Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920 – 1926) – BRITO (VH)

BRITO, Jonas. Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920 – 1926). Salvador: EDUFBA, 2019. 267 p. SOUZA, Felipe Azevedo. A Bahia e a República contra o café com leite. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 70, Jan./ Abr. 2020. 

Já se contam décadas desde que caiu em descrédito a tese que interpretava a política na Primeira República como um estável e previsível pacto entre as oligarquias paulistas e mineiras. A produção historiográfica recente apresenta um cenário sensivelmente diverso. Ainda que entre elites, a construção da ordem se inscrevia em um imbrincado jogo de alianças voláteis e coalizões de curto prazo envolvendo lideranças de vários estados da federação. A inconstância das negociações entre grupos de interesse estaduais não raro resultou em intervenções militares e instauração de estados de sítio. Turbulências sociais e dificuldades para acomodar os interesses de elites fragmentárias eram frequentes no caminho da governabilidade. Em Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920-1926), Jonas Brito capta a intensidade dessas transações através de uma operação historiográfica que articula os estratagemas de bastidores e o influxo de intempéries socioeconômicas que persistentemente sacudiram os governos e os tensos processos sucessórios presidenciais.

O recorte temporal relativamente curto, de 1920 a 1926, foi pródigo em tumultos e viradas de mesa. Iniciando-se após um vigoroso ciclo de greves, aqueles anos foram pontilhados por conflitos armados envolvendo revoltas estaduais e a ascensão do tenentismo. A onda contestatória ressoou no primeiro escalão da política com a formação da Reação Republicana que, como a campanha civilista, buscou emplacar um presidente oriundo das hordas oposicionistas a partir da articulação de uma profusa campanha eleitoral baseada em uma plataforma programática crítica ao governo e às instituições do sistema representativo. Os influxos por mudança, concentrados principalmente na disputa presidencial de 1921/1922, atravessam o livro através do exame esmiuçado de um processo de ruptura intraoligárquico que foi fundamental para selar os destinos da Primeira República.

Outrora retratada em torno de imagens de “paralisia e marginalidade”, a Bahia era, como pontua o título da obra, um ás na mesa do jogo da Primeira República (NEGRO; BRITO, 2013). As teses inovadoras de Eul-Soo Pang e Cláudia Viscardi já situavam o estado em seu proeminente papel de eixo de estabilidade do regime (PANG, 1979VISCARDI, 2001). Jonas Brito disseca esse plano de poder evidenciando o domínio de ação dos construtores dessa almejada estabilidade. Como quem lê sobre os ombros austeros das lideranças republicanas, Brito conduz os enredos do livro a partir das correspondências de eminências como Nilo Peçanha, Arthur Bernardes, Otávio Mangabeira, Washington Luís, os irmãos Pedro e Góis Calmon. É de se destacar também a cuidadosa utilização de fontes diplomáticas, de onde o autor extrai algumas sínteses conjunturais lapidares. Através de um rigoroso mapeamento das movimentações públicas e reservadas de grupos que se realinhavam negociando interesses particulares e pautas públicas, o autor dimensiona o papel dos baianos no tabuleiro da política nacional.

O início dos anos 20 representou o fim de um período de jejum da Bahia em relação ao círculo de poder do Palácio do Catete. Até aquele momento as disputas entre Rui Barbosa e José Joaquim Seabra dividiam o cenário político estadual entre “ruistas” e “seabristas”. O contínuo boicote mútuo que um grupo infligia a outro acabou por esmaecer o potencial de liderança do estado junto ao poder central. O pacto entre as facções veio com a formação da coalizão oposicionista da Reação Republicana, e o fato de Hermes da Fonseca ter sido um dos principais articuladores para a adesão de Rui (seu destacado oponente em disputas anteriores) é mais um sintoma de que aquela campanha era extraordinária.

A unidade política da Bahia foi resultado do esforço conjunto de estados insatisfeitos com a candidatura bernardista que era fundeada em interesses de grupos paulistas e mineiros. Sem uma Bahia forte não haveria lastro para uma oposição capaz de enfrentar o poderio do governo. Como o autor aponta, “a atitude da Bahia impossibilitou o isolamento do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, dois estados já resistentes à candidatura de Bernardes” (p.249). Os baianos têm destaque nesta narrativa, mas este foi um processo nacional e o livro de Brito não encontra barreiras geográficas para analisar o que estava em jogo; suas páginas excedem a história da Bahia a todo tempo. O autor acompanha os próceres oposicionistas que naquela campanha deixaram seus gabinetes e saíram em caravana pelo país em carros, embarcações e trens. É especialmente relevante a maneira como essas expedições eleitorais são exploradas, a análise joga luz sobre o papel das oposições em um contexto competitivo como esse em tela – temática, vale dizer, ainda subestimada na literatura sobre o tema.

Artur Bernardes venceu aquelas eleições, mas teve diante de si um país inflamado em conflitos e rivalidades estaduais. Na Bahia, vivia-se situação diversa: a ascensão de Goés Calmon, eleito governador em 1923, foi um elemento de conciliação entre as elites. Ocupando o vácuo de influência deixado pela morte de Rui Barbosa, Calmon foi habilidoso em montar uma base fiel ao seu projeto de governo e em acomodar potenciais dissidentes a partir de um fino cálculo de distribuição de recursos políticos e de divisão de poder.

Naquele momento, a Bahia restaurava seu antigo papel de sustentação do poder central, conjuntura argutamente explorada a partir do episódio de recepção ao príncipe italiano Umberto di Savoia, cuja passagem pelo Brasil esteve a um triz de ser gorada. Cariocas e paulistas batiam cabeças com insurreições armadas em seus territórios, coube então à Bahia, sob os auspícios da aristocrática família Calmon, receber a comitiva. A pompa e circunstância ostentadas naquela recepção foram elevados a emblema da Bahia dos Calmon, tempos de solidez institucional e alinhamento com o Catete.

Em seu livro de estreia, fruto de dissertação em História defendida na Universidade Federal da Bahia, o jovem historiador já demonstra destacada habilidade para dar sentido à confusa conjuntura da época através de uma escrita límpida. A atenção que volta às articulações internas de poder, evidenciando o contínuo movimento de acomodação e ruptura das oligarquias, dá ao livro ímpeto de obra de referência, de onde pesquisadores do tema podem sempre voltar para se esclarecer sobre essa fundamental quadra do Brasil republicano. É, portanto, livro para se ter na estante.

Referências

NEGRO, Antonio Luigi; BRITO, Jonas. Mãe paralítica no teatro das oligarquias? O papel da Bahia na Primeira República para além do café-com-leite. Varia Historia [online]. 2013, v.29, n.51, p.863-887. [ Links ]

PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias, 1889-1943. A Bahia na Primeira República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. [ Links ]

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias. Uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. [ Links ]

Felipe Azevedo Souza – Departamento de História, Universidade Federal da Bahia, Estrada de São Lázaro, 197, Federação, Salvador, BA, 40.210-730, Brasil. [email protected].

Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798 – VALIM (Topoi)

VALIM, Patrícia. Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: EDUFBA, 2018. 327p.p. Resenha de: CHAUVIN, Jean Pierre. Bastidores da Conjuração Baiana de 1798. Topoi v.20 n.42 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019.

Nos cursos de Letras, quando topamos com periodizações relativas às partes do Brasil entre os séculos XVI e XVIII, costumamos aprender que o “Barroco” baiano durou 167 anos, de 1601 a 1768. Imediatamente após aquele “movimento artístico”, tido por rebuscado, serpenteante e obtuso, teríamos vivenciado 20 ou 30 anos de “Arcadismo”, iniciado muito precisamente em 1768 (ano em que saíram as Obras do desembargador, minerador, escravista e poeta Cláudio Manuel da Costa) e encerrado em data um tanto vaga, após a devassa, a prisão e a execução de um dos chamados “inconfidentes”. A solução que os manuais encontraram para preencher a distância geográfica e o intervalo temporal até a chegada e violenta instalação da Corte no Rio de Janeiro consistiu em fixar e nomear o período que vai de 1792 a 1808 (ou o 7 de setembro de 1822, ou o 2 de julho de 1823) como era “de transição”. Sugere-se que migramos do estatuto “colonial” português para o império da jovem nação brasileira – ainda que sob a tutela inglesa -, mediante os caprichos de um irrequieto d. Pedro I que projetava suas ambições dinásticas no filho: o “conciliador” Pedro II. Supõe-se, também, que a chama “pré-romântica”, com seu pendão protonativista, estivesse embutida no movimento “árcade” e se extinguisse no mesmo cadafalso que recebera o alferes Tiradentes. Em acordo com essa concepção escolar, que ainda vislumbra “espírito cívico” e “patriotismo brasileiro”, décadas antes de o país vir a sê-lo, a prisão dos conjurados também encerraria o brevíssimo e anacrônico “neoclassicismo” greco-latino, redivido no lamaçal de eiras e beiras setecentistas.

Desse modo, a já nem tão reluzente capitania mineira, embalada por “sentimentos antilusitanos” e candidatos a heróis da “pátria”, viveria um período de decadência socioeconômica e cultural, em que quase nada de relevante teria acontecido naquele território ultramarino – exceção feita às denúncias de crimes de lesa-majestade, punidos com a chibata em público, o degredo para possessões na África e, em alguns casos, a forca e o esquartejamento, previstos nas Ordenações do Reino para os mais pobres. Tudo isso para deleite de uma ansiosa tribuna ciosa por tonificar sua moral, ordem e civilidade – devidamente apinhada em torno do patíbulo instalado no Rio de Janeiro. Esquece-se, providencialmente, que as capitanias do Estado do Brasil atuavam pragmaticamente e de modo mais ou menos coordenado, pelo menos naquele tempo. Isso impediria negligenciar o habitual privilégio dos magistrados, o arbítrio das leis, os movimentos de sedição contra diferentes governos e mesmo as variadas representações artísticas – dentre elas, as práticas letradas produzidas por cortesãos sedentos de distinção entre os “homens bons”. Para além dos eventos transcorridos entre 1789 e 1792, nas Minas, haveria que se prestar detida atenção à Conjuração Baiana de 1798, transcorrida em Salvador, apenas seis anos após a execução de Tiradentes no Rio de Janeiro.

Salvo engano, é essa grande lacuna que este livro de Patrícia Valimvem preencher. Dividido em três seções, o estudo parece dialogar com a célebre disposição que Euclides da Cunha estendeu a Os sertões. A estrutura tripartite – anunciada no subtítulo (“Tensão”, “Contestação” e “Negociação política”) – projeta-se desde a capa, cujas cores se aproximam em muito do bleau, blanc, rouge que tingia os ideais republicanos e embalavam a Revolução Francesa, iniciada em 1789. Por sinal, a Conjuração Baiana de 1798 quase reproduzia os três pilares de além-mar: “liberdade, república e revolução” (p. 22). Antes de passar à matéria principal, a pesquisadora revisita a extensa tradição historiográfica produzida sobre a colonização portuguesa, dentro e fora do país (Inácio Accioli, John Armitage, Francisco Adolfo de Varnhagen, Fernandes Pinheiro, Francisco Borges de Barros, Braz do Amaral, Caio Prado Júnior, Affonso Ruy, Fernando ­Novais, István Jancsó, Carlos Guilherme Mota, ­Florestan Fernandes, Kenneth Maxwell, etc.) e restabelece a importância dos estudos de Kátia Mattoso e Valentim Alexandre, entre muitos outros que reorientaram os trabalhos, especialmente em torno da chamada “Conjuração Baiana de 1798”.

Como a historiadora adverte, em “Alguma explicação”, Salvador exercia a “capitalidade” no Estado do Brasil, concomitantemente à nova sede do vice-reino (Rio de Janeiro), desde o século anterior. Com dezenas de milhares de habitantes, em 1780, a capitania da Bahia tinha população, estrutura e poder consideravelmente maiores e tão complexos quanto aqueles das Minas, para onde se transferia a atenção da Coroa, interessada em fomentar a exploração dos escravos, com vistas a ampliar divisas da Metrópole, graças ao escoamento de ouro e outras mercadorias pelo porto do Rio – principalmente aquelas que sobrassem do sabido contrabando local, sob as desordens dos “principais do lugar”, a atuar em nome de Deus, da Lei e do pretenso racionalismo das Luzes. Em funcionamento análogo ao das vilas mineiras, “[…] a cidade [Salvador] foi o centro administrativo da colônia e do único vice-reinado no mundo atlântico até 1763, sede da única Relação do Brasil até 1751, sede do único bispado até 1676 e, depois, do arcebispado do Brasil” (p. 66). Além de recorrer a diversos documentos, localizados em numerosos acervos dentro e fora do país, Patrícia Valim dialoga com Arno Wehling, para quem: […] os inúmeros conflitos ocorridos entre vice-reis, governadores e demais autoridades, sobretudo no final do século XVIII […] caracterizavam a natureza intrinsecamente conflitual das relações de poder na colônia – que, antes de significar ausência de racionalidade, era a própria filosofia administrativa da Coroa Portuguesa (p. 77). O que se entendia por “Corporação de Enteados” – ponto de partida para a tese de Valim? De acordo com as cartas e relatos de Luís dos Santos Vilhena, professor régio que atuou em Salvador no final do século XVIII, tratava-se de homens poderosos e sem escrúpulos, a ocupar postos estratégicos no governo da Bahia, que emprestaram feição aparentemente legítima a práticas de enriquecimento pessoal, na proporção direta com que negligenciavam a enorme população de miseráveis, condenada a sobre-existir naquela capitania:

[…] por um lado a Coroa portuguesa tentava recrudescer a fiscalização de todas as variáveis envolvidas no comércio para exportação com a criação das Mesas de Inspeção, das Juntas da Fazenda e do Celeiro Público (…) por outro, ela se colocava em uma situação delicada na medida em que alguns dos principais comerciantes traficantes de escravos, financiadores da economia exportadora e não raras vezes acusados de praticarem contrabando, eram recrutados a ocupar os postos dos órgãos da administração local (p. 82).

No primeiro capítulo, destacam-se os muitos papéis e atribuições do Secretário de Estado José Pires de Carvalho e Albuquerque, célebre pela vasta memória arquivística e por encontrar contínuas brechas na legislação vigente, a reforçar a vantajosa parceria com d. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia entre 1788 e 1801. No quadro geral, para além da escravidão – o principal eixo da economia baiana -, as “clivagens políticas das elites governativas” (p. 52) aproximam decisivamente os eventos transcorridos em Salvador com os de outras cercanias. Também havia contrabando na Bahia e, a exemplo do que sucedeu nas capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão, etc., a troca de influências entre o governo e a justiça (e entre representantes da administração reinol e do clero) resultaram em uma complexa rede de benefícios escusos, restritos aos “principais do lugar”, convenientemente acobertados pela Coroa – mais preocupada em perpetuar o tráfico negreiro e o sistema exploratório do tabaco, do açúcar, do couro e de outras mercadorias: “[…] as falhas dos magistrados eram compensadas pelas funções políticas que eles acabam desempenhando” (p. 125). Dado o aumento do volume de correspondências contendo denúncias a emissários do reino, em Lisboa, e das representações à Vereança, assinadas por comerciantes e políticos locais, a Coroa fechou os olhos aos desmandos; alinhou-se de outras formas com o governo da capitania e passou a remunerar melhor as milícias da guarda real. Daí o relevante testemunho recuperado pela historiadora: “Vilhena associa a queda e a ausência de seus pagamentos à substituição das patentes dos agregados que havia nos corpos de milícias, pois parte dos provimentos do subsídio literário foi usada para a despesa com fardas e patentes que, a seu ver, ‘para nada lhes ficavam servindo’.” (p. 119). Após apresentar o complexo tabuleiro das relações institucionais, orientadas pelo personalismo e a administração irregular do dinheiro, em que sobressaem as imposturas do governador d. Fernando José Portugal de ­Castro e do secretário José Pires de Carvalho e ­Albuquerque, Patrícia Valim concentra-se na análise de conjuntura da época, na figura de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos e do Erário Régio “entre 1796 e 1803” (p. 154). Das numerosas contendas entre os secretários, uma das mais impressionantes envolve a tentativa de se extinguir “o fim dos morgadios” (p. 164), processo que se arrastou durante anos e facultou a José Pires de Carvalho e Albuquerque, em vitória pessoal contra d. Coutinho, acumular impressionantes “348 propriedades” (p. 172), muitas delas surrupiadas a partir de causas alheias. Evidencia-se que d. Rodrigo chocava-se constantemente com o outro Secretário, José Pires de Carvalho Albuquerque, que costumava ser defendido pelo governador d. Fernando, decerto porque as concepções econômicas de d. ­Rodrigo se aproximavam das medidas adotadas pelo Marquês de Pombal, braço direito do rei d. José I até 1777: “D. Rodrigo de Sousa ­Coutinho fundamenta-se sobre dois princípios: unidade política e dependência econômica (…)”, por acreditar “na centralidade da mineração na vida econômica da capitania e pujança da monarquia” (p. 155 e 159).

À medida que avançamos no livro, o ano de 1796 assoma como marco temporal decisivo para compreendermos as motivações que levaram, não apenas as camadas populares, ao movimento de sedição, dois anos depois. Com o passar do tempo, d. Rodrigo passou a contar com um aliado fundamental – o provedor José Venâncio de Seixas. Até 1796, a capitania não recorrera a empréstimos que não pudesse saldar. Daí em diante, a situação se inverteu, o que levou o provedor Seixas a implementar a cobrança de novas taxas e impostos, entre outras medidas que desfavoreceram os colonos e comerciantes locais. As constantes intrigas entre os partidários de d. Rodrigo de Sousa Coutinho e o séquito do governador d. Fernando José de Portugal e Castro aumentaram em muito os processos judiciais, especialmente entre membros da própria elite escravista, dentre os quais, destaca-se o “negociante português Antônio José Ferreira (…), obrigado a desistir da prorrogação do contrato do dízimo em razão da pressão exercida pelos negociantes soteropolitanos, com apoio da Junta da Fazenda, do governador da capitania da Bahia e do posterior reconhecimento de D. João VI” (p. 192).

Se o cenário era de tensão constante entre os poderosos, adeptos de posições antagônicas, pode-se imaginar a reverberação das contendas em outros setores e camadas médias e mais populares, o que terá colaborado na publicação de “dez boletins manuscritos” em “12 de agosto de 1798” (p. 195), cuja autoria era ignorada. De acordo com os documentos da época, o levante teria reunido “676 adeptos”, dentre os quais “513 pessoas pertenciam a corporações militares” (p. 196). Vale lembrar que, para além das divergências na cúpula do poder local, o sangrento conflito contrapunha multiproprietários e um exército de despossuídos. A desigualdade estava na base dos conflitos. No bando de lá, brilhavam “o secretário de Estado e Governo e seus parentes (…) [como] os maiores proprietários de engenhos da capitania a Bahia no início do século XIX” (p. 208). Deflagrado o movimento, rápida e barbaramente sufocado pelas forças do governo, que contavam com o aval da Coroa, cumpria identificar e apontar os cabeças do movimento: “O caminho duvidoso escolhido por D. Fernando foi o exame de várias petições antigas que se encontravam na Secretaria de Estado e Governo do Brasil, sob o comando de José Pires de Carvalho e Albuquerque. O objetivo era confrontar as letras dos documentos oficiais com as letras dos ‘pasquins sediciosos’.” (p. 222). Logo começaram a aparecer os bodes expiatórios. A esse respeito, Patrícia Valim notou que: “[…] em 1798, havia uma fluida relação de homens provenientes de vários setores, mas especialmente entre os senhores de escravos e de terras, escravos urbanos e os milicianos das tropas urbanas” (p. 231). A condição dos homens mantidos em cárcere era emblemática: “Em meados de 1799, já eram nove presos – pois um deles, Antônio José, morrera na prisão (…). Dos escravos indiciados nos autos, quase todos eram pardos e nascidos na Bahia” (p. 225). O governo recorria a todos os métodos, em diferentes graus de ilicitude, para punir os “sentenciados”. Outro exemplo de desfecho trágico contava com os conflitos entre os “pardos livres” e “escravos” (p. 228): “Do total de 13 testemunhas que formularam culpa sobre Luiz Gonzaga das Virgens e, depois, em outra devassa, sobre mais três pardos, o poder local aproveitou-se da animosidade existente entre pardos livres e escravos para convocar que estes últimos despusessem sobre o que eles sabiam acerca da ‘revolução projetada’.” (p. 238).

Amparada por extensa bibliografia e documentação, encontrada em arquivos e acervos bibliográficos, Patrícia Valim explicita os mecanismos de favorecimento pessoal, enriquecimento ilícito e a prática quase regularizada do contrabando e da apropriação indébita de recursos do erário real, sob os olhos semicerrados da Coroa – mais interessada em manter e ampliar os empréstimos e favores prestados pela capitania da Bahia. Como os denunciados eram tratados, enquanto aguardavam pela sentença? “[…] o padrão presente no interrogatório dos escravos é o mesmo dos depoimentos e da acareação de Domingos da Silva Lisboa, homem pardo. Encerravam-se as perguntas no momento em que os nomes dos ‘principais’ eram citados e retomava-se o processo um ou dois dias depois, sem que se verificasse a procedência das informações” (p. 248). Conformadas ao sistema de acobertamento, aplicado pela Coroa sobre as numerosas denúncias de corrupção e mau uso do dinheiro na capitania, as instituições continuavam a validar as denúncias, muitas vezes sem qualquer comprovação material. A pesquisadora salienta que, “Embora as autoridades locais não averiguassem as informações fornecidas pelos cativos e milicianos, ao longo de mais de um ano de investigação, as denúncias sobre a participação de ‘homens colocados entre os povos’ chegaram a Lisboa e medidas foram tomadas” (p. 255). Assim como a murmuração mística, pertinente ao Tribunal do Santo Ofício, no plano terreno “o ‘ouvir dizer’ foi mais do que suficiente para a acusação dos quatro milicianos pardos por participarem de reuniões de conteúdo sedicioso e serem os autores dos boletins manuscritos” (p. 257). Avancemos. Eis que se aproxima o momento do castigo exemplar a ser aplicado aos perigosíssimos homens pobres e pardos da capitania: “No dia 18 de outubro de 1799, foram definidos os critérios para as sentenças e o termo de conclusão da devassa instaurada para averiguar a “projectada revolução” (…) dos infelices e desgraçados RR [réus]” (p. 265 – respeitada a grafia original). Os lamentáveis episódios transcorridos em Salvador culminaram com a morte direta de quatro participantes do movimento, cujo procedimento permitiria evocar o que sucedeu ao alferes Tiradentes, em 1792, no Rio de Janeiro:

À execução dos outros dois réus [Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga e João de Deus do Nascimento], seguiu-se o esquartejamento dos corpos. A cabeça de Lucas Dantas foi degolada, assim como a dos outros três, e depois espetada em um poste no Dique do Desterro. Os outros pedaços dos corpos dos réus foram expostos no caminho do Largo de São Francisco, onde Lucas Dantas residiu (p. 272).

Mas, afinal, o que teria acontecido à corporação dos enteados, que mandava e desmandava na capitania da Bahia? O que costumava suceder aos “homens de bem” daquele território: “Após o enforcamento e esquartejamento dos réus da Conjuração Baiana de 1798, a corporação dos enteados manteve-se como setor dominante da capitania da Bahia, voltando a ocupar, inclusive, cargos na Câmara Municipal de Salvador, afastados desde 1796” (p. 278). Estas linhas dizem muito menos do que vai no livro de Patrícia Valim, estudo pioneiro nesta abrangente área de pesquisa. No que toca à famigerada Corporação dos Enteados, porventura, fosse oportuno discorrermos mais longamente sobre a fabricação de leis extravagantes ou sobre a emissão de alvarás que costumavam atender a demandas específicas, quase sempre benéficas àqueles com maior poder de barganha. Também poder-se-ia aventar a hipótese de que certas posturas e práticas, situadas entre os séculos XVIII e XIX, teriam deixado um legado pernicioso às instituições que ainda operam no país.

Talvez ainda haja aqueles que fingem crer na imparcialidade da justiça e, vez ou outra, sacralizem figuras que se propõem tão retas quanto heroicas. Em nosso tempo, estamos longe de assistir a revoluções, para além de assinaturas em petições on-line. Nem por isso, mudou-se o caráter arbitrário e excludente das leis; tampouco abrandou-se a pena com que uns são castigados sem medida e outros são poupados, esses, quase sempre por serem amigos do rei.

Referências

VALIM, Patrícia. Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: EDUFBA, 2018, 327p. [ Links ]

Jean Pierre Chauvin – Professor da Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes/Departamento de Jornalismo e Editoração, São Paulo/SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX) – RAGGI et. al. (VH)

RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta. Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. 285 p. DOMINGUES, Cândido. Uma baía de histórias: novos olhares sobre Salvador e suas conexões atlânticas. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 68, Mai./ Ago. 2019. 

A obra Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX) fecha um ciclo de debates dos projetos de pesquisa intitulados Bahia 16-19 e Uma cidade, vários territórios e muitas culturas,1 financiados pela União Europeia e Capes/Brasil, respectivamente. No âmbito de cada um desses projetos de investigação, historiadores do Brasil, Portugal e França foram chamados a pensar o Império português a partir de uma perspectiva do Atlântico Sul, de modo a integrar África e América numa outra leitura da colonização lusitana. Salvador, capital do território colonial português na América por mais de 200 anos, foi escolhida como centro de interesse investigativo. Por cerca de dois anos a equipe apresentou seus resultados de pesquisa. Os projetos congregaram pesquisadores com investigações em estágios distintos de desenvolvimento, e no seu âmbito foram organizados workshops nas cidades de Salvador, Lisboa e Paris, favorecendo um debate mais ampliado e diverso, o que se reflete nos trabalhos publicados ao final do processo.

Composta por uma introdução e dez artigos, a coletânea é aberta com a observação dos editores sobre a predominância entre as contribuições que compõem o volume de “perspetivas que elegem, maioritariamente, como ponto de partida, geografias extraeuropeias” (Raggi; Figuerôa-Rego; Stumpf, 2017, p.7). Desse modo, a obra dá sequência à Coleção Atlântica, mais nova do gênero historiográfico publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EdUFBA), em parceria com o Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa (CHAM).2

Um ponto alto da obra é a multiplicidade de fontes que possibilita perceber diferentes relações entre a história da Cidade do Salvador (antiga Cidade da Bahia), as instituições portuguesas (Universidade de Coimbra ou a Junta da Administração do Tabaco, por exemplo) e sujeitos tão diversos quanto africanos escravizados ou libertos agentes do tráfico, clero, indígenas ou agentes da administração colonial. Em seu texto, Carlos Silva Jr. mostra a importância de fontes orais do atual Benin para entendermos as interações afro-europeias setecentistas. A ligação nominativa, de inspiração da microhistória italiana, mostra-se fundamental ao fazer historiográfico desde abordagens da vida socioeconômica de africanos no Atlântico até as análises das matrículas universitárias, da formação e atuação de bispos no Império. Por sua vez, o estudo de um regimento (ou seu projeto) ou de um tratado armorial mostrou-se de interesse para compreendermos diretrizes do Estado e mentalidades individuais. A estas fontes somam-se tantas outras mais tradicionais ao ofício, como testamento e inventário post-mortem, denúncias e processos inquisitoriais, registros notariais e de batismos, legislação colonial e imperial.

Os textos de Carlos da Silva Jr.3 e Luis Nicolau Pares destacam-se por aproximar os conceitos e métodos da História Social com ideias da História Econômica, de modo a pensar a história do tráfico atlântico de escravos conectado com demandas internacionais da economia e da política. A agência africana (a agency de inspiração Thompsoniana) é analisada a partir das possibilidades de africanos (abrindo caminhos para também pensarmos seus descendentes) agirem na engrenagem do capitalismo crescente e de modo integrado ao tráfico de escravos. Se no século XVIII a fundação de Porto Novo é, também, inspirada na busca de melhores preços e fuga de um mercado de alta concorrência (Silva Jr., 2017), no comércio ilegal oitocentista, africanos como Joaquim d’Almeida e Manoel Pinto são representativos de tantos outros que voltaram à África para organizar o comércio negreiro no litoral de modo a dinamizar o embarque e burlar a vigilância inglesa (Pares, 2017).

Ao analisar os “escravos-senhores”, Daniele Souza, também inspirada na História Social, considera o tráfico atlântico como promotor de fenômenos no escravismo brasileiro. Defende que a vigorosa oferta de escravos na Bahia e a possibilidade de fazer encomendas diretamente com marinheiros permitiu a escravos comprar um escravo a preço acessível. Assim como Pares, a autora assevera que a participação africana como “senhores” de escravos ou no comércio era uma exceção do sistema escravista, eram atores protagonistas de excepcionalidades. Como afirma Pares, “uma historiografia que privilegia os africanos enquanto sujeitos autônomos, com capacidade de ascensão social e ação política, não poderia negligenciar, apesar do incômodo moral que supõe” o estudo de situações dessa natureza (Pares, 2017, p.15).

Finalizando a primeira parte, João Figuerôa-Rego e Camila Amaral analisam ações do Estado para o comércio de duas mercadorias de extrema importância para o tráfico transatlântico de escravos: o tabaco e a aguardente (cachaça), respectivamente. Ambos nos chamam a atenção para o envolvimento de agentes do Governo do Império (magistrados e governadores, por exemplo) inseridos em grupos mercantis locais. Figuerôa-Rego mostra, ainda, tentativas da coroa para evitar tais aproximações dos administradores do tabaco na Bahia. A vasta rede político-mercantil das famílias César de Meneses e Lencastro está presente em ambos os textos, ainda que nas entrelinhas.4

A segunda parte da obra, Administração e agentes no espaço americano, tem como foco analisar dispositivos, projetos, instituições e formação clerical. É a parte da obra na qual Europa e América mais se aproximam. Aqui os autores analisam processos desenvolvidos na América, mas dependentes de aprovações ou julgamentos da metrópole. Ou ainda, a formação universitária europeia de agentes que atuariam no Brasil.

Com focos diferentes, Fabricio Lyrio e Maria Leônia C. de Resende discutem a administração dos indígenas envolvendo as igrejas secular e regular e o Estado colonial. Apesar de voltarem sua atenção para o século XVIII brasileiro, mostram que as origens dos problemas relacionados com os governos das comunidades autóctones arrastavam-se desde debates quinhentistas.

Resende destaca a importância de se analisar os discursos da ordenação indígena no mundo hispânico, de tradição mais longeva e inspiradora dos religiosos lusitanos. Lyrio realça a difusa legislação indigenista portuguesa, jamais unificada para o Estado do Brasil. A administração de questões como mão de obra, conflitos, catequese dos indígenas mudavam conforme a Capitania, afirma. Essa realidade levou ao provincial jesuíta (padre encarregado da administração da província), em 1745, a propor ao Rei um regimento que regulamentasse a colonização destes povos naquele Estado, que é, parcialmente, analisado pelo autor. Por sua vez, Leônia Resende mostra que apesar de aprovada a possibilidade canônica para ordenar sacerdotes indígenas, os entraves, muitas vezes pessoais, eram fortes. Aqueles que conseguiram foram ordenados apenas após a expulsão jesuíta e, ainda assim, sua atuação “se restringia à mera função de auxiliar na missionação e, por isso mesmo, não resultou propriamente na consolidação de uma carreira eclesiástica” (Resende, 2017, p.185). Ambos mostram, acima de tudo, a vulnerabilidade jurídica dos povos indígenas, muitas vezes sujeitos aos caprichos dos colonos, oriundos de todos os níveis sociais.

Um desafio da historiografia é perceber o quanto a norma aproxima-se da prática. Ediana Mendes investiga os currículos da Universidade de Coimbra e os registros de matrículas buscando entender a formação possível dos bispos que atuaram no Brasil e o quanto isso seria útil no governo diocesano. O Concílio de Trento é a ponte que aproxima este texto do artigo seguinte, de Jaime Gouveia. Ambos mostram que, a despeito da uma historiografia que contestou a aplicação das normas tridentinas no ultramar, a Coroa procurou cumpri-las tanto na formação dos bispos (Mendes, 2017, p.199) quanto na atuação de “estruturas de vigilância e disciplinamento” do clero (Gouveia, 2017, p.246). Este autor parte da premissa do luso-tropicalismo freyriano para mostrar que uma História Comparada do reino e das colônias indica uma “pandemia luxuriosa” clerical tanto em Portugal quanto no Brasil (Gouveia, 2017, p.245).

Distinto de todos os demais artigos, Miguel M. de Seixas discute “o impacto dos elementos ultramarinos na heráldica portuguesa dos séculos XVI e XVII” (Seixas, 2017, p.251). Se na Europa a Ciência Heráldica (ou Ciência do Brasão) viu-se distante das Universidades, no Brasil nota-se verdadeiro abismo. Encarada como “mera preciosidade de diletantes” e associada à nobreza, aqui e lá, essas características foram fundamentais para esse distanciamento ou, ainda, para considerá-la como uma ciência auxiliar da História (Seixas, 2011, p.27-28). O autor, no entanto, defende que o estudo dos tratados armoriais e das pedras d’armas mostram a consonância da política da coroa com suas conjunturas. Neste aspecto a primeira vez que o brasão da Cidade do Salvador aparece nos tratados portugueses reflete a importância da cidade na Restauração (1640), assim como ocorrera com Goa e Malaca no “século de ouro” da Ásia (Seixas, 2017, p.270).

Organizar uma coletânea é propor-se ao desafio da coesão. Ele pode ser alcançado de distintos modos e intensidades. Esta obra, portanto, não deixa de enfrentar seus percalços. Como ressaltei até aqui, seus textos estão afinados com uma pesquisa de relevo e um debate historiográfico atualizado, sem abandonar os clássicos. Isso por si só já seria um convite à leitura. Destacaria um aspecto a que a obra se propõe e atingiu muito bem seu objetivo: avançar no conhecimento da ação de indígenas e africanos na construção da sociedade colonial. Os artigos que tratam desses agentes históricos mostram que estes estavam bastante atentos ao que se passava na política, economia e religião, e buscaram inserir-se nas brechas que o poder dominante lhes “permitia”. Salvador e suas histórias por vezes não aparecem diretamente no texto, daí um conhecimento prévio de sua capitalidade, das instituições nela instaladas e sua jurisdição a todo o Estado do Brasil. Aos neófitos, recomenda-se atenção redobrada, um simples detalhe pode ligar Salvador aos mais vastos sertões assim como um brasão pode ligá-la diretamente ao rei.

Uma história lusoafroameríndia da Cidade da Bahia! A obra mostra uma Salvador integrada às preocupações e cultura da Era das Invasões Ultramarinas Europeias, mas não só. Amplia e reverbera a atuação dos milhares de povos da África construindo seu mundo, agindo no comércio em busca de sua liberdade. Mostra tantos outros povos ameríndios, em todo o Brasil a suscitar a Igreja Primaz da Bahia a buscar soluções para problema da colonização. E, por fim, realça a importância da Universidade para a construção de agentes políticos de qualquer sociedade.

1O livro que abre esta Coleção é: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo R. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica. Salvador/Lisboa: EDUFBA/CHAM, 2016. As seções ocorreram em Salvador (UFBA) e Lisboa (UNL/CHAM). Sobre o projeto BAHIA 16-19 «Salvador da Bahia: American, European, and African forging of a colonial capital city» (PIRSES-GA-2012-318988) ver http://www.cham.fcsh.unl.pt/ext/BAHIA/BAHIA_home.html, acesso em 19/10/2018.

2CHAM é uma unidade de investigação interuniversitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

3Para uma versão ampliada desse artigo cf. SILVA Jr., 2017a, p. 1-41.

4Para uma boa análise desta rede político-mercantil ver GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004, p. 96-137.

Referências

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português,1688-1735. Topoi, vol. 5, n. 8, p. 96-137, 2004. [ Links ]

GOUVEIA, Jaime Ricardo. “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”: O luso-tropicalismo e a história comparativa no espaço luso-americano (1640-1750), In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.223-250. [ Links ]

MENDES, Ediana Ferreira. A formação acadêmica dos prelados da América Portuguesa (séc. XVII e XVIII, Bahia, Olinda e Rio de Janeiro). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.195-222. [ Links ]

PARÉS, Luis Nicolau. Entre Bahia e a Costa da Mina, libertos africanos no tráfico ilegal. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.13-50. [ Links ]

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Curas de almas nativas: o clero indígena na América Portuguesa (século XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.161-194. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa. Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. A representação do ultramar nos armoriais portugueses (séculos XVI-XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.251-284. [ Links ]

SILVA Jr., Carlos da. Interações Atlânticas entre Salvador da Bahia e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.73-98. [ Links ]

SILVA Jr., Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História, n. 176, p. 1-41, 2017a. [ Links ]

Cândido Domingues – Centro de Humanidades Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal [email protected].

Ditadura militar na Bahia – ZACHARIADHES (EH)

ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org.). Ditadura militar na Bahia: Novos olhares, novos objetos, novos horizontes. Salvador: UFBA, 2009. Resenha de: FERREIRA, Jorge. A ditadura militar na Bahia. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.

Em 1985, a ditadura instaurada no Brasil com o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart chegou ao fim. Trata-se, em termos históricos, de evento bastante próximo. Superando o preconceito de que não poderiam estudar acontecimentos muito recentes, diversos historiadores dedicaram-se a estudar o regime militar imposto em 1964. A ditadura tornou-se objeto de pesquisa dos historiadores brasileiros com resultados muito instigantes.

É nesse contexto que vem a público o livro organizado por Grimaldo Carneiro Zachariadhes, intitulado Ditadura militar na Bahia. Novos olhares, novos objetos, novos horizontes (UFBA, 2009). O livro, resultado de pesquisas originais desenvolvidas por pesquisadores que integram o Núcleo de Estudos sobre o Regime Militar (NERM), aborda diversos temas relativos ao regime militar no estado. Não é difícil perceber, nos vários capítulos da obra, como os historiadores brasileiros, sem abrir mão do rigor metodológico e do trabalho de pesquisa documental, têm apresentado resultados de grande qualidade voltados para o público interessado em conhecer seu próprio passado.

Inicialmente, um problema apresentado à sociedade brasileira e que muitos ainda têm resistências em admitir: o apoio encontrado pela ditadura em diversos segmentos da sociedade brasileira. Ediana Lopes de Santana, por exemplo, abre o livro apontando para o processo de radicalização entre os movimentos que lutavam pelas Reformas de Base durante o governo Jango e os conservadores que resistiam em abrir mão de seus privilégios. Muitos movimentos de mulheres, segundo a autora, surgiram na época, mobilizados contra o governo Goulart. A mais conhecida dessas organizações foi a Campanha da Mulher pela Democracia. Embora defenda que por detrás dessas manifestações femininas estivessem os homens do IPES e do IBAD, especificamente na Bahia isso não ocorreu. No estado, existiam diversas organizações femininas, mas não houve movimentos organizados de mulheres de oposição ao governo Goulart. Foi somente após a consolidação do golpe, em 6 de abril de 1964, que as mulheres baianas de classe média se organizaram e foram às ruas apoiar o novo regime.

Outro setor a apoiar a ditadura foi o protestantismo histórico. Elizete da Silva, em instigante pesquisa, demonstra o apoio de lideranças batistas e presbiterianas ao regime militar. Assustados com o crescimento das esquerdas durante o governo Goulart, os religiosos, com medo do comunismo, apoiaram o golpe e produziram discursos legitimadores do governo autoritário. Alguns, inclusive, colaboraram com as forças de repressão delatando seus próprios irmãos de fé. A proximidade entre os protestantes com a ditadura culminou com a nomeação de um político batista para a prefeitura de Salvador. Por esse motivo que, com razão, muitos qualificam o regime de “ditadura civil-militar”. Afinal, é muito difícil os militares se afirmarem no poder sem o apoio dos civis.

Mas não foram apenas mulheres e religiosos de classe média que legitimaram a ditadura. Segundo pesquisa de Alex de Souza Ivo, sindicalistas também o fizeram. Durante o golpe militar, as unidades da Petrobrás na Bahia, em particular a refinaria de Mataripe, sofreram fortíssima repressão, com prisões e demissões. As lideranças dos sindicatos petroleiros haviam se engajado no movimento pelas reformas de base e tiveram importante atuação no Comando Geral dos Trabalhadores. Os golpistas civis e militares os conheciam, daí a repressão que, rapidamente, desarticulou qualquer resistência. Mas a intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos dos petroleiros chamou a atenção de dois dirigentes sindicais que haviam sido afastados do Sindipetro/Refino, em janeiro de 1963. Em carta aos diretores da refinaria de Mataripe, eles apresentaram-se como participantes da “Revolução” e atacaram, segundo suas próprias palavras, os colegas integrantes do “comuno-peleguismo”. Eles também formularam sugestões para o regime conseguir o apoio dos operários. Enquanto muitos sindicalistas eram presos e operários perseguidos abandonavam os empregos, alguns procuravam tirar proveito da situação.

Embora tenha sido, desde o início, um regime conhecido pelas práticas repressivas e autoritárias, a ditadura encontrou apoio social. José Alves Dias apresenta os resultados de sua pesquisa sobre a repressão na cidade de Vitória da Conquista, demonstrando que os estudos locais podem oferecer novas e diferentes percepções de um mesmo processo ocorrido nos grandes centros. Antonio Mauricio Freitas Brito, por sua vez, preocupa-se com o movimento estudantil em Salvador no ano de 1968. Tratou-se de um movimento bastante mobilizado. Milhares de estudantes foram às ruas protestar pela falta de vagas nas Universidades. Também realizaram greves de protesto pelo assassinato do estudante Edson Luís no Rio de Janeiro, contra o corte de verbas para o ensino superior e o acordo MEC-USAID. Conflitos com a polícia, passeatas, panfletagens e pichações foram ações muitos comuns. Com o AI-5, diversos estudantes foram obrigados a abandonar a universidade, e a recorrer ao exílio político ou à clandestinidade.

As organizações armadas revolucionárias também fizeram parte das preocupações dos pesquisadores que participam do livro. Sandra Regina Barbosa da Silva Souza realizou importante pesquisa sobre a atuação da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares, do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário e do Movimento Revolucionário Oito de Outubro. Recorrendo aos métodos da História Oral, a autora demonstra a interiorização dessas organizações e sua atuação em diversos municípios da Bahia. A pesquisa questiona as teses que consideram a Bahia como um estado em que não teria havido oposição armada ao regime, sendo Salvador apenas uma “área de recuo”. Cristiane Soares de Santana, também recorrendo à História Oral, preocupou-se especificamente com outra importante organização revolucionária que também atuou na Bahia, a Ação Popular. No texto, conhecemos as vivências e experiências dos revolucionários apistas no estado, particularmente durante o processo conhecido por “inserção na produção”, quando muitos deles trabalharam em fábricas e nas plantações de cacau e mamona.

Ao lado da oposição armada à ditadura, encontramos no livro a atuação de setores moderados. A pesquisa do organizador da coletânea, Grimaldo Zachariadhes, resgata o papel do cardeal Dom Avelar Brandão Vilela na arquidiocese de Salvador. Ele tinha no diálogo sua maior arma. Seja com políticos de esquerda, com militares de direita, com membros do clero conservador ou dos adeptos da Teologia da Libertação, Dom Avelar marcou presença na política da Bahia durante a ditadura. Sua moderação política e sua insistência no diálogo permitiram que ele protegesse religiosos das perseguições militares e intercedesse a favor dos presos políticos. Margarete Pereira da Silva também se preocupa com a atuação da Igreja Católica, mas com os adeptos da Teologia da Libertação na cidade de Juazeiro. Esse setor do clero, insatisfeito com a penetração predatória do capitalismo no campo e a miséria daí resultante, publicou, em 1973, importante documento intitulado Eu ouvi os clamores do meu povo, com contundentes denúncias sobre os baixíssimos índices sociais no Nordeste brasileiro. O texto provocou grande mal-estar nas relações entre Igreja e governo militar. A autora nos leva a conhecer as atividades do clero católico diante da construção da barragem de Sobradinho, particularmente da diocese de Juazeiro e da Comissão Pastoral da Terra na defesa das populações que deveriam ser retirada das áreas alagadas pela barragem. Mesmo sob grande pressão dos militares, o bispo de Juazeiro, Dom José Rodrigues de Souza, não recuou na luta em defesa dos pobres que perderiam o pouco que tinham com o lago que se formaria.

No engajamento político contra a ditadura, outras opções surgiram à luta armada. Maria Victoria Espiñeira revela a participação de muitas pessoas que atuaram na cidade de Salvador em duas frentes contra o regime militar. Uma delas, composta majoritariamente por militantes do Partido Comunista Brasileiro, formou a Ala Jovem do Movimento Democrático Brasileiro, único partido de oposição. A outra atuou no chamado Trabalho Conjunto da Cidade de Salvador, agrupando associações profissionais, políticos, estudantes e representantes de associações de bairros. Muitos eram católicos adeptos da Teologia da Libertação. A Igreja progressista e o PC do B controlavam a direção da organização. A Ala Jovem e o Trabalho Conjunto atuaram diante de grandes adversidades. Os jovens comunistas que atuavam dentro do MDB, por exemplo, participaram de um partido político que, embora formalmente de oposição, era dirigido por “adesistas” à ditadura. Mais tarde, sofreram perseguição dos militares. Ora aliados, ora adversários, a Ala Jovem e o Trabalho Conjunto criaram formas de luta contra o autoritarismo do regime.

Outros três trabalhos igualmente contribuem para compreender os tempos difíceis da ditadura e os personagens que se engajaram na luta contra o poder civil-militar na Bahia. Sílvio César Oliveira Benevides reconstitui a greve de secundaristas no Colégio Estadual da Bahia, conhecido como Central, em 1966 e Izabel de Fátima Cruz Melo apresenta as Jornadas de Cinema na Bahia entre 1972 e 1978. O livro se encerra com o trabalho de Joviniano de Carvalho Neto, analisando o II Congresso da Anistia ocorrido em Salvador em novembro de 1979. Trata-se de trabalho que mostra as diversas propostas de anistia e a que foi implementada pela ditadura. O artigo é instigante, sobretudo quando a “anistia recíproca”, aquela que beneficiou os torturadores, retorna ao debate público. O artigo de Joviniano contribui, sobretudo, para a preservação da memória da luta pela anistia no Brasil durante a ditadura militar.

Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetos e novos horizontes é resultado de esforço coletivo de historiadores interessados no estudo de um período especialmente difícil no Brasil: a ditadura civil-militar. Atualmente, em diversas universidades, o tema da ditadura tem atraído a atenção de muitos historiadores.

São vários os motivos que instigam a curiosidade sobre uma época tão retrógrada na vida política do país. Quero chamar a atenção para dois deles. O primeiro é o interesse do historiador por personagens e atores sociais que atuaram naqueles tempos de autoritarismo. No caso do livro, encontramos sindicalistas e cineastas, estudantes universitárias e secundaristas; bispos progressistas e católicos marxistas; jovens que optaram por pegar em armas e outros que preferiram a luta institucional, todos vivendo em um tempo muito diferente do nosso. Conhecer tais vivências e experiências, saber como homens e mulheres inventaram a participação política em um regime autoritário, é um bom motivo para voltar-se para a época da ditadura militar.

O segundo estímulo provém do fato de que estudar a ditadura é conhecer um período em que não havia as prerrogativas do regime democrático, período em que os direitos civis foram suspensos, os direitos políticos cerceados e as reivindicações por direitos sociais consideradas “subversivas”. Quando estudamos a ditadura, no mesmo movimento, valorizamos a democracia. Ressaltamos a importância dos direitos de cidadania dentro do regime democrático. Mostramos, para as novas gerações, como é ruim viver sem o direito de expressar livremente o pensamento, de ser preso sem processo formado, de ter a casa invadida sem ordem judicial, de não ter o direito de eleger os governantes, de ser vigiado em sala de aula e de correr o risco de morrer devido a bárbaras torturas, para citar algumas situações do passado.

A leitura de Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetos e novos horizontes nos leva a esse salutar e instigante “estranhamento” do nosso tempo com o tempo da ditadura. Os estudos sobre a ditadura militar, inevitavelmente, nos levam a valorizar o regime democrático.

Jorge Ferreira – Professor titular de História do Brasil do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (j[email protected]).