mulherio, a autora apresenta-nos como essa categoria de imprensa procurou, a partir da ironia e do humor, desconstruir papéis de gênero e problematizar as desigualdades naturalizadas. Ao analisar Chanacomchana, percebe que o humor ácido foi utilizado nesse periódico como método para empreender críticas direcionadas ao feminismo que, ao negar a homossexualidade, realçava a heterossexualidade reforçando a opressão às mulheres lésbicas.

Maria Júlia Zarpelão Hernandes e Mara Rúbia Sant’Anna, em A disseminação de padrões femininos através dos anúncios da Lugolina e da Juventude Alexandre na “Fon-Fon!- 1910, utilizam para as reflexões que trazem neste artigo dois anúncios de produtos de beleza destinados ao público feminino, veiculados em uma revista carioca do começo do século XX. As análises empreendidas demonstram como a publicidade, baseada no discurso da modernidade, também difundiu, reforçou e relacionou “padrões de beleza, saúde e felicidade” para as mulheres, propondo um novo modelo de feminilidade – jovem, atraente e bela – estimulando nas consumidoras o desejo de uma aparência moderna, sem, contudo, desvincular-se dos papeis de mãe e esposa, socialmente estabelecidos.

Em Representações das mulheres palestinas na perspectiva do jornalista estadunidense Joe Sacco durante a Primeira Intifada (1992-1996), José Rodolfo Vieira analisa personificações imagéticas de mulheres presentes no livro Palestine que trata das “as memórias de palestinos que estiveram direta ou indiretamente em alguma situação de conflito com as Forças de Defesa de Israel” O autor deste artigo apresenta-nos reflexões acerca de mulheres palestinas em viagem aos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza durante a Primeira Intifada Palestina, em 1987, a partir dos estereótipos femininos construídos nesta obra, como o da mulher mutilada e vítima da opressão muçulmana e também aquelas que caminham rumo à modernização, na busca por reinterpretar as relações de poder entre homens e mulheres.

Por fim, esperamos que este segundo volume contribua com estudos e pesquisas que utilizam a imagem como fonte e/ou objeto no campo da História das Mulheres, assim como aquelas que tomam as relações de gênero como categoria de análise.

Edméia Ribeiro – Doutora em História. Pesquisadora na área de História da América, mulheres e gênero. Docente do Curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]

Maria Cristina Cavaleiro – Doutora em Educação. Pesquisadora na área de educação, gênero e diversidade sexual. Docente adjunta do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) / Campus Cornélio Procópio. E-mail: [email protected]


RIBEIRO, Edméia; CAVALEIRO, Maria Cristina. Apresentação. Domínios da imagem, v. 11, n. 21, jul/dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Gênero, mulheres e imagem: diálogos interdisciplinares (I) / Domínios da Imagem / 2017

Os estudos de gênero têm impulsionado pesquisas de múltiplas áreas. Um meio de compreender os sentidos e as relações complexas entre diversas formas de interação humana, gênero se refere, conforme postulado por Joan Scott, às construções históricas, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres. Percepções, gestos, sentimentos, pensamentos, hábitos e as maneiras de perceber a si e aos demais oferecem suporte para uma compreensão acurada acerca das relações de gênero. Nesse sentido, ganha relevância a aproximação dos estudos de gênero e a cultura visual, uma vez que as imagens desempenham um papel primordial na contemporaneidade por tocar os imaginários sociais e contribuir para a construção das visões de mundo dos indivíduos. As reflexões que possibilitam, permitem problematizar a constituição e distribuição de poder e prestígio nas sociedades.

O Dossiê que ora apresentamos, mostra a convergência de interesses e preocupações de um conjunto de investigadoras (es), advindos de diferentes campos disciplinares, na tentativa de contemplar uma pluralidade de abordagens tendo como foco gênero, mulheres e imagem. Por isso, agradecemos a generosa colaboração de todas (os).

Esperamos que os resultados das inúmeras perspectivas abertas – criativas e instigantes -, contribuam para desconstruir os papéis, os lugares ocupados, como também por focalizar as funções das mulheres e dos homens ao longo da história e possa favorecer a continuidade dos debates e suas repercussões nas práticas sociais.

Abrimos este dossiê apresentando o diligente ensaio de Ana Cristina Teodoro da Silva, Gênero como sertão, veredas em construção – filme, minissérie e livro. Em seu texto encontraremos reflexões acerca de papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres e suas relações, presentes no livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956, e nas produções adaptadas desta obra, quais sejam, a minissérie Grande Sertão: Veredas, produzida pela Rede Globo, exibida em 1985 e o filme Grande Sertão, dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, de 1965. Em sua viagem pelas três narrativas, problematiza semelhanças, diferenças e ressignificações pertinentes às diferentes linguagens e a como cada período e cada mídia puderam configurar a rica trama rosiana.

Lançando mão do movimento de trazer o gênero ao contexto da imagem, em Poéticas de gênero e a transexualidade das fotografias bordadas, Marcela Vasco empreende uma aproximação entre os estudos da transexualidade e a antropologia da imagem. A transexualidade é entendida ao longo de todo o trabalho não como uma performance teatral onde o gênero é encenado, mas como transformações físicas, sexuais, sociais e políticas. Ao trabalhar com imagens tornando mais claro trajetórias de vida e de transição dos(as) interlocutores(as) e também a maneira como a fotografia era interpretada por eles(as), a autora recorre ao uso do bordado como método etnográfico, visando uma abordagem mais particular tanto da transexualidade quanto da imagem, e discute as potencialidades dos “encontros, contornos e emaranhados das linhas que as ligam”.

No artigo de Amaral Palevi Gómez Arévalo, Identidades en disputa: producciones audiovisuales LGBTI en El Salvador, encontraremos análises de produções audiovisuais salvadorenhas que tematizam as representações de identidades lésbicas, gays, bisexuais, trans e intersexuais. O autor preocupase em refletir sobre “los procesos de violencia que se instauran sobre determinados cuerpos por ejercer una sexualidad, identidad y expresión de género diferentes a las que ordena la norma heterossexual”. Para isso trouxe análises de documentários que narram a vida de pessoas que vivem em El Salvador assim como alguns curtas produzidos por diversos canais e organizações que abordam realidades LGBTI. Entre as narrativas e linguagens que analisa também estão as campanhas publicitárias de conscientização e fim da discriminação, e os áudios, como canções, “radio-conto” e publicidades divulgadas por este meio. Trata-se de trabalho que nos permite conhecer e refletir sobre as realidades desses indivíduos, as manifestações de discriminação das pessoas salvadorenhas e as respectivas formas de enfrentar tais questões.

Scripts juvenis delineados em imagens digitais: consumo, relações de gênero e sociabilidades, de Ana Carolina Sampaio Zdradek e Dinah Quesada Beck, nos contempla com debate que se insere no campo dos Estudos Culturais e de Gênero. Recorrendo ao movimento metodológico da etnografia e entendendo a linguagem como processo central nas cenas publicitárias da campanha “Fanta – Leva na boa”, o estudo coloca em tensionamento o modo como se movimentam normas, definições e compreensões a partir da construção de identidades descolada e alto astral produzidas. Resgatando os desdobramentos teórico-conceituais com relação aos scripts de gênero e sexualidade, as autoras analisam a representação de juventude e as sociabilidades que a comunicação digital proporciona na história do presente, ressaltando que a participação ativa de jovens nas redes sociais se mostrou a principal estratégia para efetivação do consumo e, nesse cenário, diferentes roteiros foram construídos para vivências jovens, os quais acionam efeitos de sentido sobre comunicação digital, gênero e relações sociais.

Priscila Miraz de Freitas Grecco, analisa a presença de fotógrafas amadoras brasileiras, durante as décadas de 1940 e 1950. Seu artigo, A presença feminina em fotoclubes no século XX: apontamentos preliminares, historiciza a participação das mulheres nos fotoclubes, especialmente no Foto Cine Clube Bandeirante, atuante na cidade de São Paulo desde 1939, e analisa a produção das mulheres fotoclubistas, suas trajetórias, as condições de produção de projetos pessoais das amadoras e profissionais que buscaram o fotoclube para pensar e produzir a fotografia. Nesse contexto, a autora nota as dificuldades para o desenvolvimento da pesquisa com as mulheres nos fotoclube, assinalando que a escassez de documentação sobre quem eram essas mulheres contribui para pouco sabermos sobre como era ser sócia de um clube de fotografia nos anos de 1940/1950 no Brasil. Suas análises reiteram a necessidade de trazer à tona a participação das fotógrafas nesse ambiente que se manteve por muito tempo majoritariamente masculino e de romper um silêncio que se relaciona muito mais com as questões de gênero, refletindo no comportamento social restritivo para as mulheres na sociedade como um todo, do que com qualquer questão que envolva o fazer fotográfico.

A relação mulher/fotografia também é o tema que nos apresenta Maria Cristina Pereira em O Revivalismo medieval pelas lentes do gênero: as fotografias de Julia Margaret Cameron para a obra The Idylls of the King e outros poemas de Alfred Tennyson. A partir das fotografias de Cameron, produzidas no século XIX, para compor o livro de poemas de Alfred Tennyson, e também de ilustrações feitas para outras obras desse mesmo poeta, a autora nos mostra em suas análises o pioneirismo de uma mulher na arte da fotografia, com uma estética “pouco convencional” ao apresentar imagens “fora de foco”, assim como a predominância de mulheres para retratar o período medieval como tema das suas produções. Destacando a peculiaridade das fotografias de Cameron, o estudo traz comparações com aquelas produzidas pelo ilustrador francês Gustave Doré, seu contemporâneo.

Também tendo como referencial teórico os Estudos Culturais e de Gênero, o artigo de Luciana Rodrigues de Oliveira e de Joanalira Corpes Magalhães Esse é o Show da Luna: investigando gênero, ensino de ciências e pedagogias culturais, traz como objeto de análise o desenho animado. Ao investigarem as potencialidades pedagógicas do desenho analisado e as falas das crianças participantes acerca do artefato cultural O Show da Luna, as autoras discutem e problematizam os entendimentos sobre o que é ciência, sobre o ser cientista e mulheres na ciência que as crianças têm. No bojo dessa discussão, uma das questões fundamentais debatida é a possibilidade de abordar gênero e ciência desde a Educação Infantil, respondendo às crianças e aos questionamentos presentes em seu cotidiano.

Trazendo questões bastante contemporâneas e efervescentes no campo da política, em Impeachment, perversão e misoginia são apresentadas considerações acerca das representações veiculadas pelas Revistas Veja e Isto É, nos anos de 2015 e 2016, por meio de textos e imagens, referentes ao processo de impeachment de Dilma Roussef, presidente da República do Brasil naquele momento. Muriel Emídio Pessoa Amaral e José Miguel Arias Neto partem do princípio de que a forma como algumas mensagens sobre a presidente foi veiculada configurou-se em montagens perversas, sendo que tais narrativas políticas contribuíram para a midiatização do ódio e da misoginia. Para empreender tais reflexões trabalharam com a definição de discurso de Michel Foucault, de gênero com Joan Scott e o conceito de perversão de Daniel Sibony.

Desejamos boa leitura a todos/as!

Edméia Ribeiro – Doutora em História. Pesquisadora na área de História da América, mulheres e gênero. Docente do Curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]

Maria Cristina Cavaleiro – Doutora em Educação. Pesquisadora na área de educação, gênero e diversidade sexual. Docente adjunta do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) / Campus Cornélio Procópio. E-mail: [email protected]


RIBEIRO, Edméia; CAVALEIRO, Maria Cristina. Apresentação. Domínios da imagem, v. 11, n. 20, jan/jun, 2017. Acessar publicação original [DR]

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