Die Achse. Berlin-Rom-Tokio 1919-1946 | Daniel Hedinger

L’Asse Berlino-Roma-Tokyo – secondo la denominazione adottata, soprattutto nel mondo anglosassone, per definire l’insieme di accordi che unirono Italia, Germania e Giappone dal Patto anticomintern al Tripartito – appare ancora oggi uno dei costrutti politico-internazionali più controversi dell’età contemporanea. Onnipresente fino al termine della Seconda guerra mondiale tanto nella propaganda dei tre regimi quanto nelle rappresentazioni e nelle considerazioni strategiche dei loro avversari, nonché assunta come capo d’imputazione per “cospirazione contro la pace” nei processi di Norimberga e Tokyo, l’alleanza tripartita scomparve rapidamente dalla memoria pubblica del dopoguerra, oscurata da una percezione nazionale delle singole esperienze autoritarie e da una visione regionalizzata del conflitto mondiale, con la netta distinzione del teatro bellico europeo da quello asiatico-orientale e una gerarchia d’importanza che subordinava il secondo al primo. A partire dagli anni Cinquanta, la storiografia sul Tripartito si è concentrata prevalentemente sugli aspetti diplomatici e sui contatti bilaterali, ponendo al centro la Germania e i suoi rapporti con Italia e Giappone, mentre le relazioni italo-giapponesi erano liquidate come un prodotto secondario dell’avvicinamento italo-tedesco. In questa prospettiva l’Asse parve un’«alleanza senza alleati» 1, debole e «inefficace» 2 perché minata da insanabili contraddizioni interne – dipendessero queste dall’accesa rivalità ideologica tra Roma e Berlino oppure dall’innaturale collaborazione tra il razzismo nazista e un paese asiatico che aveva presentato una proposta di uguaglianza razziale alla Conferenza di pace di Parigi. Leia Mais

Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire – GALVÃO-SOBRINHO (RTF)

GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2013. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Quais os mecanismos que levaram à transformação da liderança cristã, ou seja, do bispo cristão, em uma força política e social de destaque no Império Romano na primeira metade do século IV d. C.? Essa é a pergunta central do livro Doctrine and Po-wer: theological controversy and Christian leadership in the later Roman empire (2013), de Car-los Roberto Galvão-Sobrinho. As reflexões do autor sobre essa temática remontam ao final da década de 1990, momento em que defendeu o seu doutoramento1 na Yale University, sob a supervisão de Ramsay MacMullen. Atualmente, Galvão-Sobrinho é professor-associado de História Antiga e História da Medicina na University of Wis-consin2.

Como destaca o autor, a despeito do crescimento das pesquisas que envolvem o assunto, encontramos ainda muitos estudos que se concentram na perspectiva teológica da atuação desses indivíduos, na sua dimensão intelectual, em detrimento de uma maior problematização acerca do impacto da atuação dessas lideranças na vida da Igreja e da cidade (p. 2). Contudo, observa-se que, a partir das últimas décadas do século passado, historiadores da Antiguidade Tardia têm privilegiado o estudo dessas lideranças inseridas no seu contexto de atuação. Eles buscam explicar a complexidade das relações sociais e dos conflitos engendrados por essas relações, que possibilitaram a emergência de líderes revestidos de poder e autoridade. Novas perspectivas de análises se abriram a partir das recentes abordagens preconizadas pelas Histórias Política e Cultural, sobretudo na forma de encarar uma documentação retórica e propagandística que, produzida em momentos de conflitos, muitas vezes chegou até nós permeada pelos interesses das facções em confronto. Portanto, percebe-se, a partir daí, que a dimensão religiosa no período não pode ser desvinculada das demais esferas da vida social, sobretudo da dimensão política, sob pena de se incorrer numa produção artificial de sentidos acerca da atuação desses indivíduos que nos legaram uma massa documen-tal que tem muito a nos dizer para além da história das ideias.

Vislumbramos uma produção historiográfica crescente nessa nova perspectiva que, muito embora o seu grosso recaia sobre historiadores europeus e estadunidenses, também se observa, mais recentemente, a inserção de pesquisadores brasileiros nessa nova fronteira de estudos sobre as implicações político-sociais das controvérsias teológicas no Império romano da Antiguidade Tardia. Dentre essas pesquisas, não há dúvidas que, pela originalidade com que conduz o seu trabalho, podemos inserir essa obra de Galvão-Sobrinho entre aquelas que se tornarão referência para os estudiosos do tema.

Fazendo uso de um extenso corpus documental3, somente possível a um pesquisador com vasta erudição, Galvão-Sobrinho também complementa a sua narrativa com um bom número de notas explicativas sobre essa documentação e a bibliografia utilizada (p. 187-271). Tais documentos abrangem o recorte cronológico de meados do século III d.C. a meados do século IV d.C. nas províncias romanas orientais de fala grega. Para o autor, esse recorte se justifica, pois, a despeito do mosaico de culturas locais, a região manteve certa uniformidade social, econômica, política e cultural que permitiu a ele tratá-la como uma unidade (p. 8). Isso possibilitou demonstrar o seu objetivo principal de que a extensão, tanto no tempo quanto no envolvimento expressivo de diferentes camadas da população por todo o Oriente (clérigos, pessoas comuns, funcionários da administração imperial e, até mesmo, dos imperadores), e o padrão de violência verificado, até então desconhecido nos conflitos teológicos anteriores, fizeram da Controvérsia Ariana4 um paradigma para se entender a afirmação das lideranças eclesiásticas revestidas de poder e autoridade naquele contexto. Ademais, o autor verifica, também, que em vários momentos da controvérsia as oportunidades reais de tolerância e entendimento mútuos foram ignorados ou não levados a sério. Isso, portanto, indica que os líderes da Igreja se engajaram não apenas em uma luta sobre a definição da verdade sobre Deus, mas, também, pela liderança das congregações cristãs e de seus recursos, que eram ativos políticos e econômicos significantes. Desse modo, “alimentar a disputa era questão crucial sobre o relacionamento entre autoridade e ortodoxia, teologia e poder” (p. 4).

Outra questão relevante, até então considerada pela historiografia como preponderante para o prolongamento e virulência da Controvérsia Ariana, refere-se ao envolvimento dos imperadores na querela. Ao contrário, Galvão-Sobrinho constata que a disputa tomou forma de uma crescente resistência e arraigada oposição às pressões imperais por uma uniformidade teológica, mesmo por parte de clérigos beneficiários do patrocínio imperial, que poderiam ter suas posições e vidas ameaçadas. Portanto, embora o autor constate que essas intervenções imperiais contribuíram para os tumultos persistentes, o envolvimento dos imperadores não explica os desafios ao poder imperial por parte do clero nem as sublevações que se originavam nas disputas locais. Desse modo, os eventos turbulentos que circundaram os acontecimentos do conflito, além de uma questão propriamente teológica sobre a definição de Deus, também estavam relacionados às tensões inerentes da própria estrutura interna da organização eclesiástica. Nesse sentido, a análise também perpassa pelas considerações de Pierre Bourdieu, que constatou que a esfera teológica é um lugar de concorrência e as ideologias produzidas nela visando à instauração de um monopólio dos instrumentos de salvação estão propensas a serem utilizadas em outras lutas, como, por exemplo, a disputa pelo poder na hierarquia eclesiástica, conforme as diferentes posições ocupadas pelos seus membros nessa organização.

Para explicar, então, as implicações mais amplas do engajamento das lideranças eclesiásticas nas controvérsias teológicas do século IV d.C. que contribuíram para a construção da autoridade episcopal o autor estrutura seu trabalho em oito capítulos divididos em três partes5. O capítulo 1 (Christian Leadership and the Challenge of Theology), começando pelo século III d.C., traz uma discussão geral dos desafios colocados aos líderes da Igreja num momento em que a questão da autoridade começa, cada vez mais, repousar nas reivindicações deles como representantes do espírito de Deus. Quando se acreditava que os bispos desviavam da “verdade”, como acontecia nas disputas teológicas, essas reivindicações eram questionadas e a legitimidade delas colocadas em dúvida (p. 15-22). O capítulo 2 (“Not in the Spirit of Controversy”: Truth, Leadership, and Solidarity), examina como esses bispos reagiram àqueles desafios no século III d.C., mostrando que, quando confrontados com a dissidência doutrinal, eles se esforçavam para finalizar os desentendimentos e resolver os conflitos por meio da negociação e do debate. Para o autor, a ausência de critério preciso para a ortodoxia e a favorável ambiguidade da “regra da fé” desencorajava sustentar a confrontação (p. 23-33).

Com a emergência da Controvérsia Ariana, o autor percebe uma mudança, para ele fundamental, na natureza da resposta dos bispos aos desentendimentos teológicos. A persistente confrontação, combinada com uma determinação para minar os prelados rivais, veio a substituir o anterior esforço pelo consenso. Nesse ponto é que percebemos a inovadora contribuição de Galvão-Sobrinho para a análise do problema. Essa mudança é primeiro percebida em Alexandria, cidade em que a controvérsia emerge, resultando na necessidade de alcançar maior precisão e clareza em definir a verdade sobre a divindade. Tais considerações são levantadas no Capítulo 3 (Precision, Devotion, and Controversy in Alexandria) para indicar como as novas definições sobre Deus alteraram os relacionamentos entre os líderes da Igreja. Uma combinação entre essa precisão para definir a verdade e o esforço para desacreditar os oponentes (35-46). Na sequência, o capítulo 4 (Making the People a Partner to the Dispute) examina as consequências dessas ações, seguindo de perto os esforços dos clérigos rivais em Alexandria em envolver suas congregações nas disputas. Nesse momento é que se percebe a emergência de um novo tipo de líder na Igreja, “impertinente, empreendedor e combativo” (p. 47-65). O capítulo 5 (“For the Sake of the Logos”: Spreading the Controversy), examina como a disputa migrou para fora do Egito e observa o desenvolvimento de ações similares em outros lugares do Oriente (p. 66-77).

O capítulo 6 (“To Please the Overseer of All”: The Emperor’s Involvement and the Politization of Theology), busca analisar o impacto sentido na disputa a partir da intervenção do imperador Constantino, através da criminalização da dissidência doutrinal que se seguiu à proclamação da ortodoxia nicena (325), tornando as posições teológicas mais politicamente carregadas (p. 78-97). Uma vez que o Concílio de Niceia falhou em produzir um consenso teológico, a disputa reacendeu logo após o concílio e os desentendimentos teológicos se tornaram mais ameaçadores. Desse modo, o capítulo 7 (Claiming Truth, Projecting Power, A.D. 325-361) trata do ambiente politicamente carregado do tempo de Niceia até a morte de Constantino. Ele mostra como os prelados reagiram ao sentido de insegurança gerado pela falta de consenso e compromisso e as ações tomadas para mobilizar os recursos da Igreja para afirmar autoridade e empreender campanhas para suprimir a oposição, eliminar dissidentes e promover suas visões para um campo cada vez maior. A consequência dessas ações foi a consolidação de um novo estilo de liderança que havia emergido nos anos iniciais da Controvérsia Ariana (p. 99-124). Por fim, no capítulo 8 (The Challenge of Theology and Power in Action: Bishops, Cities, and Empire, A.D. 337-361), o autor transporta aqueles desenvolvimentos para a metade do século IV d.C., da morte de Constantino ao início da década de 360. O capítulo mostra como os bispos conceberam novas estratégias de poder que os possibilitou afirmar sua autoridade, algumas vezes em completa oposição ao imperador (p. 125-151): O recurso à violência continuou a ser um elemento chave nesse processo, mas a novidade nas décadas de 340 e 350 foi, primeiro, sua escala e destrutividade e, segundo, sua “rotinização”. Episódios de violência coletiva, em particular, sejam espontâneos ou orquestrados pelos líderes eclesiásticos ou seculares, tornaram-se muito mais frequentes, de fato, frequentemente o meio preferido de conduzir a disputa: espancamentos, abusos, banimentos, perdas de propriedade e vida tornaram-se características comuns da vida em muitas comunidades cristãs conturbadas, com os líderes da Igreja atacando dissidentes e compelindo os fiéis a abraçar suas visões.

[…] o continuado conflito teológico nos anos depois da morte de Constantino produziu “modos de comportamento” ou maneiras de ser e agir – um habitus, na definição de P. Bourdieu – que contribuiu para transformar o episcopado em uma poderosa força social e política, empurrando os líderes da Igreja para o centro da vida pública e reconfigurando as relações entre clérigos e os tradicionais detentores do poder, incluindo o imperador (p. 126-127, destaques do autor).

Por meio dessas considerações, indicamos que esse trabalho de Galvão-Sobrinho é leitura fundamental para os pesquisadores dos conflitos político-religiosos e administrativos na Antiguidade Tardia. Percebemos que esses padrões de violência e a perpetuação dos conflitos nortearam as controvérsias que se adentraram para o século V d.C., mesmo a despeito da oficialização de uma daquelas formas de cristianismos como ortodoxa, em 380 d.C. O que se percebe é que a afirmação desse ethos reuniu condições para que personagens investidas de legitimidade político-espiritual transfe-rissem para o plano político-religioso os seus projetos escatológicos.

1 GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. The Rise of the Christian Bishop: doctrine and power in the later Roman Empire, A.D. 318-380. Tese (Doctor of Philosophy). 334 f. Yale University, Graduate School, New Haven/USA, 1999.

2 Vide https://www4.uwm.edu/letsci/history/faculty/galvao.cfm. Acesso em 14/04/2014.

3 Uma extensa bibliografia das fontes é indicada nas páginas 183-185 e no Apêndice, p. 161-182).

4 Conflito que se iniciou nas comunidades cristãs de Alexandria no início do século IV d.C. e que tentava explicar como é possível acreditar que Jesus fosse um ser divino e insistir, ao mesmo tempo, na exis-tência de um só Deus. Tais conflitos se deram em torno, sobretudo, das ideias do presbítero Ário e seus seguidores. Em suma, para Ário, e as diferentes nuances de pensamento que a sua doutrina ensejou, a Palavra, não é coeterna com o Pai, inconcebida como ele é, pois é do Pai que ela recebe a vida e o ser. Portanto, Jesus, a Palavra ou o Logos (nomes pelos quais se designa a segunda pessoa da Trindade) é dependente e subordinado ao Pai (Deus). Tais ideias colidiam com a ortodoxia que viria a ser oficializa 5 Part one – Points of departure: theology and Christian leadership in the third-century Church; Part two – God in dispute: devotion and truth, A.D. 318-325 e part three – Defining God: truth and power, A. D. 325-361.

Daniel de Figueiredo – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP/Franca Correspondência: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História. Av Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 – Centro – 14409-160 – Franca, SP E-mail: [email protected].

 

 

A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história – RUST (RTF)

RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história. Cuiabá: EdUFMT, 2013. Resenha de: MADUREIRA, Natalia Dias. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

A Reforma Papal (1050-1150), de autoria de Leandro Duarte Rust, carrega já em seu título o prenúncio de um período que foi estudado, comentado, avaliado e reavaliado, mas que, como a obra solidamente nos mostra do começo ao fim, não o foi ao esgotamento. O livro aborda a época comumente considerada como período histórico em quem alguns eclesiásticos de Roma teriam desenvolvido um modelo de governo que colocaria os então gestores do poder laico sob sua jurisdição. E para limitar a atuação de reis e nobres, bem como para submeter os cristãos a essa nova forma de governo, os religiosos teriam criado normas que delimitaram o comportamento dos mesmos nos mais diferentes aspectos sociais, incluindo os âmbitos mais particulares, como a moral e a sexualidade.

Os dois primeiros capítulos, intitulados, respectivamente: A história como re-forma e A história como revolução, – cada um deles construído a partir das argumenta-ções e dos posicionamentos estabelecidos por historiadores que se reconhecem ado-tando tais denominações – apesar de apresentarem duas abordagens já bastante conhecidas no meio historiográfico, são arrematados por Rust de uma maneira que mostra ao leitor que essas não são as duas únicas interpretações possíveis para ex-plicar ou contextualizar o que aconteceu entre os séculos XI e XII. Neste sentido, o autor dissocia a abordagem de um binarismo que recorrentemente assola discussões historiográficas. Aqui o “ou isso ou aquiloabre espaço para observações mais pontuais, voltadas para realidades específicas, que não podem ser engolidas por com-preensões genéricas e totalizantes. Há que se ressaltar também o exercício feito por Rust de pontuar claramente o caráter Moderno que envolve os escritos e conceitos consagrados a esse período do papado medieval. Exercício que se configura em um elemento de grande auxílio, sobretudo para estudantes há pouco familiarizados com os debates historiográficos. Tal ênfase chama a atenção dos leitores para a necessidade de uma pesquisa minuciosa sobre a própria formação da historiografia, pois, por vezes, elementos como concepções anacrônicas surgem entrelaçados com vocabulários que se estabelecem como hegemônicos e que, por isso, ocultam as formações de estilo e sentido equivalentes à sua própria época: As descrições flicheanas a respeito do desgoverno feudal e de seus efeitos – a crise moral que se abateu sobre a sociedade – remetem ao estilo de Proudhon (…). Que tremenda ironia! O elogio ao governo estatal com-posto por Fliche em sua obra lembra os jogos de palavras de um arauto oitocentista do anarquismo (p.29).

O hoje desgastado conceito de Reforma Gregoriana já foi outrora, a “menina dos olhos” de um sem número de autores, como o francês Augustin Fliche, que, escrevendo sobre o século XI, tornou-se uma espécie de “fundador historiográfico”. Escrevendo no início do século XX, Fliche tentou superar o frequente erro cometi-do por muitos escritores: dissociar todas as conjecturas políticas nas quais se envol-vera Gregório VII, da questão primaria que o levará a propor uma mudança; sua origem e fundamentação religiosa. Todas as contendas, impasses e escândalos, se-gundo o autor, não deviam ser motivos de grande destaque; pois eram peças pontu-ais, inseridas em um mecanismo maior: o desejo de mudança que assomava todos os clérigos reformadores e que ganhou corpo em Roma, sobretudo na pessoa de Gregório VII. Foi sob a égide dessa abordagem que Fliche lançou La Réforme Grégo-rienne, cujo título se naturalizou através das muitas obras que acionaram a expres-são como forma de identificação e periodização de uma fase histórica da igreja e do próprio cristianismo. Contudo, pela forma com a qual o texto de Rust se desdobra, fica explícito que a concepção historiográfica da alçada de Fliche possuía sentidos políticos muito específicos. Leandro Rust nos apresenta os argumentos do medieva-lista francês, intercalando-os com oportunas reflexões e considerações sobre a for-ma como a noção de Reforma Gregoriana foi construída – isto é, expressão historio-gráfica a um pensamento político de matriz autoritária. Outrossim, ele resgata os principais argumentos que compartilham da mesma seara intelectual de Fliche, ad-vindos de outros autores, mostrando assim, conhecimento a respeito da historiografia que envolve a Igreja Romana do século XI. Além disso, Rust apresentar, com rigor e habilidade, a difusão historiográfica que esse tipo de interpretação alcançou. Por fim, reconhece a contribuição dada por Fliche para uma nova forma de se fazer história e credita ao medievalista francês grande relevância em quesitos metodológicos implicados à história religiosa.

Porém, o livro não se restringe às argumentações de Augustin Fliche e seus seguidores. Gerald Tellenbach, medievalista alemão que produziu uma obra crítica sobre o trabalho feito pelo francês é abordado, iniciando o percurso que demonstra as várias revisões sofridas pela Reforma Gregoriana. Tellenbach ampliou as críticas de outro autor de origem germânica, Eric Gaspar, responsável por incorporar as correspondências de Gregório VII aos arquivos da Monumenta Germaniae Historica. Segundo Gaspar, Fliche ignorou uma antiga disputa existente entre “o modelo feudal de igrejas próprias e o episcopal de igrejas autônomas” (p.40), para criar uma lógica de coesão no pensamento religioso do período. Argumentando neste sentido, Tellenbach interperta Gregório VII como um líder que não encontrou na reforma o meio para reagir a um cenário de desordem ou caos, nem política nem moralmente “(…) O historiador alemão encontrou ordem e estabilidade onde Fliche enxergou o desmoronamento quase completo das instituições” (p.41).

Apresentando de maneira bem embasada as vastas discussões sobre as duas correntes historiográficas acerca da realidade sócio-política de meados do século XI, Rust dá mostras de sua preocupação em analisar a produção de conhecimento histórico e submeter ao rigor crítico o sentido contemporâneo das abordagens con-sagradas, abandonando assim, quaisquer possíveis arbitrariedades conceituais.

A trilogia flicheana apelou à história para encontrar uma possibilidade de salvação da ordem pública europeia. Para isso, projetou a história medieval como um precedente da capacidade da Santa Sé de resgatar a sociedade da anarquia e da desordem. Em outras palavras, a Idade Média foi transformada em origem da tradição re-formadora recentemente proclamada por Leão XIII (1810-1903) (p.51).

A ideia de que o caráter revolucionário do ocidente teve início no século XI, justamente com o papa Gregório VII, é outra ideia difundida pelo século XX, mais precisamente pelo alemão Eugen Rosenstock-Huessy, que em 1931 atribuía ao pon-tífice uma personalidade contagiante que inflamou milhares de fiéis e o fez interna-lizar a busca por uma mudança total da vida religiosa. Notoriamente, Rust não se limita a explanar sobre os autores que defendem a abordagem da Revolução Papal – sucessora da noção de Reforma Gregoriana. Mais do que isso, ele prossegue uma lu-cida análise intelectual ao discutir os fundamentos e implicações teóricas de que partiram os autores que posteriormente se inspiraram em tal abordagem teórica para embasarem suas obras. Merece ser destacado o ato de reconhecer e fazer uso de produções que não estão inseridas na familiar cena historiográfica francesa, o que retira o autor de um possível conforto que o trato com o discurso mais tradicionalmente conhecido na historiografia brasileira poderia proporcionar. Além disso, Leandro Duarte Rust tem a louvável capacidade de extrair conteúdo das entrelinhas; de fazer emergir informações que por vezes passam desapercebidas por estarem encobertas por uma névoa de verdades consagradas, de pensamentos considerados sólidos, mas que, precisamente por isso, permitem a identificação do lugar de fala do escritor analisado. Trata-se de uma abordagem que limita à forma dos textos historiográficos, mas que sonda a intencionalidade advinda do discurso empregado: Na superfície das linhas Robert Moore (…) confessava a influência do medievalismo francês. Mas, nas entrelinhas, ocultava um pr-pósito que dominou a historiografia britânica de sua época. Dominou-a e consagrou-a a partir da década de 1960. Difícil lê-lo e não associar sua insistência na multidão/revolução à “história vista de baixo” pelo marxismo inglês (p.73).

Chegando ao fim da segunda parte, o historiador fecha o exercício compa-rativo de maneira bastante clara: Ambas reduzem ao passado a uma unidade taxativa, hermética, negando positividade histórica a grupos e ações sociais que não anunciem a Modernidade industrial. No que diz respeito à socie-dade da época do papa Gregório VII, a busca para restituir as ex-periências possíveis da condição humana, ampliando a complexi-dade da trajetória dos homens no tempo, passa por aceitar a possi-bilidade teórica de que a política papal dos séculos XI e XII não se-ja explicada nem como reforma, nem como revolução. Mas sim, como uma alteridade histórica que parece ainda não ter uma iden-tidade conceitual (p.81).

Leandro Rust constrói a terceira parte de sua obra – como salienta o próprio título As pegadas do sagrado: o político como religiosidade – pautada em uma reflexão sobre as funções políticas que perpassam as questões de religiosidade nas quais o papado se envolveu. A terceira parte consiste no exercício crítico da abordagem tradicional, que mostra os clérigos reformadores do século XI utilizando a religião como uma “régua” para medir a legitimidade de certos comportamentos, como meio de aferição social. Era através dela, que eles, supostamente, pretendiam separar pessoas de acordo com a relação – ou a falta dela – que mantinham com o sagrado. Tradicionalmente, os gregorianos são apresentados como homens investidos da missão de, a partir dessa separação, almejar o controle do profano, de modo a fazer aqueles entregues ao erro religioso se redimirem e se voltarem para Deus. No capítulo em questão essa relação com o sagrado é abordada sob outro prisma. Rust recorre ao pensamento durkheimiano para demonstrar que como a memória sagra-da criada em torno da trajetória de Hildebrando de Soana, posteriormente Gregório VII, consistia em uma narrativa coberta de episódios que atestavam as fragilidades, as tensões e as contradições da experiência religiosa romana.1 Hildebrando fazia uso da posição por ele ocupada e do seu invólucro de sacralidade como resposta à realidade política que o circundava. Rust demonstra, assim, como as atitudes religiosas do líder símbolo da Igreja de Roma eram mutá-veis, problematizando, assim, a coerência e a coesão ideológicas exaltadas pelos conceitos de Reforma Gregoriana e Revolução Papal como uma memória elaborada por séquito e aliados.

Na parte IV do livro, A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade, Rust apresenta uma rede de evidências, muito bem entrelaçadas, sobre a criação de uma cultura da escrita à qual, sobretudo – conscientemente – os clérigos perpetuavam e usufruíam a partir de sua posição de homens letrados singulares. Essa cultura, se-gundo a historiografia, teria contribuído para o surgimento de uma atmosfera jurí-dica que não mais se pautava em leis orais, e sim, tinha no conteúdo dos papéis, seu respaldo. Contudo, o autor alerta para a dicotomia existente nessa valorização da “cultura da escrita” perante o poder das tradições orais. Tomando como exem-plo uma carta escrita por Gregório VII quando da época de sua deposição, mostra como as duas formas de aplicações jurídicas – a oral e a escrita, aparentemente opostas – se fundem para construir a lógica de ação do religioso. Rust traz ao conhecimento do leitor outros episódios em que demonstram a presença de elementos de oralidade, usados no tempo presente dos envolvidos, ou seja, sem precedentes, sem embasamentos jurídicos formais.

A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo, quinta parte do livro, se presta à formulação de uma bem fundamentada crítica às restrições dos historia-dores impostas por limites geográficos, que acabam por engessar os trabalhos em uma única perspectiva social. Neste caso, o texto se dedica à crítica a respeito dos modos de abordar a figura do antipapa Gregório VIII. Para isso, o autor restitui à abordagem dominando ao seu fundamento teórico: o pensamento hegeliano e sua interface com os sentidos nacionalistas da escrita da história. Neste sentido, fica evidenciado como a historiografia produz formas de memória – como a que condenou severamente o antipapa.

Por fim, concluo esta resenha oferecendo um balanço crítico juntamente com a última parte da obra, que tem como título O sentimento político: linguagem e poder. Apesar de todos os capítulos estarem interligados quanto à proposta do título, formando um contínuo exercício de crítica historiográfica; cada um possibilita um estudo em separado devido à forma como o autor abordou os assuntos retratados. Remetendo ao contexto que envolveu a ascensão de Hildebrando de Soana ao trono papal e às conhecidas mudanças provenientes de seu envolvimento com a realidade eclesiástica, Rust apresenta, neste capítulo, uma análise de semântica histórica: a noção de desejo como meio de formação e constituição de uma consciência dos partidários do papado a respeito das relações de autoridade. Recorrendo à noção de teologia política, o autor demonstra como as relações de obediência e desobediência ganhavam sentido através de uma “retórica sobre o desejo”. No entanto, o exercício de análise proporciona um fechamento à principal ênfase do livro: a crítica a respeito dos sentidos e lugares intelectuais que dão voz às abordagens historiográficas vigentes sobre a Reforma Papal. Ao chamar atenção para esse fato, Rust faz refletir sobre o ofício de historiador e questionar de onde herdamos as formas do fazer histórico.

1 Para a mitologia gregoriana ver: HUDDY, Mary. Matilda, Countess of Tuscany, Londres: Jonh Long, 1906.

Natalia Dias Madureira – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: [email protected].