Leibniz: A very short introduction – ANTOGNAZZA (FU)

ANTOGNAZZA, M.R. Leibniz: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2016. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Uma introdução atualizada a Leibniz. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.3, p.390-391, set./dez., 2016.

Leibniz escreveu tanto que levará muito tempo até que sejam finalmente publicadas suas obras completas. Otimistas falam em décadas, pessimistas falam em séculos. Levando isso em conta, tudo o que podemos fazer é apresentar um retrato das obras de Leibniz a partir do material disponível. É exatamente isso o que a professora Maria Rosa Antognazza faz nesse pequeno e poderoso livrinho.

Maria Rosa Antognazza é professora do King’s College de Londres. No seu currículo encontramos artigos como “The hypercategorematic infinite” (2015) e “Primary matter, primitive passive power, and creaturely limitation in Leibniz” (2014), além de livros como Leibniz: An intellectual biography (2008) e Leibniz on the Trinity and the incarnation: Reason and revelation in the seventeenth century (2007).

O livro é muito bem organizado. O capítulo 1 trata da biografia de Leibniz. Tal como Spinoza, Leibniz teve que trabalhar para sobreviver. Jurista por formação, Leibniz trabalhou como diplomata e também como engenheiro de minas, entre tantas outras atividades. Tal amplitude no espectro de ofícios foi possível por causa da enorme curiosidade de Leibniz, mas também por sua genialidade e brilhantismo. Nas horas vagas, e também em horas, dias e anos em que ele deveria est ar se ocupando das tarefas a ele delegadas pelos seus exasperados empregadores, Leibniz deu contribuições decisivas à física, à matemática e à filosofia.

O capítulo 2 trata da lógica de Leibniz. Aqui vemos o quanto Leibniz foi importante para o desenvolvimento da ciência da computação. Em uma Europa fragmentada por guerras religiosas, Leibniz propôs que decidíssemos disputas religiosas, e quaisquer diferenças de opinião, através do cálculo. Para isso, seria preciso identificar os conceitos fundamentais, aqueles que compõem outros conceitos e que fazem parte das opiniões, e defini-los com precisão. Uma vez feito isso, poderíamos usar uma máquina – um análogo do ábaco, por exemplo – para calcular quem tem razão em uma disputa. Este projeto não foi realizado por Leibniz, e nós sabemos por quê. É preciso uma linguagem que a máquina entenda, e um meio da máquina passar das informações fornecidas a conclusões. Ora, é isso o que temos com nossas linguagens de programação e nossos processadores digitais. Isso Leibniz não tinha como produzir, mas vislumbrou.

O capítulo 3 trata dos projetos de enciclopédias e academias de ciências propostos por Leibniz. A Alemanha da virada dos séculos XVII-XVIII era um conjunto de “cidades-est ado” relativamente independentes. Algumas dessas unidades políticas eram suficientemente grandes para abrigar as universidades requeridas para formar os trabalhadores especializados, outras se viravam de outras maneiras. Uma dessas maneiras era o ensino através de enciclopédias, o que deu a Leibniz a ideia de uma enciclopédia organizada não em ordem alfabética, mas sim na ordem das razões. Primeiro os conhecimentos fundamentais, depois aqueles que imediatamente se seguem desses, e depois o campo aberto de conhecimentos que se seguem do que já foi descoberto. Essa proposta est á de acordo com a visão de Leibniz da pesquisa científica como uma tarefa coletiva, a qual requer instituições com financiamento garantido, o que levou Leibniz a propor imposto sobre o consumo de cigarro como meio de gerar recursos para a pesquisa.

Os capítulos 4-9 tratam da metafísica de Leibniz. Os capítulos 4-5 tratam de três elementos da metafísica de Leibniz: o princípio de identidade, o princípio de não contradição e o princípio da identidade dos indiscerníveis. Leibniz desdobra o princípio de identidade, segundo o qual A = A, em uma concepção na qual, seja qual for a verdade que se apresente, essa verdade é tal que o predicado est á contido no sujeito. No caso de algumas verdades da forma gênero-espécie isso é fácil de aceitar, pois parece analítico que ouro é um mineral, alface é um vegetal e baleia é um animal. Nesses casos, entender a definição do sujeito da frase é suficiente para se ver que a frase é verdadeira, pois visivelmente o predicado est á incluído no sujeito. Mas Leibniz defende que as verdades descobertas pelas observações de fatos empíricos também são assim. Tomemos uma verdade do tipo espécie-indivíduo, como Judas traiu Jesus Cristo. Não parece que o predicado esteja incluído no sujeito. Mas, para Leibniz, assim é, pois a propriedade de ter traído Jesus Cristo faz parte da identidade de Judas. Se Judas não tivesse traído Jesus Cristo, Judas não seria Judas. Dizer que Judas não traiu Jesus Cristo, então, seria mais do que enunciar uma falsidade, pois seria violar o princípio de não contradição, pois seria uma negação de uma instância de A = A.

O capítulo 6 trata da noção de realidade de Leibniz. Real, para Leibniz, é Deus, antes de tudo. O que quer que esteja na mente de Deus é real, e tudo o que é possível est á na mente de Deus, pois Deus só não pensa o que fere o princípio de não contradição, e o que não fere o princípio de não contradição é possível. Ou seja, o domínio do real é o domínio do possível. O domínio da existência é mais restrito, pois os únicos possíveis que são criados são aqueles que formam o melhor conjunto de compossíveis.

Os capítulos 7-8 tratam da questão da atividade da substância. Nenhum ser humano tem como conhecer cada um dos predicados que fazem com que Judas seja o indivíduo que ele é, pois é uma questão de fato se Judas fez isso ou aquilo, e nós só podemos saber disso através da história. Mas podemos conhecer duas coisas sobre qualquer substância individual, incluindo Judas. Primeiro, que cada substância tem cada um dos seus atributos, pois do contrário seria uma substância diferente daquela que é, se é que seria uma substância. Segundo, que cada substância individual é um princípio de ação, pois, do contrário, não seria uma substância. Leibniz concorda com Spinoza que toda substância age, mas conclui disso que nós agimos, em vez de concluir que não somos substâncias.

O capítulo 9 trata do atual est ado do debate sobre a filosofia de Leibniz. A principal questão que ocupa os especialistas em Leibniz é o estatuto ontológico do corpo na filosofia madura de Leibniz. Há dois problemas centrais. O primeiro problema é saber se, na fase final da sua investigação, Leibniz chega a uma noção estável e coerente de corpo. Há razões para duvidar disso. É possível que, pouco antes de morrer, Leibniz estivesse experimentando diversas posições, sem se comprometer com uma ou outra. O segundo problema é o que seria o corpo, para Leibniz, se for possível apresentar sua filosofia madura como uma proposta completa e coerente. Há duas posições. De acordo com a leitura idealista, Leibniz trata os corpos como meros fenômenos. De acordo com a leitura realista, Leibniz trata os corpos como entes com lugar na realidade criada e existente. A posição realista tem ganhado terreno, como podemos ver no artigo “Leibniz acerca de almas, corpos, agregados e substâncias na discussão com Fardella (1690)”, de Edgar Marques (2010), professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mas ainda há muito o que ser debatido.

Em resumo, est a breve introdução à vida e obra de Leibniz traz os elementos básicos para que o público visado conheça o fundamental da filosofia de Leibniz de acordo com o est ado atual da pesquisa. Estudantes e professores de graduação têm bastante a ganhar com essa leitura.

Referências

ANTOGNAZZA, M.R. 2015. The hypercategorematic infinite. The Leibniz Review, 25:5-30.

ANTOGNAZZA, M.R. 2014. Primary matter, primitive passive power, and creaturely limitation in Leibniz. Studia Leibnitiana, 46(2):167-186.

ANTOGNAZZA, M.R. 2008. Leibniz: An intellectual biography. Cambridge, Cambridge University Press, 653 p.

ANTOGNAZZA, M.R. 2007. Leibniz on the Trinity and the incarnation: Reason and revelation in the seventeenth century. New Haven, Yale University Press, 349 p.

MARQUES, E. 2010. Leibniz acerca de almas, corpos, agregados e substâncias na discussão com Fardella (1690). Kriterion: Revista de Filosofia, 51(121):7-20. https://doi.org/10.1590/s0100-512×2010000100001

César Schirmer dos Santos – Universidade Federal de Santa Maria. Departamento de Filosofia. Cidade Universitária. Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Semântica formal: uma breve introdução – PIRES OLIVEIRA (D)

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas: Mercado de Letras, 2012. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Semantics for philosophers. Dissertatio, Pelotas, v.39, 2014.

Semântica para filósofos

Quem trabalha com filosofia analítica na graduação e na pósgraduação já deve ter se deparado diversas vezes com a dificuldade dos alunos de entenderem as noções de significado, sentido, referência, extensão, intensão, dêixis, anáfora, quantificação e modalidades, além de muitas outras relacionadas. Estas são noções técnicas que precisam ser dominadas pelos alunos que exploram os textos de ou sobre Frege, Davidson, Putnam e muitos outros. Esse problema requer uma solução que capacite os estudantes sem ocupar muito tempo dos cursos, e isto pode ser feito através da semântica formal.

Semântica formal, de Roberta Pires de Oliveira, é uma ótima introdução às ferramentas típicas da abordagem verifuncional do significado.O capítulo 1 faz uma cuidadosa distinção entre aquilo que é pesquisa do significado (a semântica) e aquilo que é pesquisa do ser (a metafísica), detalhando as principais diferenças da semântica verifuncional em relação a outras abordagens, como por exemplo a semântica cognitiva de Lakoff.

Como é típico dos principais manuais de semântica formal – como Knowledge of meaning, de Richard K. Larson e Gabriel Segal (Cambridge, USA: The MIT Press, 1995); Semantics in generative grammar, de Irene Heim e Angelika Kratzer (Oxford: Blackwell, 1998) e a Semântica de Gennaro Chierchia (Campinas: Unicamp, 2003) –, o capítulo estabelece os vínculos entre as ferramentas da linguística gerativa de Chomsky com o cálculo de predicados da lógica do século 20, estabelecendo uma ponte entre as pesquisas filosóficas e as abordagens empíricas da linguagem através da teoria da verdade de Tarski.

O capítulo 2 trata do clássico problema da criatividade dos falantes. Somos capazes de proferir e de reconhecer frases inéditas, o que só pode ser © Dissertatio [39] 283 – 285 inverno de 2014 César Schirmer dos Santos 284 explicado economicamente pela hipótese de que empregamos um conjunto finito de regras recursivas na fala e na escuta, o que nos leva à imagem da linguagem como um conjunto de regras acompanhada de um léxico. Quanto à significação, isto abre espaço para a distinção entre a referencialidade a objetos dos elementos subsentenciais, como os sintagmas nominais e verbais, e a referencialidade a valores de verdade das sentenças. O capítulo também discute as visões holista e atomista do significado.

O capítulo 3 trata da distinção fregueana entre sentido e referência, a qual é fundamental para a análise semântica dos contextos intensionais ou opacos, nos quais não se pode trocar sinônimos sem correr o risco de mudar o valor de verdade das sentenças. Nos contextos extensionais, o significado está ancorado no mundo atual, mas o mesmo não se dá nos contextos intensionais, nos quais a “referencialidade” está ancorada em outros mundos.

No caso específico do pensamento, a distinção fregueana permite que se dê conta daquilo que um outro compreende a partir da sua perspectiva, o que é fundamental para que se possa tratar do significado sem sofrer os embaraços típicos de uma teoria referencialista muito crua.

Os capítulos 4 e 5 mostram, de maneira direta e concisa, pra não dizer exemplar, como as ferramentas do cálculo de predicados são úteis para a investigação do significado. Através desses capítulos, estudantes de filosofia da linguagem e filosofia da mente podem se capacitar para ler textos já clássicos da filosofia analítica dos últimos cinquenta anos. No capítulo 4 se mostra como lidar com predicados e com nomes próprios. No capítulo 5 se mostra como este modelo é incapaz de lidar com pronomes dêiticos ou anafóricos, os quais são usados para explicar o papel dos quantificadores.

Através dessas ferramentas, a autora apresenta os fundamentos da teoria das descrições definidas de Russell e alguns elementos da polêmica entre este autor e P. F. Strawson.

Por fim, o capítulo 6 apresenta os fundamentos da semântica dos mundos possíveis, mostrando como as ferramentas da semântica extensional pode ser usadas em semântica intensional para dar conta das noções modais de necessidade/possibilidade, dever/poder e saber/crer.

Além do conteúdo, cada capítulo traz um conjunto de exercícios. O ponto baixo do livro são os exemplos datados. “A presidente do Brasil” quiçá soasse esquisito em 2001, mas hoje é uma descrição definida com referência. Há também uma série de erros tipográficos que, apesar dos méritos da publicação, é ponto contra a editora Mercado de Letras, que deveria ter feito um trabalho mais cuidadoso de editoração. Mesmo assim, trata-se de um livro de primeira importância para a pesquisa e o ensino acadêmicos em filosofia analítica no Brasil.

César Schirmer dos Santos – Universidade Federal de Santa Maria.

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Reference and existence: the John Locke lectures – KRIPTE (M)

KRIPTE, Saul A.. Reference and existence: the John Locke lectures. [?]: Oxford University Press, 2013, xiii + 170p. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Manuscrito, Campinas, v.36 n.2 July/Dec. 2013.

Após quarenta anos, as conferências John Locke de 1973, proferidas por Saul Kripke entre o final de outubro e o início de dezembro daquele ano, foram finalmente publicadas pela Oxford University Press. Durante todo este tempo, essas conferências circularam entre alguns poucos felizardos na forma de cópias de cópias de cópias. Agora, esse trabalho seminal está finalmente disponível ao merecido público mais amplo.

As conferências John Locke de 1973 de Kripke tratam exatamente dos conceitos que dão título ao livro: referência e existência. Nessas conferências, Kripke desenvolve, estende e elabora ideias que haviam sido apresentadas nas conferências de 1970, sobre referência e identidade, que foram posteriormente publicadas sob o título Naming and necessity.

A principal contribuição das conferências de Kripke de 1973 está no tratamento da semântica dos termos singulares e dos substantivos vazios, como “Hamlet”, “Zeus” e “unicórnio”. Para tanto, Kripke inicia revisando o estado da semântica, desde Frege e Russell até Donnellan. Frege e Russell viram “existir” como um verbo que é usado legitimamente em predicados de segunda ordem. Assim, eles viram a existência como uma propriedade de propriedades, não de coisas singulares, pois não há razão para se usar um predicado que não pode ser falso de coisa alguma, como Russell defende em A filosofia do atomismo lógico, e Frege defende em “Função e conceito” (p. 6-7).

Kripke não concorda com essa visão. Para ele, é legítimo atribuir existência a indivíduos, pois é inteligível que se diga que algo existe ou não (p. 36). Isso não quer dizer, contudo, que Kripke defenda que a existência é uma propriedade de primeira ordem, pois ele simplesmente não trata a existência como uma propriedade. Para apresentar esse ponto, precisamos partir da sua semântica da ficção e do discurso mitológico.

Para Kripke, os quantificadores da linguagem comum atravessam o domínio de entidades fictícias ou mitológicas. Isso não quer dizer, no entanto, que essas entidades são reais num sentido meinonguiano. Em vez disso, o ponto é que se trata de uma questão empírica descobrir se essas entidades existem ou não, pois se há, na ficção ou mitologia, um personagem fictício mitológico que faz, na ficção ou mitologia, tal e tal coisa, então esse personagem existe, dado que a ficção ou mitologia dá existência ao personagem (p. 71). Assim, Kripke não defende que a existência é uma propriedade. Tudo o que ele diz é que, através da ficção ou da mitologia, se inventa entidades as quais se pode atribuir propriedades (p. 146). Por exemplo, o personagem Huckleberry Finn existe, pois há obras de Mark Twain que lhe dão existência. De modo que a existência desse personagem é uma questão empírica, bem diferente do que se dá quanto à existência de entidades matemáticas, e bem diferente da proposta de Meinong de atribuir aos entes fictícios um tipo diferente de realidade (p. 72). Um personagem de ficção é uma entidade abstrata que existe em virtude de atividades concretas, no caso narrativas. O caso é análogo ao da existência de nações, as quais existem em virtude de relações concretas entre as pessoas. O que torna verdadeiros os enunciados sobre as nações são as atividades das pessoas. De maneira análoga, o que torna verdadeiros os enunciados sobre personagens fictícios são as atividades dos narradores, pois personagens fictícios não são entidades meinonguianas que existem automaticamente, pois só existem por causa das atividades dos narradores. E, é claro, um personagem fictício não é uma pessoa, de modo que Sherlock Holmes não foi e não deveria ser contado no censo dos habitantes de Londres, pois há diferenças entre entes fictícios e entes não-fictícios (p. 73-74). Em cada caso, o teste de realidade é ligar o verbo existir a uma propriedade, de preferência um sortal. Tome o sortal “pessoa”, querendo dizer uma pessoa de carne e osso. Levando em conta esse sortal (e desconsiderando acasos históricos), a frase “Existiu na Dinamarca um príncipe chamado ‘Hamlet’” é falsa. Agora tome o sortal “personagem teatral”. Nesse caso, a frase “Existiu um personagem teatral chamado ‘Hamlet’” é verdadeira (p. 150). Essas duas questões fazem sentido, o que estabelece a legitimidade de se tomar a existência como algo que se pode atribuir a indivíduos, sem no entanto se estabelecer com isso que a existência é uma propriedade, pois Russell tem razão ao dizer que uma propriedade legítima não é verdadeira de todas as coisas. O que se dá é justamente que algo se apresenta como quantificável, e ser quantificável não é possuir uma propriedade, mas sim estar aí para receber propriedades.

Em suma, Kripke defende que tudo aquilo que é quantificável existe, sem que a existência seja uma propriedade. Além disso, se algo existe (é quantificável), e é designado, então há referência. De modo que designadores de indivíduos fictícios ou mitológicos não são vazios. Não é o caso que “Hamlet” não tem referência, mas sim que com “Hamlet” o autor pretende que há uma referência, e através de tal pretensão se estabelece uma referência, pois essa referência de faz de conta é um tipo de referência, de modo que na teoria de Kripke é errado dizer que “Hamlet” é um nome vazio (p. 103). Assim, é errado dizer que o nome “Hamlet” não designa nada, pois designa alguma coisa, não no mundo real, nem em um mundo meinonguiano, mas sim uma entidade abstrata que ganha existência através da narrativa de Shakespeare, e a qual se pode dar propriedades (p. 78).

A teoria esboçada acima tem inúmeros detalhes que não podem ser apresentados nessa resenha, além de diversos complicadores. Uma complicação é um certo duplo uso da predicação, pois podemos dizer que Hamlet é um personagem muito debatido, e também que Hamlet era melancólico. O predicado “é um personagem muito debatido” leva em conta o personagem Hamlet, enquanto o predicado “era melancólico” leva em conta o que se dá na narrativa, e a confusão entre esses predicados traz ruído à teoria semântica (p. 74).

Há também problemas relacionados à identidade das entidades mitológicas. Zeus e Júpiter eram o mesmo deus? Empregando a proposta já presente em Naming and necessity, isso depende das origens dos seus respectivos panteões. Caso as origens sejam independentes, são dois deuses diferentes, caso contrário, são o mesmo deus. O importante é que essas questões sobre a identidade de entidades fictícias ou mitológicas se respondem com investigações empíricas, no caso pesquisas históricas (p. 77). Algo análogo vale para predicados vazios que se suspeita possuidores de extensão no mundo real, pois para provar que unicórnios existem é preciso provar que há conexão histórica entre os bichos que satisfazem a descrição e o mito que nos foi legado (p. 50).

Outro ponto explorado na obra, mas ao qual apenas farei menção, sem explorar minimamente, é a semântica dos substantivos. Nisso se mantém o paralelismo com Naming and necessity, pois quanto a essa obra é muito discutida a questão de se a teoria da designação rígida, pouco discutível no caso dos nomes próprios, como “Túlio” ou “Cícero”, pode ser estendida ao caso dos substantivos, como “ouro” ou “tigre”. Sem nos aprofundarmos na questão, indico apenas que, na obra que resenhamos, Kripke considera o discurso sobre predicados vazios é tão problemático quanto o discurso sobre nomes vazios, e digno de soluções análogas (p. 43).

Nas palestras mais adiantadas, Kripke propõe aplicações da sua teoria a outras áreas da filosofia, como a epistemologia. Em suma, Kripke propõe a seguinte analogia: o discurso histórico sobre um personagem real está para o discurso fictício sobre um personagem real de maneira análoga ao modo como as propriedades reais de um objeto estão para as propriedades percebidas perspectivamente desse objeto. Apresentarei os elementos centrais dessa proposta, adiantando apenas que, na melhor das hipóteses, o que Kripke nos apresenta é insuficiente para estabelecer a analogia.

Kripke apresenta uma analogia entre sense data e personagens fictícios que funciona da seguinte maneira. Algumas pessoas reais, como Napoleão, também são personagens de filmes e outras obras de ficção. Assim, podemos dizer dessas pessoas que elas têm propriedades que podem ser descobertas pelos historiadores, e também que certos narradores lhes atribuíram outras propriedades, deixando claro que se tratava de propriedades fictícias. Algo análogo se daria com os sense data. Uma casa, vista de longe ou de perto, tem as mesmas propriedades, isto é a mesma altura, área etc. Mas a percepção dessa casa por uma pessoa que se aproxima tem outras propriedades, pois se pode dizer que se trata de algo que fica cada vez maior. A propriedade de crescer pertence à casa na percepção, assim como certas propriedades pertencem a Napoleão na ficção (p. 98-99). Assim, pela analogia de Kripke, o contexto perceptual possibilita que se atribua certas propriedades a coisas reais, tal como se dá quando fazemos ficção sobre coisas reais. O caso das alucinações seria diferente, pois aqui haveria analogia com o caso no qual se tem um personagem fictício desde o início. Por exemplo, minha prima Josefina alucina um fantasma. Se é assim, então há um fantasma na alucinação, assim como há um personagem na ficção (p. 99).

Creio que a proposta de Kripke para o caso da percepção poderia ser estendida para o caso da memória, pois se uma coisa é o objeto percebido, e outra coisa (igualmente existente) é o objeto na percepção (o qual seria análogo a um personagem de ficção), então uma coisa é o objeto lembrado, e outra coisa (igualmente existente) seria o objeto na memória (o qual também seria análogo a um personagem de ficção). Mas tenho dúvidas sobre o quanto esta proposta nos ajuda a entender a percepção, a memória e outros estados epistêmicos.

Em outras conferências, Kripke apresenta sérias reservas ao modo como Keith Donnellan analisa as descrições definidas. Como é bem-sabido, Donnellan distingue entre dois usos das descrições definidas: referencial e atributivo. Alguém diz, apontando para um homem que está ao lado de uma mulher, “O marido dela é um homem gentil”. Mas o homem não é o marido da mulher, de modo que a descrição não é satisfeita. Isso é um problema no uso atributivo de uma descrição definida, mas não no uso referencial, pois podemos ter sucesso em referir ao homem através da descrição “o marido dela” mesmo que ele não seja o marido dela. Donnellan diz que, se é assim, então há um problema na análise de Russell das descrições definidas, pois a mesma supõe que toda descrição funciona atributivamente. Kripke, no entanto, não vê qual seria a pertinência semântica das distinções de Donnellan como bases para a crítica a Russell, pois Donnellan não teria mostrado que as descrições definidas são semanticamente ambíguas, sendo que tudo o que Russell quis foi apresentar uma análise semântica das descrições definidas. Donnellan diz que as descrições definidas podem ser usadas de maneira referencial ou semântica. Mas, se é assim, então sua proposta é meramente pragmática, e não conta para a rejeição da análise semântica proposta por Russell (p. 110-111). Para Kripke, o que pode haver, e Donnellan não notou, é uma diferença entre a referência semântica e a referência do falante. Levando em conta o idioleto de um falante, podemos distinguir entre as intenções gerais do falante no uso de um termo singular (incluindo nomes próprios e descrições definidas), e suas intenções específicas em um determinado contexto. No entanto, esses não são dois sentidos de um termo singular, pois se trata de uma distinção pragmática, dado que se apoia nas intenções do falante. Assim, Donnellan não teria nenhum argumento semântico contra Russell (p. 118-123).

A partir dessa discussão, Kripke mostra que há casos nos quais um elemento pragmático pode ganhar força semântica. Tome um caso no qual uma expressão usada com o significado do falante é o antecedente de um anafórico. Por exemplo: “O marido dela é um homem gentil, ele sempre a trata com carinho”. Em um caso como esses, a descrição definida ganha um papel semântico, ainda que o homem referido não seja marido da mulher em questão. Logo, apesar de ser uma noção pragmática, a noção de referência do falante é relevante para a semântica, pois nada impede que uma referência do falante seja transmitida pela anáfora ou pela comunicação, e que ganhe valor semântico através da transmissão, podendo provocar uma mudança linguística (p. 128-136).

As críticas de Kripke a Donnellan não cessam aí, pois, ao contrário de Russell e Frege, Donnellan não analisou como sua proposta funcionaria no caso do discurso indireto. Considere a atribuição de atitude proposicional “Marcos pensa que o marido dela é um homem gentil”. Nesse caso, a descrição definida estaria sendo usada referencialmente ou atributivamente? Nenhuma das duas coisas. E, ainda assim, as análises semânticas das descrições definidas propostas por Russell e Frege se manteriam operantes (p. 134).

Nesse conjunto de conferências, Kripke não pretende ter resolvido todos os problemas semânticos envolvidos na questão dos termos singulares vazios. Em vez disso, sua proposta pretende apenas ser menos ruim do que as alternativas. Há problemas. Por exemplo, dado que a análise semântica de um nome vazio, como “Hamlet”, requer que se considere as intenções do narrador para se concluir que há pretensão de referir, disso segue que é preciso considerar o conteúdo de um nome para se estabelecer sua análise semântica correta. Mas isso é intolerável (p. 147) Não deveria haver diferentes análises para frases com nomes de entes fictícios e frases com nomes de entes não-fictícios (p. 150). Apesar desse problema, as conferências de Kripke continuam atuais, pois nos trazem ganhos na compreensão da referência e da existência.

César Schirmer dos Santos – Departamento de Filosofia. Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, 1000 – Prédio 74A, sala 2311. 97105-900 Santa Maria, RS. BRASIL. [email protected]

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The sins of the nation and the ritual of apologies – CELERMAJER (FU)

CELERMAJER, D. The sins of the nation and the ritual of apologies. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.340-342, set./dez., 2010.

Qual o lugar e o papel da desculpa coletiva nas práticas das democracias liberais modernas? Uma primeira resposta, mais clássica, diria que tal prática não tem lugar ou papel algum. Não teria lugar algum, dado que pedidos de desculpas precisariam ser feitos por indivíduos, e não teria papel algum, dado que os erros do passado seriam assunto do judiciário.

No entanto, têm se visto democracias liberais pedindo desculpas coletivas por crimes e atrocidades cometidos no passado contra indivíduos com identidades sociais bem marcadas. Por exemplo, nações europeias pediram desculpas aos judeus pelo Holocausto, e às nações dos novos mundos pelas violações contra populações locais nos passados colonial e pós-colonial. Essas demonstrações de arrependimento não são bem explicadas pela concepção clássica de democracia liberal. Mas, para Celermajer, isso não é motivo para rejeitá-las, e sim para se repensar a democracia liberal moderna e descrever de maneira acurada suas atuais bases normativas.

A tese fundamental de Celermajer é que a normatividade das democracias liberais é constituída por duas camadas, por assim dizer. Há uma camada mais superficial e manifesta, a qual é composta por indivíduos que são responsabilizáveis pelos seus atos individuais, de acordo com leis positivas ou normas socialmente aceitas. E há uma camada mais profunda, composta pelo regramento de base da coletividade. Para Celermajer, a desculpa coletiva passou a ter lugar nas democracias liberais, a partir dos anos 1970s e 1980s, porque passou a haver reconhecimento de que indivíduos de minorias sofreram genocídio ou segregação por causa do regramento de base, o qual possibilitou as práticas legitimadas de genocídio ou segregação por indivíduos da maioria.

Apesar de serem um fato, as desculpas não são suficientes, para Celermajer, para redimir as coletividades pelos seus erros passados. Seria ofensivo às vítimas e aos seus descendentes tomar uma mera performance verbal como o suficiente para se fazer justiça. No entanto, o pedido de desculpas coletivas, na medida em que é um reconhecimento da falha das bases normativas anteriores, abre espaço para a justiça e se mostra como um importante indicador de modificação normativa positiva da sociedade.

Os pedidos coletivos de desculpas fazem parte de um kit de modos de lidar com os abusos cometidos no passado, nas democracias liberais modernas. Outras modalidades são as comissões da verdade e as reparações. Enquanto as comissões da verdade buscam trazer à luz os abusos cometidos no passado, e as reparações buscam trazer equidade aos descendentes de injustiçados, as desculpas coletivas são performances que manifestam o arrependimento daquele que fala. No caso, o que temos é um representante reconhecido de uma coletividade, como um presidente ou ministro, falando pela instituição que representa, e o arrependimento em questão é o da instituição, através da manifestação de arrependimento do representante. Para Celermajer, no caso usando as ferramentas conceituais de John Austin contra ele mesmo, um pedido de desculpas não é a mera expressão de um sentimento, mas sim o comprometimento daquele que se desculpa com um certo modo de ser, com certa identidade. Ou seja, usando o jargão técnico, no caso o ato de fala “Por favor, nos desculpe” é comissivo, não comportamental. Aquele que pede desculpas está manifestando que se comprometeu com uma maneira de ser diferente daquela que tinha antes, o que quer dizer que quem se desculpa está manifestando remissão, mudança na identidade, autoaperfeiçoamento e a esperança de um futuro distinto do passado.

Uma boa parte do livro de Celermajer responde à crítica de que a desculpa não tem lugar nas democracias seculares por ser uma figura da pré-modernidade teológica e teocêntrica. Essa crítica tem dois elementos. Primeiro, diz que toda responsabilidade é individual, nenhuma responsabilidade é coletiva. Segundo, diz que em democracias seculares tudo o que há é justiça enquanto prática judiciária apoiada em leis estabelecidas pelo legislativo, não havendo lugar para o arrependimento. Celermajer apresenta uma resposta única para essas duas críticas: as democracias seculares modernas são capazes de reconhecer que seus arcabouços seculares passados levaram a injustiças praticadas por indivíduos contra membros de minorias, e tal reconhecimento é a base para que a própria instituição lamente ter sido como foi e busque ser e agir de outra forma no futuro, através da modificação do seu arcabouço normativo. Tal lamento e arrependimento têm lugar na democracia secular liberal moderna, porque faz parte da identidade da mesma a busca das melhores bases normativas, de modo que o reconhecimento da falha nas bases normativas do passado, e das suas graves consequências, é um modo por excelência de satisfazer tal busca. A desculpa coletiva, enquanto modo de lidar com o passado, é um comprometimento com uma base normativa mais sólida e justa, no presente e no futuro.

Assim, o papel da desculpa coletiva é a demonstração do comprometimento, da parte de uma coletividade ou instituição, com um futuro mais sólido, do ponto de vista normativo, do que o passado. De modo que a desculpa coletiva não está aí para condenar e punir a sociedade passada como um todo, o que seria absurdo. Tudo o que segue da desculpa coletiva é um compromisso com a mudança normativa.

A entrada da desculpa coletiva como modalidade de ato de fala típico das democracias liberais modernas é o retorno de uma prática linguística religiosa e pré-moderna, visto que tal tipo de performance não era um elemento da concepção clássica de democracia e era, nas modalidades do perdão e do arrependimento, típica do judaico-cristianismo. Mas, para Celermajer, o mero fato do tipo de performance ser pré-moderno não é suficiente para rejeitá-lo como elemento da democracia moderna. Assim como houve mudança entre o mundo heterônomo e feudal e o mundo autônomo e moderno, há mudança entre o mundo moderno da responsabilidade meramente individual e o mundo moderno da responsabilidade individual e coletiva, sendo que elementos religiosos e pré-modernos explicam, em larga medida, a moderna responsabilidade coletiva, ao menos no que diz respeito aos pedidos de desculpa coletivos.

Poderíamos perguntar de que vale uma desculpa, isto é, uma mera voz, ante atrocidades e discriminações. De maneira incisiva, Celermajer mostra que vale muito, visto que um pedido de desculpas é uma nova ação, no presente. A desculpa insere algo novo na coletividade e, no caso, insere algo que não era típico do passado coletivo, visto que se trata, justamente, de um arrependimento ante as injustiças cometidas e mesmo estimuladas pelas bases normativas do passado. Assim sendo, a desculpa amplia o leque de ações típicas das democracias liberais, as quais passam a ter o ato de fala performativo como uma das suas possibilidades, além das intervenções legais e institucionais.

O questionamento do papel da desculpa nas democracias liberais modernas poderia ir adiante, questionando as bases e apoios do pedido de desculpas. É fácil estabelecer as bases normativas do pedido de desculpas do fiel, na tradição judaico-cristã, pois esse se apoia em Deus, o absoluto. No entanto, dado que as democracias modernas se apoiam apenas nas regras que os homens de fato deram para si mesmos, esse caminho está fechado. A solução de Celermajer a tal problema é pôr em evidência que as democracias modernas se apoiam em diversos substitutos do absoluto teológico, como, por exemplo, os direitos universais e cláusulas pétreas constitucionais. Aqui divirjo de Celermajer, pois me parece que a democracia liberal não precisa desses procuradores seculares do absoluto, dado que está nas suas bases, ao menos desde o Contrato social de Rousseau, a distinção entre fato e direito. A solução clássica para tal tipo de problema é apoiar o arrependimento nas bases normativas com as quais a sociedade se compromete, as quais são reconhecidas como as normas de direito legítimas, ao mesmo tempo em que se reconhecem e se denunciam as normas de fato do passado como ilegítimas. Assim, não me parece que seja preciso usar o recurso de preservar a forma da desculpa no mundo teocrático, abandonando sua substância, visto que há mudança na forma da desculpa: sua base já não é o absoluto, mas sim o direito, em oposição ao fato. Imagino que alguns diriam que o direito é outra modalidade secular do absoluto, mas eu espero pelo argumento.

César Schirmer dos Santos – Instituto de Desenvolvimento Cultural. Porto Alegre, RS, Brasil E-mail: [email protected]

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