The sins of the nation and the ritual of apologies – CELERMAJER (FU)

CELERMAJER, D. The sins of the nation and the ritual of apologies. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.340-342, set./dez., 2010.

Qual o lugar e o papel da desculpa coletiva nas práticas das democracias liberais modernas? Uma primeira resposta, mais clássica, diria que tal prática não tem lugar ou papel algum. Não teria lugar algum, dado que pedidos de desculpas precisariam ser feitos por indivíduos, e não teria papel algum, dado que os erros do passado seriam assunto do judiciário.

No entanto, têm se visto democracias liberais pedindo desculpas coletivas por crimes e atrocidades cometidos no passado contra indivíduos com identidades sociais bem marcadas. Por exemplo, nações europeias pediram desculpas aos judeus pelo Holocausto, e às nações dos novos mundos pelas violações contra populações locais nos passados colonial e pós-colonial. Essas demonstrações de arrependimento não são bem explicadas pela concepção clássica de democracia liberal. Mas, para Celermajer, isso não é motivo para rejeitá-las, e sim para se repensar a democracia liberal moderna e descrever de maneira acurada suas atuais bases normativas.

A tese fundamental de Celermajer é que a normatividade das democracias liberais é constituída por duas camadas, por assim dizer. Há uma camada mais superficial e manifesta, a qual é composta por indivíduos que são responsabilizáveis pelos seus atos individuais, de acordo com leis positivas ou normas socialmente aceitas. E há uma camada mais profunda, composta pelo regramento de base da coletividade. Para Celermajer, a desculpa coletiva passou a ter lugar nas democracias liberais, a partir dos anos 1970s e 1980s, porque passou a haver reconhecimento de que indivíduos de minorias sofreram genocídio ou segregação por causa do regramento de base, o qual possibilitou as práticas legitimadas de genocídio ou segregação por indivíduos da maioria.

Apesar de serem um fato, as desculpas não são suficientes, para Celermajer, para redimir as coletividades pelos seus erros passados. Seria ofensivo às vítimas e aos seus descendentes tomar uma mera performance verbal como o suficiente para se fazer justiça. No entanto, o pedido de desculpas coletivas, na medida em que é um reconhecimento da falha das bases normativas anteriores, abre espaço para a justiça e se mostra como um importante indicador de modificação normativa positiva da sociedade.

Os pedidos coletivos de desculpas fazem parte de um kit de modos de lidar com os abusos cometidos no passado, nas democracias liberais modernas. Outras modalidades são as comissões da verdade e as reparações. Enquanto as comissões da verdade buscam trazer à luz os abusos cometidos no passado, e as reparações buscam trazer equidade aos descendentes de injustiçados, as desculpas coletivas são performances que manifestam o arrependimento daquele que fala. No caso, o que temos é um representante reconhecido de uma coletividade, como um presidente ou ministro, falando pela instituição que representa, e o arrependimento em questão é o da instituição, através da manifestação de arrependimento do representante. Para Celermajer, no caso usando as ferramentas conceituais de John Austin contra ele mesmo, um pedido de desculpas não é a mera expressão de um sentimento, mas sim o comprometimento daquele que se desculpa com um certo modo de ser, com certa identidade. Ou seja, usando o jargão técnico, no caso o ato de fala “Por favor, nos desculpe” é comissivo, não comportamental. Aquele que pede desculpas está manifestando que se comprometeu com uma maneira de ser diferente daquela que tinha antes, o que quer dizer que quem se desculpa está manifestando remissão, mudança na identidade, autoaperfeiçoamento e a esperança de um futuro distinto do passado.

Uma boa parte do livro de Celermajer responde à crítica de que a desculpa não tem lugar nas democracias seculares por ser uma figura da pré-modernidade teológica e teocêntrica. Essa crítica tem dois elementos. Primeiro, diz que toda responsabilidade é individual, nenhuma responsabilidade é coletiva. Segundo, diz que em democracias seculares tudo o que há é justiça enquanto prática judiciária apoiada em leis estabelecidas pelo legislativo, não havendo lugar para o arrependimento. Celermajer apresenta uma resposta única para essas duas críticas: as democracias seculares modernas são capazes de reconhecer que seus arcabouços seculares passados levaram a injustiças praticadas por indivíduos contra membros de minorias, e tal reconhecimento é a base para que a própria instituição lamente ter sido como foi e busque ser e agir de outra forma no futuro, através da modificação do seu arcabouço normativo. Tal lamento e arrependimento têm lugar na democracia secular liberal moderna, porque faz parte da identidade da mesma a busca das melhores bases normativas, de modo que o reconhecimento da falha nas bases normativas do passado, e das suas graves consequências, é um modo por excelência de satisfazer tal busca. A desculpa coletiva, enquanto modo de lidar com o passado, é um comprometimento com uma base normativa mais sólida e justa, no presente e no futuro.

Assim, o papel da desculpa coletiva é a demonstração do comprometimento, da parte de uma coletividade ou instituição, com um futuro mais sólido, do ponto de vista normativo, do que o passado. De modo que a desculpa coletiva não está aí para condenar e punir a sociedade passada como um todo, o que seria absurdo. Tudo o que segue da desculpa coletiva é um compromisso com a mudança normativa.

A entrada da desculpa coletiva como modalidade de ato de fala típico das democracias liberais modernas é o retorno de uma prática linguística religiosa e pré-moderna, visto que tal tipo de performance não era um elemento da concepção clássica de democracia e era, nas modalidades do perdão e do arrependimento, típica do judaico-cristianismo. Mas, para Celermajer, o mero fato do tipo de performance ser pré-moderno não é suficiente para rejeitá-lo como elemento da democracia moderna. Assim como houve mudança entre o mundo heterônomo e feudal e o mundo autônomo e moderno, há mudança entre o mundo moderno da responsabilidade meramente individual e o mundo moderno da responsabilidade individual e coletiva, sendo que elementos religiosos e pré-modernos explicam, em larga medida, a moderna responsabilidade coletiva, ao menos no que diz respeito aos pedidos de desculpa coletivos.

Poderíamos perguntar de que vale uma desculpa, isto é, uma mera voz, ante atrocidades e discriminações. De maneira incisiva, Celermajer mostra que vale muito, visto que um pedido de desculpas é uma nova ação, no presente. A desculpa insere algo novo na coletividade e, no caso, insere algo que não era típico do passado coletivo, visto que se trata, justamente, de um arrependimento ante as injustiças cometidas e mesmo estimuladas pelas bases normativas do passado. Assim sendo, a desculpa amplia o leque de ações típicas das democracias liberais, as quais passam a ter o ato de fala performativo como uma das suas possibilidades, além das intervenções legais e institucionais.

O questionamento do papel da desculpa nas democracias liberais modernas poderia ir adiante, questionando as bases e apoios do pedido de desculpas. É fácil estabelecer as bases normativas do pedido de desculpas do fiel, na tradição judaico-cristã, pois esse se apoia em Deus, o absoluto. No entanto, dado que as democracias modernas se apoiam apenas nas regras que os homens de fato deram para si mesmos, esse caminho está fechado. A solução de Celermajer a tal problema é pôr em evidência que as democracias modernas se apoiam em diversos substitutos do absoluto teológico, como, por exemplo, os direitos universais e cláusulas pétreas constitucionais. Aqui divirjo de Celermajer, pois me parece que a democracia liberal não precisa desses procuradores seculares do absoluto, dado que está nas suas bases, ao menos desde o Contrato social de Rousseau, a distinção entre fato e direito. A solução clássica para tal tipo de problema é apoiar o arrependimento nas bases normativas com as quais a sociedade se compromete, as quais são reconhecidas como as normas de direito legítimas, ao mesmo tempo em que se reconhecem e se denunciam as normas de fato do passado como ilegítimas. Assim, não me parece que seja preciso usar o recurso de preservar a forma da desculpa no mundo teocrático, abandonando sua substância, visto que há mudança na forma da desculpa: sua base já não é o absoluto, mas sim o direito, em oposição ao fato. Imagino que alguns diriam que o direito é outra modalidade secular do absoluto, mas eu espero pelo argumento.

César Schirmer dos Santos – Instituto de Desenvolvimento Cultural. Porto Alegre, RS, Brasil E-mail: [email protected]

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