A História (quase) secreta: sexualidade infanto-juvenil e crimes sexuais na cidade de Salvador (1940- 1970) | Andréa da Rocha Rodrigues Barbosa

Em que pese o recente crescimento de uma perseguição desenfreada aos estudos sobre mulheres, relações de gênero, sexualidade, etc., é com muito entusiasmo que nós historiadoras/res recebemos o livro A História (quase) secreta, fruto originalmente de uma tese de doutoramento junto ao programa em História Social da Universidade Federal da Bahia e que foi defendida há mais de uma década, em 2007. O livro que ora resenhamos foi apresentado pelo historiador Renato Venâncio (UFMG), especialista em história da infância. Além disso, teve o prefácio assinado pela antropóloga feminista Cecília Sardenberg (UFBA), uma das fundadoras do Neim – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher e gênero, da Bahia.

Atualmente, Andréa Barbosa é professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, dedicando-se, desde o início de sua carreira, aos estudos históricos sobre a infância pobre, mulheres, relações de gênero, corpo e sexualidade infanto-juvenil. É autora do já clássico A Infância Esquecida, Salvador, 1900-1940, 2 assim como, mais recentemente, organizou uma coletânea intitulada Revisitando Clio: estudos sobre mulheres e as relações de gênero na Bahia3 que, além de seu próprio trabalho, reuniu pesquisas feitas por outras historiadoras da área. Além disso, é coordenadora de um grupo de pesquisa e extensão, criado recentemente juntamente a um grupo de jovens historiadores, intitulado Nina Simone, com o objetivo de propiciar debates e pesquisas históricas e áreas afins sobre as relações de gênero, sexualidade etc. Leia Mais

Salvador e os descaminhos do plano diretor de desenvolvimento urbano. Construindo novas possibilidades | Hortênsia Gomes, Ordep Serra e Débora Nunes

Aprovado em 2016, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU de Salvador (1) é, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade (2), o dispositivo legal e de planejamento urbano que balizará o ordenamento e a produção do espaço urbano soteropolitano pelos próximos anos. Este plano é parte do Plano Salvador 500, plano estratégico que buscaria “materializar uma visão transformadora do futuro da cidade até o horizonte de 2049, quando a cidade completará 500 anos de sua fundação” (3). Fez parte desse processo também a revisão da Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo do Município de Salvador – Louos (4), ou seja, esse plano estratégico englobou a revisão de dois fundamentais instrumentos de política urbana para o desenvolvimento urbano da cidade.

Dada a importância do Pddu e das questões que o atravessam, é fundamental que nos debrucemos sobre ele para entendermos o que está em jogo, não apenas em sua redação final, mas também com relação às disputas travadas no processo de sua elaboração, às conquistas, aos impasses e aos potenciais prejuízos à coletividade. A isto se propõe o livro Salvador e os descaminhos do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano: construindo novas possibilidades, organizado por Hortênsia Gomes Pinho, Ordep Serra e Débora Nunes e publicado pela Edufba. Os organizadores são importantes figuras no debate acerca da questão urbana na cidade. Hortênsia Pinho é Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público da Bahia, Ordep Serra é cientista social e professor da pós-graduação em Antropologia da UFBA e Débora Nunes é arquiteta e urbanista, professora do curso de Urbanismo da Uneb. Leia Mais

Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX) – RAGGI et. al. (VH)

RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta. Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. 285 p. DOMINGUES, Cândido. Uma baía de histórias: novos olhares sobre Salvador e suas conexões atlânticas. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 68, Mai./ Ago. 2019. 

A obra Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX) fecha um ciclo de debates dos projetos de pesquisa intitulados Bahia 16-19 e Uma cidade, vários territórios e muitas culturas,1 financiados pela União Europeia e Capes/Brasil, respectivamente. No âmbito de cada um desses projetos de investigação, historiadores do Brasil, Portugal e França foram chamados a pensar o Império português a partir de uma perspectiva do Atlântico Sul, de modo a integrar África e América numa outra leitura da colonização lusitana. Salvador, capital do território colonial português na América por mais de 200 anos, foi escolhida como centro de interesse investigativo. Por cerca de dois anos a equipe apresentou seus resultados de pesquisa. Os projetos congregaram pesquisadores com investigações em estágios distintos de desenvolvimento, e no seu âmbito foram organizados workshops nas cidades de Salvador, Lisboa e Paris, favorecendo um debate mais ampliado e diverso, o que se reflete nos trabalhos publicados ao final do processo.

Composta por uma introdução e dez artigos, a coletânea é aberta com a observação dos editores sobre a predominância entre as contribuições que compõem o volume de “perspetivas que elegem, maioritariamente, como ponto de partida, geografias extraeuropeias” (Raggi; Figuerôa-Rego; Stumpf, 2017, p.7). Desse modo, a obra dá sequência à Coleção Atlântica, mais nova do gênero historiográfico publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EdUFBA), em parceria com o Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa (CHAM).2

Um ponto alto da obra é a multiplicidade de fontes que possibilita perceber diferentes relações entre a história da Cidade do Salvador (antiga Cidade da Bahia), as instituições portuguesas (Universidade de Coimbra ou a Junta da Administração do Tabaco, por exemplo) e sujeitos tão diversos quanto africanos escravizados ou libertos agentes do tráfico, clero, indígenas ou agentes da administração colonial. Em seu texto, Carlos Silva Jr. mostra a importância de fontes orais do atual Benin para entendermos as interações afro-europeias setecentistas. A ligação nominativa, de inspiração da microhistória italiana, mostra-se fundamental ao fazer historiográfico desde abordagens da vida socioeconômica de africanos no Atlântico até as análises das matrículas universitárias, da formação e atuação de bispos no Império. Por sua vez, o estudo de um regimento (ou seu projeto) ou de um tratado armorial mostrou-se de interesse para compreendermos diretrizes do Estado e mentalidades individuais. A estas fontes somam-se tantas outras mais tradicionais ao ofício, como testamento e inventário post-mortem, denúncias e processos inquisitoriais, registros notariais e de batismos, legislação colonial e imperial.

Os textos de Carlos da Silva Jr.3 e Luis Nicolau Pares destacam-se por aproximar os conceitos e métodos da História Social com ideias da História Econômica, de modo a pensar a história do tráfico atlântico de escravos conectado com demandas internacionais da economia e da política. A agência africana (a agency de inspiração Thompsoniana) é analisada a partir das possibilidades de africanos (abrindo caminhos para também pensarmos seus descendentes) agirem na engrenagem do capitalismo crescente e de modo integrado ao tráfico de escravos. Se no século XVIII a fundação de Porto Novo é, também, inspirada na busca de melhores preços e fuga de um mercado de alta concorrência (Silva Jr., 2017), no comércio ilegal oitocentista, africanos como Joaquim d’Almeida e Manoel Pinto são representativos de tantos outros que voltaram à África para organizar o comércio negreiro no litoral de modo a dinamizar o embarque e burlar a vigilância inglesa (Pares, 2017).

Ao analisar os “escravos-senhores”, Daniele Souza, também inspirada na História Social, considera o tráfico atlântico como promotor de fenômenos no escravismo brasileiro. Defende que a vigorosa oferta de escravos na Bahia e a possibilidade de fazer encomendas diretamente com marinheiros permitiu a escravos comprar um escravo a preço acessível. Assim como Pares, a autora assevera que a participação africana como “senhores” de escravos ou no comércio era uma exceção do sistema escravista, eram atores protagonistas de excepcionalidades. Como afirma Pares, “uma historiografia que privilegia os africanos enquanto sujeitos autônomos, com capacidade de ascensão social e ação política, não poderia negligenciar, apesar do incômodo moral que supõe” o estudo de situações dessa natureza (Pares, 2017, p.15).

Finalizando a primeira parte, João Figuerôa-Rego e Camila Amaral analisam ações do Estado para o comércio de duas mercadorias de extrema importância para o tráfico transatlântico de escravos: o tabaco e a aguardente (cachaça), respectivamente. Ambos nos chamam a atenção para o envolvimento de agentes do Governo do Império (magistrados e governadores, por exemplo) inseridos em grupos mercantis locais. Figuerôa-Rego mostra, ainda, tentativas da coroa para evitar tais aproximações dos administradores do tabaco na Bahia. A vasta rede político-mercantil das famílias César de Meneses e Lencastro está presente em ambos os textos, ainda que nas entrelinhas.4

A segunda parte da obra, Administração e agentes no espaço americano, tem como foco analisar dispositivos, projetos, instituições e formação clerical. É a parte da obra na qual Europa e América mais se aproximam. Aqui os autores analisam processos desenvolvidos na América, mas dependentes de aprovações ou julgamentos da metrópole. Ou ainda, a formação universitária europeia de agentes que atuariam no Brasil.

Com focos diferentes, Fabricio Lyrio e Maria Leônia C. de Resende discutem a administração dos indígenas envolvendo as igrejas secular e regular e o Estado colonial. Apesar de voltarem sua atenção para o século XVIII brasileiro, mostram que as origens dos problemas relacionados com os governos das comunidades autóctones arrastavam-se desde debates quinhentistas.

Resende destaca a importância de se analisar os discursos da ordenação indígena no mundo hispânico, de tradição mais longeva e inspiradora dos religiosos lusitanos. Lyrio realça a difusa legislação indigenista portuguesa, jamais unificada para o Estado do Brasil. A administração de questões como mão de obra, conflitos, catequese dos indígenas mudavam conforme a Capitania, afirma. Essa realidade levou ao provincial jesuíta (padre encarregado da administração da província), em 1745, a propor ao Rei um regimento que regulamentasse a colonização destes povos naquele Estado, que é, parcialmente, analisado pelo autor. Por sua vez, Leônia Resende mostra que apesar de aprovada a possibilidade canônica para ordenar sacerdotes indígenas, os entraves, muitas vezes pessoais, eram fortes. Aqueles que conseguiram foram ordenados apenas após a expulsão jesuíta e, ainda assim, sua atuação “se restringia à mera função de auxiliar na missionação e, por isso mesmo, não resultou propriamente na consolidação de uma carreira eclesiástica” (Resende, 2017, p.185). Ambos mostram, acima de tudo, a vulnerabilidade jurídica dos povos indígenas, muitas vezes sujeitos aos caprichos dos colonos, oriundos de todos os níveis sociais.

Um desafio da historiografia é perceber o quanto a norma aproxima-se da prática. Ediana Mendes investiga os currículos da Universidade de Coimbra e os registros de matrículas buscando entender a formação possível dos bispos que atuaram no Brasil e o quanto isso seria útil no governo diocesano. O Concílio de Trento é a ponte que aproxima este texto do artigo seguinte, de Jaime Gouveia. Ambos mostram que, a despeito da uma historiografia que contestou a aplicação das normas tridentinas no ultramar, a Coroa procurou cumpri-las tanto na formação dos bispos (Mendes, 2017, p.199) quanto na atuação de “estruturas de vigilância e disciplinamento” do clero (Gouveia, 2017, p.246). Este autor parte da premissa do luso-tropicalismo freyriano para mostrar que uma História Comparada do reino e das colônias indica uma “pandemia luxuriosa” clerical tanto em Portugal quanto no Brasil (Gouveia, 2017, p.245).

Distinto de todos os demais artigos, Miguel M. de Seixas discute “o impacto dos elementos ultramarinos na heráldica portuguesa dos séculos XVI e XVII” (Seixas, 2017, p.251). Se na Europa a Ciência Heráldica (ou Ciência do Brasão) viu-se distante das Universidades, no Brasil nota-se verdadeiro abismo. Encarada como “mera preciosidade de diletantes” e associada à nobreza, aqui e lá, essas características foram fundamentais para esse distanciamento ou, ainda, para considerá-la como uma ciência auxiliar da História (Seixas, 2011, p.27-28). O autor, no entanto, defende que o estudo dos tratados armoriais e das pedras d’armas mostram a consonância da política da coroa com suas conjunturas. Neste aspecto a primeira vez que o brasão da Cidade do Salvador aparece nos tratados portugueses reflete a importância da cidade na Restauração (1640), assim como ocorrera com Goa e Malaca no “século de ouro” da Ásia (Seixas, 2017, p.270).

Organizar uma coletânea é propor-se ao desafio da coesão. Ele pode ser alcançado de distintos modos e intensidades. Esta obra, portanto, não deixa de enfrentar seus percalços. Como ressaltei até aqui, seus textos estão afinados com uma pesquisa de relevo e um debate historiográfico atualizado, sem abandonar os clássicos. Isso por si só já seria um convite à leitura. Destacaria um aspecto a que a obra se propõe e atingiu muito bem seu objetivo: avançar no conhecimento da ação de indígenas e africanos na construção da sociedade colonial. Os artigos que tratam desses agentes históricos mostram que estes estavam bastante atentos ao que se passava na política, economia e religião, e buscaram inserir-se nas brechas que o poder dominante lhes “permitia”. Salvador e suas histórias por vezes não aparecem diretamente no texto, daí um conhecimento prévio de sua capitalidade, das instituições nela instaladas e sua jurisdição a todo o Estado do Brasil. Aos neófitos, recomenda-se atenção redobrada, um simples detalhe pode ligar Salvador aos mais vastos sertões assim como um brasão pode ligá-la diretamente ao rei.

Uma história lusoafroameríndia da Cidade da Bahia! A obra mostra uma Salvador integrada às preocupações e cultura da Era das Invasões Ultramarinas Europeias, mas não só. Amplia e reverbera a atuação dos milhares de povos da África construindo seu mundo, agindo no comércio em busca de sua liberdade. Mostra tantos outros povos ameríndios, em todo o Brasil a suscitar a Igreja Primaz da Bahia a buscar soluções para problema da colonização. E, por fim, realça a importância da Universidade para a construção de agentes políticos de qualquer sociedade.

1O livro que abre esta Coleção é: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo R. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica. Salvador/Lisboa: EDUFBA/CHAM, 2016. As seções ocorreram em Salvador (UFBA) e Lisboa (UNL/CHAM). Sobre o projeto BAHIA 16-19 «Salvador da Bahia: American, European, and African forging of a colonial capital city» (PIRSES-GA-2012-318988) ver http://www.cham.fcsh.unl.pt/ext/BAHIA/BAHIA_home.html, acesso em 19/10/2018.

2CHAM é uma unidade de investigação interuniversitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

3Para uma versão ampliada desse artigo cf. SILVA Jr., 2017a, p. 1-41.

4Para uma boa análise desta rede político-mercantil ver GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004, p. 96-137.

Referências

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português,1688-1735. Topoi, vol. 5, n. 8, p. 96-137, 2004. [ Links ]

GOUVEIA, Jaime Ricardo. “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”: O luso-tropicalismo e a história comparativa no espaço luso-americano (1640-1750), In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.223-250. [ Links ]

MENDES, Ediana Ferreira. A formação acadêmica dos prelados da América Portuguesa (séc. XVII e XVIII, Bahia, Olinda e Rio de Janeiro). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.195-222. [ Links ]

PARÉS, Luis Nicolau. Entre Bahia e a Costa da Mina, libertos africanos no tráfico ilegal. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.13-50. [ Links ]

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Curas de almas nativas: o clero indígena na América Portuguesa (século XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.161-194. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa. Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. A representação do ultramar nos armoriais portugueses (séculos XVI-XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.251-284. [ Links ]

SILVA Jr., Carlos da. Interações Atlânticas entre Salvador da Bahia e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.73-98. [ Links ]

SILVA Jr., Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História, n. 176, p. 1-41, 2017a. [ Links ]

Cândido Domingues – Centro de Humanidades Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal [email protected].

Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador – SILVA (RBH)

SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2016. 416p. Resenha de: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Quando falamos do trabalho doméstico no Brasil, devemos ter em mente uma instituição sólida, antiga, perene em nossa sociedade. Trabalho pesado, tradicionalmente exercido por mulheres pobres, muitas vezes negras, sujeito a regras incertas e subjetivas que, na intimidade das casas de família, podem proteger da insegurança das ruas e, ao mesmo tempo, oprimir de maneira brutal as trabalhadoras.1 Conviver com a possibilidade onipresente de humilhação, violência e abuso sexual é o cotidiano de milhares de trabalhadoras que vivem nesse universo complexo, escorregadio, avesso à regulamentação. Essa instituição, ainda tão presente no Brasil do século XXI, tem história; uma importante parte dela, situada entre as últimas décadas da escravidão legal no país e a primeira do século XX, é contada pelo historiador Maciel Silva.

Com cuidado e sensibilidade, o autor narra experiências de trabalhadas domésticas em duas grandes capitais brasileiras, Salvador e Recife, com base em pesquisa densa e rigor interpretativo. O autor trata do período compreendido entre as décadas de 1870, quando libertas, escravas e mulheres livres pobres eram recrutadas para as tarefas de “portas a dentro”, como se dizia então, e 1910, escolhido como marco em função da consolidação de diversas reformas urbanas no país, e consequente mudança nos hábitos, ritmos de vida e na dinâmica do trabalho doméstico. Originalmente apresentado como tese de doutorado em História Social na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o livro é um estudo importantíssimo para o tema.

Ao marcar o início do seu estudo na década de 1870, o autor vincula a situação das trabalhadoras domésticas à organização do trabalho que viria com o fim da escravidão, inevitável com a promulgação da lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre. Sem dúvida, como afirma Silva, aquela lei alterou a percepção sobre o trabalho doméstico livre, uma vez que traria, com os contratos, mudanças nas regras de trabalho, nos horários, na moradia das domésticas – não mais necessariamente fixa na casa dos patrões -, nas expectativas, aliás, de ambas as partes. O contexto dos anos 1870 seria, então, um marco para pensar a formação da classe, já que o autor analisa trabalhadoras livres e libertas em ação como domésticas bem antes do marco oficial do fim da escravidão.

Impossível separar as origens do trabalho doméstico do ambiente da escravidão em sociedades onde essa forma de exploração do trabalho grassou por tantos séculos; para Silva, entretanto, se a escravidão marca o trabalho doméstico, e muitas das lutas das trabalhadoras domésticas livres e libertas foram forjadas nas lutas por autonomia dentro da escravidão, ela não define a classe das domésticas, isso é, não se encontra a classe na escrava doméstica. Isso porque Maciel Silva busca – e aqui tratamos de uma parte central de seu livro – explicar a “formação da classe das trabalhadoras domésticas no Brasil”, classe que, para o autor, só teria se formado na experiência da liberdade, ainda que precária, daquelas trabalhadoras. Inspirado em uma leitura perspicaz de E. P. Thompson, Silva enfatiza bem mais a formação aqui, isto é, prefere pensar em processo histórico, conflitos e heterogeneidade para lidar com o conceito de classe, recorrendo à experiência dos sujeitos mais do que à fixidez de uma categoria preestabelecida.

Escravas, portanto, não fariam parte da classe vislumbrada pelo autor. Silva pretende, com essa premissa, fugir dos estereótipos tanto da “mãe-preta”, a generosa escrava que cuidava dos meninos brancos, quanto da “Negra Fulô”, a mucama bela e sedutora, que tantas vezes, na literatura e nas análises de intelectuais, apareceram na caracterização da trabalhadora doméstica, inviabilizando sua análise enquanto protagonistas de suas próprias histórias. Os estereótipos já explicariam e reduziriam suas vidas à condição de passividade, vítimas de um sistema inescapável. Assim, o esforço do autor se dá no sentido de definir as trabalhadoras domésticas como uma classe marcada por lutas contra a exploração, por direitos, e também em tratar dos conflitos no interior da classe.

Se definir essa classe sem incluir as trabalhadoras escravas que viviam dentro das casas resolve o problema de lidar com as diversas especificidades legais das trabalhadoras naquela condição, nem por isso o autor se livra de outro problema teórico: lidar com uma “classe de domésticas” dentro da classe trabalhadora. Esta não parece ser uma preocupação de Maciel Silva, que não entra no debate sobre ofícios e classe, evitando enfrentar a questão. Sua opção para comprovar a tese da formação da classe das trabalhadoras domésticas é partir para a análise, ao invés da discussão teórica sobre classe; para isso, traz uma pesquisa monumental e uma interpretação sofisticada de fontes, revelando as trabalhadoras em movimento. Constrói, dessa maneira, uma história humana, em que mulheres livres e libertas lutam, atuam com solidariedade contra os patrões em alguns momentos e com disputas entre si em outros, sofrem estupros e outras violências, enfrentam acusações de furto, recorrem à fofoca, se ajudam, e também competem entre si. Lidam com noções de honra, fidelidade, gratidão, proteção, bondade, zelo e liberdade, entre outras, específicas daquela sociedade, e, ao fazê-lo, agem como classe, da mesma forma como seus patrões e patroas também o fazem.

Embora a classe seja a noção central a partir da qual o autor quer pensar a experiência das trabalhadoras domésticas, gênero e raça estão contempladas em sua análise. Sem buscar uma solução fácil, Silva busca os momentos em que o gênero se sobrepõe à classe ou mesmo à raça, mostrando que a realidade é bem mais complexa do que as categorias que usamos para tentar entendê-la. Se é verdade que as trabalhadoras eram majoritariamente negras, também havia não negras entre elas. Em alguns momentos, a pobreza e o fato de serem mulheres marcava mais a posição das domésticas do que a própria raça. Novamente, com riqueza de fontes, cuidado analítico e grande capacidade narrativa, vão surgindo Marias, Creuzas, Donatas, Theodoras e tantas outras meninas e mulheres, com suas histórias e maneiras de lidar com os problemas, resistir, viver.

Merece destaque especial o capítulo em que o autor utiliza romances, memórias, contos e outros textos ficcionais como fontes para a história social. Com base na invenção de literatos baianos e pernambucanos sobre quem eram as domésticas, Silva recupera, com maestria na escrita, muito das sensibilidades da época estudada. Em textos que revelam muito mais a visão de mundo dos senhores do que qualquer realidade sobre as trabalhadoras, o historiador captou medos, angústias, violência e sutilezas das relações paternalistas entre criadas e patrões, marcada por conflitos. Porém, é no capítulo em que analisa os processos criminais que esses conflitos aparecem com todas as cores da violência do mundo real. Em acusações de furtos, agressões físicas, ataques à honra, Maciel Silva vai descortinando aos leitores a experiência de defloramentos e estupros, violência física e verbal, humilhações e precariedade que marcaram a vida das trabalhadoras, permeadas também por solidariedades, redes de apoio na vizinhança, fofocas e outras formas de aproximação – e, às vezes, competição – entre elas. Ao longo do texto, o talento de escritor aparece e enriquece a interpretação do historiador. O resultado é um universo doloroso e complexo que surge, tirando da invisibilidade tantas mulheres que viveram essas histórias.

Um grande esforço de comparação entre as duas grandes capitais caracteriza os capítulos iniciais do livro; a falta de documentação equivalente nas duas cidades, porém, faz Salvador aparecer bem mais que o Recife. Para completar o estudo, Silva faz uma análise cuidadosa da legislação desse universo de trabalho e dos contratos que passam a regulá-lo. Acompanha também trajetórias de jovens saídas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia para trabalhar como domésticas em casas de tradicionais famílias baianas – uma rica documentação que nos últimos anos vem sendo utilizada com mais atenção por historiadores. Se na primeira parte do livro o esforço maior é o de situar o leitor nos contextos específicos de Salvador e Recife e nas imagens construídas na literatura sobre as domésticas e seu universo, nessa segunda parte o autor se preocupa em resgatar a experiência das trabalhadoras.

Ao reconstruir trajetórias cheias de conflitos intensos, como nos casos das expostas da Santa Casa e suas experiências infelizes nas casas dos patrões, Silva defende o argumento de que a instabilidade e violência do universo da escravidão e as solidariedades estabelecidas entre as trabalhadores colocaram em xeque, em diversas situações, o paternalismo vigente, construindo possibilidades de vida para as trabalhadoras, ainda que em condições desiguais e precárias. Sem cair em heroísmos ou simplificações binárias, o autor interpreta as relações de poder daquele mundo, mostrando sua complexidade e as dificuldades em regulamentar um trabalho que é tão pautado pela subjetividade das relações que se estabelecem na intimidade das casas.

Um tema tão atual e importante remete, necessariamente, à luta das trabalhadoras domésticas nas últimas décadas da nossa história por cidadania, direitos, respeito, dignidade no trabalho e na vida. São temas recuperados pelo autor no desfecho do livro, embora se afaste de qualquer tentativa de linearidade na interpretação da luta daquelas trabalhadoras. Em tempos sombrios como os que enfrentamos, em que os direitos dos trabalhadores são tão duramente ameaçados, o livro de Maciel Silva é ainda mais necessário, recolocando problemas fundamentais na nossa sociedade que se pretende moderna e é tão barbaramente marcada por valores arcaicos e desumanos. Este livro nos faz pensar na força do trabalho doméstico no Brasil, nesse modo de mandar, de incluir em casa sem incluir de fato, de tratar “bem” sem tratar como igual, de marcar o lugar de classe e a situação de privilégio de um e a de dependência e humilhação de outros. Tantas incongruências e contradições, o ir e vir da constituição da classe, são revelados com primor neste livro imprescindível.

Referências

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [ Links ]

Notas

1 Refiro-me aqui ao binômio proteção e obediência, conforme o trabalho doméstico foi caracterizado em um livro já clássico sobre o assunto, da historiadora Sandra Graham. As criadas, sendo trabalhadoras obedientes, receberiam proteção de seus senhores, vivendo na intimidade dos lares, longe dos perigos e da imprevisibilidade das ruas. A autora mostra, porém, que esses significados convencionais eram ambíguos: a casa podia ser o lugar da injustiça para os criados, assim como a rua poderia significar liberdade, longe do controle e vigilância dos patrões. Ver GRAHAM, 1992, p.16.

Gabriela dos Reis Sampaio – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected].

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O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador – PINHO (VH)

PINHO, Osmundo. O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador. Curitiba: Progressiva, 2010, 491 p. SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012

No final da década de 1970, a emergência do movimento social negro urbano, denunciando as práticas racistas, as desigualdades raciais e desmistificando a democracia racial brasileira, produziu um novo interesse de interpretação e mudança da problemática social e racial no Brasil. No contexto internacional, esse interesse hermenêutico sofreu influências não somente das lutas contra o racismo e em prol dos direitos civis empreendidas por negros dos Estados Unidos, que tiveram início na década de 1960; mas também das lutas em favor das independências de países africanos, contra o racismo e pela valorização da cultura negra, nas quais se encontravam intelectuais carismáticos do porte de Leopold Senghor, Cheikh Anta Diop, Amilcar Cabral, Kwane N’Krumah, Frantz Fanon, Aimé Cesaire e Jean Paul Sartre. No contexto nacional, o resultado da produção científica da Escola de Sociologia da USP, assinada por intelectuais como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, revelava, além dos aspectos perversos do racismo e da integração do negro na sociedade de classes, as sobrevivências africanas no Brasil, através de pesquisas sobre o candomblé da Bahia, desenvolvidas por Roger Bastide. No cadinho desses acontecimentos políticos, culturais e epistêmicos, no seio da juventude negra que ingressou nas universidades despontaram intelectuais interessados em apresentar novas interpretações sobre a história e o pensamento social negro brasileiro, a partir de configurações culturais e reações políticas, evidenciadas como reterritorialização do espaço urbano, através da agência de segmentos da população negra. É nesse contexto que se inscreve a obra O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador de Osmundo Pinho, cujo conteúdo é resultado de sua tese de doutorado em Ciências Sociais, realizado na UNICAMP.

A fim de evidenciar características da reafricanização e o desenvolvimento de novas identidades e organização negra em Salvador, o autor inicia sua reflexão identificando vínculos entre raça e classe na história da fundação do Bloco Ilê Aiyê, no meado da década de 1970, informando que tanto os fundadores do Ilê Aiyê quanto do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, mais tarde denominado MNU), eram trabalhadores da Petrobrás e do Polo Petroquímico de Camaçari. Na inserção dos negros no trabalho industrial, o autor identifica transformações que foram mudando a paisagem social, econômica e cultural de Salvador. Conforme o autor, as deficiências estruturais das lutas antirracistas na Bahia, talvez possam ser atribuídas à inserção precária dos negros no mercado de trabalho (p.80).

Como expressão de luta antirracista, o Bloco Ilê Aiyê (expressão em língua iorubá, que em uma tradução livre pode significar mundo negro), constitui-se como “uma insurreição contra a tradição baiana, congelada entre o espaço vazio da inserção precária no trabalho e a folclorização de práticas culturais de resistência como o samba e o candomblé” (p.83). Dessa forma, o Ilê Aiyê é o dado empírico que representa o paradigma da reafricanização na Bahia, através da agência política de negros trabalhadores da indústria petroquímica, os quais além de seduzidos pela “onda de soul” no Brasil da década de 1970, também foram inspirados pelas lutas globais de emancipação racial (p.14). Assim, “O mundo negro” que o Ilê Aiyê levou para as ruas no Carnaval de 1974, de Salvador, em pleno contexto da Ditadura Militar, era mais uma maneira de dar visibilidade à população negra da capital baiana. Expressando-se a partir de uma linguagem estética, marcada por ritmos, sons, cores e coreografias, performances que recriavam o espaço do terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu, onde nasceu o bloco, na grande avenida da cidade, os componentes do Ilê Aiyê demonstravam que a tentativa de fazer desaparecer as heranças africanas e o povo negro no Brasil havia malogrado. A palavra de ordem do bloco era evocada no canto que dizia: “Que bloco é esse, eu quero saber. É o Mundo Negro, que viemos mostrar pra você.” Com refrão musical, os negros e as negras organizados/as na Ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade, instauravam um Carnaval negro na cidade de Salvador.

O autor procurou “edificar uma leitura sobre o surgimento de novas identidades afrodescendentes em Salvador, seus contextos e cenários, suas articulações e conexões, seus níveis de constituição e reprodução […] como modo de fazer uma revisão compreensiva dos estudos afrodescendentes […]” (p.14-15), cujo “objetivo foi a construção da reafricanização como um objeto para a reflexão crítica […] tomando a narrativa de Risério [sobre “Carnaval Ijexá”] como ponto de partida para sua des-representação através dos textos e discursos”. A revisão dos estudos sobre afrodescendentes é constituída por aportes que se encontram presentes em uma vasta bibliografia que trata sobre o negro do Brasil, envolvendo autores como: Nina Rodrigues, Manuel Querino, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, até reflexões mais contemporâneas como as de Júlio Braga, Vivaldo da Costa Lima, Jocélio Teles, Lívio Sansone e João José dos Reis. Além desses pensadores e pesquisadores, o autor utiliza-se de outras fontes como as entrevistas feitas aos membros fundadores do Ilê Aiyê.

Do ponto de vista metodológico, o tratamento dos dados se inscreve na perspectiva de uma hermenêutica crítica, pois como afirma o autor “ao invés de enfatizar o aspecto essencializante das identidades negras, preferi, de outro modo, apontar suas características críticas e por em relevo, o peso cristalizado das representações, discursos (…) ambiente para as relações raciais no Brasil” (p.22). A abordagem teórica utilizada para conduzir a interpretação pretendida, envolve autores como Marx, Heidegger, Rorty, Foucault, Baudrillard, Derrida, Deleuze, Michel de Certeau, Bourdieu, Homi Bhabha e Paul Gilroy. A partir da confluência dessas fontes bibliográficas sobre o negro brasileiro e os aportes teóricos desses pensadores, os quais estão vinculados a diferentes campos epistêmicos, O mundo negro passa a ser uma obra que se destina não apenas ao público interessado sobre a temática da sociologia do negro no Brasil, mas também aos pesquisadores que se debruçam a história do pensamento social negro no século XX.

Compreendendo a obra de Nina Rodrigues como um aporte do pensamento racialista do Brasil, o autor inscreve como seus herdeiros tanto Arthur Ramos quanto Gilberto Freyre, identificados como representantes da transição entre os paradigmas racialistas para os culturalistas (p.172). Em Arthur Ramos encontra-se a perspectiva da aculturação e integração do negro na sociedade brasileira, através de modelos de transformação como o sincretismo. Em Gilberto Freyre, “o negro é parte integrante da alma nacional, uma vez que está miscigenado e que todos nós temos algo de negro se não no sangue, na alma.” (p.175-6). Na concepção do autor, os estudos afro-brasileiros, ao constituir o “negro” como “objeto de ciência,” impediram sua constituição como sujeito político da representação. (p.302). Ainda segundo o autor, foi Roger Bastide, em sua obra Religiões africanas no Brasil o responsável por desenvolver um conjunto de argumentos anti-culturalista que além de deslocar a reflexão sobre o “problema do negro”, passou a “considerar a tradição africana no Brasil como inserida em estruturas sociais historicamente enraizadas, como que habitando-as.” (p.283-4). Outro pensador que criticou os Estudos Afro-Brasileiros foi Guerreiro Ramos, ao afirmar que tais estudos “transformavam o negro em ‘peça de museu’ ao estudarem os aspectos tradicionais da cultura negra, vistos por ele como elemento de atraso e de ignorância” (p.424).

Como uma obra realiza uma reflexão hermenêutica sobre a história do pensamento social negro e sobre a agência política e cultural de segmentos negros organizados, tendo o bloco Ilê Aiyê como um paradigma da reafricanização e contestação da realidade social, política e cultural da população negra de Salvador, os resultados apresentados são bastante alvissareiros, no que se refere à reterritorialização e também à valorização da cultura negra em Salvador. No entanto, o texto apresenta alguns problemas que não são apenas aqueles apontados pelo autor quando na conclusão caracteriza seus argumentos como “precariamente alinhavados” (p.433). O primeiro problema diz respeito ao conjunto de informações imprecisas que o autor oferece sobre o candomblé de Salvador, demonstrando que tem um conhecimento limitado do candomblé, sobretudo quando se refere ao bori (p. 133-4, 146) e também quando apresenta tabelas imprecisas sobre correspondências e hierarquias (p. 139, 140, 142).

Concluo destacando ainda mais dois problemas. Um refere-se à maneira pouco sistemática como o autor transita em campos epistêmicos tão diferenciados, sem estabelecer mediações discursivas, como no caso das apropriações que faz de abordagens filosóficas tão distintas, envolvendo os estudos culturais e autores de diferentes tradições epistemológicas como Foucault, Heidegger, Marx, Rorty. O outro problema se refere à conclusão, onde praticamente desaparece não somente o objeto principal do estudo – “O mundo negro do Ilê Aiyé” -, mas também o foco da hermenêutica da reafricanização, inicialmente direcionado para o vinculo entre raça e classe, os discursos do modelo do candomblé jeje-nagô e para a tradição dos estudos afro-brasileiros. Esse último problema aparece justamente em razão do autor pretender refletir sobre o Teatro Experimental Negro – TEN, sem que esse tenha sido um dos objetivos do estudo.

Erisvaldo Pereira dos Santos – Departamento de Educação (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mariana – MG, [email protected].

Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX | Renato Pinto Venâncio

A infância como objeto de pesquisa dos historiadores só apareceu com o livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime (Paris: 1960). Na seqüência dos estudos relativos à criança, surge o interesse pela história das crianças enjeitadas ou abandonadas, como nos referimos atualmente.

Na década de setenta, refletindo a atenção que historiadores e principalmente historiadores-demógrafos davam ao tema da criança (abandonada ou não), foi publicado pela Societé de Démographie Historique um número consagrado ao novo campo de investigação que se abria: a história da infância. Leia Mais

Decifra-me ou devoro-te: história de vida dos meninos de rua de Salvador – ATAÍDE (RBH)

ATAÍDE, Yara Dulce Bandeira de. Decifra-me ou devoro-te: história de vida dos meninos de rua de Salvador. São Paulo: Edições Loyola, 1993. 202p. Resenha de: REIS, João José. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.12, n.23/24, p.210-212, set.1991/ago.1992.

João José Reis – Professor da UFBA. Autor de Amorte é uma festa (Companhia das Letras, 1991) entre outros livros.

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