Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX) – RAGGI et. al. (VH)

RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta. Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. 285 p. DOMINGUES, Cândido. Uma baía de histórias: novos olhares sobre Salvador e suas conexões atlânticas. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 68, Mai./ Ago. 2019. 

A obra Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX) fecha um ciclo de debates dos projetos de pesquisa intitulados Bahia 16-19 e Uma cidade, vários territórios e muitas culturas,1 financiados pela União Europeia e Capes/Brasil, respectivamente. No âmbito de cada um desses projetos de investigação, historiadores do Brasil, Portugal e França foram chamados a pensar o Império português a partir de uma perspectiva do Atlântico Sul, de modo a integrar África e América numa outra leitura da colonização lusitana. Salvador, capital do território colonial português na América por mais de 200 anos, foi escolhida como centro de interesse investigativo. Por cerca de dois anos a equipe apresentou seus resultados de pesquisa. Os projetos congregaram pesquisadores com investigações em estágios distintos de desenvolvimento, e no seu âmbito foram organizados workshops nas cidades de Salvador, Lisboa e Paris, favorecendo um debate mais ampliado e diverso, o que se reflete nos trabalhos publicados ao final do processo.

Composta por uma introdução e dez artigos, a coletânea é aberta com a observação dos editores sobre a predominância entre as contribuições que compõem o volume de “perspetivas que elegem, maioritariamente, como ponto de partida, geografias extraeuropeias” (Raggi; Figuerôa-Rego; Stumpf, 2017, p.7). Desse modo, a obra dá sequência à Coleção Atlântica, mais nova do gênero historiográfico publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EdUFBA), em parceria com o Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa (CHAM).2

Um ponto alto da obra é a multiplicidade de fontes que possibilita perceber diferentes relações entre a história da Cidade do Salvador (antiga Cidade da Bahia), as instituições portuguesas (Universidade de Coimbra ou a Junta da Administração do Tabaco, por exemplo) e sujeitos tão diversos quanto africanos escravizados ou libertos agentes do tráfico, clero, indígenas ou agentes da administração colonial. Em seu texto, Carlos Silva Jr. mostra a importância de fontes orais do atual Benin para entendermos as interações afro-europeias setecentistas. A ligação nominativa, de inspiração da microhistória italiana, mostra-se fundamental ao fazer historiográfico desde abordagens da vida socioeconômica de africanos no Atlântico até as análises das matrículas universitárias, da formação e atuação de bispos no Império. Por sua vez, o estudo de um regimento (ou seu projeto) ou de um tratado armorial mostrou-se de interesse para compreendermos diretrizes do Estado e mentalidades individuais. A estas fontes somam-se tantas outras mais tradicionais ao ofício, como testamento e inventário post-mortem, denúncias e processos inquisitoriais, registros notariais e de batismos, legislação colonial e imperial.

Os textos de Carlos da Silva Jr.3 e Luis Nicolau Pares destacam-se por aproximar os conceitos e métodos da História Social com ideias da História Econômica, de modo a pensar a história do tráfico atlântico de escravos conectado com demandas internacionais da economia e da política. A agência africana (a agency de inspiração Thompsoniana) é analisada a partir das possibilidades de africanos (abrindo caminhos para também pensarmos seus descendentes) agirem na engrenagem do capitalismo crescente e de modo integrado ao tráfico de escravos. Se no século XVIII a fundação de Porto Novo é, também, inspirada na busca de melhores preços e fuga de um mercado de alta concorrência (Silva Jr., 2017), no comércio ilegal oitocentista, africanos como Joaquim d’Almeida e Manoel Pinto são representativos de tantos outros que voltaram à África para organizar o comércio negreiro no litoral de modo a dinamizar o embarque e burlar a vigilância inglesa (Pares, 2017).

Ao analisar os “escravos-senhores”, Daniele Souza, também inspirada na História Social, considera o tráfico atlântico como promotor de fenômenos no escravismo brasileiro. Defende que a vigorosa oferta de escravos na Bahia e a possibilidade de fazer encomendas diretamente com marinheiros permitiu a escravos comprar um escravo a preço acessível. Assim como Pares, a autora assevera que a participação africana como “senhores” de escravos ou no comércio era uma exceção do sistema escravista, eram atores protagonistas de excepcionalidades. Como afirma Pares, “uma historiografia que privilegia os africanos enquanto sujeitos autônomos, com capacidade de ascensão social e ação política, não poderia negligenciar, apesar do incômodo moral que supõe” o estudo de situações dessa natureza (Pares, 2017, p.15).

Finalizando a primeira parte, João Figuerôa-Rego e Camila Amaral analisam ações do Estado para o comércio de duas mercadorias de extrema importância para o tráfico transatlântico de escravos: o tabaco e a aguardente (cachaça), respectivamente. Ambos nos chamam a atenção para o envolvimento de agentes do Governo do Império (magistrados e governadores, por exemplo) inseridos em grupos mercantis locais. Figuerôa-Rego mostra, ainda, tentativas da coroa para evitar tais aproximações dos administradores do tabaco na Bahia. A vasta rede político-mercantil das famílias César de Meneses e Lencastro está presente em ambos os textos, ainda que nas entrelinhas.4

A segunda parte da obra, Administração e agentes no espaço americano, tem como foco analisar dispositivos, projetos, instituições e formação clerical. É a parte da obra na qual Europa e América mais se aproximam. Aqui os autores analisam processos desenvolvidos na América, mas dependentes de aprovações ou julgamentos da metrópole. Ou ainda, a formação universitária europeia de agentes que atuariam no Brasil.

Com focos diferentes, Fabricio Lyrio e Maria Leônia C. de Resende discutem a administração dos indígenas envolvendo as igrejas secular e regular e o Estado colonial. Apesar de voltarem sua atenção para o século XVIII brasileiro, mostram que as origens dos problemas relacionados com os governos das comunidades autóctones arrastavam-se desde debates quinhentistas.

Resende destaca a importância de se analisar os discursos da ordenação indígena no mundo hispânico, de tradição mais longeva e inspiradora dos religiosos lusitanos. Lyrio realça a difusa legislação indigenista portuguesa, jamais unificada para o Estado do Brasil. A administração de questões como mão de obra, conflitos, catequese dos indígenas mudavam conforme a Capitania, afirma. Essa realidade levou ao provincial jesuíta (padre encarregado da administração da província), em 1745, a propor ao Rei um regimento que regulamentasse a colonização destes povos naquele Estado, que é, parcialmente, analisado pelo autor. Por sua vez, Leônia Resende mostra que apesar de aprovada a possibilidade canônica para ordenar sacerdotes indígenas, os entraves, muitas vezes pessoais, eram fortes. Aqueles que conseguiram foram ordenados apenas após a expulsão jesuíta e, ainda assim, sua atuação “se restringia à mera função de auxiliar na missionação e, por isso mesmo, não resultou propriamente na consolidação de uma carreira eclesiástica” (Resende, 2017, p.185). Ambos mostram, acima de tudo, a vulnerabilidade jurídica dos povos indígenas, muitas vezes sujeitos aos caprichos dos colonos, oriundos de todos os níveis sociais.

Um desafio da historiografia é perceber o quanto a norma aproxima-se da prática. Ediana Mendes investiga os currículos da Universidade de Coimbra e os registros de matrículas buscando entender a formação possível dos bispos que atuaram no Brasil e o quanto isso seria útil no governo diocesano. O Concílio de Trento é a ponte que aproxima este texto do artigo seguinte, de Jaime Gouveia. Ambos mostram que, a despeito da uma historiografia que contestou a aplicação das normas tridentinas no ultramar, a Coroa procurou cumpri-las tanto na formação dos bispos (Mendes, 2017, p.199) quanto na atuação de “estruturas de vigilância e disciplinamento” do clero (Gouveia, 2017, p.246). Este autor parte da premissa do luso-tropicalismo freyriano para mostrar que uma História Comparada do reino e das colônias indica uma “pandemia luxuriosa” clerical tanto em Portugal quanto no Brasil (Gouveia, 2017, p.245).

Distinto de todos os demais artigos, Miguel M. de Seixas discute “o impacto dos elementos ultramarinos na heráldica portuguesa dos séculos XVI e XVII” (Seixas, 2017, p.251). Se na Europa a Ciência Heráldica (ou Ciência do Brasão) viu-se distante das Universidades, no Brasil nota-se verdadeiro abismo. Encarada como “mera preciosidade de diletantes” e associada à nobreza, aqui e lá, essas características foram fundamentais para esse distanciamento ou, ainda, para considerá-la como uma ciência auxiliar da História (Seixas, 2011, p.27-28). O autor, no entanto, defende que o estudo dos tratados armoriais e das pedras d’armas mostram a consonância da política da coroa com suas conjunturas. Neste aspecto a primeira vez que o brasão da Cidade do Salvador aparece nos tratados portugueses reflete a importância da cidade na Restauração (1640), assim como ocorrera com Goa e Malaca no “século de ouro” da Ásia (Seixas, 2017, p.270).

Organizar uma coletânea é propor-se ao desafio da coesão. Ele pode ser alcançado de distintos modos e intensidades. Esta obra, portanto, não deixa de enfrentar seus percalços. Como ressaltei até aqui, seus textos estão afinados com uma pesquisa de relevo e um debate historiográfico atualizado, sem abandonar os clássicos. Isso por si só já seria um convite à leitura. Destacaria um aspecto a que a obra se propõe e atingiu muito bem seu objetivo: avançar no conhecimento da ação de indígenas e africanos na construção da sociedade colonial. Os artigos que tratam desses agentes históricos mostram que estes estavam bastante atentos ao que se passava na política, economia e religião, e buscaram inserir-se nas brechas que o poder dominante lhes “permitia”. Salvador e suas histórias por vezes não aparecem diretamente no texto, daí um conhecimento prévio de sua capitalidade, das instituições nela instaladas e sua jurisdição a todo o Estado do Brasil. Aos neófitos, recomenda-se atenção redobrada, um simples detalhe pode ligar Salvador aos mais vastos sertões assim como um brasão pode ligá-la diretamente ao rei.

Uma história lusoafroameríndia da Cidade da Bahia! A obra mostra uma Salvador integrada às preocupações e cultura da Era das Invasões Ultramarinas Europeias, mas não só. Amplia e reverbera a atuação dos milhares de povos da África construindo seu mundo, agindo no comércio em busca de sua liberdade. Mostra tantos outros povos ameríndios, em todo o Brasil a suscitar a Igreja Primaz da Bahia a buscar soluções para problema da colonização. E, por fim, realça a importância da Universidade para a construção de agentes políticos de qualquer sociedade.

1O livro que abre esta Coleção é: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo R. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica. Salvador/Lisboa: EDUFBA/CHAM, 2016. As seções ocorreram em Salvador (UFBA) e Lisboa (UNL/CHAM). Sobre o projeto BAHIA 16-19 «Salvador da Bahia: American, European, and African forging of a colonial capital city» (PIRSES-GA-2012-318988) ver http://www.cham.fcsh.unl.pt/ext/BAHIA/BAHIA_home.html, acesso em 19/10/2018.

2CHAM é uma unidade de investigação interuniversitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

3Para uma versão ampliada desse artigo cf. SILVA Jr., 2017a, p. 1-41.

4Para uma boa análise desta rede político-mercantil ver GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004, p. 96-137.

Referências

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português,1688-1735. Topoi, vol. 5, n. 8, p. 96-137, 2004. [ Links ]

GOUVEIA, Jaime Ricardo. “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”: O luso-tropicalismo e a história comparativa no espaço luso-americano (1640-1750), In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.223-250. [ Links ]

MENDES, Ediana Ferreira. A formação acadêmica dos prelados da América Portuguesa (séc. XVII e XVIII, Bahia, Olinda e Rio de Janeiro). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.195-222. [ Links ]

PARÉS, Luis Nicolau. Entre Bahia e a Costa da Mina, libertos africanos no tráfico ilegal. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.13-50. [ Links ]

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Curas de almas nativas: o clero indígena na América Portuguesa (século XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.161-194. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa. Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. A representação do ultramar nos armoriais portugueses (séculos XVI-XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.251-284. [ Links ]

SILVA Jr., Carlos da. Interações Atlânticas entre Salvador da Bahia e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.73-98. [ Links ]

SILVA Jr., Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História, n. 176, p. 1-41, 2017a. [ Links ]

Cândido Domingues – Centro de Humanidades Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal [email protected].

Mulheres em Macau – PENALVA (VH)

PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: donas honradas, mulheres livres e escravas (séculos XVI e XVII). Lisboa: CHAM/CCCM: 2011, 237 p. Resenha de: WAGNER, Ana Paula. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

Macau está longe de nós, se tivermos como ponto de referência o espaço geográfico brasileiro. Entretanto, o trabalho de Elsa Penalva chega para fazer uma aproximação, trazendo àqueles que desconhecem as particularidades da história macaense elementos que permitem um contato com a sociedade em questão. Numa parceria entre o Centro de História de Além-Mar e o Centro Científico e Cultural de Macau, o trabalho da autora foi publicado na Coleção Estudos e Documentos, que tem divulgado investigações relacionadas com a História dos Descobrimentos e da Expansão Lusa, assim como a presença portuguesa no mundo.

O primeiro ponto a ser evidenciado é que as mulheres são as protagonistas dessa obra, o que já se encontra anunciado no próprio título do trabalho. São mulheres de diferentes estatutos sociais, que viviam em Macau entre finais de Quinhentos e meados de Seiscentos. No topo da hierarquia local estavam as “donas honradas”. Conforme ressaltado por Elsa Penalva, essa condição, ser “honrada”, não se ligava necessariamente a uma conduta moral reta; mas era acrescida de uma valoração positiva facultada “pelo enlace com um homem com poder econômico, e com possibilidades de acesso às elites atinentes ao exercício do poder político”. Abaixo desta categoria, “donas honradas”, encontravam-se as mulheres livres e, depois, as escravas. Para estas últimas, equivalia situar-se na base da pirâmide social macaense, no lugar mais indesejado. Num campo intermediário estavam as mulheres livres. Entretanto, para esses dois segmentos sociais, independentemente da condição de livre ou escrava, “significava ter que se organizar, atendendo à sociedade patriarcal em que se inseriam”. Eram mulheres que, no geral, tinham dinâmicas de vida muito trabalhosas.

Porém, o universo feminino em Macau era muito mais complexo e diversificado do que a existência dessas três categorias, contando também com a presença de órfãs, religiosas, viúvas com posses ou não etc. Essa heterogeneidade é devidamente explorada pela autora no livro, além de ser redimensionada em razão do caráter multicultural da sociedade macaense, com indivíduos de diferentes procedências, como Portugal, China e Japão, por exemplo. Desse amplo quadro, a autora acaba por apresentar maiores detalhes do segmento das mulheres economicamente mais favorecidas. Tal circunstância deriva, possivelmente, de uma escolha feita por Elsa Penalva e, certamente, do tipo de documentação utilizada para a elaboração da pesquisa.

Em grande medida, ao problematizar a inscrição das mulheres na vida social de Macau, a autora procura não superestimar as ações delas, buscando equilibrar sua argumentação. A conclusão que chega é que “sem capacidade política, nem autoridade pública, e com reduzida intervenção social, a mulher em Macau, dificilmente escapava à dominação masculina a partir da riqueza de que dispunha”. Ou seja, a maior parte delas encontrava-se submetida a uma valoração fundamentada em índices de riqueza e, nesse ambiente, o casamento era considerado a principal garantia de segurança e de sobrevivência material. Mas, por outro lado, a condição de viúva, quando acompanhada de poder econômico, facultava à mulher a “manutenção do prestígio social e a aproximação ao universo masculino”.

Elsa Penalva não valoriza demasiadamente o papel da mulher em Macau, mas também não as vitimiza, procurando sempre um ponto de equilíbrio. No que diz respeito ao casamento, por exemplo, percebido como um importante mecanismo do processo de inserção social e de diferenciação entre o grupo feminino, ele foi um instrumento bem aproveitado pelas mulheres que viviam em Macau. Ainda que em algumas circunstâncias o matrimônio tenha sido imposto, as mulheres buscaram construir espaços de movimentação e, na medida do possível, procuraram atuar independente dos códigos sociais a que estavam sujeitas.

Como indicamos, a autora acabou privilegiando, em seu estudo, as mulheres economicamente melhor favorecidas, no caso, as viúvas com posses. Particularmente no que se refere a esse grupo social, as ideias de passividade feminina não se configuravam como majoritárias no período em análise, séculos XVI e XVII. Em relação ao aspecto econômico, algumas viúvas conseguiram ultrapassar determinadas barreiras e chegaram a ser as responsáveis pelo gerenciamento de seus patrimônios (garantindo a sua rentabilidade), constituindo-se em grande feito para a conjuntura daquela sociedade:

Algumas [mulheres], após terem enviuvado, tornaram-se elementos activos no meio mercantil em que viviam. Foi o caso de Isabel Reigota que entre 1652 e 1663 se opôs ao jesuíta Manuel de Figueiredo à data, Procurador da Vice-Província da China. Em causa estava o comércio do sândalo, e uma luta pelo poder travado no seio da Companhia de Jesus. O comportamento desta viúva deixa entrever uma aprendizagem de âmbito prático, fruto da observação atenta da actividade do marido, Francisco Rombo de Carvalho, e do contacto com os jesuítas com que privava. A sua casa, local de práticas dos vários saberes a que tinha acesso como mulher, permitira também a aquisição de conhecimento próprios do universo masculino, que, face à morte do marido, se tornaram recorrentes, funcionando como mecanismos de manutenção e sobrevivência.

A história da Isabel Reigota, indicada acima, sintetiza muito bem a argumentação da autora, e apresenta todos os elementos envolvidos na trama oferecida pelo livro. Ou seja, revela o cotidiano de mulheres que, por meio do casamento com um indivíduo com posses, tem acesso a um ambiente que lhes possibilita desenvolver conhecimentos e habilidades, que foram utilizados no momento em que seus cônjuges faltaram. Do mesmo modo, evidenciam as relações estabelecidas entre algumas ordens religiosas instaladas em Macau e determinados segmentos populacionais, fosse no contato para cuidar dos assuntos sagrados, ou sociais, ou econômicos.

Como se nota, paralelamente à história da condição social das mulheres de Macau, a autora descortina alguns aspectos do mundo religioso institucional da localidade, particularmente aquele que dizia respeito à Companhia de Jesus. Conforme Elsa Penalva, essa ordem era a que tinha maior poder em Macau, “pela sua antiguidade, modelo de aproximação à população, e ocupação logística do terreno. Isto pelo menos desde 1565 até inícios da centúria seguinte”. As Clarissas, ordem religiosa feminina que se instalou em Macau, em 1633, também ganhou atenção da autora. Segundo seu argumento, a partir de 1642, essas religiosas “funcionaram como um grupo de pressão nas lutas pelo poder que se desencadearam na cidade”, passando a se constituírem nas grandes oponentes à Companhia de Jesus naquele território. Entre as Clarissas estavam as filhas de mercadores abastados e influentes que se estabeleceram em Macau. Nota-se, assim, a configuração de um quadro bastante complexo que interliga o cotidiano das mulheres e as disputas religiosas e econômicas locais.

Sem dúvida, o livro em questão atende aos interesses daqueles leitores que buscam informações sobre as experiências das mulheres na Macau dos séculos XVI e XVII; contudo, também contempla a história de algumas ordens religiosas instaladas naquela localidade. Em grande medida, esse é um dos méritos do livro, fazer com que diminuam as distâncias que separam Macau de seus leitores. Embora a sociedade macaense tenha suas particularidades, devidamente exploradas e contextualizadas pela autora, tem-se a impressão de que é possível identificar algumas semelhanças com a história de outros territórios de colonização portuguesa, em especial nas questões relacionadas ao cotidiano das mulheres. É nesse sentido que dizemos que o livro de Elsa Penalva permite estabelecer algumas aproximações, desde o contato com esse espaço geográfico que constituía Macau até o conhecimento de experiências sociais nele desenroladas e comuns a outras sociedades.

Outra grande contribuição do livro Mulheres em Macau é a publicação, como anexos, de três documentos redigidos no século XVII, especificamente entre 1644 e 1690. Embora esses textos tenham sido escritos por homens e, portanto, nos digam muito do universo masculino, as mulheres que tiveram suas histórias vividas em Macau continuam sendo as protagonistas daquelas narrativas. Aliás, essa preocupação com as fontes e o recurso a um sólido trabalho documental é um dos pontos fortes da obra. Elsa Penalva pesquisou uma vasta documentação para compor seu trabalho, como os legados da Santa Casa da Misericórdia de Macau, documentos relativos a Câmara Municipal, processos inquisitoriais e registros de contendas relativos a Macau. Saliente-se, a propósito, a cuidadosa transcrição e referenciação dos documentos e da bibliografia consultada. Por fim, os capítulos apresentados no livro têm como base os estudos empreendidos pela autora em sua tese de doutorado (defendida em 2005) e comunicações apresentadas em congressos, porém ampliados à luz de novas indagações. Enfim, o que se tem em mãos é uma investigação de grande fôlego que requer e merece uma leitura atenta.

Ana Paula Wagner – Pesquisadora do Centro de Documentação e Pesquisa em História dos Domínios Portugueses (CEDOPE)/DEHIS-UFPR. Rua Senador Xavier da Silva, n. 272, ap. 41. Curitiba/Paraná. Cep: 80.530-060 [email protected].