Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977) | Robson Pereira da Silva

O segredo não é somente o estado de uma coisa que escapa ou se revela em um saber. Ele designa um jogo entre atores. Ele circunscreve o terreno de relações estratégicas entre quem o procura e quem o esconde, ou entre quem suspostamente o conhece e quem supostamente o ignora (o “vulgar”).”

Michel de Certeau

Glauber Rocha, em citação no livro Impressões de Viagens, de Heloísa Buarque de Hollanda, argumenta que as produções artísticas de Ney Matogrosso, Gal Costa e Dias Gomes em 1970, não passavam de “texto da decadência da colônia do Rio de Janeiro”2, por conta do apelo ao espetáculo midiático e a performance erótica para dialogar com o público. O cineasta é incisivo na diminuição da relevância desses personagens históricos para a circularidade e reflexão do cenário político da época. No entanto, a fala direta e agressiva do diretor não perpassa apenas ao seu nicho individual de concepção estética, o referido pronunciamento dialoga ao menos com duas memórias históricas3; o conceito de Indústria Cultural da escola de Frankfurt e uma determinada historiografia da música brasileira, que valoriza os compositores – escrita – e desvaloriza a importância dos performers na vida política da segunda metade da década 70; interpretação que ajudou na consolidação do imaginário de “vazio cultural”. Leia Mais

Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929) – MAUCH (RTF)

MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2017. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 2, ago.-dez., 2019.

O trabalho desenvolvido por Cláudia Mauch se apresenta como uma importante referência para o estudo da História da polícia. Nele o leitor encontrará uma análise minuciosa sobre a história policial e o trabalho dos policiais na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entre os anos de 1896 e 1929. Embora não seja a pretensão dessa obra, ela preenche uma lacuna deixada pela historiografia que versa sobre a temática, sobretudo devido a perspectiva escolhida pela autora para discutir o papel dos policiais no processo de policiamento desse universo.

Logo no início dessa obra, a autora desempena um balanço historiográfico a respeito da história da polícia, pontuando nesse processo algumas considerações que sugerem novas possibilidades de trabalho referente à temática. Para tal, a pesquisadora aponta um conjunto muito diversificado de documentos, cuja variedade de fontes e as metodologias utilizadas no seu tratamento se traduzem numa riqueza em detalhes do universo sociocultural analisado. Nesse sentido, o volume documental utilizado para a realização do trabalho, juntamente com a capacidade de análise da autora é algo invejável a qualquer pesquisador.

As considerações presentes no livro, a respeito da história da polícia, nos ajudam a pensar que a decisão tomada por um policial acerca do que deveria ser feito na sua prática cotidiana estava prevista não só na lei e nos regulamentos. Amparada em algumas referências importantes sobre essa questão, a obra nos leva ao entendimento que essa prática era balizada tanto pela lei e regulamentos da instituição a qual os policiais pertenciam, quanto pelas avaliações que os mesmos faziam dos acontecimentos e dos indivíduos neles envolvidos.

Com certa maestria, a autora nos induz ao melhor entendimento acerca do estudo da História da polícia. E amparada num referencial bibliográfico temático atual e muito rico, Cláudia Mauch desenvolve uma significativa contribuição, envolvendo discussões teóricas, reflexões conceituais muito pertinentes à temática. Além disso, seu trabalho apresenta um amadurecimento metodológico que possibilita novos horizontes aos estudiosos dessa área.

A obra é organizada em três capítulos, com os quais a autora apresenta uma argumentação mais sistematizada sobre a história da polícia e do trabalho dos policiais na cidade de Porto Alegre, entre os anos de 1896 e 1929. A autora analisa mais especificamente o sistema policial organizado e montado pelo governo do estado do Rio Grande do Sul a partir de 1896. Para além dessa tarefa, o objetivo é nos mostrar o funcionamento desse sistema policial montado no final do século XIX, sobretudo os seus desdobramentos na Primeira República. Nesse sentido. Longe de fazer uma história puramente descritiva, Cláudia Mauch aponta alguns elementos muito importantes para melhor entender como ocorreu esse processo, pois as tensões políticas da época estavam circunscritas nessa implantação. Isso induz o leitor ao entendimento das dificuldades vivenciadas pelas autoridades para a implantação das polícias dessa capital, bem como dos limites orçamentário e outros problemas que foram enfrentados nesse projeto, tendo em vista as disputas políticas daquele contexto.

Esta análise aponta como as instituições policiais de uma forma mais ampla e os policiais em suas particularidades eram vulneráveis aos conflitos políticos da sociedade na qual estavam cincunscritos. Na realidade por ela estudada, a polícia se inseria num jogo político local, o que, em alguns momentos, tornava o ambiente de trabalho muito tenso e, de certa forma, pode ter comprometido a função das instituições policiais no que diz respeito ao zelo pela segurança pública.

A argumentação da autora sugere que naquele contexto, os governantes e as autoridades policiais definiam algumas prioridades específicas para atuação das polícias estadual e municipal. E neste caso, tais prioridades se definiam a partir dos interesses políticos do grupo que governava. Em meio a uma explanação dos esforços para se montar esse sistema policial, a obra destaca como ele buscou responder aos desafios que a urbanização e sua transformações impunham a esse projeto de policiamento. Além dessas questões urbanísticas, o livro mostra as tensões enfrentadas no relacionamento entre Polícia Judiciária e Polícia Administrativa, como algo que limitava o policiamento local.

A sugestão dos argumentos apresentados ao longo o primeiro capítulo, indica que o sistema policial projetado pelas lideranças republicanas do final do século XIX não era algo estático. Esse projeto de policiamento, embora influenciado por toda carga ideológica e política das elites locais, fora implantado com alguns objetivos específicos, mas se reformulou e adaptou aos desafios impostos naquele contexto.

Cláudia Mauch constrói uma história social dos policiais, enfatizando esses sujeitos como um grupo de trabalhadores. Ao fazer isso, a autora sugere uma perspectiva historiográfica que se baseia em novas interpretações referente aos sujeitos históricos. Para tal, ela recorre a um estudo quantitativo dos registros pessoal da Polícia Administrativa de Proto Alegre, tomando como ponto de partida para sua investigação histórica, os registros contidos nos livros de matrícula desses indivíduos. E com base nessa documentação, mais especificamente em alguns aspectos fornecidos pela fonte referente à vida desses sujeitos, a saber, procedimentos de recrutamento, percentual de renovação dos quadros, punições e promoções, bem como o tempo de permanência de seus ingressantes, a historiadora, de forma muito competente, traça um perfil social dos policiais municipais, bem como da instituição em questão.

Em meio a um vasto universo numérico, o leitor se depara com uma articulação entre uma análise quantitativa muito substancial e um um conjunto de críticas sobre esse universo quantitativo. Suas explanações quantitativas são conectadas a alguns casos que a autora busca mostrar ao leitor como algumas questões se davam na prática. Longe de ser um capítulo meramente descritivo sobre o perfil social dos policiais municipais e das ações da instituição, Cláudia Mauch nos presenteia com uma bela articulação entre uma perspectiva quantitativa e uma análise mais reflexiva sobre esse universo. Para tal, a autora recorre à alguns gráficos e tabelas que destacam o universo numérico que ela encontrou, sobre idade, escolaridade, origem, estado civil, profissão anterior, conduta profissional na polícia, tempo de permanência na instituição, dentre outras questões que são pontuados no livro.

Ao logo do texto, a autora nos mostra uma proeza muito importante para os estudos da história da polícia, quando a mesma destaca a trajetória desses policiais, seus dramas, indisciplina, relações de apadrinhamento, personalidades. Elementos estes que apontam para perfis dos homens que compunham aquela polícia; indivíduos que formavam o corpo policial de Porto Alegre no contexto em análise. Com base numa vastidão numérica, a historiadora enfatiza os limites e incongruências que faziam parte do corpo policial dessa cidade, destacando que poucos faziam da polícia uma carreira ou profissão.

Nesse sentido, o livro proporciona ao leitor, compreender como funcionava o recrutamentos daqueles “agentes da ordem”, suas origens sociais, bem como a trajetória de muitos deles. A partir desse perfil mais amplo desenhado pela obra sobre esses indivíduos, é possível identificar algumas trajetórias de certos policiais.

Baseada nos relatórios judiciais, registros de ocorrências e inquéritos administrativos, Cláudia Mauch discorre sobre os inúmeros conflitos e situações em que os policiais se envolveram. Seu propósito é analisar as condições de vida e trabalho desses sujeitos. Em meio a essa questão, a autora discute elementos que fundamentavam as representações policiais sobre “autoridade” e masculinidade. Para tal, Cláudia Mauch recorre a uma gama de referências para discutir questões referentes à ambiguidade da posição de classe dos policiais e da cultura policial, sobretudo a partir das relações que esses policiais estabeleciam com a vizinhança. A obra destaca que era muito comum os conflitos envolverem questão da honra masculina, algo que catalizava as relações desses indivíduos.

Uma das intensões da autora é entender até que ponto as relações estabelecidas pelos policiais refletiam distanciamento daqueles grupos que as autoridades buscavam vigiar. Ela salienta que em meio a esse suposto distanciamento havia uma forte aproximação, pois, geralmente, eles faziam parte do mesmo universo sociocultural policiado. Vigiar a vizinhança não era uma tarefa tão simples, pois é possível que os problemas desse universo mais aproximavam os policiadores que os afastavam dos grupos menos privilegiados. Circunscrito em meio aos problemas cotidianos, a honra se tornava um elemento que impulsionava a violência e dificultava mais as relações. Em alguns momentos, a noção de “autoridade” é apontada pela autora como algo que acirrava essas relações, motivando confusões e mortes.

“Dizendo-se autoridade” é uma obra na qual o leitor encontrará uma mescla entre rigor acadêmico e leveza na escrita. No término da leitura, temos o entendimento que se trata de uma grande contribuição para a História da polícia, presente numa obra de fácil compreensão para a o público em geral. Portanto, fica o convite para que o leitor tire suas próprias conclusões referente a este significativo livro.

Wanderson B. de Souza – Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Possui graduação pela UNEB. Tem experiência na área de História, com ênfase nos seguintes temas: História da Polícia e da Criminalidade, Identidade, Violência Urbana, Relações de Poder, Diversidade e Cidadania; Tenho atuado como formador em cursos de capacitação/atualização de professores para ao Ensino de História, com ênfase em História da África e Cultura Afro-Brasileira. Colaborador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro-brasileiros – AFROUNEB/UNEB.

História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21 – BENTIVOGLIO (RTF)

BENTIVOGLIO, Júlio César. História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21. Serra: Milfontes, 2017. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Fazer histórico-pós-moderno como atividade ética e filosófica diante de múltiplos passados. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

Professor de Teoria da História na Universidade Federal do Espírito Santo, Júlio César Bentivoglio é autor do enxuto porém significativo livro “História & distopia”, publicado pela editora Milfontes, em 2017 (108 páginas). Nele o historiador aponta para as mudanças pelas quais a investigação do passado e os modos de entender e narrar a história sofreram ao longo do século XX, uma vez que tais tarefas (não apenas realizadas pelos historiadores) se depararam, nas últimas décadas, a uma abertura a muitos passados (possíveis, incontroláveis, diferentes) socialmente considerados. Esse reconhecimento teórico, filosófico e social da multiplicidade de leituras do passado abalou as certezas do conhecimento histórico e seus estatutos de verdade carregados desde o final do século XIX (p. 13). Bentivoglio defende que entre o final do século XX e início do XXI houve a emergência de uma “nova” imaginação histórica, de concepção pós-moderna e distópica. A história abandonaria o singular, a utopia, o passado totalizante, otimista, desejado e pacífico, tratando-se, a partir de então, de “histórias” elaboradas com pessimismo, preocupação, ceticismo, de passados incertos, indesejados, estilhaçados. Esta discussão sobre as novas concepções e possibilidades de produção de história se insere no debate contemporâneo da teoria da história, sendo que outros historiadores brasileiros também têm dedicado especial atenção ao tema.2 Embora dialogue relativamente pouco com a historiografia brasileira, Júlio Bentivoglio se aproxima bastante dessas reflexões, ao procurar problematizar um novo conceito de história e as apreensões contraditórias do passado no presente.

Situado nessa perspectiva que busca encarar a tradição disciplinar, o autor tem o mérito de trazer à discussão os entendimentos da história distópica. Por distopia, entende “um deslugar”, “um lugar e sua negação”, um “lugar em deslocamento” (p. 17), um “mau lugar”, “a desfiguração da própria possibilidade da utopia” (p. 85). Assim, o entendimento de passado, para os historiadores, seria múltiplo, e não um ponto fixo e pronto a ser localizado e recuperado. Nesse caso, destacam-se os diferentes modos de entender os passados, as discordâncias, as interpretações, os questionamentos, as tensões, as diversas narrativas, os variados discursos, os sentidos forjados, as capacidades de produção, as projeções. A história, as estórias e qualquer modalidade de consciência histórica seriam, portanto, distópicas.

Nesta reflexão, Bentivoglio destaca o principal elemento em pauta, que, por sinal, já é tema recorrente entre os historiadores: a concepção de história e o estatuto de verdade histórica. Trata-se de pensar a mudança de uma concepção de história pautada na “verdade”, no “correto”, na “certeza”, no massificado, no homogêneo, no singular para uma história pautada na suspeição da verdade, no “relativo a…”, nas possibilidades, nas incertezas, nas reconstruções, nas tensões, na multiplicidade, na heterogeneidade, na diferença.

Amparado em Hayden White e Frank Ankersmit, entre outros pensadores do século XX, Bentivoglio argumenta que o passado fixo, que ocupa um único lugar, um lugar de verdade, foi, já há algum tempo, questionado, reconhecendo-se a existência de passados possíveis a partir das possibilidades de imaginação. Passou-se de uma ideia de passado possível de ser esgotado para passados incompletos e imprecisos, acionados em espectros, a partir dos quais os historiadores tentam ordenar em narrativa. O autor traz como exemplo as narrativas construídas para explicar o passado recente brasileiro, especialmente a destituição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ora encarado como golpe, ora como impeachment numa disputa por esgotar, fixar ou representar esse passado (p. 19). Bentivoglio aponta claramente que “a narrativa jamais é um veículo neutro”, sendo necessário reconhecer a intenção do historiador-autor, que não esgota nem o passado nem o contexto construído, mas os inventa na tentativa de controlar e buscar consenso (p. 22). E essas invenções das histórias (note-se o plural) ocorrem no presente e dialogam com as formações discursivas vigentes, caracterizadas – entre outros aspectos – pelas disputas de sentido (p. 57). Assim, as narrativas históricas devem ser entendidas considerando o “universo do historiador”, o “seu estado de espírito”, a “sua urdidura do enredo”, as “suas ferramentas analíticas”, o “seu quadro teórico” (p. 91), suas posturas éticas e seus usos políticos.3 Além disso, na dinâmica da criação narrativa atual, Bentivoglio atenta para um aspecto importante na produção e difusão dos conhecimentos históricos “inventados”: o de que importa “menos saber se o historiador é marxista ou historicista e mais se suas análises são pertinentes ou eficazes” (p. 58).

A questão que se coloca atualmente na historiografia brasileira parece ser a de que os historiadores insistem na manutenção de suas ficções científicas utópicas que distopicamente controlam os passados possíveis reduzindo-os a lugares fixados por interpretações mais consagradas, ao passo que as narrativas distópicas que defendem passados alternativos são menos numerosas e bastante combatidas. Em contrapartida, a sociedade manifesta, visivelmente níveis significativos de ceticismo em relação ao passado típicos do presentismo. Ou seja, no Brasil, o realismo histórico resiste na universidade, mas não é convicção na sociedade. Diante desse quadro, nas narrativas construídas sobre o passado, científicas ou não, presencia-se, cada vez mais a descrença nas utopias (p. 58).

Nessa relação com o tempo marcada pela valorização do presente (o presentismo) e pela ânsia de passados, a narrativa dita histórica passa a ser reconstruída constantemente,4 dependendo dos interesses e das atribuições de significados por parte de indivíduos, grupos ou sociedades. Assim, espera-se uma narrativa que dê conta de explicar e compreender o passado e o presente de determinados contextos sob variadas argumentos: ou pela necessidade de entendimento do passado que não passa, ou pelo dever de memória, ou pela intencionalidade de justiça, ou pela reparação histórica, ou ainda pela possibilidade de aprender com erros e acertos no melhor estilo mestra da vida.

Para Bentivoglio, o predomínio do estranhamento entre passado e presente e a restrição de projetos eficazes de futuro possibilitaram “a abertura radical do passado, que hoje se apresenta como uma caixa de Pandora aos historiadores” (p. 56). Sobre os historiadores pairam desconfianças sociais, notadamente diante da ausência de consensos, e sobre a história, de modo geral, paira alguma descrença.5 Por conseguinte, as narrativas do passado não fornecem uma apresentação positiva de futuro – não todo e qualquer futuro, mas o futuro que pertence ao regime moderno de historicidade, enquanto locomotiva da história, como destacou Hartog6 – ao contrário, indicam perspectivas temerárias, céticas, incômodas e duvidosas (p. 82),7 embora a capacidade de produzir futuros (e de compreendê-los) tenha se multiplicado.8 De igual modo, Hartog9 já teria refletido sobre o sentido da história, enfatizando que “crer em história” não implica, necessariamente, “crer que ela tem um sentido”, ao passo que o fazer história pode se acomodar tanto à crença quanto à descrença. Então, se a história perdeu a capacidade de fornecer “guias para a ação transformadora”,10 é pertinente a constatação de Bentivoglio de que “as carências de sentido histórico têm sido preenchidas por curiosidades mais prementes do cotidiano” (p. 85).11 Encarando esses dilemas pós-modernos, Bentivoglio defende não apenas a história como ciência, mas também como arte. Aponta para o caráter narrativo (ficcional) da história, mas sem abandono dos ideais científicos e dos elementos de realismo que conferem reconhecimento social para os passados possíveis. São, para o autor, os limites éticos da ciência (histórica) e o entendimento de que fazer história é uma atividade filosófica, que permitem a construção de uma análise do passado despretensiosa em relação à “revelação” do “passado verdadeiro”. Amparado em Hayden White, o autor afirma que “toda história já é, em si, relativista; mesmo que seus autores não se proclamem relativistas” (p. 78-79). Assim, o conceito de história tradicional não daria conta das expectativas atuais na teoria da história, apontando, talvez de modo um pouco apressado, para “quatro pecados” da história moderna: reducionismo, funcionalismo, essencialismo e universalismo (p. 84).

A história hoje, numa perspectiva pós-moderna, traria expectativas muito mais difusas, relacionais e complexas. E a crítica à essa história distópica estaria na fragmentação temática e no risco do relativismo, este último, na verdade, localizado “nas discordâncias entre como se produz a história e o modo como ela é pensada” (p. 49). Ou o passado seria acionado em sua suposta integridade, ou seria construído em seu deslocamento, muito mais a partir da “cabeça dos historiadores” (p. 49). O autor defende que os historiadores, hoje, não podem deixar de considerar “como os fatos são retratados por meio da narrativa” e ainda que, nas suas estratégias narrativas, considerem os diferentes passados e seus deslocamentos (p. 79).

A história defendida por Júlio Bentivoglio é aquela que se constrói com pertinência, eficácia, afetividade e ética, incorporando o que chama de “fruição”, pois potencializaria “experiências subjetivas com o passado” (p. 88). A ética seria a tônica principal a limitar quaisquer “liberdades expressivas dos historiadores” (p. 91) na articulação das suas narrativas.

Em síntese, História & distopia é um livro inteligente, bem escrito, carregado de metáforas que permitem refletir, do início ao fim, sobre as possibilidades da escrita da história e da produção (não apenas por parte dos historiadores) de narrativas e sentidos para ela na contemporaneidade.12 Destaco a interessante relação estabelecida com a obra literária Frankenstein para comparativa e metaforicamente se referir às transfigurações do passado realizadas por narrativas históricas produzidas com imaginações distópicas. Embora algumas ideias sejam constantemente reforçadas ao longo do texto, a obra não perde seu tom primoroso e sua qualidade teórica de reflexão sobre o fazer histórico, podendo interessar a todos os historiadores e historiadoras – dos iniciantes aos mais experientes –, independente dos domínios específicos em seus campos de pesquisa.13

2 O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior vem realizando, há tempos, inúmeras problematizações tanto sobre a crise da história como metanarrativa quanto sobre a conformação dos objetivos do saber histórico, entre os quais despontaria como fundamental a formação de subjetividades menos reacionárias às transformações de toda ordem (ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007). Um outro exemplo, mais recente, é do historiador Rodrigo Turin que tratou de pensar a crise da forma, do lugar, da identidade da história e a condição para elaboração de uma “nova imaginação disciplinar” (TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades. Tempo, Niterói, vol. 24, n. 2, p. 186-205, maio/ago. 2018).

3 Veja-se o ensaio de Caroline Bauer e Fernando Nicolazzi, que apontam com perspicácia para os usos públicos e políticos da história. Eles consideram que hoje há um deslocamento da antiga questão sobre a “serventia” da história para os modos e as formas pelas quais a história é “usada” (BAUER, Caroline; NICOLAZZI, Fernando. O historiador e o falsário. Usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia História, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, p. 807-835, set/dez. 2016, p. 819). Sobre ética, responsabilidade e função do historiador, veja-se também DUMOULIN, Olivier. O papel social do historiador: da cátedra ao tribunal. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 19-22 e TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos, Op. Cit., p. 192.

4 Nesse sentido, veja-se HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Trad. Andréa Sou de Menezes et. al. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 140; ROUSSO, Henri. A última catástrofe. A história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016, p. 30.

5 Conforme HARTOG, François. Crer em História. Trad. Camila Dias. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 15-16.

6 Ibidem, p. 223.

7 HARTOG, François. Regimes de Historicidade, Op. Cit., p. 17-41.

8 Veja-se HARTOG, François. Crer em História, Op. Cit., p. 25; e também PEREIRA, Mateus; ARAÚJO, Valdei. Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 23, n. 1 e 2, p. 270-297, jan./dez., 2016, p. 280-286.

9 HARTOG, François. Crer em História, Op. Cit., p. 23.

10 A analítica de Hartog (Crer em História, Op. Cit., p. 224) é inspirada em Marcel Gauchet.

11 A disciplina história, nesse sentido, tem perdido alguma legitimidade social e, segundo Turin, tem sido constrangida a justificar sua existência, sua inserção social, já que seu lugar institucional e “seu papel pedagógico são colocados em questão” (TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos, Op. Cit., p. 196-197).

12 Um desses sentidos, curiosamente, tem sido o de recuperar consensos e lugares para a história. Guldi e Armitage destacaram: “Em qualquer momento de divergência política, a síntese histórica pode ajudar a recriar um consenso onde o consenso foi perdido” (GULDI, Jo; ARMITAGE, David. Manifesto pela história. Trad. Modesto Florenzano. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 183). Já Hartog (Crer em História, Op. Cit., p. 231), embora um tanto lastimoso pela decomposição do regime moderno de historicidade, defende a “capacidade de nossas sociedades” em “articular de novo as categorias do passado, do presente e do futuro, sem que venha a se instaurar o monopólio ou a tirania de nenhuma delas”. Entre os sentidos práticos e os sentidos disciplinares, a história parece estar à procura de uma nova inserção no presente, como destacou Rodrigo Turin ao se questionar sobre a capacidade das novas demandas sociopolíticas implicarem o “esvaiamento dos critérios internos” e “disciplinares legados pela tradição” (TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos, Op. Cit., p. 192).

13 Tal afirmativa ganha relevância se considerarmos que estudos sobre a condição da história ainda seriam motivo de desprezo por parte da comunidade historiadora brasileira, mesmo que tenham sido crescentes as pesquisas sobre teoria da história e história da historiografia. Foi o historiador Temístocles Cezar, em recente publicação, quem destacou que “a regra geral” é “a despreocupação com os modos de pensar a prática do fazer do historiador” (CEZAR, Temístocles. Ser historiador no século XIX: o caso Varnhagen. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 178).

Mauro Dillmann – Endereço profissional: Rua Alberto Rosa, 154, Pelotas – RS. E-mail: [email protected]. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. Instituto de Ciências Humanas – UFPEL.

Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgamesh – SIN-LÉQI-UNNÍNNI (RTF)

SIN-LÉQI-UNNÍNNI. Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgamesh. Tradução do acádio, introdução e comentários de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. Resenha de: FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. Ele que o abismo viu: a epopeia de Gilgamesh. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

Há paradigmas heroicos que persistem em nosso presente, nos alcançando sem que os busquemos nos clássicos que os inventaram. É o caso dos poemas homéricos, nos quais ora se sobressai a ménis, a ira que imprime em Aquiles força descomunal e excelência guerreira, ora destaca-se a métis, a astúcia prudente que permite a Odisseu enfrentar inúmeras peripécias e manter-se vivo para retornar a Ítaca. Enéias, por sua vez, herói derrotado na guerra de Tróia e identificado com a virtude da pietas, partiu na posse dos deuses penates para fundar uma nova Tróia no Lácio, seguindo o destino ditado pelos Fados. Por fim, como último exemplo, há a gesta camoniana e o protagonismo de um herói guiado pela reta razão e pela moderação, virtudes escolásticas incentivadas pela Igreja contrarreformada do século XVI que enaltecia aqueles que atuavam como braço da Providência, fonte de todo bem e sede da justiça Com sua tradução do poema Ele que o abismo viu (comumente denominado Epopeia de Gilgámesh), Jacyntho Lins Brandão concedeu-nos acesso a outro paradigma, representado pela empresa heroica do quinto rei de Úruk que governou após o dilúvio, por volta do século XXVII a. C. Filho de uma deusa e, portanto, dois terços divino e um terço humano, Gilgámesh tornou-se objeto de uma longa tradição poética, por meio da qual foi-lhe atribuído feitos importantes como a construção da muralha da cidade de Úruk. As narrativas conhecidas sobre suas façanhas remontam ao século XXII a. C., disponíveis por meio de tabuinhas registradas inicialmente em sumério, depois em acádio. A tradução de Brandão, publicada no ano de 2017 e reimpressa em 2018, utilizou uma versão criada no ápice desse ciclo heroico, atribuída ao sábio Sin-léqi-unnínni e estabelecida por volta do século XIII a. C.

Mas que tipo de herói foi Gilgámesh? Vários termos foram dispostos ao longo do poema para designá-lo: “sábio”, “proeminente”, “herói de imponente físico”, “valente”, “selvagem”, “indomável”, “alto”, “perfeito”, “terrível”, “majestoso”, “formoso”, “poderoso”, “sapiente”. Sem falar nos epítetos adotados para caracterizá-lo: “margem firme”, “abrigo da tropa”, “corrente furiosa que destroça baluartes de pedra”, “amado touro de Lugalbanda”, “cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun”, “touro selvagem indomável”. No entanto, nem todas as suas qualidades são positivas, pois ele também “age com arrogância”, “assedia os jovens de Úruk sem razão” e se porta, muitas vezes, como um “touro selvagem altaneiro”. Em síntese, a trama apresenta-nos o herói responsável pela reposição daquilo que foi destruído pelo grande dilúvio, mas não deixa de destacar suas falhas e excessos. É frente a suas desmedidas que a população de Úruk teria recorrido às divindades: foi assim que a deusa Arúru criou, com argila, Enkídu, espécie de homem primitivo que vivia junto aos animais e não conhecia a civilização. Foi Gilgámesh o responsável pela sua introdução na civilidade, recorrendo aos serviços de Shámhat, uma prostituta que o tornou “homem” e atraiu-o para a cidade. Durante o confronto entre ambos, Gilgámesh sente que finalmente encontrou um igual, e dessa batalha nasce uma grande amizade.

Convém mencionar algumas particularidades do poema, a começar pela longa duração de sua matéria, que circulou ao longo de um intervalo de quase dois mil anos, a tomar pela data do fragmento mais antigo, conhecido como Bilgames e o touro do céu, datado de cerca de 2100 a. C., e do mais recente, do século II a. C. Sua história contemporânea, por outro lado, é extremamente recente, o que indica outro diferencial: foi somente em 1872, quando George Smith apresentou a narrativa do dilúvio durante a conferência na Society of Biblical Archaeology, em Londres, usando uma tabuinha descoberta em 1846, que pudemos introduzir a ciclo de Gilgámesh no cânone literário da Antiguidade. Brandão, frente a essas particularidades, assevera-nos: Que seu nome tenha desaparecido e não tenha ficado em “nossa” literatura e cultura nenhuma lembrança dele até que as placas de argila enterradas sob as areias do deserto iraquiano no-lo apresentaram dá-nos a dimensão de quão profunda pode ser nossa ignorância, de quanto mais vasta do que supõem nossas certezas são a história e a cultura humana e de quão pouco a matéria de Gilgámesh pode ser dita “nossa” num sentido comum” (p. 18).

Ao longo da sua introdução, o autor insistiu sobre a impertinência de se atribuir ao poema categorias como “autor” e “originalidade” em seu sentido moderno. Trata-se de um detalhe importante, já que as condições históricas eram absolutamente outras. Para escrevê-lo, Sin-léqi-unnínni trabalhou com uma tradição escrita em sumério e acádio que, em sua época, somava mais de meio milênio. Além disso, da mesma forma como não se deve creditar a Homero a categoria “autor” da maneira como a concebemos hoje, seria imprudente fazê-lo em relação ao poema acádio estabelecido por volta do século XIII a. C. por um escriba. Isso porque a noção de autor não é auto evidente, uma vez que, frequentemente, ela aparece em nosso meio como princípio explicativo, algo inventado no século XIX quando se generalizou a autoria como presença do indivíduo na obra. Desde então, muitos, assumindo a posição de críticos, buscaram nas obras a intenção do autor para evidenciá-la ao público, negligenciando seus códigos linguísticos e naturalizando os nossos.

Para dar a ler uma síntese, o tradutor apontou para a existência de quatro grandes movimentos na trama: a) os excessos do rei Gilgámesh em Úruk, que levam os deuses a criar para ele um par heroico, Enkídu; b) os feitos de ambos, compreendendo a morte de Húmbaba, guardião da floresta de cedros, e do touro do céu, enviado pela deusa Ishtar contra Úruk, por Gilgámesh ter repelido seu assédio amoroso; c) a enfermidade e a morte de Enkídu, que leva Gilgámesh a perambular em busca do segredo da imortalidade, chegando a lugares jamais palmilhados por algum homem, até o encontro com Uta-napíshti; d) o retorno do herói a Úruk, cansado e pacificado por saber que a morte é o lote inelutável do homem.

O que fez Gilgámesh para merecer encômios ao longo dos séculos? Além de reconstruir templos destruídos pelo dilúvio e instituir ritos para a humanidade, algo que só foi possível graças à sua busca pela imortalidade, ele visitou os confins do mundo para encontrar uma personagem emblemática: Uta-napíshti, que, na companhia de sua esposa, sobreviveu ao dilúvio graças à construção de uma arca e, por isso, foram agraciados com a vida eterna. A sabedoria do rei de Úruk adveio desse contato, por meio do qual ele pôde acessar segredos ocultos dos deuses e conhecer, de perto, a condição humana. Além disso, ele teria registrado, por escrito, o relato que o leitor pôde conhecer e que possibilitou a glória de seu próprio nome: Isso se expressa não só pelo recurso de apresentar a narrativa como o registro escrito pelo próprio herói numa tabuinha preservada num cofre, como por trazer-se o poema anterior, inscrito em tabuinhas de argila, para o interior do poema mais novo, como se este, o texto mais recente, fosse o próprio cofre de cedro que contém o texto anterior.

Trazer em seu bojo o poema anterior pode indicar que a produção poética ocorria de forma cumulativa, seguindo um princípio próximo à imitatio latina. A maneira como o escriba incorporou em seu poema versões antigas da lenda levou Brandão a pensá-lo como um monumento mantido como traço fidedigno da tradição. No proêmio, por exemplo, parte introdutória do poema, é possível notar uma dupla divisão: nos 28 versos iniciais, possivelmente da autoria de Sin-léqi-unnínni, destaca-se a sabedoria de Gilgámesh, alcançada a duras penas por meio de uma empresa duradoura, ora coberta de louros, ora de lágrimas e lamentos; na segunda parte, situada entre os versos 29 e 62, o tradutor encontra fragmentos da versão antiga do ciclo heroico, intitulada Proeminente entre os reis, que retrata uma visão mais grandiosa do herói e de suas façanhas.

Há outros elementos dispostos ao longo do poema que dão a entender não somente as qualidades do herói, mas também os atributos que se esperava de um homem. É o caso de Enkídu que, para ser levado à cidade e, posteriormente, poder contar com a amizade do rei, precisou passar por algumas etapas, como ser iniciado no sexo pela prostituta enviada por Gilgámesh e alimentar-se de pão e cerveja para, só então, viver em sociedade. A partir dessa amizade, dois grandes feitos heroicos foram efetuados: inicialmente, uma expedição à Floresta de Cedros, situada no Líbano, para enfrentar o seu guardião, o monstruoso Húmbaba. A finalidade não é somente aniquilá-lo, como também conseguir extrair a madeira de seus domínios para continuar a construção de sua cidade. A outra ocasião se manifesta quando o rei recusa os amores da deusa Ishtar, insultando-a com palavras duras. Foi então que a deusa subiu aos céus para pedir a Ánu e Antum, seus pais, o touro do céu, com o intuito de destruir Úruk. Na tabuinha que relata a vitória sobre o touro, há fragmentos perdidos, mas tomando como base a parte remanescente se pode inferir que os deuses decretaram a morte de Enkídu em razão do assassinato do touro: é nesse momento que se inicia a parte lúgubre, incialmente com as lamentações do moribundo Enkídu, acometido por doença mortal e sendo consolado por Gilgámesh, e depois com a lamentação do rei de Úruk após a morte do amigo.

Da lamentação de Enkídu, Jacyntho Brandão levanta três momentos interessantes a maldição que ele lança contra a porta feita com a mais soberba das árvores que fora trazida por ele da floresta de cedros – o que poderia ser interpretado como a maldição da vida heroica por ele assumida; a maldição contra o caçador que o vira pela primeira vez entre os animais, provocando que deixasse a condição de lullû para tornar-se plenamente humano – o que não deixa de ser a maldição da condição humana por ele assumida; finalmente, a maldição contra a prostituta Shámhat, que fizera dele não apenas humano, mas civilizado – a maldição estendendo-se, portanto, à civilização e a seus requintes.

Foi nesse momento que se deu a intervenção de Shámash, o Sol, em defesa da maldição lançada contra a prostituta, censurando a postura de Enkídu. Em seu discurso, ele deixa claro que a meretriz não merece as maldições, pois foi ela quem introduziu Enkídu nos prazeres da civilização, fez com que se tornasse ele amigo de Gilgámesh e, o que é agora o mais importante, em consequência de tudo isso, é também por causa dela que ele terá uma morte digna, honrada e pranteada. Ele, no leito de morte, está fazendo o duro aprendizado de que, diferentemente do que se passa com os deuses, a morte é o fado do homem, mas um fado que os homens, com os rituais de luto, podem tornar nobre. Se até então, como se depreende das três maldições, tudo se resumia ao contraste entre o homem civilizado (impuro) e os animais (puros), com a perspectiva da morte novo contraste se estabelece, entre o homem (mortal) e os deuses (imortais).

Em sua busca pela imortalidade, Gilgámesh aprendeu que morrer é uma condição insuperável da humanidade, tirando dessa dedução a sabedoria que lhe atribuiu o escriba nos versos iniciais do poema. Nesse caso, Brandão tem razão ao aproximá-lo à literatura sapiencial, gênero muito recorrente no Oriente Médio.

Voltando àquilo que foi dito no início dessa reflexão, convém notar que o éthos do herói diz muito sobre as próprias circunstâncias históricas de sua criação: não se trata, como no caso das primeiras epopeias gregas, de um herói preocupado com realizações coletivas (o que também poderia ser atribuído aos casos de Enéias e Vasco da Gama). Por outro lado, Brandão deixa claro que os poemas atribuídos a Homero são poemas de guerra, diferentemente de Ele que o abismo viu, que não se ambienta em meio a um conflito bélico. Na esteira de West, chega-se à conclusão de que o melhor equivalente grego ao herói mesopotâmico seria Héracles, “que age sozinho em aventuras que não se dão no contexto de guerra alguma”.

se Aquiles e Ulisses são guerreiros-heróis, Gilgámesh é herói sem ser guerreiro. Aquiles tem um companheiro, Pátroclo, mas luta tendo em torno de si seu exército, bem como o de todos os gregos; Ulisses chega sozinho a Ítaca, terminada a guerra, mas na maior parte de sua viagem conta com os companheiros de navegação. São exemplos de sagas coletivas, em que inclusive outros heróis se sobressaem, como Diomedes e Heitor, ao passo que Gilgámesh é um herói solitário, o próprio mote de Ele que o abismo viu sendo sua solidão, quebrada brevemente com a criação, pelos deuses, de um par para si, Enkídu, mas logo reimposta a ele com a morte do amigo, sendo essa solidão o que motiva sua busca pela imortalidade e leva ao desfecho sobre a impossibilidade de conquistá-la.

Na companhia de Brandão, é possível problematizar a associação do poema em questão a uma epopeia, termo usado inicialmente por Heródoto para referir a Ilíada e a Odisseia. O autor deixou claro que a associação pode vir a ser verossímil, sendo possível estabelecer paralelos entre os poemas gregos e a saga de Gilgámesh, mas evidenciou que epopeia “implica o domínio coletivo de tradições em que cada performance constitui um exercício de variedade e variação, em todos os sentidos, mesmo quando, exarada por escrito, tem ela no desempenho dos rapsodos o seu modo de realização por excelência”.2 Sendo assim, ele prefere apreender o poema como narû, ou melhor, como “a contraparte poética de um narû”, monumento por meio do qual se deixava inscrito, sem omissões ou acréscimos, informações importantes merecedoras de sobrevida.

Estando em causa registrar a experiência heroica e sapiencial de Gilgámesh, inclusive no que tem de extremamente particular, pois ele fez sozinho sua longa viagem, que é o clímax do poema, não se contando com outras testemunhas, o que se configura é o uma espécie de autobiografia mandada fazer (ou ditada?) pelo próprio monarca, ou seja, uma autobiografia em terceira pessoa. Parece que é esse estatuto que o prólogo de Ele que o abismo viu reivindica para o poema – um vislumbre da poética implícita suposta pelo texto.3 Convém recordar que a precisão narrativa implicada na fórmula “sem omissão ou acréscimos” sobreviveu como lugar comum, tendo marcado os fundamentos da historiografia helênica. Na verdade, seria exaustivo estabelecer os paralelos possíveis entre as culturas suméria, acádia e grega, até porque fazem parte de uma mesma zona de confluência. O importante, no entanto, é não supor que a maior antiguidade dos poemas registrados em cuneiforme indique que as epopeias posteriores não passariam de uma variação sua, como se houvesse um momento “original” do qual irradiasse toda e qualquer possibilidade de manifestação cultural.

Para finalizar, gostaria de levantar dois contrapontos em relação à cultura grega, a começar pelo caráter ruinoso requisitado como modo de propulsionar a empresa heroica. Por intermédio das Musas, Homero inventou tipos como Aquiles e Odisseu, mas também versou também sobre a fragilidade humana. A preservação do feito ilustre só seria possível por intermédio do canto inspirado, que anuncia a memória e celebra o kléos, a fama imorredoura. Na proposição/invocação da Ilíada, depois de pedir o auxílio da Musa, o aedo introduziu o embate entre Aquiles, filho de Peleu, e Agamêmnon, “rei dos homens”, que “aos Aqueus tantas penas / trouxe, e incontáveis almas arrojou ao Hades / de valentes, de heróis, espólio para cães, / pasto de aves rapaces” (Hom. Il. I, 2-5). Algo parecido ocorreu nas liminares da Odisseia, quando Homero mencionou as dores que Odisseu padeceu quando de seu retorno, “empenhado em salvar a vida e garantir o regresso dos companheiros” (Hom. Od. I, 2-5). Em Ele que o abismo viu, o teor ruinoso foi mencionado na metade do poema, quando Enkídu estava prestes a padecer e, especialmente, na ocasião em que Gilgámesh lamentava a perda do amigo. Isso porque o texto não foi escrito in media res, como era comum à epopeia grega. Aliás, ele também não cumpriu outro requisito, já previsto na Poetica de Aristóteles: a adoção do hexâmetro datílico, algo inventado muitos séculos depois.

Por fim, poder-se-ia retomar a narrativa situada ao final da tabuinha 2, quando, numa assembleia organizada em Úruk que antecedeu a partida do herói rumo à Floresta de Cedros, seu companheiro e conselheiros recomendaram da desistência da missão, alegando os perigos que espreitavam nesse limite, protegido por um guardião “muito grande”: “sua voz é o dilúvio! / Sua fala é fogo, seu alento é morte” / Ele ouve a sessenta léguas um murmúrio da floresta” (2, 221-223). Várias acusações então foram feitas: “És jovem, Gilgámesh, teu coração te impulsiona, / Isso que julgas não conheces.” (2, 289-290); “Não confies, Gilgámesh, em toda tua força! / Teus olhos se fartem, no ataque confia!” (3, 2-3). A floresta parece figurar algo como as colunas de Hércules, um limite que não convinha ultrapassar. Talvez, a morte do amigo seja uma punição também à sua hýbris, amplificada com as palavras rudes dirigidas a Ishtar. Assim, Humbaba representaria uma espécie de Polifemo, seja pela falta de hospitalidade, seja pelo fato de não comer pão e viver apartado da cidade. A analogia, no entanto, é limitada, já que Odisseu caiu nas garras de Polifemo a contragosto, e Gilgámesh buscou Humbaba por livre iniciativa, o que não o impediu de tremer perante o desafio: “O medo cai sobre Gilgámesh: / Um torpor toma seus braços / E debilidade cai-lhe sobre os joelhos” (5, 28-30).

O ato de recuar ao poema Ele que o abismo viu não deve ser encarado como uma tentativa de buscar a pré-história da epopeia, o que seria improdutivo, mas pode-se encontrar ali, nessas práticas letradas redescobertas há pouco, artefatos capazes de nos tornar mais próximos os códigos de sua composição. Os paralelos com a cultura grega ajudam a digerir as novas informações e, ao mesmo tempo, indicam nossos limites uma vez que, para estudar o poema acádio, carecemos de recorrer a outra “literatura” para, por meio de analogias, criar hipóteses verossímeis. A despeito do quanto ainda ignoramos, a tradução de Jacyntho Brandão não apenas nos torna menos ignorantes em relação a uma cultura tão longínqua, mas também nos apresenta um universo a ser cartografado. Aliás, imagino o quanto de heroico há numa tradução direto do acádio. Para os aventureiros que ainda não viram o abismo, eis que surge, de mãos habilidosas, um mapa.

Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-doutor pelo Programa de Pós-graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor do livro Heroísmo na singradura dos mares: histórias de naufrágios e epopeias nas conquistas ultramarinas portuguesas. São Paulo: Paco, 2018.  2 BRANDÃO, Jacyntho Lins. A “Epopeia de Gilgamesh” é uma epopeia? (artigo no prelo). Endereço profissional: Av. João Naves de Ávila, 2121 – Santa Mônica, Uberlândia – MG, 38408-100. E-mail: [email protected].

Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888) – GONÇALVES (RTF)

GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí: Via Litterarum, 2017. Resenha de: SANTOS, Zidelmar Alves. Sobre escravos e senhores na terra do cacau (Ilhéus, sul da Bahia). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

A história do sul da Bahia está intrinsecamente ligada à saga do cacau. A literatura regional, principalmente as obras de Jorge Amado e Adonias Filho, contudo, contribuiu para a construção de uma memória que, se não apagou o passado colonial e escravocrata de Ilhéus e região, o omitiu, deixando-o no esquecimento.

Não podemos esquecer que o sul da Bahia estava inserido no contexto da escravidão, o que fortalece a ideia de que a riqueza advinda com os “frutos de ouro” foi construída ao custo muito sangue e suor não apenas de trabalhadores livres, mas também de escravos e negros libertos.

O livro Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888), de autoria do historiador Victor Santos Gonçalves, lança nova luz às relações estabelecidas entre os senhores, donos de grandes, médias e pequenas propriedades rurais, e escravos, que buscavam, além da sobrevivência, conquistar a liberdade, ainda que precária.

O trabalho é fruto de dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da UFBA entre 2012 e 2014 e possui prefácio da historiadora Maria de Fátima Novaes Pires. A obra é dividida em três capítulos. Em um primeiro momento, analisa a formação do espaço socioeconômico da vila de Ilhéus, destacando-a, a partir do século XVIII, principalmente como uma vila produtora de mantimentos. Aponta que, ao longo da primeira metade do século XIX, experimentou um crescimento populacional de forma gradual, que continuou na segunda metade deste século, seguindo o rastro do desenvolvimento econômico que pode ser observado pelo aumento das exportações de cacau e pelo tráfico ilegal de escravos africanos.2 Esse crescimento populacional, contudo, vai ao encontro dos discursos de crise de mão de obra construídos pelo governo provincial, que passou a estimular a criação de colônias agrícolas no sul da Bahia a partir dos anos 1850. Henrique Lyra salienta que “a criação de núcleos coloniais agrícolas na região Sul da Província estava diretamente ligada a uma política governamental para, muito mais que proporcionar a fixação de colonos como proprietários de terras, direcionar para aquela região o excedente populacional existente na Província”.3 Isso gerou “um fluxo migratório do centro e do norte para o sul da Província”4 em um momento em que a população escrava diminuía por conta da proibição do tráfico negreiro.

A leitura da obra de Gonçalves, inclusive, faz a relação “exportação de cacau – trafico negreiro” saltar aos olhos do leitor, descartando a concepção de que a lavoura cacaueira na comarca de Ilhéus desenvolveu-se única e exclusivamente por meio do trabalhador livre. O historiador Carlos Roberto Arléo Barbosa, por exemplo, destaca o envolvimento de grandes fazendeiros de cacau com a escravidão. Observe: grandes fazendeiros, com auxílio de escravos, plantaram cacau em suas propriedades. Em Castelo Novo, Sá Homem Del Rei, com 52 escravos, transformou o engenho de açúcar em fazenda de cacau, com 50 mil pés. Fortunato Pereira Galo, com 23 escravos, plantou 200 mil pés. O Dr. Pedro Cerqueira Lima, de família de traficantes de escravos, de Salvador, comprou a Fazenda Almada com 35 escravos. Depois, o seu filho, Pedro Augusto Cerqueira Lima, em 1892, possuía 200 mil pés de cacau. Outras propriedades cacauicultoras surgiram nessa época, como as dos Lavigne e as de Pedro Weyill.5 O desenvolvimento da lavoura cacaueira no sul da Bahia se deu em um momento em que o número de engenhos no estado passava por grande crescimento ao longo do século XIX, principalmente no interior, conforme indica Katia Mattoso: No final do século XVIII, a Bahia tinha 260 engenhos; em 1818, Spix e Martius encontraram 511. Num famoso ensaio sobre a fabricação de açúcar, o futuro Marquês de Abrantes arrolou 603 em 1833. Mais tarde, em 1853, em relatório a Assembleia Provincial, o presidente da Província falou em 759 engenhos registrados. Finalmente, em 1875, Manuel Jesuíno Ferreira citou 839 engenhos, 282 dos quais equipados com máquinas a vapor.6 Isso ratifica a hipótese de que a mão de obra escrava utilizada nos engenhos de açúcar era aproveitada ao mesmo tempo no plantio, não apenas do cacau, bem como de outras monoculturas estabelecidas em outras áreas do estado baiano.

Em um segundo momento, Gonçalves traça um painel da escravidão em Ilhéus, concebendo ela nos quadros do Antigo Regime português, que legitimava as desigualdades sociais. Assim, investiga os processos de busca pela liberdade por meio de vias legais. Destaca-se o caso do escravo Vicente, por exemplo, que não conseguiu provar à justiça que seu pai havia desembarcado no Brasil após a promulgação da lei que proibia o tráfico em 1831.7 No entanto, a conquista da liberdade poderia acontecer pelo mecanismo da alforria, seja ela onerosa (condicional e incondicional) ou gratuita (condicional e incondicional). O fato é que, em Ilhéus, “até as últimas décadas da escravidão, os escravos lutaram e pagaram vários preços pela sua liberdade”8 visto que muitas alforrias eram concedidas de forma condicional, o que sugere que estas dependeram da habilidade de negociação dos escravos para com seus senhores9.

O trabalho de Elciene Azevedo10 sobre lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo, por exemplo, demonstra outras nuances na busca pela liberdade, como a atuação e influência do movimento abolicionista sobre os escravizados, onde destaca-se a figura do poeta e advogado abolicionista Luiz Gama. Robert Slanes, em Na senzala, uma flor11, por outro lado, já havia demonstrado a importância da construção de laços familiares entre escravizados, utilizando como recorte empírico a região de Campinas. Procede, dessa forma, uma forte crítica às visões clássicas do escravismo, que reduzia os negros a animalidade e desenfreada promiscuidade sexual, o que impedia a constituição da família escrava, família esta que, conforme aponta Gonçalves, impulsionou as manumissões em Ilhéus.

Gonçalves, por fim, analisa os significados das cartas de alforria para senhores e escravos: “os senhores viam nela um reforço de poder, prestígio e ampliação de subordinados, já os cativos percebiam-na como um passo para ascender socialmente à condição de libertos”.12 A família escrava e o compadrio fortaleceram as iniciativas por manumissões, ao passo que funcionavam como elementos de resistência às dificuldades impostas pelo regime escravista. Em 1840, o Tenente-Coronel Egídio Luiz de Sá, por exemplo, alforriou seu afilhado João, cinco anos de idade. Recebeu de seu pai, José Fillippe, a quantia de duzentos mil reis. Ainda que tenha sido cobrada uma quantia, “a família escrava e o compadrio impulsionaram a carta de liberdade de João”13 o que ratifica a tese de Gonçalves.

A obra de Victor Santos Gonçalves, Escravos e Senhores na Terra do Cacau, dessa forma, constitui-se enquanto uma importante contribuição para a historiografia da escravidão em Ilhéus, principalmente se considerarmos que os trabalhos sobre esse universo escravocrata ainda são escassos. As fontes primárias utilizadas pelo autor, a exemplos de processos-crime, cartas de alforria, registros notariais, registros de casamento e de batismo, dentre outras, coletadas principalmente no Arquivo Público do Estado da Bahia – APEB, no Centro de Documentação e Memória Regional – CEDOC da UESC, no Arquivo da Cúria Diocesana de Ilhéus e na Secretaria da Catedral de São Sebastião de Ilhéus, indicam vários caminhos para novos pesquisadores, pois demonstram diversas possibilidades de análise, o que ratifica a ideia de que há muito a ser feito. Considerando ser este o livro de estreia do pesquisador, pode-se dizer que trata-se de um trabalho de peso. Embora escravos e senhores tenham na terra do cacau seu campo de ação, os “frutos de ouro”, o latifúndio e os coronéis não são os protagonistas. Isso demonstra que o historiador lançou um olhar diferenciado para o universo escravocrata do sul da Bahia, privilegiando as relações sociais e estratégias de resistência de minorias que foram silenciadas pela historiografia e pela literatura regional.

2 GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí: Via Litterarum, 2017, p. 66-71.

3 LYRA, Henrique Jorge Buckingham. A “crise” de mão-de-obra e a criação de colônias agrícolas na Bahia: 1850 – 1889. In: CARRARA, A. A.; DIAS, M. H. Um lugar na história: a capitania e comarca de Ilhéus antes do cacau. Ilhéus: Editus, 2007, p. 253.

4 Ibidem, p. 247.

5 BARBOSA, Carlos Roberto Arléo. São Jorge dos Ilhéus: um panorama histórico. In: PÓVOAS, Rui do Carmo. (Org.). Mejigã e o contexto da escravidão. Ilhéus: Editus, 2012, p. 432.  6 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, Século XIX: uma província no Império. 2. Ed. Tradução de Yedda de Macedo Soares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 462.

7 GONÇALVES, op. cit., p. 135-139.

8 Ibidem, p. 205-206.

9 Entre 1806 e 1888 foram registradas 251 cartas de alforrias em inventários, testamentos e no Livro de Notas do Município de Ilhéus. Destas, 69,7% envolviam pagamento e/ou condição e apenas 25,5% eram totalmente gratuitas. Apenas uma carta (4,8%) não teve tipologia identificada por Gonçalves (2017, p. 233).

10 AZEVEDO, Elciene. O Direito dos Escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São Paulo na segunda metade do século XIX. 2003. 232 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

11 SLANES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

Zidelmar Alves Santos – Mestrando em Letras: Linguagens e Representações pela UESC, Ilhéus, Bahia. Graduado em História e Especialista em História do Brasil pela mesma instituição. Endereço profissional: Campus Soane Nazaré de Andrade, Rod. Jorge Amado, Km 16 – Salobrinho, Ilhéus – BA, 45662-900. E-mail: [email protected].

Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar GRAHAM (RTF)

GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016. Resenha de: PIRES, João Augusto. Engenharias da guerra cotidiana. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 11, n. 1, jan.-jul., 2018.

Vou ao mercado e sou interpelado pela balconista que solicita meu C.P.F (Cadastro de Pessoas Física). Os números ditados me mapeiam. Fornecem os dados necessários para que o mercado me localize no espaço global. Atento a esse risco, desligo o GPS do meu smartfone e saio a caminhar entre a multidão da cidade. Andando pela área central de Campinas/SP, iludido pelo anonimato na multidão, percebo olhos mecânicos acompanhando os meus e demais passos apressados. Distante da massa, no enclausuro quase sempre solitário do âmbito doméstico, agoniado com o sentimento de medo do outro, pago, conforme o combinado, um miliciano que circula nos quarteirões do bairro em que moro. Cansado do estado de vigília, procuro nas escuras salas de cinema o lançamento do mês. Mais uma vez um filme hollywoodiano, agora chamado “Os vingadores”.

As imagens lançadas nessa micro-história talvez não sejam nenhum exagero. O medo, (de)compostos com os mecanismos de vigilância, povoam, em diferentes proporções, a vida cotidiana de todos. Portanto, a compreensão das relações sociais e dos dispositivos simbólicos e materiais que montam essa realidade pressupõem algo além de seis segundos de atenção. As complexas dinâmicas e faces assumidas pelo capitalismo na contemporaneidade exigem, como antes, obras de fôlego capazes de revelar as conexões do nosso sistema mundial integrado. Eis o que promove a coleção “Estado de Sítio”, editada pela Boitempo e sob coordenação do filósofo Paulo Arantes.

A parceria entre a editora e o consagrado pensador nos brinda com excelentes trabalhos, nacionais e internacionais, os quais inspiram a reflexão – a la izquierda – sobre questões pulsantes no social. Participam do conjunto, por exemplo, Cinismo e falência da crítica, escrito por Vladimir Safatle o qual se preocupa com a racionalidade cínica em nossa vida social. Rituais de sofrimento, de Silvia Viana, que se interessa pelos reality shows e a ritualização do sofrimento do outro, como também soma ao seleto grupo de escritos que pensam o atual estado de sítio o trabalho de Paulo Virilio, Guerra e cinema, que discute a relação intrínseca entre a sétima arte e os conflitos bélicos.

Dentre essas e tantas outras produções, Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar, assinado pelo professor da Universidade de Newcastle, Stephen Graham, contribui com a proposta lançada pelo grupo editorial e nos possibilita a reflexão sobre a convivência das tecnologias de guerra no espaço urbano. Operando com um arcabouço teórico capaz de esmiuçar a infinidade de vestígios e estilhaços da guerra urbana, Graham, nos deixa ver as operações discursivas, o investimento financeiro e os impactos culturais proporcionados pelo desejo bélico na sociedade contemporânea.

Com a ideia foucaultiana de “efeito bumerangue” em mãos, o autor consegue lançar críticas sobre as estratégias e armas desenvolvidas para os conflitos bélicos no Oriente Médio que retornam as cidades dos centros capitalistas do Norte reforçando uma sensibilidade beligerante, a qual se antecipa com seus carros fortes, arquiteturas e treinamentos virtuais para o combate eminente. Nesse mesmo sentido, Graham recupera os relatórios das agências de investimento e pesquisa em armas nos Estados Unidos e Israel apresentando a promíscua relação entre a iniciativa privada, o pentágono e o corpo militar do exercito norte-americano. Munido dessas informações, analisa a maneira pela qual as engenharias de guerra usadas em operações militares fora do espaço estadunidense e afins, remontam a urbe militarizada no interior destes mesmos países que promovem a guerra ao terror.

Uma quantidade significativa de documentos coletados pelo autor preenchem as páginas do livro e nos deixa ver as pulsões sensíveis que dinamizam o flanco bélico na contemporaneidade. Temos, como assinala Mike Dives, a possibilidade de compreender, a cada capítulo do livro, a “geografia urbana vista da perspectiva de um drone a 8 mil metros de altura. Um relato assombroso e fundamental a partir da zona de conflito global”. Graham, não perde de vista os games, as propagandas de agências de segurança privada, as entrevistas e reportagens assinadas pelo alto escalão militar, as conferências e relatórios técnicos do exército norte-americano, os livros, os mapas, as pesquisas quantitativas, os filmes e as tecnologias de guerra que, em conjunto, orquestram nossos conflitos cotidianos. O autor trama sua narrativa dividindo o livro em dez extensos capítulos de modo que os três primeiros se concentrem no aprofundamento da ideia do “novo urbanismo militar” – sua constituição histórica e as bases matérias que o conformam – e os demais em estudos de casos, os quais permitem uma análise pormenorizada das implicações culturais, políticas e econômicas da atual urbanização bélica.

De início percebemos já no primeiro capítulo que no decorrer do século XX “a guerra volta à cidades”, pois, como anuncia o autor, tendo um pouco mais da metade da população mundial vivendo no espaço urbano “a permeação da violência política organizada dentro e pelas cidades e pelos sistemas citadinos é complicada pelo fato de que muitas mudanças urbanas “planejadas”, mesmo em tempos de relativa paz, envolvem em si mesmas níveis bélicos de violência, desestabilização, ruptura, expulsão forçada e aniquilação de locais” (GRAHAM, 2016, p. 69). Assim, a medida que as relações sociais passam a se ambientar, cada vez mais, no interior das populosas e extensas metrópoles urbanas vemos nascer estratégias de organização imediatamente belicista. As subjetividades do ser citadino forjam-se no processo de um conflito eminente, por isso o desejo direcionado à segurança, as armas e as tecnologias de vigilância. Nesse ínterim, agências de pesquisa, o exército militar, empresas de segurança privada, universidades e o Estado tornam-se agentes protagonistas nesse contexto, haja vista que, conforme demonstra Graham, são essas instituições as principais operadoras da guerra urbana. Ao final do primeiro capítulo notamos as engenharias bélicas que servem tanto para as sofisticadas tropas combatentes no Oriente Médio quanto para as forças militares nas grandes metrópoles.

Em sequência, Graham se atêm a ordem do discurso que cria “mundos maniqueístas” dividindo o bom cidadão civilizado do ocidente e o mau bárbaro do oriente. Nesse segundo capítulo vemos as narrativas projetadas sobre o outro, as quais se sustentam em estereótipos e estigmas desumanizantes. Esse discurso, anota o autor, “de ‘almas perdidas’ em ‘cidades perdidas’ promove um ‘outro’ essencializado demonizado” (IBID., p.103), por isso passível de apreensão ou mesmo de morte. Notase que este alguém, antes distante, pertencente a etnias, facções ou Estados nacionais longínquos, no mundo global em que imperam, paulatinamente, as regiões metropolitanas cosmopolitas, vive agora na esquina ao lado. Deste modo, formam-se geografias, reais e imaginadas, com um sentimento de ódio, dissolvido entre às pulsões xenófobas, racistas e homofóbicas. O espaço urbano, “invadido” pelo diverso e diferente, quando insuflado pelos discursos raivosos, passa a uma progressiva negação por determinada ala conservadora da população estadunidense – muitos deles eleitores do partido republicano e entusiasta das políticas do ex-presidente George W. Bush.

Acredita, segundo relato extraído por Graham da Naval War College Review, que “esse ambiente urbano em expansão se tornou hoje uma vasta coleção de prédios deteriorados, uma imensa placa de Petri de doenças antigas e novas, um território onde a lei há tempo foi substituída pela quase anarquia, em que a única segurança possível é a obtida pela força bruta.” (IBID., p.113). As cidades, do extremo oriente e das capitais monetárias do Norte, tornam-se, nesse início de século XXI, ícone do confronto ao terror, dessa forma as “zonas selvagens” que contaminam o urbano estão passíveis de serem sítidas, quando não controladas e vigiadas pelos agentes da ordem.

Após apresentar os dados e as investidas bélicas no urbano no decorrer do século XX e início do XXI e atentar-se, no segundo movimento do texto, às tramas discursivas que sustentam as operações militares nesse espaço, no terceiro capítulo, Graham dedica-se a sua tese do “novo urbanismo militar”. As páginas que compõem essa parte são centrais para o desdobramento do restante do livro, haja vista que o autor empenha em demonstrar as bases do atual imaginário urbano e a maneira pela qual ele está circunscrito a um culto bélico, em distintas dinâmicas e proporções, na sociedade contemporânea. Aqui vemos Graham estreitar as relações teóricas entre Foucault, Deleuze, Agamben e Davis para construir o argumento dos sete elementos constitutivos, que inter-relacionados, configuram essa nova realidade militar do espaço urbano.

Prefigura dentre os dispositivos simbólicos desse ambiente a contraposição do rural, ligado ao nacionalismo e o bem-estar autêntico para o militarismo patriótico, contra o urbano promíscuo e degradante, onde também há a presença do outro selvagem. Esse sentimento, relacionado a uma prática de controle comercial e militar, compõem com as tecnologias de informação as quais interagem construindo uma subjetividade “cidadão-consumidor-soldado”. Conforme anota Graham, “poucas pessoas levam em consideração como os poderes militares e imperiais permeiam todos os usos do GPS” (IBID., p. 128), pois nesse estado de sítio, importa identificar, rastrear, mapear e manter corpos e circulações sob controle. Nesse sentido, a mídia cumpre importante tarefa nessa composição, tendo em vista que a espetacularização da guerra fica a cargo das grandes corporações da imprensa as quais ratificam os discursos bélicos. Isso, por sua vez, implica no surto de segurança o qual favorece a rápida expansão de corporações militares privadas – “Os gastos internacionais com segurança interna hoje ultrapassam ramos estabelecidos, como a indústria cinematográfica e a indústria musical, em receita anual” anuncia a edição de dezembro de 2007 do Economic Times da Índia” (IBID., p.139). Esse elemento converte finanças para a segurança privada e de espaços privilegiados do urbano – condomínios, edifícios, shoppings e etc. –, mas também cria um ramo de negócio no qual investe na infraestrutura hipermilitarizada de pontos de fluxo e conexão do mercado global – portos, aeroportos, bolsa de valores, arenas de esporte e etc. As fronteiras das “cidades mundiais” estão sob a mira da alta tecnologia, pois “as arquiteturas da globalização se fundem perfeitamente nas arquiteturas de controle e guerra” (IBID., p.143). Por último, Graham destaca a combinação do nacionalismo ressurgente pós 11 de setembro e o uso permissivo da força militar, no mesmo instante e proporção, em determinadas áreas das cidades norte-americanas e do Oriente Médio. Portanto, a “disjunção entre soldados rurais e guerras urbanas, a indiferenciação de tecnologias de controle civis e militares, o tratamento de ataques contra cidades como eventos de mídia, o surto de segurança, a militarização do movimento [entre as zonas de mercado], as contradições entre culturas nacional e urbana de medo e comunidade, e as economias políticas dos novos espaços estatais de violências” (IBID., p.155), interagem e orquestram as experiências do novo urbanismo militar.

Nos capítulos dedicados a estudos específicos, Graham retoma as ideias trabalhadas nas primeiras partes do livro e lança mão, no quarto ponto em especial, do conceito das “fronteiras onipresentes” para demonstrar a organização de sistemas digitais de segurança conectados em escala global, capaz de cartografar, separar e controlar mercadorias e pessoas. Vemos o trabalho de “mineração de dados” pessoais usados para a criação de fronteiras seguras garantidas por bases biométricas. No capítulo seguinte o desconforto se atenua, pois Graham nos deixa diante dos “sonhos de um robô da guerra” cultivado pelas agências de inteligência, governo e exército norte-americano. A cada subitem lemos as operações militares organizadas para o progresso das tecnologias de guerra. O autor assinala os desejos que impulsionam as criações de armas biológicas, soldados robôs, equipamentos inteligentes e computadores de guerra para o controle e eliminação do outro. No sexto capítulo, “Arquipélago de parque temático”, Graham volta a atenção as construções urbanas e os games usados para treinamento militar. Acompanhamos o investimento na constituição de pequenos núcleos urbanos estruturados para a simulação de cidades árabes, os quais, muita das vezes, estão servidos de civis figurantes ou de simuladores gráficos interativos. Nesse entremeio, o autor demonstra a relação entre a indústria de jogos eletrônicos e as forças militares estadunidense, uma troca intensa de estímulos haja vista que essas empresas aprimoram, em termos psíquicos, a experiência de guerra – “de fato, 40% daqueles que se alistam no Exército já tinham jogado America’s Army.” (IBID., p.282). Em “lições de urbicídios” e “desligando cidades”, sétimo e oitavo capítulo respectivamente, Graham demonstra a estratégia de eliminação de espaços urbanos operados, principalmente no Oriente Médio, na Faixa de Gaza e Cisjordânia em especial, pelos exércitos estadunidense e israelense. Nos deparamos com as altas cifras investidas na destruição ou na inoperação do espaço urbano. O penúltimo capítulo ganha a cena os modelos automobilísticos de Veículos Utilitários Esportivos (SUV, sigla em inglês) que retroalimentam o imaginário de guerra no espaço urbano.

Graham, revela como esses carros estão intrinsecamente ligados ao pensamento bélico que se evidencia na sua forma estética e força mecânica. A indústria petroleira e as marcas de automóveis também operam na mesma lógica da guerra, mesmo porque ter um SUV significar participar, ou de alguma maneira financiar, o confronto. Por fim, após uma assombrosa submersão nos interstícios da política bélica, no último capítulo, caminhamos entre as “Contrageografias” que tentam denunciar e desmontar o jogo comandado pela cultura de guerra nas cidades contemporâneas. Assim, Graham revela as estratégias assumidas por grupos ativistas e coletivos organizados para subversão no estado de sítio. Entusiasmado com as ocupações públicas, o autor se arrisca em formas de contra-ataque as instituições e símbolos do poder bélico.

As análises desenvolvidas pelo autor se constituem, principalmente, a partir da experiência estadunidense, em determinados momentos inglesa e israelense, e quase sempre dos conflitos orquestrados pelo governo norte-americano no Oriente Médio, com ênfase no Iraque, Afeganistão e Palestina. Vezes ou outra, Graham se arrisca em fazer paralelos com outros países de regiões mais pobres. Apesar de indicar, logo na introdução, o percurso metodológico, as mediações teóricas e os objetivos do trabalho, os quais, diga-se de passagem, contribuem para aqueles(as) que queiram pensar os conflitos urbanos na contemporaneidade, o enfoque dados nos capítulos me obrigou a reler e a somar informações – mesmo que o autor e tradutor cuidasse de alguns pontos necessários – sobre a conjuntura política dos Estados Unidos, bem como os pormenores dos conflitos na região do meio Oriente. Os impasses com a contextualização se formava devido a composição do livro feita por textos acadêmicos, alguns publicados em periódicos, outros expostos em palestras e comunicações, direcionados a um público minimamente habituado com a temática. Informações complementares ou lacunares durante a leitura, foram feitas por minha conta, isso se deve porque o lançamento em inglês, datado de 2010, foi arranjado para a massificação das ideias de Graham entre os anglófonos que convivem com os alardes dos noticiários de guerra, os conflitos urbanos e as experiências de alto controle e segurança em seus respectivos países. Detalhes que possibilitam uma melhor visualização das políticas de segurança pública no EUA, as leis antiterror, as relações entre o Estado norte-americano e a indústria bélica, são alguns aspectos que, para aqueles que estão na região sul da América, talvez sejam indispensáveis para o entendimento dos pormenores das ideias lançadas pelo autor.

Além dessa consideração, acrescento que apesar da potente abordagem, colocando diferentes áreas das ciências humanas em dialogo, ele deixa algumas lacunas em suas análises. Penso em especial na contribuição historiográfica para o saber urbanístico, o qual confrontaria, em certa medida, a noção de “novo urbanismo militar”, haja vista que a ideia de militarização do espaço urbano prescreve a tempos remotos.

Apesar de citar brevemente, no primeiro capítulo, importantes referências da História que observam as cidades no período dos impérios coloniais, o autor não leva a adiante os estudos sobre as restruturações urbanas e as influências dos saberes médicos e militares no desenho das cidades modernas. Uma devida atenção a esta bibliografia lhe acrescentaria argumentos para pensar o vínculo histórico intrínseco entre formas de controle, em grande medida militarizados, e o espaço urbano. Os itens defendidos, no terceiro capítulo principalmente, como princípios do novo urbanismo formulam-se a partir de um contingente histórico o qual mereceria maior atenção.

Termino de ler o livro, ligo o computador para me distrair nas infovias e me (as)salta os olhos na primeira tela a oferta do mês – “livros com 25% de desconto, só aqui na livraria X”. Nas horas seguintes é anunciado em meu celular a feira de livros que ocorrerá na próxima semana com uma estante de publicações da Boitempo. Logo após enviar, via e-mail, para um amigo a resenha que preparei sobre o livro de Graham, o Youtube me apresenta um cardápio de palestras, entrevistas e conversas com o autor. Fui, novamente, rastreado.

João Augusto Neves Pires1 – Endereço profissional: Rua Ariovaldo Silveira Franco, 237 – Mirante, Mogi Mirim – SP, 13801-005 E-mail [email protected] .

Contribuição à crítica da historiografia revisionista – SENA JÚNIOR (RTF)

SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de; MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto Grassi (Org.). Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017. 380 p. Resenha de: CASA GRANDE, Dirceu Junior. “Boa memória” e “conciliação”: a crítica da historiografia revisionista no Brasil. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 11, n. 1, jan.-jul., 2018.

A História e a memória não se equilibram mais entre a lembrança e o esquecimento. Tomadas de assalto nos dias atuais, lutam agora contra um espectro ainda mais obsedante, o silenciamento. O livro organizado por Carlos Zacarias de Sena Júnior, Demian Bezerra de Melo e Gilberto Grassi Calil, Contribuição à crítica da historiografia revisionista, publicado pela Consequência Editora em 2017, é mais um esforço de resistência às tentativas de amordaçar a História. Avessos a ideia de “conciliação” e construção da “boa memória”, o tema do revisionismo historiográfico é abordado por autores que escolheram combater aqueles que trabalham para apropriar-se do ofício de lembrar e impor versões definitivas para fatos e acontecimentos polêmicos e conflituosos.

Esta nova obra é o desdobramento de um trabalho anterior de crítica historiográfica, que reuniu textos de inúmeros historiadores no livro, A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo, organizado por Demian Bezerra de Melo, publicado 2014. O novo conjunto de textos deu sequência às críticas historiográficas e aos debates em torno das apropriações do passado propostas por “revisões” de caráter meramente apologéticos. Não pode haver “conciliação”, assim como não existe a “boa” ou a “melhor” memória. As “revisões” apologéticas não passam de impulsos ideológicos que tem como objetivo habilitar ou reabilitar versões que não possuem nenhuma base teórico-metodológica viável ou qualquer proposição inovadora. Como alertou Virginia Fontes no prefácio da obra, “vivemos tempos em que se propõe ‘escolas sem partido’, impondo uma pretensa neutralidade para aniquilar o formidável conhecimento sobre a historicidade humana, a democracia e a revolução” (2017, p. 15).

O primeiro artigo do livro, intitulado “Revisão e Revisionismo”, foi escrito pelo historiador italiano Enzo Traverso. Em seu texto, o autor estabeleceu uma tensão entre ambos os conceitos e o ofício do historiador. O objetivo é refutar o perspectivismo, as tendências apologéticas e os usos públicos e inconsequentes das narrativas historiográficas. Conforme avaliou Traverso, o ofício do historiador consiste em criticar os fatos e os acontecimentos e revisar as versões com base na descoberta de novas fontes e documentos desconhecidos ou inexplorados. A crítica avalia o trabalho empreendido pelos pares e a revisão abre novas possibilidades de compreensão da História – com seus métodos e procedimentos – e do passado.

As conclusões das críticas e revisões historiográficas devem contribuir para ampliar os conhecimentos históricos, não silenciá-los. Quando porém, os historiadores relativizam aquilo que sabemos sobre um evento histórico com o objetivo de estabelecer uma nova perspectiva sobre ele ou direcioná-lo para usos públicos específicos como a ação política, ultrapassam os limites da pesquisa e da elaboração do conhecimento histórico-científico, incorrendo naquilo que Traverso denominou “revisionismos”.

Nesses processos, os revisionistas nunca utilizam uma nova fonte ou um documento inédito. Via de regra, promovem uma “viragem étnico-política” (p. 32) nos modos de enxergar e lidar com um fato ou acontecimento e elaboram narrativas com “tendências apologéticas” bem demarcadas. Os objetivos são o convencimento de indivíduos, a formação de públicos cativos, a imposição de versões pretensamente definitivas ou hegemônicas e a desconstrução inadvertida das teses marxistas.

Os revisionistas ignoram que os conhecimentos que possuímos do passado são sempre frágeis e temporários, dadas as características precárias e instáveis da História.

As críticas e revisões historiográficas normalmente suprem essas fragilidades dirimindo conflitos, desfazendo equívocos, esclarecendo e ampliando o conhecimento histórico.

Nesses casos, os trabalhos de revisão dão conta de atender expectativas de conhecimento e abrir novas possibilidades de análise, tornando a História mais fecunda. Na contra mão desses processos, as “revisões” apresentam, em suma, duas características marcantes em relação aos seus “métodos” e “conteúdos”: ou são inteiramente discutíveis ou inevitavelmente nefastos.

Mas, assim como o historiador conhece os limites e as possibilidades do seu trabalho e as implicações que suas teses podem produzir, os “revisionistas” conhecem perfeitamente os objetivos que desejam atingir e os caminhos que precisam percorrer para impor suas perspectivas. O primeiro passo é a afirmação de uma ortodoxia, de uma crença inabalável ou uma ideia fixa sobre um conjunto de fatos e acontecimentos. O segundo passo é a eliminação do diálogo e da discussão mediante o uso deliberado de práticas inquisitoriais ou estratagemas para vencer um debate sem ter razão. O terceiro passo consiste na excomunhão dos divergentes e na eliminação daqueles que defendem o caráter fecundo da História. Esses são os expedientes que dão voz e “razão” tanto aos historiadores oficiais quanto aos revisionistas. Ambos agem ideologicamente para partidarizar a História e polarizar as discussões sem trazer, no entanto, nada de novo para o debate.

As estratégias dos “revisionistas” consistem essencialmente em projetar para o primeiro plano lembranças vagas do passado e introduzir aspectos difusos da memória coletiva como instrumentos de avaliação dos acontecimentos, não de análise. O objetivo é acumular “vantagens” no debate público e obter a primazia do lembrar e do revelar.

Os métodos historiográficos são sumariamente descartados em favor de interpretações ideológicas, partidárias e relativistas. O que prevalece são falas generalizantes e radicalizadas que celebram ficções, reabilitam indivíduos, restituem ações ou validam versões e perspectivas detestáveis. O resultado são versões apologéticas cujas cores revelam os matizes de uma “ordem” falsamente estabelecida e supostamente inquestionável ou “novas verdades”, aparentemente revigorantes e esclarecedoras.

O livro conta com o prefácio de Virginia Fontes e uma introdução redigida pelos organizadores da obra, além de outros dez capítulos. Os três primeiros textos estão agrupados em uma parte denominada, “Ditadura e Democracia”. Outros quatro artigos foram reunidos em uma parte chamada “Revolução e Contrarrevolução”. E finalmente, os três últimos capítulos compõem uma parte que recebeu o título de “Capitalismo e Luta de Classes”. Nos referidos textos, os autores avaliaram as versões revisionistas sobre o golpe de 1964 e o período ditatorial que ele inaugurou, as revoluções portuguesa e russa e as teses do revisionismo conservador sobre o totalitarismo e o fascismo. Na terceira parte, revolução industrial, capitalismo e luta de classes, segregação urbana, criminalidade e banditismo são os temas dos últimos capítulos do livro.

No primeiro capítulo do livro, A “boa memória”: algumas questões sobre o revisionismo na historiografia brasileira contemporânea, Carlos Zacarias de Sena Junior aponta para a existência de uma “guerra de memória” (p. 63). Mais uma vez, as “revisões” apologéticas, ao insistirem na relativização do golpe de 1964, propõem um perspectivismo sutil para discutir temas singularmente polêmicos. Nessa dinâmica, a historiografia sobre o golpe e a ditadura que se seguiu, passaram a figurar entre os objetos preferidos dos “revisionistas”, empenhados na ressignificação dos eventos. Não por acaso, assim como ocorreu com outros temas polêmicos da História, como as revoluções francesa, portuguesa e russa, o resultado das versões seletivas sobre 1964 revelam reminiscências e ideologias políticas, mas não contribuem com a fecundidade do conhecimento histórico. Isso é o que facilita sua absorção pelos leitores desavisados ou pelos ouvintes cativos, bem como, favorece a consequente condenação de todas as teses que contrariam as expectativas dos adeptos das “revisões”.

Para Gilberto Grassi Calil, que escreveu o capítulo intitulado Elio Gaspari e a ditadura brasileira, o jornalista foi capaz de converter conspiradores, golpistas e torturadores em lideranças políticas bem intencionadas e austeras, além de transformar vítimas em culpados. Em uma perspectiva ainda mais apologética e centrada na ação de grandes personagens como o ex-presidente Ernesto Geisel e o General Golbery, o jornalista Elio Gaspari nos revelou uma visão suavizada da ditadura. Sua amizade com os personagens demonstram como a intimidade do autor com os atores de uma trama podem contaminar irremediavelmente a narrativa. Gaspari promoveu um abrandamento descarado da ditadura, restringindo-a temporalmente, absolvendo atores importantes, como o empresariado e os agentes norte-americanos, atribuindo à esquerda parte da culpa pelos rumos que os acontecimentos tomaram, elaborando uma versão parcial dos fatos sem qualquer tipo de apoio documental mais robusto.

Quando a paixão dirige o trabalho historiográfico, os resultados são “vertiginosas piruetas intelectuais” (p. 113), penduradas em tentativas para produzir conciliações e consensos políticos ou justificar atos de violência ostensiva. Eurelino Coelho analisou o trabalho de Ângela Castro Gomes e Jorge Ferreira, O livro de 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Na tentativa de compreender a vitória dos golpistas civis e militares, os autores utilizaram um tempo verbal estranho ao trabalho do historiador, argumentando que, “se os personagens históricos tivessem se comportado de outra maneira… outra teria sido a história” (p. 117). Como é possível realizar uma revisão historiográfica no futuro do pretérito, questiona Eurelino? Mesmo existindo alternativas à disposição dos atores, eles fazem suas escolhas. Portanto, a história que deve ser contada é essa, centrada nas escolhas dos atores e não em possibilidades remotas do que poderia ter sido, e não foi.

A obra avança e os demais artigos do livro discutem amplamente as ideias e contextos de temas como Revolução e Contrarrevolução. Manuel Loff e Luciana Soutelo descrevem como as revisões sobre esses temas promoveram a suspensão do conceito de revolução e igualaram o fascismo e o comunismo para atribuir aos regimes totalitários um viés exclusivamente de esquerda. O objetivo dessas revisões, esclarecem os autores, é a legitimação do liberalismo ocidental, sua desideologização e naturalização históricas. As ressignificações do fascismo, a negação dos conflitos de classes e o abrandamento das ações da direita conservadora abriram caminho para a permanência dos discursos fascistas na sociedade atual. Ao analisar o que foi escrito pela imprensa nos períodos de transição da ditadura para a democracia, Carla Luciana Silva descreveu as atitudes e práticas totalitárias que resistiram ao fim dos períodos autoritários e permanecem virtualmente cativantes atualmente, tal como ocorreu em Portugal e Espanha pós-Salazar e pós-Franco, respectivamente.

Tatiana Figueiredo, por sua vez, avaliou o “revisionismo” histórico a partir da relativização do conceito de revolução, o qual passou a ser identificado pelos “revisionistas” como um caminho para a servidão e o terror, menosprezando conteúdos políticos, além da vontade e da participação popular nesses eventos. A autora criticou a elaboração de arquétipos e constatou que os movimentos que derrotaram a opressão e o terror, logo foram classificados da mesma forma. Na avaliação de Figueiredo, os revisionistas obscureceram o caráter antiautoritário das revoluções para promover novas formas de organização social e política, justificar atos extremos de violência, isentar de culpa empresários, políticos e intelectuais, além dos grandes monopólios empresariais, tal como ocorreu com os colaboradores do nazismo na Alemanha do pósguerra.

Na última parte do livro, “Capitalismo e Luta de Classes”, os autores destacam que o fortalecimento das teses “revisionistas” não geraram somente prejuízos para historiografia e para o conhecimento histórico. O predomínio dessas perspectivas com seus abrandamentos, reducionismos, generalizações e pregações otimistas sobre os avanços e o desempenho da democracia e da economia de mercado, escondem problemas mais sérios como as desigualdades sociais, a segregação urbana, a criminalidade, o banditismo e a violência. O empenho desses revisionistas, agrupados no que se convencionou chamar de “escola otimista”, reforçou as teses conformistas e a ideologia da sociedade de uma “classe só”, como sublinha Igor Gomes no último capítulo do livro (p. 331). De acordo com os autores do livro, paira sobre a História, suas pesquisas e narrativas, uma imensa nuvem de silêncios, todos discutíveis e nefastos.

Dirceu Junior Casa Grande – Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP-Assis-SP e Docente da área de Ciência Humanas e Sociais da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR-Câmpus Cornélio Procópio-PR. Endereço profissional: AV. Alberto Carazzai, 1640 – Cornélio Procópio-PR – CEP-86300-000. E-mail: [email protected].

Impérios em Guerra (1911-1923) – GERWARH (RTF)

GERWARH, Robert; MANELA, Erez. Impérios em Guerra (1911-1923). Lisboa: Dom Quixote, 2014. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. Colonialismo e conflitos: a Primeira Guerra revisitada. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 10, n. 2, ago.-dez., 2017.

Ao se pensar Primeira Guerra Mundial, em contrapartida acaba-se por lembrar das consequências do conflito na Europa, mas a participação de outros continentes e as áreas coloniais neste conflito é normalmente esquecida. Estas inquietações motivaram a presente obra Impérios em Guerra (1911-1923), na qual buscou-se um panorama da guerra a partir da perspectiva de Impérios em disputas e não de Estados-Nações.

Essa obra é resultado de duas conferências temáticas sobre o assunto ocorrida em Dublin em 2010 e 2012, a sua elaboração contou com auxílio financeiro do Conselho Europeu de Investigação (CEI). A publicação ocorreu no ano do centenário do início da Primeira Guerra Mundial.

Na introdução, os organizadores apresentaram que a guerra será estudada em um quadro temporal e espacial maior do que o convencional, pois a desmobilização das tropas dos exércitos coloniais, na Ásia e da Europa Centro-Leste não se encerraram ao final do Conflito Mundial. Desta forma, é mostrada a Primeira Guerra como um enfretamento de Impérios globais e multiétnicos e não entre Estados-Nações. Os organizadores definem que Império seria uma entidade política cujas populações e territórios estão dispostos e são administrados de forma hierarquizada em relação ao centro imperial. Assim, “a Grande Guerra foi uma guerra de impérios, travada principalmente por impérios e pela sobrevivência ou expansão de impérios” (p. 50).

No primeiro capítulo, O Império Otomano, Mustafa Aksakal afirmou que o processo de declínio deste território vinha muito antes do conflito mundial. Ao longo dos séculos, os otomanos eram uma experiência de sucesso como instituição multiétnica que foi acabada com a Primeira Guerra Mundial.

Em suas análises, é mostrando o anacronismo existente na administração imperial. Pois era um Estado cheio de dívidas e agrediam as populações não muçulmanas, no que causou nestas o desejo de independência. Na construção deste capítulo, o autor baseou-se em relatos diplomáticos europeus, na qual mostram uma má gestão otomana, e fontes otomanas em que o Império é vítima do imperialismo europeu. A Primeira Guerra Mundial foi tratada pela administração otomana como um conflito ideológico e militar. No primeiro caso, o sultão otomano buscou trata-la como uma Guerra Santa, apelou para os súditos muçulmanos e residentes islâmicos fora do império para participarem da causa em favor da Tríplice Aliança. Na segunda questão, tentou a recuperação de territórios perdidos anteriormente com países europeus.

O Estado Otomano tomou medidas preventivas contra populações cuja lealdade desconfiava, como os armênios e os árabes. No caso armênio, aconteceu o episódio conhecido como Holocausto Armênio que é até hoje denunciado internacional e a Turquia atual não o reconhece. No caso árabe, as privações sofridas por esta população causaram a Revolta Árabe de 1917 que enfraqueceu o Império Otomano nessas localidades. Ao final do conflito, diversas regiões do império são ocupadas e fragmentadas entre as potenciais vencedoras, o processo de substituição do Império Otomano pelo Estado-Nação Turco não foi rápido e nem simples como demonstrado pelo autor ao final do capítulo.

No segundo capítulo, O Império Italiano, Richard Bosworth e Giuseppe Finaldi mostraram como a Itália, um país recém unificado, se fez ou tentou se fazer presente na Primeira Guerra Mundial. O Estado Italiano construiu a ideia em sua população de uma Terceira Itália, na qual apropriou-se do tempo e da tradição imperial daquele território, rememorando os grandes feitos do Império Romano e dos Estados Italianos que lideraram a cultural ocidental durante o Renascimento.

A ocupação de áreas do Império Otomano, como a Líbia, foi tratada pela sua administração como uma forma de mandar a população mais pobre para terras férteis e estancar a emigração para o continente americano. A invasão a essa localidade sofreu severas críticas tanto por liberais e socialista na Itália.

Em outras colônias italianas, como a Eritreia não houve nenhum indício de rebelião durante a Primeira Guerra Mundial que questionasse a dominação da Itália.

Essa colônia era para os italianos a porta de entrada para a Etiópia região cobiçada pelo país desde o século XIX. No caso da Somália Italiana, a ocupação era precária e dava margens aos potentados locais a participarem da administração.

No capítulo seguinte, O Império Alemão, Heather Jones declarou que no caso da Alemanha existia uma relação complexa que desafia a compreensão cronológica e espacial tradicional do Imperialismo. A ideia de império se baseou em três componentes imperiais distintos que foram: o formado após a unificação da Alemanha em 1871; o território alemão mais os Estados satélites ocupados por ele ao longo da Primeira Guerra; e o os territórios alemães de além-mar.

O projeto de colonização alemã na África foi algo recente, começou na última década de Oitocentos e as primeiras do século XX. Segundo Heather Jones, a crise do Marrocos (1911) foi um ensaio alemão para a Primeira Guerra Mundial. A Alemanha ansiava por colônias desde a década de 1880 para se transformar em um modelo contemporâneo de Estado-Nação/Império.

A Alemanha expandiu-se na Europa ao longo da disputa. A Primeira Guerra foi usada pelos alemães para defender, expandir e consolidar as fronteiras do Império na Europa. A sua radicalização beligerante ao longo do conflito mundial baseou em suas táticas de repressão aos povos africanos.

Até 1916, todas os seus territórios coloniais foram capturados pelos adversário.

Ao final da guerra, os três componentes imperiais que baseavam seu Império caíram e a Alemanha sofreu consequências graves no período posterior.

No quarto capítulo, A Áustria-Hungria, Peter Haslinger mostrou que o Estado austro-húngaro existia uma solidariedade entre os povos que o compunham, mas era um império debilitado a décadas. A noção de irmandade entre seus povos, sofreu seu primeiro revés no século anterior, em 1867, quando ocorreu o Compromisso Austro- Húngaro despertou o desejo e sentimento de outros povos pela emancipação.

Ao longo da história do império, ele nunca adotou uma política de discriminação para nenhum de seus povos. No entanto, ao longo da Primeira Guerra Mundial, duas medidas causaram efeitos nacionalistas em seu território: Quatorze Pontos de Woodrow Wilson (8 de janeiro de 1918) e a Declaração do Direitos dos Povos da Rússia (15 de novembro de 1917).

Ao final do conflito mundial e com o desmantelamento gradual do Império, aumentasse a responsabilidade das administrações regionais frente a Viena. Entre os dias 8 a 11 de abril de 1918, ocorreu em Roma, o Congresso das Nacionalidades Oprimidas formada pelos diferentes povos que compunham o território que desejavam uma autonomia completa. Em agosto de 1918, a Tchecoslováquia tem reconhecida sua independência, o mesmo passo é seguido por demais áreas do Império entre os meses de outubro e novembro de 1918.

Os meses finais de 1918 confirmaram o fim da monarquia dual existente na Áustria-Hungria. Após a sua dissolução, o problema dos Balcãs, que desencadearam o conflito mundial, continuaram.

No quinto capítulo, O Império Russo, Joshua Sanborn mostrou que ao longo da história do Império Russo ocorreram conquistas modestas e fracassos que ajudaram no desenvolvimento do seu poderio militar. Desde 1881, o império passou por um processo de russificação iniciado pelo czar Alexandre III, após essa medida os movimentos nacionalistas separatistas nunca foram uma ameaça real ao território. Ao iniciar a Primeira Guerra Mundial, os povos que o compunham sofreram tratamento militar diferente conforme a assimilação que as populações haviam passado pela russificação. A administração imperial mudou, o sistema de governança foi substituído por um sistema de governança militar entre os generais que ocuparam territórios no conflito.

Essa transformação desencadeou falhas para o Império, ocorrendo resistências locais, crises econômicas, aumento da inflação e falta de alimentos.

Em 1915, os russos sofreram fortes baixas como parte dos territórios polacos e a Ucrânia. No ano seguinte, ocorreu vitórias irregulares e inconclusivas. O sistema econômico, que já estava debilitado anteriormente, começou a ruir pela escassez de mão de obra. Uma solução encontrada para cobrir essa demanda foi o uso de prisioneiros de guerra em campos de trabalho forçado.

Em junho de 1916, o tratamento militar distinto entre as minorias étnicas foi cancelado, o Conselho de Ministros incorporou populações que eram isentas ao serviço militar para as frentes de conflito. Em finais daquele ano, as fronteiras ocidentais estavam sob ocupação estrangeira ou debaixo de administrações militares incapazes.

Com o início da Revolução Russa, em 1917, o país retirou-se do conflito mundial, para tentar resolver seus problemas internos. A primeira fase da Revolução, iniciada em fevereiro, mostrou uma política liberal fracassada que despertou o nacionalismo em diversas regiões do Império, como a Finlândia, Geórgia e a Ucrânia. Com a passagem do poder para as mãos dos sovietes, em outubro, a possibilidade de independência de outras regiões do império alterou-se, pois a independência de qualquer território transformaria aquela região dependente do Império Alemão.

Ao final da Primeira Guerra, ocorreu o colapso absoluto do Império Russo que adentrava em um conflito civil. Ao final da Guerra Civil Russa, o Kremlin transformouse em um novo centro imperial com novas perspectivas de expansão.

No capítulo seguinte, O Império Francês, Richard S. Fogarty apresentou a visão de uma Grande França que entrou no conflito, essa entidade seria a união da metrópole com as colônias. Nesta perspectiva, os territórios ultramarinos ajudaram a travar uma guerra total, pois foi arrecado 650 milhões de franco de assistência econômica proveniente das áreas do ultramar, 500 mil súditos soldados e 200 mil trabalhadores provindo do além-mar para a indústria da guerra foram mobilizados.

A Primeira Guerra tornou o império rentável para a França, tratando-o como uma entidade única. No decorrer do conflito, o Império era mais importante psicologicamente do que materialmente, pois causava na população que era empregada no conflito um sentimento de unidade para uma causa maior.

Nos últimos dois anos de guerra, ocorreram uma resistência ao recrutamento no ultramar, desta forma empregou-se o trabalho forçado para a indústria de guerra e o convocação obrigatória de soldados. Essa mudança de perspectiva da população deveuse o conflito estar associada a morte ou a perda de capacidade física para os que entraram nela. No período posterior, o significado do Império Francês alterou-se, ganhou importância para a defesa e a vida da nação.

No sétimo capítulo, A África Imperial Britânica, Bill Nasson demonstrou como o Império Britânico se fragmentou em três frentes de conflito: Europa, Ultramar e Oriente Médio e a importância das colônias para defender os interesses da metrópole.

Desta forma, a guerra travada pelo Império Britânico em África era para aumentar seu poderio colonial no continente e legitimar seu domínio do mar.

Para a população colonial em África, ocorreu um atrativo no alistamento militar para a guerra pois era associada a autoridade patriarcal e a identidade guerreira de certas tribos, além da remuneração compensar para os jovens que não tinham nenhum ofício. A Primeira Guerra na África Britânica foi heterogênea em seus territórios: a África do Sul buscou expandir com a incorporação do Sudoeste Alemão; no Sudão houve uma cautela no recrutamento de soldados devido aos chefes locais e medo de insurreições muçulmanas; na Rodésia ocorria interações tensas entre os soldados britânicos e a população local.

No oitavo capítulo, Os domínios, a Irlanda e a Índia, Stephen Garton apresentou as demais entidade políticas que compunham o Império Britânico: a Nova Zelândia, a Austrália, a Índia e a Irlanda. Por ser uma entidade polimórfica, o Império Britânico desenvolveu estratégias distintas para suas diversas regiões que participaram do conflito mundial.

Mesmo sendo uma entidade heterogênea, algumas consequências foram comuns em diversas localidades do império como greve de trabalhadores cansados dos fardos da guerra e medo de rebeliões internas devido minorias alemãs em suas áreas.

Após a Primeira Guerra Mundial, ocorreu maior independência nas entidades políticas que compunham o Império e aconteceu sua expansão, através da incorporação de territórios da Alemanha e do Império Otomano. Desta forma, o conflito mundial não foi apenas da Grã-Bretanha, mas de todo um grupo de entidades soberanas que se consideravam parte de um mesmo ser: o Império Britânico.

No nono capítulo, O Império Português, Filipe Ribeiro Meneses apresentou a importância do peso do colonialismo na história portuguesa diferente dos demais impérios europeus. Desta forma, a República Portuguesa, que foi instaurada em 1910, via necessidade na manutenção do país como uma potência colonial. No entanto, a falta de investimento do Estado e recursos humanos para trabalharem no ultramar causavam um colonialismo fraco comparado com os demais países.

Ao longo da Primeira Guerra Mundial, Portugal mobilizou tropas em suas colônias para garantir a continuidade do seu Império. Ao final do conflito, na Conferência de Paz de Paris as potências europeias tiveram interesses em partes dos territórios lusitanos, mas com um forte apelo diplomático e histórico, Portugal conseguiu manter seus territórios.

Em, O Japão Imperial e a Grande Guerra, Frederick Dickinson evidenciou a importância da Ásia Oriental como local crucial para as disputas imperiais. Até a Primeira Guerra Mundial, ele aumentou seu território imperial através de exploração de áreas do território chinês (1895) e a Guerra contra o Império Russo (1905). Entre os anos de 1914 a 1919, o Japão não aumentou suas áreas, mas manteve uma ação na Sibéria para conter a Revolução Russa.

Após a Primeira Guerra Mundial, os japoneses passaram ao cenário internacional como potência mundial, devido sua atuação no conflito. No entanto, a guerra na Ásia não terminou com o Tratado de Versalhes, lá ela terá sua temporalidade própria diferente da Europa. O estado de beligerância acabou na Ásia após a Conferência de Washington em 1921.

No capítulo, A China e o Império, Xu Guoqi assinalou que durante o conflito libertaram-se os fantasmas da época imperial chinesa. Após a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), os chineses começaram a repensar o papel de sua civilização mundialmente dando início a várias iniciativas nacionalistas em seu território para fortalecimento contra potências rivais. Ao final desse conflito, o Japão tornou-se a potência principal da Ásia Oriental.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o Japão buscou garantir o controle da China e lançou um manifesto conhecido como 21 exigências, na qual o presidente chinês cedeu. Essas medidas tiravam a soberania chinesa em várias localidades de seu território e os concedia aos japoneses. Em 1917, a China entrou oficialmente na Primeira Guerra contra os alemães. Buscou-se uma base constitucional de uma política de guerra antes da entrada no conflito, isso ocasionou disputas governamentais internas.

O país contribuiu fortemente com o envio de trabalhadores para o Ocidente para as indústrias da guerra, baseando em seus novos princípios de internacionalização e renovação nacional.

Ao final da guerra, a China via com grandes expectativa a Sociedade das Nações. No entanto, o Tratado de Versalhes foi visto com desapontamento pela população chinesa, essa angústia com o acordou permitiu que durante as décadas de 1920 e 1930 ocorressem uma aproximação da China com a Alemanha. Esse contato possibilitou o Tratado Sino-Germânico, 1921, o primeiro tratado assinado com um país europeu que os chineses foram considerados como iguais. Após o conflito mundial, a China buscou um novo modelo de construção de sua nação, tal possibilidade foi vista na Revolução Bolchevique.

No penúltimo capítulo, O Império dos Estados Unidos, Christopher Capozzola discorreu sobre o período de 1914 a 1924 de como os EUA administraram forças militares de territórios dependentes e soberanos. Os norte-americanos buscaram reafirmar seu poder na América Latina e seus domínios coloniais foram dados maiores autonomia, como o caso da Filipinas.

Com a criação da Força de Patrulha da Esquadra do Atlântico, em 1917, ocorreu a concretização da Doutrina Monroe, ideologia defendida no século anterior. Após a Primeira Guerra Mundial houve um aumento estratégico dos EUA no mundo, na qual buscou uma reorientação em sua política externa.

No último capítulo, Os Impérios na Conferência de Paz de Paris, o autor Leonard V. Smith defendeu que ela legitimou a normalização do Estado-Nação como instituição que sucedeu os impérios multinacionais ao final da guerra. Além disso, é revisitado o papel dos mandatos concedidos pela Liga das Nações a França e a Inglaterra, o ódio alemão pelas cláusulas do Tratado de Versalhes e o bolchevismo como alternativa a alguns lugares no pós-guerra.

A obra crítica a historiografia tradicional da Primeira Guerra Mundial que deixou de lado o Leste Europeu, a Região do Pacífico, as colônias e a América, tratando-os apenas como atores secundários na beligerância. Muitas vezes é esquecida a participação dos súditos imperiais que serviram nas frentes europeias e seus efeitos no mundo colonial como as dificuldade econômicas, as ocupações e os alistamentos forçados.

O final do conflito mundial foi turbulento tanto para os vitoriosos quanto para os derrotados. Ao mesmo tempo, ocorreu um processo de declínio imperial que conduziu ao fim da ordem global vigente e sua substituição por uma ordem assentada no Estado-Nação.

A obra Impérios em Guerra é uma alternativa ímpar a historiografia padrão do conflito mundial, possibilitando aos leitores refletirem sobre alternativas de análises sobre a Primeira Guerra Mundial. Para aqueles que não sabem muito sobre essa beligerância, é uma ótima leitura para ser realizada nestes anos que se aproximam do centenário do final da Grande Guerra.

Thiago Henrique Sampaio – 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis). Endereço: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP. E-mail: [email protected].

A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina – JENKINS (RTF)

JENKINS, Keith. A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. Tradução de Roberto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2014. Resenha de: ASSIS, Gabriella Lima de. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Depois de publicar ao longo da década de 1990 obras que discutiram as pro-fundas mudanças pelas quais a história passou enquanto disciplina1, o historiador inglês Keith Jenkins, professor emérito da University of Chichester, escreveu uma no-va obra na qual apresentou os seus argumentos em relação ao discurso da pós-modernidade.

Segundo o próprio autor, a sua intenção nesta nova obra recentemente tra-duzida para o português com o título “A História Refigurada”2 foi apresentar para os estudantes de história que estão empenhados em “fazer história” ou prestes a isso, novos argumentos capazes de trazer frescor a uma disciplina tão antiga por meio da tentativa de refigurá-la diante das abordagens sinalizadas pelo pós-modernismo.

Existem muitas definições diferentes acerca do pós-modernismo3, porém nesta obra Keith Jenkins o compreendeu como “a era da aporia” em que o discurso da história deve ser pensado como uma estética “e não como uma epistemologia objetiva, verdadeira ou fundacional”4. Desta maneira, ao longo do desenvolvimen-to dos argumentos concatenados no livro, o autor mencionou que a sua expectativa com a escrita deste livro não foi a de superar a história pós-moderna, na verdade seu objetivo principal foi trabalhar o discurso da história na direção desse tipo de democra-cia radical e aberta, que entende a impossibilidade de instituir um fechamento histórico/historicizante total do passado, ao mesmo tempo que reconhece que suas formas refiguradas de conceber – ou seja, figurar – as coisas “nunca terão sido boas o suficiente” – e que esta é a mais desejável5.

Com uma escrita intencionalmente polêmica e muito provocativa, Keith Jenkins não omitiu que foi muito influenciado por Jacques Derrida, Hayden White e Frank Ankersmit juntamente com seus respectivos postulados teóricos durante a escrita desta obra. Sem esperar a aprovação dos mesmos, Keith Jenkins afirmou que se beneficiou pessoalmente ao ler todos eles e pretendeu de forma clara expres-sar os méritos de cada um nos três capítulos que compõe seu novo livro.

O primeiro capítulo intitulado “Tempo (s) de abertura” apresenta as contri-buições do teórico francês Jacques Derrida para o pensamento histórico. Da manei-ra como Keith Jenkins nos permite entender, a principal contribuição deste autor foi unir “a demonstração da impossibilidade do fechamento linguístico/discursivo a uma promessa emancipatória e política”6.

A idéia central deste capítulo parece ser a de demonstrar que a abertura ine-vitável proporcionada pelas perspectivas pós-modernas que Derrida ajudou a con-solidar, tem permitido releituras e reescritas do passado fazendo surgir uma história sempre refigurada. Nesse sentido, segundo Jenkins, os trabalhos de Derrida tenta-ram “mostrar, entre outras coisas, a impossibilidade de reduzir ao finito ou ao cog-noscível as infinitas possibilidades do pensar sobre o que a história pode ser”7.

Para Keith Jenkins, ser pós-modernista não é simplesmente aceitar perspec-tivas em múltiplos níveis ou crer na multi-interpretação. Na verdade, da maneira como discorreu Keith Kenkins neste capítulo, o que os pós-modernos problemati-zam não é o conteúdo da história, e sim o status de sua forma.

Novamente lançando mão de Derrida, Keith Jenkins explicou que os senti-dos não são constituídos por signos/palavras autossuficientes. Na verdade, E, de fato, é essa natureza aparentemente fixa do sentido que mui-tas vezes faz com que pessoas pensem equivocadamente que há al-go essencial na linguagem… de modo que, por exemplo, alguns historiadores supõem a existência de algo intrínseco no nome da história que a isentaria de receber sentidos e conotações infinita-mente novos, ao invés de ver que a “história”, como todos os con-ceitos, é um “significante vazio”8.

Ainda no primeiro capítulo Keith Jenkins trabalhou as idéias de “indecidibi-lidade da decisão” e de “aporia” de Derrida, cujas implicações na história podem ser compreendidas na medida em que enxergamos que o passado nada contém de valor intrínseco, nada a que tenhamos de ser leais, nenhum fato que tenhamos que encontrar, nenhuma verdade, problema ou tarefa a resolver, na verdade somos nós que decidimos sobre essas coisas9.

No segundo capítulo chamado “Ordem (ns) do dia” Keith Jenkins demons-trou como pode ser libertador para os historiadores a idéia pós-moderna de que não exista um método histórico ou uma epistemologia que não seja problemática.

Partindo dessa vez das contribuições do teórico norte-americano Hayden White, Keith Jenkins explicou que assim como o passado e a história, os fatos tam-bém são construções interpretativas. Para ele, “isso não significa negar a realidade dos acontecimentos passados, mas argumentar que eles não importam até receber significação no discurso”10.

Neste capítulo Keith Jenkins pode explicar o cerne do pensamento de Hayden White que o tornou um adepto dos pressupostos da história pós-moderna. Para ele, White considera axiomático que as hitsórias – especialmente as história narrativas (embora, provavelmente, todas as histórias se-jam narrativas em suas estruturas gerais) – sejam basicamente fictí-cias. Ou seja, embora possam querer dizer a verdade e nada mais que a verdade sobre seus objetos de estudo e sobre o que recolhem do arquivo, os historiadores não têm como narrar suas descobertas sem recorrer ao discurso figurativo11.

Ainda neste capítulo, Keith Jenkins falou sobre como o holandês Frank An-kersmit partiu de algumas idéias elaboradas por Hayden White para formular a noção de história como proposta, como apresentação e não como representação. Do ponto de vista de Jenkins seria possível concluir que para ambos os teóricos, o mais importante na escrita dos historiadores não está no nível do enunciado mas no da apresentação textual proposta, é esta que estimula o debate historiográfico. Des-ta forma a história seria sempre tão inventada (imaginada) quanto encontrada.

Em “Começar de novo: das disposições desobedientes”, o terceiro capítulo apresentado no livro, Keith Jenkins defendeu uma atitude que podemos considerar pós-moderna. Sem oferecer um mapa ou modelo de ação, o autor faz um elogio as análises históricas que celebram o caráter falho do fechamento.

Em sua análise o pós-modernismo pode ser entendido de maneira positiva por parte dos historiadores profissionais. Do modo como Keith Jenkins escreveu neste capítulo, o pós-modernismo não é uma espécie de moda, tão pouco pode ser resumido como uma interpretação pluralista. Para o autor, O pós-modernismo, como se entende positivamente aqui, é a ob-tenção de uma atitude, uma disposição militante, radical, que fra-giliza não apenas o conteúdo, mas também as formas gramaticais das histórias modernistas sem uma pitada de nostalgia, e oferece, em seu lugar, em suas novas gramáticas e atos de atenção, novas formas de mostrar “o antes do agora” ainda não concebido12 Por fim o autor acrescentou ainda o que ele denominou de “Coda”, para di-zer a respeito das principais implicações do seu pensamento histórico apresentado ao longo desses três capítulos que compuseram a sua nova obra. Firmando os seus posicionamentos bem como as idéias das quais partiu para escrever “A História Refigurada”, Keith Jenkins encerra fazendo algumas afirmações não menos polê-micas que certamente servem para aguçar e incentivar novas produções sobre o assunto.

Jenkins concluiu seu texto dizendo que “a ruptura entre as histórias moder-nas e pós-modernas não é uma ruptura epistemológica”13, a modernidade e a pós-modernidade são mundos diferentes, “todas as histórias são, portanto, do tipo esté-tico, que os pós-modernos levam ao nível da consciência”14.

De maneira geral podemos dizer que neste novo livro, Keith Jenkins estabe-leceu uma avaliação das principais questões levantadas pelo conhecimento históri-co nos últimos anos. Ele defendeu que grande parte dessas questões impactantes para a prática histórica permanece em aberto. Por meio de uma escrita instigante, Jenkins tratou da pós-modernidade trazendo à tona novas reflexões que servem tanto para professores quanto para alunos interessados pelas discussões sobre o pensamento histórico.

1 Cf. Rethinking History (1990) [ A História repensada]; On “What is History!” From Carr and Elton to Rorty and White (1995); The Postmodern History Reader (1997) e Why History! Ethics and Postmodernity (1999).

2 O título original da obra é Refiguring History: New Thoughts on an Old Discipline, trata-se de uma pu-blicação da Routledge de 2003.

3 Entre os teóricos que buscaram uma definição da temporalidade pós-moderna podemos citar: LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998; JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. 2ºed. São Paulo: Ativa, 2004; BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; MUNS-LOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.

4 JENKINS, Keith. A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. Tradução de Ro-berto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2014, p. 103.

5 Ibidem, p. 14.

6 JENKINS, KEITH. op. cit. p. 48.

7 Ibidem, p. 33.  8 Ibidem, p. 36.

9 Keith Jenkins, op. cit. p. 46.

10 Ibidem, p. 65.

11 Ibidem, p. 67.  12 Keith Jenkins, op. cit. p. 97.

13 Ibidem, p. 100.

14 Ibidem, p. 101.

Gabriella Lima de Assis – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: [email protected].

 

Las Mujeres de X’Oyep – TRONCOSO (RTF)

TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep. México: Conaculta; Cenart; Centro de la Imagen, 2013. (Colección Ensayos sobre Fotografía). Resenha de: ALCÂNTARA, Mauro Henrique Miranda. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 9, n. 2, jul.-dez., 2016.

Alberto Del Castillo Troncoso na obra Las Mujeres de X’Oyep, teve como principal objetivo realizar uma leitura histórica da fotografia tirada por Pedro Valtierra, na localidade de X’Oyep, no México, em 3 de janeiro de 1998. Região próxima ao cenário de uma chacina, ocasionada pela repressão do exército mexicano ao movimento zapatista. O evento ficou conhecido como La matanza de Acteal.

A prestigiada fotografia tirada por Valtierra, retrata o avanço de uma jovem e pequena mulher da etnia tzotzil, habitante de X’oyep, contra um militar armado com um fuzil AR-15, arma esta que, pela perspectiva da imagem, aparenta ser maior que a menina. O militar parece estar assustado com tal avanço. Ao fundo é possível ver outras mulheres e soldados, agitados, parecendo estarem também em confronto.

Essa fotografia, primeiramente publicada pelo Jornal La Jornada na manhã seguinte aos acontecimentos, posteriormente publicada em outros periódicos e revistas, tanto do México como de outros países, teve ampla repercussão e passou a ser ícone do movimento zapatista, e a partir daí um objeto aberto a disputas e interpretações. Ter ganho o prêmio de Jornalismo Rei da Espanha, potencializou o aspecto simbólico dessa imagem, e o seu poder de construção de um significado histórico.

Diante dessa repercussão, e das diversas leituras sobre essa fotografia, Alberto del Castillo Troncoso, enveredou-se na trajetória da produção, circulação, interpretação, significação e ressignificação dessa fotografia que se transformara em ícone de um período e de uma luta histórica.

Sua obra, portanto, busca apresentar uma leitura histórica dessa imagem, descrevendo a trajetória dos fotógrafos e jornalistas até o palco dos acontecimentos, realizando uma “leitura iconográfica” da fotografia, analisando o ponto de vista dos editores e a cobertura dos jornais, principalmente o La Jornada, da foto e do evento retratado por ela. Alberto del Castillo verificou também, os usos e recepções da imagem e a narrativa dos jornalistas, fotógrafos e editores envolvidos com a produção e publicação da fotografia.

O historiador mexicano utiliza-se de entrevistas realizadas com os envolvidos na trajetória da fotografia, para construção de sua obra. Importante frisar que os depoimentos recolhidos junto aos fotógrafos, jornalistas e outros envolvidos, são analisados e problematizados.

Além desse material, Troncoso utiliza de jornais e revistas que publicaram fotos sobre o episódio ou sobre os movimentos indígenas e zapatistas, para verificar a recepção e os usos dessa fotografia. Realiza também uma breve análise estética da fotografia protagonista e também de outras tiradas no evento ou em outros momentos. Por fim, Alberto de Castillo em uma atividade ao mesmo tempo de historiador e de antropólogo, vai até X’Oyep, e descreve o cenário que encontrou lá quinze anos depois, e a relação que os habitantes da localidade possuem com a famosa fotografia.

No primeiro capítulo da obra, La difusión del zapatismo y la masacre de Acteal, Alberto del Castillo Troncoso perfaz o caminho histórico para que a fotografia tirada por Pedro Valtierra pudesse ser produzida naquele lugar e data. Ele descreve, logo no início, que houvera um avanço do movimento zapatista na década de 1990, buscando conquistas sociais para os campesinos e para a cultura indígena. No entanto, essa movimentação gerou tensão entre as atividades zapatistas e o governo mexicano, resultando na militarização da região de atuação dos zapatistas.

O historiador insere diversas fotografias, manchetes e recortes de jornais, apresentando os diversos discursos e representações sobre essa situação vivida e vivenciada pelas comunidades indígenas no Estado de Chiapas. Utilizar essas fontes, foi uma forma encontrado por Troncoso para poder apresentar tanto o contexto histórico dos eventos presenciados pelos fotógrafos em X’Oyep, quanto apresentar as intencionalidades destes ao percorrerem árduos trajetos para cobrir jornalisticamente os acontecimentos.

Se o historiador tivesse apresentado uma contextualização historiográfica dos movimentos campesinos mexicanos na década de 1990, teria enriquecido a sua obra, favorecendo uma maior compreensão dos acontecimentos em janeiro de 1998 na localidade de X’Oyep.

No capítulo seguinte, Crónica de un registro fotográfico, Alberto del Castillo descreve o contexto imediato da produção fotográfica encabeçada por Pedro Valtierra. Descreve minuciosamente a região de X’Oyep, inclusive, apresentando um mapa para que o leitor se situe geograficamente. Assim como no capítulo anterior, várias fotografias são utilizadas para representar o ambiente encontrado e representado pelos jornalistas na localidade. Outra estratégia utilizada por Troncoso para narrar sobre a trajetória da famosa fotografia tirada por Pedro Valtierra, apresenta-se nesse capítulo: os relatos orais.

Através dos relatos dos jornalistas Juan Balboa e Pedro Valtierra, o historiador descreve o período anterior a chegada deles na localidade de X’Oyep, as atividades que eles estavam realizando até então, como foi o envio deles para a região, a dificuldade do caminho, os preparativos, as surpresas, os temores e até mesmo o papel que eles tiveram direta ou indiretamente no palco dos acontecimentos.

Ao final do capítulo, Alberto del Castillo descreve o que ele chama de algumas “pistas” para realizar a leitura das imagens. Sinteticamente, ele argumenta que vários fatores precisam ser levados em conta para compreender/entender o resultado do trabalho dos jornalistas: a dificuldade encontrada para a realização das fotos; o currículo profissional do Pedro Valtierra facilitou para que ele pudesse estar à frente dos acontecimentos, antes de outros meios de comunicação; a reciprocidade entre os jornalistas e os indígenas, pois estes tinham interesse em verem suas demandas circulando na imprensa, para pressionar o governo, e Valtierra tinha interesse na exclusividade, ou ao menos, no pioneirismo jornalístico dos eventos; e por fim, a presença dos jornalistas que inibiu as ações dos militares na localidade.1 O capítulo “Del revelado a la edición periodística” descreve o processo da revelação das fotografias, ou melhor, da fotografia, tirada por Valtierra e sua publicação no La Jornada. No entanto, não se trata de mera descrição do processo de revelação, escolha, envio, recebimento na edição do jornal, sua publicação e circulação. Troncoso, no final do capítulo, deixa claro que: A publicação da foto na primeira página do diário não se limita na tradução em imagens de uma informação jornalística, e sim na contribuição da construção de um relato que gerou o início de uma iconografia sempre sujeita a debate.2 Para o historiador mexicano, o processo pelo qual passou a imagem, desde a sua tirada até a sua publicação, apresentou uma interpretação dos fatos ocorridos na localidade de X’Oyep. E por isso, essa mesma imagem foi objeto de reinterpretações e ressignificações, tanto pela imprensa, quanto pelos atores envolvidos diretamente: os indígenas e até mesmo o governo mexicano.

Neste capítulo Alberto del Castillo realiza análises estéticas, tanto da foto, quanto dos negativos de Pedro Valtierra. Ele verifica que os negativos apresentam uma narrativa dos acontecimentos, apresentando-os de forma serial, quase em movimento. Também se atém na análise da fotografia mais famosa, escolhida para estampar a capa do jornal La Jornada no dia posterior ao evento ocorrido em X’Oyep. Ele detecta que a experiência profissional do fotógrafo, o favoreceu para capturar o melhor ângulo e melhor perspectiva da situação vivenciada na localidade. A análise sobre os negativos, permitiu Troncoso afirmar essa perspectiva. Porém, mais uma vez, o historiador reafirma que essa mesma experiência do fotógrafo o favoreceu a capturar tal imagem, por provocar diferentes reações, tanto dos militares, quanto dos indígenas, como também “peso para que a divulgação jornalística da imagem se realizasse nas melhores condições possíveis e contribuiu de maneira substancial para a construção de uma plataforma midiática para a foto”.3 O capítulo seguinte, Historia de un ícono, é destinado a apresentar a mudança da fotografia, de uma imagem reproduzida na capa de jornais e revistas, para a sua transformação em um ícone, sendo reinterpretada diversas vezes e representando muito mais que um momento vivido, experimentado, mas tomando dimensões históricas e memorialísticas sobre o episódio vivenciado em X’Oyep. A fotografia tomou dimensão de um ícone, que para Troncoso, se tornou no mais importante “da luta indígena e do movimento zapatista”.4 A imagem ganhou reconhecimento internacional, ao ser prestigiada com o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha, promovido pela Agência EFE e Agência Espanhola de Cooperação Internacional.

Novas entrevistas são apresentadas neste capítulo. Elas são utilizadas para apresentar as diferentes representações que foram realizadas da mesma imagem. Troncoso analisa também a publicação da fotografia em outros periódicos e constatou que de principal ícone de luta dos indígenas e do movimento zapatista, essa imagem ganhou até mesmo a interpretação de ser uma “prova documental da legitimidade do Estado e da tolerância e equanimidade do exército mexicano”.5 O historiador descreve que a foto passou a ser a síntese de um momento histórico vivido no México, sendo interpretada de diferentes maneiras, ou melhor, da maneira que os atores tinham interesse em interpretá-la. Mas o mais importante, ela não podia ser negligenciada, esquecida, pois se transformou em um ícone importante do momento vivido. Ela foi lida e relida no México e no mundo. Além da constatação da luta indígena, ou da prova da tolerância do exército, a imagem foi representada como a defesa da preservação ambiental, por parte dos indígenas e também interpretada como o avanço neoliberal, que acaba por não valorizar ou assegurar os direitos políticos, culturais e sociais dos habitantes da localidade. Até mesmo o subcomandante Marcos, líder do campesinato no México, apresenta uma interpretação da fotografia: ela seria a síntese do movimento zapatista. Como escreve Alberto del Castillo, essa imagem resulta em uma “rede de leituras e interpretações” quase infinita.6 No derradeiro capítulo, X’Oyep, a 15 años de distancia, Alberto del Castillo Troncoso, viaja até a localidade de X’Oyep e vai em busca de compreender as consequências das lutas travadas no momento em que foi tirada a famosa foto. Desde o início o historiador detectou a dificuldade de chegar até o local. Ainda hoje, de difícil acesso.

Ao chegar, constatou a árdua e pobre realidade dos poucos habitantes que ainda residem ali. Em X’Oyep, Troncoso entrevistou Antonio López, testemunhos dos conflitos entre o exército e a população indígena em janeiro de 1998. Apesar de frutífera, o que mais chamou atenção do historiador, foi um desenho que ele encontrou em uma pequena casa. Tratava-se da representação em um desenho de conotações infantis, da famosa fotografia tirada por Valtierra: A minha frente estava uma pintura, realizada com traços aparentemente infantis, que reproduzia, de maneira muito próxima, a famosa fotografia de Valtierra, embora tenha inserido elementos procedentes, talvez, do relato de Balboa, como a presença de um helicóptero no centro, e outros, sem dúvida, fruto da imaginação do próprio autor da obra, como um grupo de abelhas sobrevoando a cena e um monumento com uma cruz, representando talvez as almas de Acteal, e finalmente, na margem inferior direita e muito pouco visível, um grupo de zapatistas enfunados em suas casamatas e escondendo-se na selva. Ao lado, em uma pequena folha, se informava sobre os nomes do acampamento e as comunidades formadas pelas 1190 pessoas deslocadas que haviam vivido em X’Oyep.7 O espanto do historiador foi grande com essa representação. Neste momento ele constatou que a fotografia havia se transformado em um ícone, podemos afirmar, que um ícone mítico, que representa um período grandioso, vivenciado e vencido, e sempre relembrado, tal qual no desenho, como um momento único. Troncoso descreve que a fotografia se transformou, nessa localidade, em um ex-voto, uma fábula popular, com conotações mágico-religiosas.8 Por fim, Alberto del Castillo apresenta a importância da fotografia como documento histórico. Melhor seria dizer, que pare ele, as fotografias possuem uma grafia histórica, tão autêntica e carregada de valores e símbolos, como a escrita. O percurso que o historiador mexicano faz nesse livro, nos demonstra essa importância. Ele apresenta o quão importante é a fotografia para história, mas não somente suas características estéticas ou suas condições de produção, mas tudo que a envolve desde a chegada do fotógrafo no local até a circulação e representações que perfaz a trajetória de uma fotografia.

Por se tratar de um ensaio, como o próprio Troncoso descreve, não há maiores informações historiográficas sobre o episódio vivido em X’Oyep. Portanto, pensamos que essa obra possuí uma importante contribuição para os historiadores, se tomada como um exemplar riquíssimo em informações e metodologias, para se pesquisar e investigar a fotografia como documento histórico. Talvez essa seja a maior contribuição deixada por Alberto del Castillo Troncoso. E ainda podemos ler e compreender melhor a vida dos indígenas e dos campesinos no México e a suas históricas e importantes lutas.

Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep. México

1 TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep. México: Conaculta; Cenart; Centro de la Imagen, 2013. (Colección Ensayos sobre Fotografía).

2 Ibidem, p. 83. Todos os fragmentos citados diretamente da obra foram traduzidos para o português, livremente.

3 TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep, Op. cit., p. 79.

4 Ibidem, p. 85.

5 Ibidem, p. 89

6 Ibidem, p. 101.

7 TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep , Op. cit ., p. 108.

8 Ibidem.

Mauro Henrique Miranda de Alcântara – Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor do Instituto Federal de Rondônia. Correspondência: Rod. RO 399, km 5, Zona Rural Colorado do Oeste – Rondônia – Brasil. Caixa Postal 51. CEP: 76993-000 E-mail : [email protected].

Golpe midiático-civil-militar | Juremir Machado da Silva

RC Destaque post 2 11 Golpe midiático-civil-militar

O ano de 2014 foi marcado por uma efeméride: os cinquenta anos do golpe que depôs o presidente João Goulart. O simbolismo da data foi responsável por uma série de eventos e publicações que debateram e refletiram a história recente do Brasil. Paralelamente aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar crimes contra os Direitos Humanos no Brasil, em um lapso temporal que perpassava a Ditadura Militar, muitos outros foram produzidos para refletir o período. Entre as obras que vieram à lume está “1964: Golpe midiático-civil-militar”, de Juremir Machado da Silva, que, em menos de um ano, está na sua quinta edição.

Formado em jornalismo e história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e com mestrado e doutorado em sociologia da cultura pela Universidade René Descartes, em Paris, Juremir Machado da Silva tem uma produção de caráter interdisciplinar e alguns trabalhos caracteristicamente na área da História, como “Jango, vida e morte no exílio”, publicado em 2013. Em sua mais recente pesquisa o autor se propõe analisar o papel da mídia, mais particularmente o papel da imprensa, no contexto do 31 de março de 1964. Trata-se de uma obra que, ao analisar a atuação da mídia no golpe militar, abre uma seara de oportunidades para que novos estudos possam se debruçar sobre o tema. Leia Mais

Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas – HERZOG (RTF)

HERZOG, T. Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2015. Resenha de: LOPES, Jonathan Felix. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 9, n. 1, jan.-jun., 2016.

A autora deste livro, Tamar Herzog, é professora da Universidade de Harvard desde 2013 onde leciona nas cadeiras de América Latina, História espanhola e portuguesa, além de ser afiliada à Escola de Direito da mesma universidade. Foi, também, professora na Universidade de Stanford e desde a década de 1980 tem actuado em actividades académicas em outras Universidades norte-americanas, além de Israel e Espanha.

Graduada em direito e mestra em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Hebraica de Jerusalém, doutora em História pela Escola de (em francês) Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, com a tese (nome e data). Desde trabalharam resultaram duas obras publicas no ano seguinte La administración como un fenónemo social: la justicia penal de la ciudad de Quito (1650-1750)1 e Los ministros de la Audiencia de Quito 1650-1750, 2 sendo a primeira posteriormente traduzida para o francês e reeditada em língua inglesa.

Tamar Herzog possuiu uma sólida produção académica nos campos de sua formação, procurando analisar articuladamente as relações entre a lei e o cotidiano de realidades específicas. A partir de meados da década de 1990, se dedica a estudos que buscam associar dinâmicas locais ao contexto imperial no qual se inserem. As obras Mediación, archivos y ejercicio: los escribanos de Quito (siglo XVII-XVIII)3 e Ritos de control, prácticas de negociación: Pesquisas, visitas y residencias y las relaciones entre Quito y Madrid (1650-1750),4 consolidaram-na no campo de estudos de História do Atlântico.

Com foco no início da modernidade e no império espanhol, publicou uma série de artigos que envolvem desde as relações jurídicas ao estatuto social dos indivíduos. Em Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas, publicado em 2015 pela Harvard University Press, Tamar Herzog expande o horizonte de análise para o chamado Mundo Ibérico, isto é, os impérios de Portugal e Espanha. Com foco nas dinâmicas de fronteiras, o texto está envolto no eixo entre diplomacia, guerra e direito, tendo por base uma ampla gama documental. O livro está dividido em duas partes, que, no seu conjunto, representa uma inovação diante das análises historiagráficas mais tradicionais ao tomar como ponto de partida a análise da área colonial. Já na introdução estabelece uma série de críticas a parte da historiografia Colonial e do Atlântico.

Diante desse quadro, justifica tal inversão ao estabelecer que começar pela América pode clarificar particularidades dessa área e revelar o quanto as relações nela estabelecidas podem ter atuado sobre as metrópoles coloniais, construindo imagens reflectidas de ambos os lados do Oceano.

A primeira parte, intitulada “Defining Imperial Spaces: How South America Became a Contested Territory”, está dividida em dois capítulos, nos quais a autora busca contextualizar as relações diplomáticas entre os dois impérios no que diz respeito ao espaço sul-americano. Herzog argumenta sobre a aplicação de diferentes concepções de soberania, evoluindo entre modelos abstractos de delimitação – como os eixos latitudinal e longitudinal das bulas Inter coetera e de Tordesilhas – estabelecidos entre 1493 e 1494 e modelos com base na posse do território, tal qual priorizado no Tratado de Madrid, em 1750, até a combinação entre perspectivas, de que será exemplo o Tratado de Santo Idelfonso, firmado em 1777. Demonstra, também, a escalada territorial no estabelecimento formal de soberania das duas Coroas Ibéricas, desde a bacia do Prata, área chamada pela autora de Heartland da América do Sul, até o eixo ocidental do território brasileiro. Ressalta ainda que as sucessivas negociações diplomáticas foram incapazes de sanar as questões de delimitação entre as duas Coroas, configurando-se, na prática, numa série de conflitos territoriais e ideológicos, diante do complexo emaranhado de atores e interesses.

Esta ideia conduz Tamar Herzog a concentrar-se na organização do território, avaliando, com estreita base documental, as relações entre colonos europeus e populações autóctones. Argumenta a autora que a conversão de nativos constituiu um aspecto competitivo fundamental entre portugueses e espanhóis. Tal competição é explicada pela lógica social, ao se associar a conversão à transformação dos indígenas em vassalos de uma ou outra Coroa, permitindo, no campo geoestratégico, firmar alianças e estabelecer soberania sobre o território. Nesse contexto, acirravam-se as disputas entre ordens religiosas pelo direito de conversão. Em termos formais isso garantia às populações nativas aliadas o acesso a direitos junto à Coroa, como a manutenção das terras ancestrais e a protecção contra grupos rivais.

O aspecto mais inovador da obra, todavia, consiste em uma série de hipóteses sobre os interesses e estratégias dos indígenas ao estabelecer acordos com os colonizadores, contrariando assim a visão tradicional que tende a estabelecer a dicotomia entre passividade e resistência das populações autóctones no processo colonial. Reconhece ainda que os termos dos acordos nem sempre eram claros aos indígenas e, por vezes, as condições de negociação os desfavoreciam, pois consistiam na escolha entre conversão ou aniquilação. O uso da violência aparece nesse quadro de modo mais complexo, regulado pela noção de “guerra justa”, o que forjou uma complexa narrativa histórica que expunha o colonizador como vítima e não como agressor, presente em diversos registros feitos por europeus quando na América. Essa dinâmica revela que o recurso a violência consistia mais em uma estratégia para conseguir obediência do que de extermínio, distinguindo os nativos em duas categorias: aliados e inimigos.

Utilizando um olhar analítico estrangeiro, a autora busca inspiração na literatura anglo-americana do período colonial e revela uma estratégia de domínio territorial subjacente, a qual consistia em estabelecer uma relação direta entre uso e o direito à terra.

Na prática, isso garantia exclusivamente aos colonizadores europeus a reorganização do regime de terras e alavancou uma competição entre os agentes do território, que guiou à uma lógica de ocupação com base na máxima “better safe than sorry” (é melhor prevenir do que remediar).

A segunda parte, “Defining European Spaces: The Making of Spain and Portugal in Iberia”, está dividida em dois capítulos. O primeiro deles tem o curioso título de “Fighting a Hydra: 1290-1955”. A autora faz uma interessante associação entre o mitológico ser de nove cabeças enfrentado por Hércules e as diversas frentes de disputa territorial entre Portugal e Espanha no espaço da Península Ibérica durante o longo período em causa. Afirmando que os conflitos entre as duas Coroas forjaram uma espécie de hidra, Herzog ressalta a particularidade de cada caso, no que diz respeito as estratégias, atores e interesses. É neste contexto que nos descreve a área de fronteira como sendo caótica e descontrolada, e estabelece a esse propósito um paralelo com o sertão sul-americano.

No derradeiro capítulo, “Moving Islands in a Sea of Land: 1518-1864”, Herzog concretiza uma análise pormenorizada de duas áreas fronteiriças: Verdoejo, área meridional ao Rio do Minho, hoje pertencente ao concelho de Valença, Portugal, e a área montanhosa de Madalena/Lindoso, hoje concelho de Ponte da Barca, também em Portugal. Sucessivamente, são analisados em detalhe os aspectos relativos ao início do conflito, às partes envolvidas e respectivas reinvindicações.

Nas conclusões a essa obra, Tamar Herzog retoma algumas características centrais de cada capítulo e ressalta a importância dos aspectos territoriais na agenda das Coroas. É destacado o facto do Arquivo Nacional de Portugal se ter consagrado como Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em memória aos cadastros de propriedades – tombos. Herzog retoma uma vez mais o seu objecto de estudo, retractando a dificuldade de enquadrá-lo conceitualmente. A esse propósito, a autora sugere que devido a inadequação entre os termos limite (border) e fronteira (frontier), talvez fosse mais adequado empregar o termo território.

Aqui vale ressaltar a importância de uma compreensão conceitual advinda de outro campo, isto é, da Geografia, para compreensão de questões histórico-espaciais e, também, da geopolítica quando transcendem à relação entre impérios, países e grupos nativos. A diferenciação entre fronteira e limite já foi por muitas vezes tratada por geopolíticos desde o estudo pioneiro de Kristoff.5 Além disso, o estudo de Herzog, mais do que trabalhar com a categoria de território, ao nosso ver, poderia se enquadrar na dinâmica de territorialização e aos processos adjacentes de desterritorialização e reterritorialização, capitulados por Deleuze e Guattari6 e articulados para análise geográfica por Rogério Haesbaert.7 O carácter interdisciplinar do livro, sobretudo ao conjugar História e Direito, mereceria, assim, uma aproximação maior com a Geografia Histórica. Tal abordagem contribuiria para o melhor entendimento conceitual, notadamente às noções de soberania e de apropriação territorial, as quais já foram tratadas para o caso lusobrasileiro pelos geógrafos Maurício de Almeida Abreu8 e António Carlos Robert Moraes, 9 assim como em trabalhos mais pontuais, como, por exemplo, o da historiadora Iris Kantor.10 Mais do uma crítica, a ressalva aqui levantada busca ressaltar o carácter original e metódico da abordagem da autora e que, como tal, aponta novos caminhos para compreensão dos processos jurídicos e espaciais no longo curso da História. De modo que este trabalho constitui um contributo muito importante para reavaliarmos as narrativas e o lugar das populações nativas na formação do território americano.

1 HERZOG, Tamar. La administración como un fenómeno social : la justicia penal de la ciudad de Quito (1650-1750). Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1995.

2 HERZOG, Tamar. Los ministros de la Audiencia de Quito (1650-1750). Quito: Ediciones Libri Mundi, 1995.

3 HERZOG, Tamar. Mediación, archivos y ejercicio: los escribanos de Quito (siglo XVII). Frankfurt/ Main: Vittorio Klostermann, 1996.

4 HERZOG, Tamar. Ritos de control, prácticas de negociación: pesquisas, visitas y residencias y las relaciones entre Quito y Madrid (1650-1750). Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000.

5 KRISTOFF, L. K. D. The nature of frontiers and boundaries. Annals of the Association of American Geographers, Washington DC, v. 49, n. 3, p. 269–282, 1959.

6 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

7 HAERSBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização: do “Fim dos Territórios” à multiterritorilidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

8 ABREU, M. de A. A apropriação do território no Brasil colonial. In: FRIDMAN, F.; HAESBAERT, R. (orgs). Escritos sobre espaço e história. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.

9 MORAES, A. C. R. de. Bases da formação territorial do Brasil : O território colonial brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: Annablume, 2011.

10 KANTOR, Iris. Soberania e territorialidade colonial: Academia Real de História Portuguesa e a América Portuguesa (1720). Temas setecentistas: governos e populações no Império português, Curitiba. Jornadas Setecentistas. Curitiba, v. 1. p. 233-239, 2007. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/Soberania-e-territorialidade-colonial- %C3%8Dris-Kantor.pdf. Acesso em: 29 fev. 2016.

Jonathan Felix Ribeiro Lopes – Mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). Doutorando em Geografia na Universidade de Lisboa. Investigador associado no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT-ULisboa). Correspondência: Rua Gonzaga Bastos, 209, bloco B, ap. 104, Vila Isabel. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. CEP: 20541-000 E-mail : [email protected].

Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988 | Daniel Arão Reis

Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense em “Ditadura e democracia no Brasil”, faz um passeio pela História política do país, dialogando sobre a gênese da ditadura e o frágil processo de construção da democracia, como se fora uma fina camada de gelo, prestes a rachar diante de momentos de impacto ou pressão social.

Seu livro discute as periodizações e memórias utilizados pelo senso comum e por historiadores sobre o período governado por generais, tecendo comentários provocadores e de aguda análise, sobre os diferentes sujeitos relacionados aos processos políticos brasileiros e seu envolvimento em uma multiplicidade de questões, muitas das quais, controversas. Leia Mais

Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista – ROSENDO (RTF)

ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Editora Prisma, 2015. Resenha de: COSTA, Laís Dias Souza da. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 8, n. 2, jul.-dez., 2015.

Nature is a feminist issue ou em uma tradução livre: a natureza é uma questão feminista. Essa frase, de acordo com a filósofa estadunidense Karen J. Warren, pode ser considerada o lema do ecofeminismo, definido por Daniela Rosendo em sua dissertação de mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como […] uma posição que leva em consideração a perspectiva feminista e as teorias ambientais, com o objetivo de conjugar ambas e superar o sistema de opressão caracterizado pela relação de subordinação às quais as mulheres a natureza são submetidas pelos homens.1 Warren se dedica a filosofia ecofeminista há mais de 30 anos, sendo uma das referências quando se fala no tema, especialmente após a publicação de sua obra Ecofeminist philosophy, no ano 2000, onde apresenta sua versão de ética. Nela, a filósofa rejeita teorias baseadas em direitos e argumentos racionais que negam as emoções e são universalisantes, enquanto a ética sensível ao cuidado reconhece a pluralidade e os interesses morais e heterogêneos entre os humanos e os não-humanos, de acordo com o contexto em que se dão essas relações.

Mas é a partir da dissertação de mestrado de Daniela Rosendo com o mesmo título do livro que a filosofia ecofeminista warreniana é apresentada detalhadamente, no Brasil, já que, ainda, nenhuma obra da estadunidense foi traduzida e publicada em português, restringindo o acesso de pesquisadoras e pesquisadores interessados no tema.

Atualmente cursando doutorado em Filosofia na UFSC, Rosendo também é professora e integrante do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos daMulher (CLADEM Brasil) e assina duas colunas sobre ecofeminismo, uma no portal Justificando e outra publicada pela Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA).

“Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista” foi publicado em 2015 pela Editora Prismas e tem como objetivo “[…] analisar se a ética sensível ao cuidado é factível para a superação da discriminação sofrida pelas mulheres e pela natureza, e se ela se constitui como uma ética ambiental genuína”.2 Para a filósofa e professora doutora da UFSC, Sônia T. Felipe, que apresenta o livro de Rosendo aos leitores, a doutoranda realiza quatro movimentos para “entrever seu método de investigação. […] Primeiro, o da visita à caverna. Como resultado dessa visita, somos apresentadas ao que resultou de visitas feitas por Warren às concepções ambientais e animais que ela julga não terem superado os limites da dominação machista”.3 No segundo, de acordo com Felipe, Daniela Rosendo […] nos apresenta às visitantes admitidas por Warren em sua proposta ética, às teses, conceitos e teorias recebidos por Warren de outras feministas, incorporados por ela em sua própria concepção, ensejando a nós, leitoras e leitores, a compreensão da estratégia de argumentação da feminista.

No terceiro movimento, temos uma primeira saída da caverna, quando nos são apresentadas por Rosendo as visitantes que, antes dela, também já fizeram o percurso investigativo e crítico da concepção ecofeminista de Warren.4 Sônia T. Felipe explica, por fim, que ela […] elabora sua crítica ao alcance aos limites da concepção da ética sensível ao cuidado de Warren, apontando falhas que sequer foram percebidas por outras feministas que a antecederam em suas visitas ao texto de Warren, especialmente as relativas ao silêncio dela sobre suas escolhas dietéticas (grifo da autora).5 A lógica da dominação como premissa moral Utilizando o gênero como uma categoria de análise, o ecofeminismo questiona os sistemas de dominação que oprimem diferentes grupos, entre eles, de afrodescendentes, pobres, idosos, crianças e de mulheres, considerados por Warren os “Outros humanos” (human Others), além dos “Outros terrestres” (earth Others), grupos constituídos por animais e florestas, todos discriminados injustificadamente. Citando a ecofeminista indiana Vandana Shiva, uma das referências presentes na obra de Warren, Rosendo explica que para Shiva, “[…] o desenvolvimento ocidental é na verdade um ‘subdesenvolvimento’ (maldevelopment), um desenvolvimento destituído do feminino, que vê todo trabalho que não gera lucro e capital como improdutivo”.6 De acordo com Rosendo (2015), para Warren “[…] há interconexões entre a dominação das mulheres e a dominação da natureza, cujo conceito compreende animais não-humanos, plantas e ecossistemas”,7 justificando, assim, a existência de uma teoria que considere moralmente a natureza e consiga abolir essa discriminação.

Ela apresenta a existência de dez tipos de interconexões na teoria de Warren: histórica, conceitual, empírica, socioeconômica, linguística, simbólica e literária, espiritual e religiosa, epistemológica, política e ética. Cada uma delas descreve diferentes formas de opressão social das mulheres e de exploração da natureza, mas Warren destaca a conexão conceitual como o elemento central da filosofia ecofeminista que apresenta diversas correntes.

Estruturas conceituais não são intrinsecamente opressoras. Contudo, a partir do momento em que passam a ser afetadas por fatores como gênero, raça, classe, idade, orientação afetiva, nacionalidade, formação religiosa etc., elas passam a ser opressoras, ou seja, elas são usadas para explicar, manter e “justificar” as relações de dominação e subordinação injustificadas. Assim, uma estrutura conceitual opressora de viés machista “justifica” a subordinação das mulheres pelos homens.8 A partir da estrutura conceitual, Warren identifica cinco características: pensamento de valor hierárquico (up-down), “[…] no qual se valoriza, confere mais status ou prestigia mais os ‘de cima” (up) e menos os ‘de baixo’ (down)”;9 dualismos de valor opostos (oppositional value dualisms), “[…] marcados por características opositoras e excludentes, ao invés de complementares e inclusivas, valorizando mais uma característica em detrimento da outra”;10 “[…] poder entendido e exercido como poder de dominação […]; […] criação, manutenção ou perpetuação da concepção e prática de privilégio concedido aos ‘de cima’ (ups) e negado aos ‘de baixo’ (downs)” e, por fim, “uma estrutura de argumentação que visa justificar a subordinação (lógica da dominação)”.11 Quando Warren fala sobre as pessoas e grupos “de baixo”, ela faz associação às mulheres, afrodescendentes, natureza e corpo, já os “de cima” são relacionados aos homens, brancos, a cultura e a mente (racionalidade). Para Rosendo (2015), “[…] Warren afirma que esse pensamento de valor hierárquico legitima a desigualdade ao invés de afirmar somente que existe a diversidade”.12 Com menos poder e privilégio institucional que os homens, as mulheres se mantêm na parte “de baixo” dessa hierarquia, já que os “[…] benefícios criados, mantidos e sancionados institucionalmente refletem o poder e o privilégio dos ‘de cima’ sobre os ‘de baixo’ e perpetuam os ‘ismos de dominação’ (sexismo, racismo, classicismo, heterossexismo, etnocentrismo)”.13 Essa lógica de dominação é apontada pela autora, a partir da teoria warreniana, como a premissa moral utilizada enquanto justificativa ética para perpetuar “[…] a subordinação dos ‘de baixo’, nas relações de dominação e subordinação, pelos ‘de cima’, ela é basilar para as estruturas conceituais opressoras”.14 Para Warren, as mulheres foram falsamente conceituadas como inferiores, em relação aos homens, baseando-se em três equívocos: o determinismo biológico, essencialismo conceitual e universalismo. A existência de uma “natureza” feminina e de características que ligam biologicamente as mulheres à natureza, por conta de sua capacidade reprodutiva, são difundidas pelos deterministas como atributos inerentes a existência das mulheres.

O essencialismo conceitual pressupõe erroneamente que o conceito de mulher é unívoco, que capta condições essenciais da mulher ou da feminilidade. O universalismo supõe incorretamente que todas as mulheres compartilham um conjunto de experiências simplesmente pelo fato de serem mulheres.15 Ao longo do livro Ecofeminist Philosophy, traduzido e apresentado por Rosendo em sua dissertação, Warren diferencia a opressão da dominação e afirma que a primeira sempre “[…] ‘envolve dominação. Em contrapartida, nem toda dominação envolve opressão’. A opressão implica em tolher a liberdade de fazer escolhas e opções. Portanto, não-humanos, por não terem tal liberdade, não podem ser ‘oprimidos’, apenas ‘dominados’”.

16 Ao considerar os não-humanos, Rosendo explica a proposta de Warren para reformular o feminismo, a filosofia feminista e a ética ambiental, por meio de outro argumento, onde o feminismo tradicional poderia incorporar o feminismo ecológico ou ecofeminismo, visando a consideração moral dos humanos para os não-humanos e a abolição do naturismo (dominação injustificada na natureza). “(1) O feminismo é, minimamente, um movimento para pôr fim ao sexismo. (2) O sexismo é conceitualmente ligado ao naturismo. (3) O feminismo é (também) um movimento para pôr fim ao naturismo”.17 Cuidado como fundamento ético Apesar de não formular uma ética ambiental inédita, de acordo com Rosendo, a proposta de Warren incorpora elementos existentes em outras teorias com um viés crítico que rejeita a faceta masculina da ética baseada em direitos, regras e princípios porque esses elementos não consideram outros conceitos defendidos pelas ecofeministas como a “singularidade” e a “vulnerabilidade”. Rosendo cita a ecofeminista e filósofa Sônia T. Felipe, precursora do tema no Brasil, que defende esses conceitos como sendo os “únicos que permitem considerar interesses naturais animais com a mesma seriedade com a qual consideramos interesses naturais humanos, semelhantes aos deles”.18 Para elaborar sua ética, Warren relacionou a teoria feminista à teoria da hierarquia, considerada a principal sobre a ecologia dos ecossistemas, e à ética da terra, elaborada por Aldo Leopold, que tem como princípio moral constitutivo o amor e o respeito a terra.

Warren conjuga essas duas teorias e afirma que, juntas, elas fornecem a base para considerar a filosofia ecofeminista uma posição ecológica. Por outro lado, ela argumenta que a filosofia ecofeminista pode contribuir tanto para a ecologia quanto para a ética da terra. O elo entre as três perspectivas (teoria da hierarquia, ética da terra e filosofia ecofeminista) é a orientação ecológica para o mundo, sobre a qual cada um contribui à sua maneira.

A ética sensível ao cuidado é caracterizada por três elementos: capacidade para o cuidado; universalismo situado e práticas do cuidado. Sobre a primeira característica, a filósofa faz referência à inteligência emocional que compreende entre as habilidades básicas a capacidade de cuidar. “Cuidar do outro, expressa uma capacidade cognitiva, uma atitude em direção àquele que está sendo cuidado, que merece tratamento respeitoso e independe de ter sentimentos positivos em direção a ele”.20 Quanto ao universalismo situado, a segunda característica da ética sensível ao cuidado, Warren desenvolve a ideia de que existem princípios éticos universais, mas que essa universalidade não consiste em eles serem princípios abstratos, transcendentais e essencialistas, guiados somente pela razão. O princípio orientador do universalismo situado é: “a universalidade reside na particularidade”.21 Sobre as práticas do cuidado, elas são responsáveis por manter, elevar ou promover a saúde, provocando bem-estar, e entre essas práticas estaria o vegetarianismo moral contextual. Para Warren, uma dieta vegetariana é uma “[…] atitude moralmente correta que se tem com relação aos animais”22 porque os não-humanos também são considerados membros de uma comunidade ecológica.

Rosendo apresenta os limites e os alcances da teoria warreniana, considerando entre os aspectos limitadores os momentos em que Warren não avança, “[…]seja por silenciar ou fazer propostas sem coerência com sua teoria ou uma ética genuína”.23 Um desses limites diz respeito ao vegetarianismo moral contextual que estaria ligado apenas a abstenção de comer carne, excluindo da lista outros produtos de origem animal como o couro utilizado em roupas e sapatos. Para Sônia T. Felipe (2012), Warren silencia o consumo humano de bilhões de seres sencientes, além dos produtos derivados como os laticínios, e acredita que a transformação proposta pela estadunidense só pode ser feita por meio do abolicionismo vegano.

Entre os alcances da ética sensível ao cuidado, Rosendo destaca o caráter político do cuidado “[…] com a ‘saúde’ das instituições, que, ‘adoecidas’, oprimem”.24 Além disso, ela reafirma o distanciamento de Warren da concepção essencialista da mulher, apesar das críticas de algumas ecofeministas, e, ainda, que “[…] a estratégia de argumentação é clara e mostra que os sistemas de opressão estão interligados, sendo necessário superar todas as formas de discriminação”.25 A perspectiva filosófica apresentada por Rosendo torna-se referência imediata para os “feminismos” discutidos e problematizados dentro e fora das universidades brasileiras com destaque para o caráter inédito da obra que se insere em um contexto onde as normativas essencialistas estão sendo debatidas. Assim, a natureza continua sendo uma questão feminista para Karen J. Warren, Daniela Rosendo, Sônia T. Felipe, mulheres e homens que consideram pertinente confrontar noções essencialistas nas quais o “Homem” ainda é considerado o sujeito universal, e a natureza, assim como as mulheres tentam ser invisibilizadas. Ao dedicar o livro “Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista” às vozes dissidentes, Rosendo “escuta” os ecos de Warren e “fala” aos humanos e não-humanos sobre uma outra possibilidade de se colocar no mundo e se relacionar com todos os seres que o habitam.

Sobre a autora: Laís Dias Souza da Costa Mestre e doutoranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Jornalista.

1 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Prismas, 2015, p. 23.

2 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 191.

3 Ibidem, p. 16.

4 Idem.

5 Ibidem, p. 17.

6 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p.37.

7 Ibidem, p. 34.

8 Ibidem, p. 47.

9 Ibidem, p. 48.

10 Idem.

11 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 48.

12 Ibidem, p. 49.

13 Ibidem, p. 50.

14 Ibidem, p. 51.

15 Ibidem, p. 56.

16 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 58.

17 Ibidem, p. 61.

18 Ibidem, p. 77.

19 Ibidem, p. 79.

20 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 101.

21 Ibidem, p. 103.

22 Ibidem, p. 108.

23 Ibidem, p. 169.

24 Ibidem, p. 195.

Laís Dias Souza da Costa – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Correspondência: Programa de Pós-graduação em História – Universidade Federal de Mato Grosso Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Boa Esperança Cuiabá – MT – Brasil. CEP: 78060-900 E-mail : [email protected].

Poesia e Polícia – Redes de comunicação na Paris do Século XVIII – DARNTON (RTF)

DARNTON, Robert. Poesia e Polícia – Redes de comunicação na Paris do Século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Resenha de: MENEZES, Fernanda Queiroz de. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 8, n. 1, jan.-jun., 2015.

Robert Darnton é historiador, formado em Harvard, Estados Unidos, e com doutorado em História na Universidade de Oxford. É especialista em história da França do século XVIII; seus estudos estão voltados para o Iluminismo e para a Revolução Francesa. Em 2007, assumiu a direção da Biblioteca da Universidade Harvard.

Sua última publicação traduzida no Brasil é o livro “Poesia e Polícia – redes de comunicação na Paris do século XVIII”,1 e se trata de uma narrativa histórica que parte de fontes documentais – inquéritos policiais que foram abertos no ano de 1749 – apresentando assim na sua narrativa a existência de uma rede de comunicação que já existia em Paris desde aquele período.

Em uma época como a atual, em que as pessoas passam grande parte do tempo trocando informações, imagens, mensagens, por meio do celular, das redes sociais ou fazendo downloads, a comunicação se tornou a atividade mais importante na experiência da vida moderna, rodeando o curso da política, da economia e do entretenimento.

No entanto, a preocupação com a informação e comunicação não é característica específica da internet, tecnologia e televisão. Os seres humanos, a partir de diferentes usos de códigos e sinais, sempre se comunicaram. Em meio a essa discussão, Robert Darnton em Poesia e Polícia problematiza os usos comunicativos, durante o século XVIII, em Paris, de poesias e canções sobre os acontecimentos da época.

O livro é dividido em 15 subitens onde a narrativa vai-se construindo a partir das fontes documentais, que são uma gama de inquéritos policiais, por meio dos quais o autor pode rastrear e interpretar com base no que os detetives da época conseguiram constatar sobre os poemas que circulavam. Darnton utiliza ainda o diário de um aristocrata, irmão do chefe de polícia do período, “como um guia para o fluxo de informações que chegavam à elite política, semana a semana”,2 e os poemas, canções e alguns panfletos que circularam neste período.

Segundo o autor, o livro tem a sua importância por trabalhar com a oralidade de séculos atrás, investigando como as trocas de informações ocorriam também nessas sociedades, em busca de um elemento central, que até então estava perdido: Este livro é uma tentativa de preencher, em parte, essa lacuna. Em algumas raras ocasiões, trocas orais deixaram indícios de sua existência porque eram ofensivas. Insultavam alguém importante, ou pareciam hereges, ou minavam a autoridade de um soberano. Nos casos mais raros, a ofensa levava a uma investigação completa, conduzida pelo Estado ou por agentes da Igreja, o que redundava em volumosos dossiês, e esses documentos sobreviveram nos arquivos. As evidências que respaldam este livro pertencem à mais abrangente operação policial que encontrei em minha própria pesquisa em arquivos, uma tentativa de seguir a trilha de seis poemas por Paris em 1749, à medida que eram declamados, memorizados, retrabalhados, cantados e rabiscados em papel, em meio a uma enxurrada de outras mensagens, escritas e orais, durante um período de crise política.3 A narrativa inicia-se a partir da investigação do episódio que ficou conhecido como “O Caso dos Catorze”, iniciado com a prisão de um estudante de medicina que havia recitado um poema que criticava Luís XV. Segundo as fontes, ao ser interrogado na Bastilha, ele revelou a pessoa de quem obtivera o poema. Em seguida ocorreu uma série de prisões, pois, cada um que era preso entregava a pessoa que havia lhe passado o poema e, sucessivamente, prenderam-se catorze pessoas por participarem de recitais clandestinos de poesias. Mesmo que a maledicência, a difamação e o ataque ao rei fossem habituais no trabalho da polícia, a quantidade de prisões, os documentos e operações abertas para esse caso chamaram a atenção de Robert Darnton, que então formulou o seguinte problema: “por que as autoridades, as de Versailles e também as de Paris, se mostraram tão interessadas em perseguir os poemas?”.4 Ao seguir as pistas e indícios dessa pergunta, “podemos descobrir uma complexa rede de comunicação e estudar a maneira como a informação circulava numa sociedade semianalfabeta”.5 Esta problemática tornou-se um ponto central para a obra.

O “Grupo dos Catorze” era formado por pessoas que tinham o domínio da escrita, pela qual redigiam os poemas em papeis ou recitavam uns aos outros ou mesmo decoravam. Nesse sentido, a força da memória, o instrumento mnemônico, era algo muito significativo no sistema de comunicação do Antigo Regime, sobretudo as músicas.

Dos seis poemas, dois foram compostos para serem cantados em melodias populares (chansonniers) à luz dos acontecimentos do momento. Ou seja, preservavam a melodia e modificavam a letra à medida que os acontecimentos mudavam. Assim, “as canções proporcionam uma crônica a respeito das questões públicas, e existem em número tão grande que podemos perceber como as letras trocadas entre os Catorze se enquadram em ciclos de canções que levavam mensagens por todas as ruas de Paris”.6 O primeiro mandado de prisão se deu por conta de um poema intitulado “O exílio do M. de Maurepas” (era ministro da Marinha e da Casa Real e havia sido demitido e mandado para exílio meses atrás, por ordem do rei), no qual difamava a realeza e a atacava como “monstro”. Nessa sociedade, “difamar o rei num poema que circulava abertamente era uma questão de Estado, um crime de lése-majesté”.7 A missão da polícia era “rastrear o processo de difusão do poema no sentido contrário, a fim de chegar à sua fonte”.8 Cada uma das prisões trazia várias informações sobre a maneira com que as informações e os comentários satíricos sobre a política circulavam no meio social dos sujeitos. Porém, o que se imaginava até esse momento, por meio das pistas percorridas até aqui, era que se tratava de um ambiente bastante homogêneo, que os poemas circulavam apenas entre os próprios estudantes, padres, escreventes, o que seria o ciclo dos envolvidos no caso.

Todavia, quando a investigação ganhou maior abrangência, encontraram-se mais poemas que se intercruzavam com os seis, que eram “copiados em tiras de papel, trocadas por outras tiras de papel do mesmo tipo, ditados para mais copistas, memorizados, declamados, impressos em panfletos clandestinos e em certos casos adaptados para melodias populares e cantados”.9 Desse modo, a polícia percorria as informações, mas nunca encontrou o autor original do poema, pois se tratava de letras que as pessoas subtraíam, acrescentavam estrofes, modificavam frases. Tratava-se de um “caso de criação coletiva”, poemas que se cruzavam com outros, saltando frases modificadas, uma “cacofonia de sedição adaptada em rimas”.10 O Caso dos Catorze é entendido na obra como um inquérito de “opinião pública” e que, nesse sentido, e pensando no referido período, é fundamental para se compreender como afetou o curso dos acontecimentos pré-Revolução. Assim, uma das questões que o autor lança logo no início da obra é: como devemos entender a opinião pública numa sociedade? Já que esses poemas podem ser entendidos como um caso de opinião pública, Darnton distingue duas possibilidades teóricas sobre os estudos históricos em opinião pública: a posição de Michel Foucault e de Jürgen Habermas.

Porém, dentre as várias possibilidades e maneiras de apresentá-la, sobretudo valendo- se das duas interpretações, Darnton defende a ausência de uma imagem definida para esse conceito, sustentando que, diante do período estudado e da maneira como ele pode perceber o lugar e o modo com que esses poemas e canções circulavam, os dois pontos de vista dos autores citados não conseguem abarcar seu objeto. Portanto, um dos problemas levantados pelo autor, por meio das respostas, são os dados encontrados na pesquisa dos documentos, das fontes, apresentando um ponto de vista que compreenda o que é a opinião pública representada nesses poemas em questão, ou, se realmente se trata de um caso de opinião pública, o que não sabemos.11 Ou seja, Darnton ao adotar uma metodologia própria para análise do seu objeto não se preocupa em buscar uma teoria que dê conta de tal fenômeno (no caso a opinião pública), mas em estabelecer um diálogo a partir das fontes e assim construir a sua narrativa histórica.

Algo importante que o autor ainda destaca é que todos os catorze pertenciam às camadas médias de Paris, “de famílias respeitáveis e educadas, sobretudo de nível superior, embora alguns pudessem ser classificados como da pequena burguesia”.12 Nesse sentido, por conta dos padres e estudantes que foram presos, parecia haver certa homogeneidade entre os integrantes e o meio em que circulavam os poemas, sendo que é importante ressaltar que muitos deles não se conheciam, mas ainda assim detinham os poemas através da rede de comunicação que fora estabelecida. Porém, à medida que a investigação avançava, a polícia passou a se distanciar da igreja; ela se deparou com um conselheiro, com advogado, outros estudantes, enfim, a “transmissão se fez por meio de memorização, anotações e recitações em pontos estratégicos da rede de amigos”.13 Algo que chama a atenção do autor em sua pesquisa é que, mesmo depois de toda a investigação acerca da documentação, não dava para, nesse percurso, descobrir a origem do poema, porque “o rastro do poema 1 se tornara tão rarefeito que já não se podia distingui-lo de todos os outros poemas, canções, epigramas, rumores, anedotas e bons mots que iam e vinham pelas redes de comunicação da cidade”.14 A não distinção entre as pessoas que tinham acesso aos poemas tornou-se uma questão importante para entender a sociedade da época, pois, no caso dos Catorze, eles tinham acesso à leitura, eram de classes médias. Porém, a rede descoberta pela polícia não se limitava só ao mundo das letras, o que demonstrava que ela era composta por boa parte da população, sem distinguir a aristocracia das classes baixas. Por isso, muitas vezes os poemas foram convertidos em músicas para facilitar o recurso mnemônica, muito usado na época não só nos poemas, mas também nas canções.

Com efeito, consideramos como um ponto alto da obra o subitem 10 sobre a Canção. Este chama a atenção, pois, a partir do “Caso dos Catorze” e das investigações empreendidas, descobriu-se que havia naquele momento um descontentamento considerável por parte da população e até da corte de Versalhes em relação à figura do Rei na história da França. E ainda que tal descontentamento não era homogêneo, mas sim resultado de insatisfações diversas que ficaram claras nas alterações que eram feitas nos poemas ou nas canções e, a partir disso, na rede que foi constituída sobre os mesmos, já que “elas variam consideravelmente, porque a canção não parava de se modificar à medida que era transmitida de um para outro e à proporção que os acontecimentos da época forneciam material novo para versos adicionais”.15 Quanto a essa questão, o autor faz uma colocação que achamos muito pertinente sobre tais escritos (canção e poemas) na conclusão da obra: A exemplo de toda expressão simbólica, os poemas eram multivocais.

Eram ricos o bastante para significar coisas diferentes para pessoas diferentes, em todo o seu percurso de difusão. Reduzi-los a uma única interpretação seria interpretar mal seu caráter.16 Para concluir, podemos pensar que a obra se torna relevante pela inovação que traz com o seu trabalho metodológico, além do diálogo com a literatura, que achamos no mínimo inovador. Ao trabalhar com os poemas e canções, trazendo à tona uma série de questões que circundavam tal sociedade e foram importantes para pensar o contexto de uma época que, de alguma forma, expressavam um processo que estava iniciando, evidenciando as insatisfações e a rede de informações que desde já se formaram mesmo nas sociedades do século XVIII é algo que o autor consegue fazer muito bem. E isso, sem cair em teleologismos, pois não as vincula diretamente ao que ocorreu depois em 1789, mas, sim, utiliza suas fontes para demarcar o contexto de uma época e, pois, a importância da comunicação na história.

Com efeito, destacamos, assim, a significância do ofício do historiador na busca por novas fontes e novos problemas como bem coloca Michel Certeau na Escrita da História, além do rigor metodológico que deve ter ao tratar tais fontes para, assim, conseguir fazer, lembrando Marc Bloch, algo que é fundamental para a História: pensar as mudanças que ocorreram com os homens no tempo.

1 DARNTON, Robert. Poesia e Polícia – redes de comunicação da Paris do Século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

2 DARNTON, Robert. Poesia e Polícia. Op. cit., p. 129.

3 Ibidem, p. 8.

4 Ibidem, p. 9.

5 DARNTON, Robert. Poesia e Polícia. Op. cit., p. 9.

6 Ibidem, p. 10.

7 Ibidem, p. 13.

8 Ibidem, p. 16.

9 Ibidem, p. 17.

10 Ide 11 DARNTON, Robert. Poesia e Polícia. Op. cit., p. 19.

12 Ibidem, p. 32 13 Ibidem, p. 26.

14 DARNTON, Robert. Poesia e Polícia. Op. cit., p. 27.

15 DARNTON, Robert. Poesia e Polícia. Op. cit., p. 81.

16 Ibidem, p. 148.

Fernanda Queiroz de Menezes – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Núcleo de Pesquisa em História – ICHS Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Boa Esperança Cuiabá – MT – Brasil. CEP: 78060-900 E-mail : [email protected].

Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire – GALVÃO-SOBRINHO (RTF)

GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2013. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Quais os mecanismos que levaram à transformação da liderança cristã, ou seja, do bispo cristão, em uma força política e social de destaque no Império Romano na primeira metade do século IV d. C.? Essa é a pergunta central do livro Doctrine and Po-wer: theological controversy and Christian leadership in the later Roman empire (2013), de Car-los Roberto Galvão-Sobrinho. As reflexões do autor sobre essa temática remontam ao final da década de 1990, momento em que defendeu o seu doutoramento1 na Yale University, sob a supervisão de Ramsay MacMullen. Atualmente, Galvão-Sobrinho é professor-associado de História Antiga e História da Medicina na University of Wis-consin2.

Como destaca o autor, a despeito do crescimento das pesquisas que envolvem o assunto, encontramos ainda muitos estudos que se concentram na perspectiva teológica da atuação desses indivíduos, na sua dimensão intelectual, em detrimento de uma maior problematização acerca do impacto da atuação dessas lideranças na vida da Igreja e da cidade (p. 2). Contudo, observa-se que, a partir das últimas décadas do século passado, historiadores da Antiguidade Tardia têm privilegiado o estudo dessas lideranças inseridas no seu contexto de atuação. Eles buscam explicar a complexidade das relações sociais e dos conflitos engendrados por essas relações, que possibilitaram a emergência de líderes revestidos de poder e autoridade. Novas perspectivas de análises se abriram a partir das recentes abordagens preconizadas pelas Histórias Política e Cultural, sobretudo na forma de encarar uma documentação retórica e propagandística que, produzida em momentos de conflitos, muitas vezes chegou até nós permeada pelos interesses das facções em confronto. Portanto, percebe-se, a partir daí, que a dimensão religiosa no período não pode ser desvinculada das demais esferas da vida social, sobretudo da dimensão política, sob pena de se incorrer numa produção artificial de sentidos acerca da atuação desses indivíduos que nos legaram uma massa documen-tal que tem muito a nos dizer para além da história das ideias.

Vislumbramos uma produção historiográfica crescente nessa nova perspectiva que, muito embora o seu grosso recaia sobre historiadores europeus e estadunidenses, também se observa, mais recentemente, a inserção de pesquisadores brasileiros nessa nova fronteira de estudos sobre as implicações político-sociais das controvérsias teológicas no Império romano da Antiguidade Tardia. Dentre essas pesquisas, não há dúvidas que, pela originalidade com que conduz o seu trabalho, podemos inserir essa obra de Galvão-Sobrinho entre aquelas que se tornarão referência para os estudiosos do tema.

Fazendo uso de um extenso corpus documental3, somente possível a um pesquisador com vasta erudição, Galvão-Sobrinho também complementa a sua narrativa com um bom número de notas explicativas sobre essa documentação e a bibliografia utilizada (p. 187-271). Tais documentos abrangem o recorte cronológico de meados do século III d.C. a meados do século IV d.C. nas províncias romanas orientais de fala grega. Para o autor, esse recorte se justifica, pois, a despeito do mosaico de culturas locais, a região manteve certa uniformidade social, econômica, política e cultural que permitiu a ele tratá-la como uma unidade (p. 8). Isso possibilitou demonstrar o seu objetivo principal de que a extensão, tanto no tempo quanto no envolvimento expressivo de diferentes camadas da população por todo o Oriente (clérigos, pessoas comuns, funcionários da administração imperial e, até mesmo, dos imperadores), e o padrão de violência verificado, até então desconhecido nos conflitos teológicos anteriores, fizeram da Controvérsia Ariana4 um paradigma para se entender a afirmação das lideranças eclesiásticas revestidas de poder e autoridade naquele contexto. Ademais, o autor verifica, também, que em vários momentos da controvérsia as oportunidades reais de tolerância e entendimento mútuos foram ignorados ou não levados a sério. Isso, portanto, indica que os líderes da Igreja se engajaram não apenas em uma luta sobre a definição da verdade sobre Deus, mas, também, pela liderança das congregações cristãs e de seus recursos, que eram ativos políticos e econômicos significantes. Desse modo, “alimentar a disputa era questão crucial sobre o relacionamento entre autoridade e ortodoxia, teologia e poder” (p. 4).

Outra questão relevante, até então considerada pela historiografia como preponderante para o prolongamento e virulência da Controvérsia Ariana, refere-se ao envolvimento dos imperadores na querela. Ao contrário, Galvão-Sobrinho constata que a disputa tomou forma de uma crescente resistência e arraigada oposição às pressões imperais por uma uniformidade teológica, mesmo por parte de clérigos beneficiários do patrocínio imperial, que poderiam ter suas posições e vidas ameaçadas. Portanto, embora o autor constate que essas intervenções imperiais contribuíram para os tumultos persistentes, o envolvimento dos imperadores não explica os desafios ao poder imperial por parte do clero nem as sublevações que se originavam nas disputas locais. Desse modo, os eventos turbulentos que circundaram os acontecimentos do conflito, além de uma questão propriamente teológica sobre a definição de Deus, também estavam relacionados às tensões inerentes da própria estrutura interna da organização eclesiástica. Nesse sentido, a análise também perpassa pelas considerações de Pierre Bourdieu, que constatou que a esfera teológica é um lugar de concorrência e as ideologias produzidas nela visando à instauração de um monopólio dos instrumentos de salvação estão propensas a serem utilizadas em outras lutas, como, por exemplo, a disputa pelo poder na hierarquia eclesiástica, conforme as diferentes posições ocupadas pelos seus membros nessa organização.

Para explicar, então, as implicações mais amplas do engajamento das lideranças eclesiásticas nas controvérsias teológicas do século IV d.C. que contribuíram para a construção da autoridade episcopal o autor estrutura seu trabalho em oito capítulos divididos em três partes5. O capítulo 1 (Christian Leadership and the Challenge of Theology), começando pelo século III d.C., traz uma discussão geral dos desafios colocados aos líderes da Igreja num momento em que a questão da autoridade começa, cada vez mais, repousar nas reivindicações deles como representantes do espírito de Deus. Quando se acreditava que os bispos desviavam da “verdade”, como acontecia nas disputas teológicas, essas reivindicações eram questionadas e a legitimidade delas colocadas em dúvida (p. 15-22). O capítulo 2 (“Not in the Spirit of Controversy”: Truth, Leadership, and Solidarity), examina como esses bispos reagiram àqueles desafios no século III d.C., mostrando que, quando confrontados com a dissidência doutrinal, eles se esforçavam para finalizar os desentendimentos e resolver os conflitos por meio da negociação e do debate. Para o autor, a ausência de critério preciso para a ortodoxia e a favorável ambiguidade da “regra da fé” desencorajava sustentar a confrontação (p. 23-33).

Com a emergência da Controvérsia Ariana, o autor percebe uma mudança, para ele fundamental, na natureza da resposta dos bispos aos desentendimentos teológicos. A persistente confrontação, combinada com uma determinação para minar os prelados rivais, veio a substituir o anterior esforço pelo consenso. Nesse ponto é que percebemos a inovadora contribuição de Galvão-Sobrinho para a análise do problema. Essa mudança é primeiro percebida em Alexandria, cidade em que a controvérsia emerge, resultando na necessidade de alcançar maior precisão e clareza em definir a verdade sobre a divindade. Tais considerações são levantadas no Capítulo 3 (Precision, Devotion, and Controversy in Alexandria) para indicar como as novas definições sobre Deus alteraram os relacionamentos entre os líderes da Igreja. Uma combinação entre essa precisão para definir a verdade e o esforço para desacreditar os oponentes (35-46). Na sequência, o capítulo 4 (Making the People a Partner to the Dispute) examina as consequências dessas ações, seguindo de perto os esforços dos clérigos rivais em Alexandria em envolver suas congregações nas disputas. Nesse momento é que se percebe a emergência de um novo tipo de líder na Igreja, “impertinente, empreendedor e combativo” (p. 47-65). O capítulo 5 (“For the Sake of the Logos”: Spreading the Controversy), examina como a disputa migrou para fora do Egito e observa o desenvolvimento de ações similares em outros lugares do Oriente (p. 66-77).

O capítulo 6 (“To Please the Overseer of All”: The Emperor’s Involvement and the Politization of Theology), busca analisar o impacto sentido na disputa a partir da intervenção do imperador Constantino, através da criminalização da dissidência doutrinal que se seguiu à proclamação da ortodoxia nicena (325), tornando as posições teológicas mais politicamente carregadas (p. 78-97). Uma vez que o Concílio de Niceia falhou em produzir um consenso teológico, a disputa reacendeu logo após o concílio e os desentendimentos teológicos se tornaram mais ameaçadores. Desse modo, o capítulo 7 (Claiming Truth, Projecting Power, A.D. 325-361) trata do ambiente politicamente carregado do tempo de Niceia até a morte de Constantino. Ele mostra como os prelados reagiram ao sentido de insegurança gerado pela falta de consenso e compromisso e as ações tomadas para mobilizar os recursos da Igreja para afirmar autoridade e empreender campanhas para suprimir a oposição, eliminar dissidentes e promover suas visões para um campo cada vez maior. A consequência dessas ações foi a consolidação de um novo estilo de liderança que havia emergido nos anos iniciais da Controvérsia Ariana (p. 99-124). Por fim, no capítulo 8 (The Challenge of Theology and Power in Action: Bishops, Cities, and Empire, A.D. 337-361), o autor transporta aqueles desenvolvimentos para a metade do século IV d.C., da morte de Constantino ao início da década de 360. O capítulo mostra como os bispos conceberam novas estratégias de poder que os possibilitou afirmar sua autoridade, algumas vezes em completa oposição ao imperador (p. 125-151): O recurso à violência continuou a ser um elemento chave nesse processo, mas a novidade nas décadas de 340 e 350 foi, primeiro, sua escala e destrutividade e, segundo, sua “rotinização”. Episódios de violência coletiva, em particular, sejam espontâneos ou orquestrados pelos líderes eclesiásticos ou seculares, tornaram-se muito mais frequentes, de fato, frequentemente o meio preferido de conduzir a disputa: espancamentos, abusos, banimentos, perdas de propriedade e vida tornaram-se características comuns da vida em muitas comunidades cristãs conturbadas, com os líderes da Igreja atacando dissidentes e compelindo os fiéis a abraçar suas visões.

[…] o continuado conflito teológico nos anos depois da morte de Constantino produziu “modos de comportamento” ou maneiras de ser e agir – um habitus, na definição de P. Bourdieu – que contribuiu para transformar o episcopado em uma poderosa força social e política, empurrando os líderes da Igreja para o centro da vida pública e reconfigurando as relações entre clérigos e os tradicionais detentores do poder, incluindo o imperador (p. 126-127, destaques do autor).

Por meio dessas considerações, indicamos que esse trabalho de Galvão-Sobrinho é leitura fundamental para os pesquisadores dos conflitos político-religiosos e administrativos na Antiguidade Tardia. Percebemos que esses padrões de violência e a perpetuação dos conflitos nortearam as controvérsias que se adentraram para o século V d.C., mesmo a despeito da oficialização de uma daquelas formas de cristianismos como ortodoxa, em 380 d.C. O que se percebe é que a afirmação desse ethos reuniu condições para que personagens investidas de legitimidade político-espiritual transfe-rissem para o plano político-religioso os seus projetos escatológicos.

1 GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. The Rise of the Christian Bishop: doctrine and power in the later Roman Empire, A.D. 318-380. Tese (Doctor of Philosophy). 334 f. Yale University, Graduate School, New Haven/USA, 1999.

2 Vide https://www4.uwm.edu/letsci/history/faculty/galvao.cfm. Acesso em 14/04/2014.

3 Uma extensa bibliografia das fontes é indicada nas páginas 183-185 e no Apêndice, p. 161-182).

4 Conflito que se iniciou nas comunidades cristãs de Alexandria no início do século IV d.C. e que tentava explicar como é possível acreditar que Jesus fosse um ser divino e insistir, ao mesmo tempo, na exis-tência de um só Deus. Tais conflitos se deram em torno, sobretudo, das ideias do presbítero Ário e seus seguidores. Em suma, para Ário, e as diferentes nuances de pensamento que a sua doutrina ensejou, a Palavra, não é coeterna com o Pai, inconcebida como ele é, pois é do Pai que ela recebe a vida e o ser. Portanto, Jesus, a Palavra ou o Logos (nomes pelos quais se designa a segunda pessoa da Trindade) é dependente e subordinado ao Pai (Deus). Tais ideias colidiam com a ortodoxia que viria a ser oficializa 5 Part one – Points of departure: theology and Christian leadership in the third-century Church; Part two – God in dispute: devotion and truth, A.D. 318-325 e part three – Defining God: truth and power, A. D. 325-361.

Daniel de Figueiredo – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP/Franca Correspondência: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História. Av Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 – Centro – 14409-160 – Franca, SP E-mail: [email protected].

 

 

A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história – RUST (RTF)

RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história. Cuiabá: EdUFMT, 2013. Resenha de: MADUREIRA, Natalia Dias. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

A Reforma Papal (1050-1150), de autoria de Leandro Duarte Rust, carrega já em seu título o prenúncio de um período que foi estudado, comentado, avaliado e reavaliado, mas que, como a obra solidamente nos mostra do começo ao fim, não o foi ao esgotamento. O livro aborda a época comumente considerada como período histórico em quem alguns eclesiásticos de Roma teriam desenvolvido um modelo de governo que colocaria os então gestores do poder laico sob sua jurisdição. E para limitar a atuação de reis e nobres, bem como para submeter os cristãos a essa nova forma de governo, os religiosos teriam criado normas que delimitaram o comportamento dos mesmos nos mais diferentes aspectos sociais, incluindo os âmbitos mais particulares, como a moral e a sexualidade.

Os dois primeiros capítulos, intitulados, respectivamente: A história como re-forma e A história como revolução, – cada um deles construído a partir das argumenta-ções e dos posicionamentos estabelecidos por historiadores que se reconhecem ado-tando tais denominações – apesar de apresentarem duas abordagens já bastante conhecidas no meio historiográfico, são arrematados por Rust de uma maneira que mostra ao leitor que essas não são as duas únicas interpretações possíveis para ex-plicar ou contextualizar o que aconteceu entre os séculos XI e XII. Neste sentido, o autor dissocia a abordagem de um binarismo que recorrentemente assola discussões historiográficas. Aqui o “ou isso ou aquiloabre espaço para observações mais pontuais, voltadas para realidades específicas, que não podem ser engolidas por com-preensões genéricas e totalizantes. Há que se ressaltar também o exercício feito por Rust de pontuar claramente o caráter Moderno que envolve os escritos e conceitos consagrados a esse período do papado medieval. Exercício que se configura em um elemento de grande auxílio, sobretudo para estudantes há pouco familiarizados com os debates historiográficos. Tal ênfase chama a atenção dos leitores para a necessidade de uma pesquisa minuciosa sobre a própria formação da historiografia, pois, por vezes, elementos como concepções anacrônicas surgem entrelaçados com vocabulários que se estabelecem como hegemônicos e que, por isso, ocultam as formações de estilo e sentido equivalentes à sua própria época: As descrições flicheanas a respeito do desgoverno feudal e de seus efeitos – a crise moral que se abateu sobre a sociedade – remetem ao estilo de Proudhon (…). Que tremenda ironia! O elogio ao governo estatal com-posto por Fliche em sua obra lembra os jogos de palavras de um arauto oitocentista do anarquismo (p.29).

O hoje desgastado conceito de Reforma Gregoriana já foi outrora, a “menina dos olhos” de um sem número de autores, como o francês Augustin Fliche, que, escrevendo sobre o século XI, tornou-se uma espécie de “fundador historiográfico”. Escrevendo no início do século XX, Fliche tentou superar o frequente erro cometi-do por muitos escritores: dissociar todas as conjecturas políticas nas quais se envol-vera Gregório VII, da questão primaria que o levará a propor uma mudança; sua origem e fundamentação religiosa. Todas as contendas, impasses e escândalos, se-gundo o autor, não deviam ser motivos de grande destaque; pois eram peças pontu-ais, inseridas em um mecanismo maior: o desejo de mudança que assomava todos os clérigos reformadores e que ganhou corpo em Roma, sobretudo na pessoa de Gregório VII. Foi sob a égide dessa abordagem que Fliche lançou La Réforme Grégo-rienne, cujo título se naturalizou através das muitas obras que acionaram a expres-são como forma de identificação e periodização de uma fase histórica da igreja e do próprio cristianismo. Contudo, pela forma com a qual o texto de Rust se desdobra, fica explícito que a concepção historiográfica da alçada de Fliche possuía sentidos políticos muito específicos. Leandro Rust nos apresenta os argumentos do medieva-lista francês, intercalando-os com oportunas reflexões e considerações sobre a for-ma como a noção de Reforma Gregoriana foi construída – isto é, expressão historio-gráfica a um pensamento político de matriz autoritária. Outrossim, ele resgata os principais argumentos que compartilham da mesma seara intelectual de Fliche, ad-vindos de outros autores, mostrando assim, conhecimento a respeito da historiografia que envolve a Igreja Romana do século XI. Além disso, Rust apresentar, com rigor e habilidade, a difusão historiográfica que esse tipo de interpretação alcançou. Por fim, reconhece a contribuição dada por Fliche para uma nova forma de se fazer história e credita ao medievalista francês grande relevância em quesitos metodológicos implicados à história religiosa.

Porém, o livro não se restringe às argumentações de Augustin Fliche e seus seguidores. Gerald Tellenbach, medievalista alemão que produziu uma obra crítica sobre o trabalho feito pelo francês é abordado, iniciando o percurso que demonstra as várias revisões sofridas pela Reforma Gregoriana. Tellenbach ampliou as críticas de outro autor de origem germânica, Eric Gaspar, responsável por incorporar as correspondências de Gregório VII aos arquivos da Monumenta Germaniae Historica. Segundo Gaspar, Fliche ignorou uma antiga disputa existente entre “o modelo feudal de igrejas próprias e o episcopal de igrejas autônomas” (p.40), para criar uma lógica de coesão no pensamento religioso do período. Argumentando neste sentido, Tellenbach interperta Gregório VII como um líder que não encontrou na reforma o meio para reagir a um cenário de desordem ou caos, nem política nem moralmente “(…) O historiador alemão encontrou ordem e estabilidade onde Fliche enxergou o desmoronamento quase completo das instituições” (p.41).

Apresentando de maneira bem embasada as vastas discussões sobre as duas correntes historiográficas acerca da realidade sócio-política de meados do século XI, Rust dá mostras de sua preocupação em analisar a produção de conhecimento histórico e submeter ao rigor crítico o sentido contemporâneo das abordagens con-sagradas, abandonando assim, quaisquer possíveis arbitrariedades conceituais.

A trilogia flicheana apelou à história para encontrar uma possibilidade de salvação da ordem pública europeia. Para isso, projetou a história medieval como um precedente da capacidade da Santa Sé de resgatar a sociedade da anarquia e da desordem. Em outras palavras, a Idade Média foi transformada em origem da tradição re-formadora recentemente proclamada por Leão XIII (1810-1903) (p.51).

A ideia de que o caráter revolucionário do ocidente teve início no século XI, justamente com o papa Gregório VII, é outra ideia difundida pelo século XX, mais precisamente pelo alemão Eugen Rosenstock-Huessy, que em 1931 atribuía ao pon-tífice uma personalidade contagiante que inflamou milhares de fiéis e o fez interna-lizar a busca por uma mudança total da vida religiosa. Notoriamente, Rust não se limita a explanar sobre os autores que defendem a abordagem da Revolução Papal – sucessora da noção de Reforma Gregoriana. Mais do que isso, ele prossegue uma lu-cida análise intelectual ao discutir os fundamentos e implicações teóricas de que partiram os autores que posteriormente se inspiraram em tal abordagem teórica para embasarem suas obras. Merece ser destacado o ato de reconhecer e fazer uso de produções que não estão inseridas na familiar cena historiográfica francesa, o que retira o autor de um possível conforto que o trato com o discurso mais tradicionalmente conhecido na historiografia brasileira poderia proporcionar. Além disso, Leandro Duarte Rust tem a louvável capacidade de extrair conteúdo das entrelinhas; de fazer emergir informações que por vezes passam desapercebidas por estarem encobertas por uma névoa de verdades consagradas, de pensamentos considerados sólidos, mas que, precisamente por isso, permitem a identificação do lugar de fala do escritor analisado. Trata-se de uma abordagem que limita à forma dos textos historiográficos, mas que sonda a intencionalidade advinda do discurso empregado: Na superfície das linhas Robert Moore (…) confessava a influência do medievalismo francês. Mas, nas entrelinhas, ocultava um pr-pósito que dominou a historiografia britânica de sua época. Dominou-a e consagrou-a a partir da década de 1960. Difícil lê-lo e não associar sua insistência na multidão/revolução à “história vista de baixo” pelo marxismo inglês (p.73).

Chegando ao fim da segunda parte, o historiador fecha o exercício compa-rativo de maneira bastante clara: Ambas reduzem ao passado a uma unidade taxativa, hermética, negando positividade histórica a grupos e ações sociais que não anunciem a Modernidade industrial. No que diz respeito à socie-dade da época do papa Gregório VII, a busca para restituir as ex-periências possíveis da condição humana, ampliando a complexi-dade da trajetória dos homens no tempo, passa por aceitar a possi-bilidade teórica de que a política papal dos séculos XI e XII não se-ja explicada nem como reforma, nem como revolução. Mas sim, como uma alteridade histórica que parece ainda não ter uma iden-tidade conceitual (p.81).

Leandro Rust constrói a terceira parte de sua obra – como salienta o próprio título As pegadas do sagrado: o político como religiosidade – pautada em uma reflexão sobre as funções políticas que perpassam as questões de religiosidade nas quais o papado se envolveu. A terceira parte consiste no exercício crítico da abordagem tradicional, que mostra os clérigos reformadores do século XI utilizando a religião como uma “régua” para medir a legitimidade de certos comportamentos, como meio de aferição social. Era através dela, que eles, supostamente, pretendiam separar pessoas de acordo com a relação – ou a falta dela – que mantinham com o sagrado. Tradicionalmente, os gregorianos são apresentados como homens investidos da missão de, a partir dessa separação, almejar o controle do profano, de modo a fazer aqueles entregues ao erro religioso se redimirem e se voltarem para Deus. No capítulo em questão essa relação com o sagrado é abordada sob outro prisma. Rust recorre ao pensamento durkheimiano para demonstrar que como a memória sagra-da criada em torno da trajetória de Hildebrando de Soana, posteriormente Gregório VII, consistia em uma narrativa coberta de episódios que atestavam as fragilidades, as tensões e as contradições da experiência religiosa romana.1 Hildebrando fazia uso da posição por ele ocupada e do seu invólucro de sacralidade como resposta à realidade política que o circundava. Rust demonstra, assim, como as atitudes religiosas do líder símbolo da Igreja de Roma eram mutá-veis, problematizando, assim, a coerência e a coesão ideológicas exaltadas pelos conceitos de Reforma Gregoriana e Revolução Papal como uma memória elaborada por séquito e aliados.

Na parte IV do livro, A excomunhão do rei: o direito canônico e a oralidade, Rust apresenta uma rede de evidências, muito bem entrelaçadas, sobre a criação de uma cultura da escrita à qual, sobretudo – conscientemente – os clérigos perpetuavam e usufruíam a partir de sua posição de homens letrados singulares. Essa cultura, se-gundo a historiografia, teria contribuído para o surgimento de uma atmosfera jurí-dica que não mais se pautava em leis orais, e sim, tinha no conteúdo dos papéis, seu respaldo. Contudo, o autor alerta para a dicotomia existente nessa valorização da “cultura da escrita” perante o poder das tradições orais. Tomando como exem-plo uma carta escrita por Gregório VII quando da época de sua deposição, mostra como as duas formas de aplicações jurídicas – a oral e a escrita, aparentemente opostas – se fundem para construir a lógica de ação do religioso. Rust traz ao conhecimento do leitor outros episódios em que demonstram a presença de elementos de oralidade, usados no tempo presente dos envolvidos, ou seja, sem precedentes, sem embasamentos jurídicos formais.

A maldição do antipapa: sobre historiografia e nacionalismo, quinta parte do livro, se presta à formulação de uma bem fundamentada crítica às restrições dos historia-dores impostas por limites geográficos, que acabam por engessar os trabalhos em uma única perspectiva social. Neste caso, o texto se dedica à crítica a respeito dos modos de abordar a figura do antipapa Gregório VIII. Para isso, o autor restitui à abordagem dominando ao seu fundamento teórico: o pensamento hegeliano e sua interface com os sentidos nacionalistas da escrita da história. Neste sentido, fica evidenciado como a historiografia produz formas de memória – como a que condenou severamente o antipapa.

Por fim, concluo esta resenha oferecendo um balanço crítico juntamente com a última parte da obra, que tem como título O sentimento político: linguagem e poder. Apesar de todos os capítulos estarem interligados quanto à proposta do título, formando um contínuo exercício de crítica historiográfica; cada um possibilita um estudo em separado devido à forma como o autor abordou os assuntos retratados. Remetendo ao contexto que envolveu a ascensão de Hildebrando de Soana ao trono papal e às conhecidas mudanças provenientes de seu envolvimento com a realidade eclesiástica, Rust apresenta, neste capítulo, uma análise de semântica histórica: a noção de desejo como meio de formação e constituição de uma consciência dos partidários do papado a respeito das relações de autoridade. Recorrendo à noção de teologia política, o autor demonstra como as relações de obediência e desobediência ganhavam sentido através de uma “retórica sobre o desejo”. No entanto, o exercício de análise proporciona um fechamento à principal ênfase do livro: a crítica a respeito dos sentidos e lugares intelectuais que dão voz às abordagens historiográficas vigentes sobre a Reforma Papal. Ao chamar atenção para esse fato, Rust faz refletir sobre o ofício de historiador e questionar de onde herdamos as formas do fazer histórico.

1 Para a mitologia gregoriana ver: HUDDY, Mary. Matilda, Countess of Tuscany, Londres: Jonh Long, 1906.

Natalia Dias Madureira – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: [email protected].

Italianos em Mato Grosso: fronteiras de imigração no caminho das águas do Prata (1856 a 1914) – GOMES (RTF)

GOMES, Cristiane Thaís do Amaral Cerzósimo. Italianos em Mato Grosso: fronteiras de imigração no caminho das águas do Prata (1856 a 1914). Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT, 2011. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Em Italianos em Mato Grosso: Fronteiras de imigração no caminho das águas do Prata: 1856-1914, obra resultante de sua tese de doutoramento em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, Cristiane Thais do Amaral Cerzosimo Gomes se propõe a abordar as trajetórias de vidas, práticas e fazeres cotidianos de imigrantes italianos em Mato Grosso, enfatizando como estes, oriundos de diferentes partes da Itália, tiveram suas práticas culturais, incorporadas aos “sistemas de valores, ideias e formas institucionais do viver e fazer mato-grossense” (p.53). Tendo em vista a presença de imigrantes italianos em diferentes regiões da província, um dos eixos que move o trabalho da historiadora é destacar a importância desses imigrantes italianos e o que eles representaram para sociedade mato-grossense daquele período.

O recorte temporal da obra figura-se entre 1856 a 1914, O ano de 1856 liga-se ao Tratado de Aliança, Comércio, Navegação e Extradição, estabelecido entre Brasil e Paraguai, que possibilitou a abertura da navegação fluvial pelo rio Paraguai, facilitando a mobilidade de estrangeiros em terras mato-grossenses, assim como favoreceu a economia de importação e exportação entre Mato Grosso e os países do Prata (Paraguai, Argentina e Uruguai). 1914 refere-se ao momento em que a partir da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que ligava a região sul de Mato Grosso (Corumbá) ao litoral de São Paulo (Bauru) fez com que houvesse uma diminuição da entrada de imigrantes italianos no estado, mediante a navegação fluvial, pela conhecida rota do Prata, haja vista que as ferrovias se apresentavam como um recurso de transporte mais viável.

A obra é composta de quatro capítulos, considerações iniciais e finais. No que diz respeito as considerações iniciais, Gomes, enfatiza que os italianos ao dei-xarem suas terras de origem, entre o final do século XIX e princípio do XX, a maioria destes, antes de estabelecer-se em Mato Grosso, dirigiam-se aos países platinos, para posteriormente se lançarem à navegação pelos rios do Prata, Paraná, Paraguai e Cuiabá, até alcançarem as terras mato-grossense. Esse percurso fluvial, que nesse momento representava a principal via de comunicação entre Mato Grosso e os paí-ses do Prata, ficou conhecido como “rota do Prata” ou “caminho das águas”, (p. 22).

Através de um minucioso levantamento documental que a autora se apoia, tais como “memorialistas, depoimentos, jornais, relatos de viajantes, registros e relatórios oficiais” (p.36), a possibilitou identificar o fluxo de imigrantes italianos em terras mato-grossenses, que se constituíram enquanto espaços, nos quais esses sujeitos se estabeleciam, casavam-se, alguns inclusive tornavam-se famosos e bem sucedidos comerciantes, e em muitos casos jamais retornavam às suas terras de origem.

Uma característica marcante do processo de imigração a Mato Grosso, no período abordado, se constitui na predominância de imigrantes solteiros, oriundos da Itália Meridional, especialmente das regiões da Calábria, Campânia e Basilicata. Com base nos Autos de Habilitação Matrimonial e de Justificação do Estado de Solteiro, uma documentação que visava comprovar o estado civil dos imigrantes que almejavam contrair matrimônio, foi possível traçar vários casos de italianos que se casaram com mulheres mato-grossenses, passando a constituir famílias, dedicando-se principalmente às atividades comerciais. Tal documentação evidencia ainda as particularidades do processo imigratório em Mato Grosso no final do século XIX e início do XX, sendo “possível surpreender origens, trajetórias e destinos desses imigrantes, bem como de suas práticas matrimoniais (…) numa perspectiva de apropri-ação e reapropriação de espaços, constituídos por relações sociais e culturais de italianos (…)” (p.43).

No primeiro capítulo, Imigrantes italianos na fronteira de Mato Grosso, a auto-ra aborda o fluxo de imigrantes italianos, sobretudo de jovens solteiros para terras mato-grossenses, impulsionados pela abertura da navegação pelo rio Paraguai e pelas oportunidades de investimentos em terras mato-grossenses. São analisadas ainda as tentativas do governo em criar projetos de imigração e colonização na fronteira da província. O governo procurou criar mecanismos de aproximação e proteção aos povos indígenas que habitavam esta região fronteiriça, com o intuito de atrair nativos e deslocá-los para outros lugares, pois as terras indígenas eram vistas como pontos estratégicos para a colonização. No entanto, o projeto de colonização não obteve êxito, sendo empregados novos mecanismos de colonização, tendo como saída a criação de incentivos tais como a doação de faixas de terras a nacionais e estrangeiros, com o intuito de atrair imigrantes europeus, pois acreditava-se que com seus “braços civilizadores” viriam preencher os espaços “vazios” de Mato Grosso.

Através da abertura da navegação pelo rio Paraguai na segunda metade do século XIX, mais precisamente em 1856, ocorreu uma espécie de encurtamento das distâncias que separavam as cidades de Cuiabá, Corumbá, Assunção e Buenos Ayres, haja vista que os contatos entre estas cidades passaram a ser mais constantes. O aumento de embarcações que percorriam esse trajeto, que levavam e traziam passageiros, grande parte deles imigrantes que viriam a se estabelecer em Mato Grosso, “propiciou a aproximação entre grupos e povos, com diferentes costumes, idiomas e modos de vida” (p.74).

No segundo capítulo intitulado Italianos e portugueses entre a guerra do Para-guai e o Caminho das águas, Gomes apresenta as estratégias políticas do governo de Mato Grosso em criar meios de comunicação com os Países do Prata, mediante a livre navegação pelo rio Paraguai. Pois segundo a autora, apesar da localização geográfica de Mato Grosso ser privilegiada, a província desde o período colonial até metade do século XIX, enfrentava problemas de comunicação com as demais regiões, devido ao longo e oneroso percurso terrestre que ligava Mato Grosso a outras cidades. Objetivava-se com a abertura da navegação, assegurar o abastecimento de mercadorias, que devido ao longo percurso terrestre em tropas de mula, acarretava no encarecimento destas mercadorias, assim como visava o escoamento mais acelerado de matérias- primas produzidas na região.

Em 1856, após longas conversações e missões diplomáticas juntamente com o governo paraguaio, foi assinado o tratado que propiciou a abertura da navegação pelo rio Paraguai, abrindo para Mato Grosso “uma nova fase de prosperidade econômica, social e cultural” (p.104), visto que a comunicação entre a província e as cidades litorâneas passou a ser feita pelo “caminho das águas”, o que proporcionou a Mato Grosso uma euforia econômica, devido a possibilidade de escoamento de matérias-primas com maior rapidez, assim como a importação tanto de pro-dutos nacionais como estrangeiros. Assim, correntes de imigrantes europeus especialmente de italianos, que aportavam em terras mato-grossenses, tornaram-se cada vez mais frequentes. Esse súbito desenvolvimento econômico que Mato Grosso experimentava foi abalado pela Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), quando a província de Mato Grosso novamente foi posta em uma situação se semi-isolamento, pois a navegação via rio Paraguai foi interrompida durante o conflito.

Gomes aborda os impactos da Guerra do Paraguai sobre a população ma-to-grossense, destacando como este conflito foi vivenciado por imigrantes italianos que residiam na cidade de Corumbá. Nessa perspectiva, a autora apoia-se no Memorandum do comerciante português Manoel Cavassa, que juntamente com sua famí-lia, presenciou a tomada de Corumbá pelos paraguaios, em janeiro de 1965, para apresentar os conflitos e dilemas vividos pelos imigrantes durante a invasão.

Concernente ao terceiro capítulo- Italianos em tempos de livre navegação- discute-se que a partir da reabertura da navegação pelo rio Paraguai ao final da Guerra da Tríplice Aliança, em 1870, Mato Grosso voltou a conectar-se com os países do Prata, novamente os “caminhos das águas” vieram orientar a dinâmica comercial de Mato Grosso, assim como permitia a entrada de uma grande leva de imigrantes. Gomes apresenta as trajetórias e experiências vividas por imigrantes italianos em Mato Grosso, assim como destaca o desenvolvimento de importantes casas comer-ciais de propriedade de imigrantes, que comercializavam uma grande variação de mercadorias, que iam desde a importação de artigos de luxo, vindos de Paris, Londres, tais como tecidos, chapéus, perfumarias, e etc. Assim como atividades de ex-portação de matérias-primas. Além de atuarem como representantes bancários.

Gomes enfatiza o papel da cidade portuária de Corumbá, que passou por um súbito crescimento demográfico e urbano nesse período, o que se justifica devi-do ao fato de os imigrantes que aportavam na província primeiramente, desembarcavam em Corumbá, para posteriormente decidirem seus destinos, além do mais a estratégica localização geográfica fez com que a mesma se tornasse um importante entreposto comercial de Mato Grosso, movimentando a economia provinciana.

No entanto, Gomes nos adverte que não se pode pensar o porto de Co-rumbá somente a partir da dinâmica comercial, pois este, muito mais de ponto de embarque e desembarque de mercadorias e passageiros, se configurava como um “espaço de vivências e experiências de indivíduos de diversas nacionalidades e pro-cedências, tornando-se um local de passagem, onde ocorriam encontros, desencontros e entrosamentos de nacionais e estrangeiros” (p.141) até então jamais visto em Mato Grosso.

No quarto e último capítulo- Da Itália ao sertão mato-grossense: “vendendo, construindo e consertando de tudo um pouco”– através da utilização de depoimentos orais de descendentes italianos em Mato Grosso, a autora busca desvendar as experiências de seus antepassados. Gomes chama a atenção para o papel do imigrante, que através de suas experiências, valores e concepções, passaram a reconfigurar a cultura urbana de Mato Grosso, especialmente da capital Cuiabá, a partir de suas maneiras diversificadas de seu modo de fazer, viver e trocar experiências.

Através de um minucioso levantamento documental, tais como periódicos, relatos orais, assim como os “Autos de Justificação do Estado de Solteiro”, foi possível, mapear e reconstruir particularidades do processo de imigração em Mato Grosso, percebendo as relações de parentesco estabelecidas, bem como analisando as atuações destes imigrantes em diferentes espaços de sociabilidades. Cerzósimo Gomes aponta que a vinda de imigrantes solteiros para Mato Grosso, resultou em uniões matrimoniais entre italianos e mulheres residentes em diferentes regiões ma-to-grossenses, tais práticas, evidenciam uma forma peculiar de integração social desses imigrantes na sociedade do período.

Giuslane Francisca da Silva – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: [email protected].

História Comparada – BARROS (RTF)

BARROS, José D’Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: TEIXEIRA, Igor Salomão. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

José D’Assunção Barros, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC), é dono de vasta produção bibliográfica. Graduado em música e Doutor em história, o autor tem atuado intensamente na área de teoria e metodologia da história, como atestam algumas de suas publicações, como O campo da história (2004); O projeto de pesquisa em história (2005) e Teoria da História (2011).

Em 2014 veio a público um ensaio dedicado integralmente à História Com-parada. Primeira publicação do gênero no mercado editorial brasileiro. É, por esse motivo, uma contribuição significativa para a historiografia brasileira. Quando falamos “primeira publicação” estamos considerando-a como o primeiro livro dedicado a apresentar ao público – iniciantes, principalmente – o que significa abordar dois ou mais objetos simultâneos de análise. Essa não é, no entanto, a primeira publicação sobre o assunto no Brasil, pois, além de importantes livros já traduzidos para o português, como Comparar o Incomparável, de Marcel Detienne, temos uma revista dedicada ao à questão, a saber, a Revista de História Comparada, do PPGHC da UFRJ.1 O ensaio, como caracterizado pelo autor, é dividido em 15 itens. Não possui necessariamente uma introdução na qual costumam ser apresentados os objetivos da obra e suas características, pretensões e limitações. Ao final, o autor defende seu posicionamento a partir da conclusão propositiva “Por uma história relacional”. Pela amplitude dos tópicos enunciados, que vão desde a constituição da História Comparada como campo de estudo, sua “pré-história” e suas características atuais, chegando ao breve item sobre a História Comparada no Brasil, o livro de Barros oferece, de fato, uma gama introdutória de questões para o pensar a comparação. Porém, pela complexidade e diversidade de abordagens apontadas no livro, fazê-la em um texto curto é, desde o início, concebê-lo de forma superficial. Neste sentido, o livro peca por não oferecer análises. Apenas apresenta características dos debates.

Na caracterização oferecida pelo autor, a relação entre a comparação e pro-postas de análise no século XIX pode ser definida como a tentativa do estabeleci-mento de diferenças. Nos processos constitutivos de diferenciação, havia uma espécie de modelo e o objeto comparado era definido na medida em que se distanciava ou se aproximava desse modelo. No geral, essas propostas embasaram perspectivas evolucionistas e etnocêntricas. No século XX, no entanto, Barros apresenta a im-portância que as consequências dos nacionalismos exacerbados na Europa, principalmente, tiveram em relação às defesas pela comparação nas ciências humanas. Segundo o autor, a possibilidade de comparar sociedades distintas e/ou separadas no tempo e no espaço remetia a “estabelecer uma comunicação possível entre vá-rias histórias que até então pareciam fundar-se no isolamento…”.2 Sobre a história comparada no início do século XX o autor também apresenta que as abordagens eram realizadas considerando escalas de análise amplas, como as “civilizações”. O autor cita obras de Oswald Spengler (1879-935) e Arnold Toynbee (1889-1975). O primeiro buscava nas diferenças entre as civilizações as especificidades de cada uma. O segundo buscava nas possibilidades de estabelecer analogias a explicação sobre processos históricos mais amplos.3 Trabalhos da sociologia e da antropologia também foram fundamentais para essas reflexões. Barros cita contribuições de Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim.

Um dos pontos altos da obra é o lugar de destaque dado por Barros à obra Os Reis Taumaturgos, de 1924, escrita por Marc Bloch (1886-1944). Segundo o texto, Bloch identificou dois caminhos para a comparação em história: a) a análise com-parada de sociedades sem contiguidade temporal e espacial e b) a análise compara-da de sociedades com contiguidade temporal e espacial. Na primeira situação, Bar-ros cita a possibilidade de se comparar o “feudalismo europeu” com o “feudalismo no Japão”. A principal característica seria a busca por analogias. Neste caso, o au-tor alerta que o principal risco que corre um historiador ao se dispor a tal empreita-da é o anacronismo e a leitura forçada levando a “uma ficção estabelecida pelo próprio historiador”.4 Na segunda situação, abordagem mais eficaz para Bloch, a proximidade temporal/espacial entre as sociedades proporciona ao historiador a possibilidade de analisar as influências múltiplas que essas sociedades podem exercer umas sobre as outras. E, nesse caso, não apenas as semelhanças são identificáveis. As diferenças na vivência de um fenômeno ajudariam a colocar o foco sobre uma sociedade a partir das especificidades de outra sociedade, como fez Bloch em Os Reis Taumaturgos. Segundo o autor: O material histórico adequa-se, portanto, ao caminho proposto pe-lo modelo preconizado por Bloch: duas sociedades sincrônicas que guardam entre si relações interativas, e que juntas oferecem uma visão clara de um problema comum que as atravessa. Sem uma ou outra, no mero âmbito de uma história nacional, não poderia ser compreendida a questão da apropriação política do imaginário taumatúrgico que se desenvolve nas monarquias europeias, das origens em comum deste mesmo imaginário, das intertextualidades que se estabelecem, do confronto do modelo taumatúrgico com outros modelos de realeza.5 Nessa longa citação podemos também perceber, além da importância da sin-cronia e contiguidade entre as sociedades analisadas por Bloch, a necessidade de um problema que possibilite o trânsito do historiador entre uma sociedade e outra. A partir desta leitura Barros apresenta a importância dos Annales na constituição de uma história comparada problematizada a partir do presente para propor explicações sobre o passado.

O autor também evidencia a “ausência de cercas” na história comparada re-velando que, em geral, para se realizar uma empreitada de comparação é preciso conectar a análise com outros campos do conhecimento histórico. No item 7 do livro, totalmente dedicado a essa questão6, Barros identifica a demografia e a eco-nomia como terrenos propícios à comparação. A possibilidade de analisar grupos sociais distintos em uma mesma sociedade também pode proporcionar análises comparadas. Outros objetos, como as cidades, também foram trabalhados em perspectivas comparadas.7 Para além das diversidades de objetos, e daquela visão geral que o autor apresenta das perspectivas evolucionistas e etnocêntricas do século XIX, às propos-tas de rompimento das barreiras nacionais do mundo ocidental pós-guerra no século XX, de um modo geral, Barros define, no início do livro, a História Comparada – em maiúsculo, com pretensões de um campo constituído – como um método: Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda essa prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da iluminação recíproca, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro…8 As diferenças na iluminação recíproca pretendida é que possibilitam o entendimento mais contemporâneo da História Comparada. De um modo geral, Bar-ros situa a produção historiográfica até a primeira metade do século XX como abordagens que não entrelaçavam e/ou cruzavam as sociedades estudadas. A com-paração resultava na caracterização separada de cada sociedade a partir de um de-terminado fenômeno “problematizado”. Para os últimos anos daquele século e início do século XXI, no entanto, o autor identificou diferentes propostas: as de história global; a história interconectada; a transnacional e a história cruzada. No primeiro caso, a principal questão é não trabalhar com uma relação centro-periferia na qual o centro já está pré-definido. No segundo, a proposta é fazer com que o historiador deixe-se conduzir “criativamente por seu tema, o qual … pode deslocar-se através de diferentes grupos sociais, identidades étnicas, definições de gênero, minorias, classes ou categorias profissionais.9 Na perspectiva da história transnacio-nal, diferentemente da história global (que se definiria mais pelo recorte), a aborda-gem se caracteriza pelo desafio de enfrentar “a noção arraigada de que o nacional” é uma categoria emoldurante. Nessa perspectiva a nação é algo a ser estudado, e não o espaço que enquadra o estudo.10 A última das propostas elencadas por Barros, a história cruzada, é caracterizada como uma abordagem que não ilumina uma sociedade a partir de outra, e sim, como uma abordagem que analisa uma sociedade através de outra. Nessa proposta, Barros utiliza amplamente as “defesas” apresentadas por Bénédicte Zimmermann e Micahel Werner, Eliga H. Gould e Jürgen Kocka. Os principais elementos dessa proposta são as aberturas geradas tanto para as possibilidades de análises compara-das de escalas (um historiador pode observar um fenômeno numa perspectiva ma-cro e micro), as possibilidades narrativas propriamente ditas (que o autor chama de “historiografias cruzadas”) e o diálogo “com as possibilidades polifônicas” em dife-rentes abordagens.11 Barros também dedica o item 9 às abordagens baseadas na comparação de sociedades sem contiguidade temporal e espacial. O principal elemento observado pelo autor é a possibilidade para o delineamento de diferenças.12 Porém, assim co-mo item 13 sobre trabalhos realizados no Brasil sobre História Comparada, Barros não oferece muitas informações e análises ao leitor. Neste item e pela vinculação do autor ao PPGHC o livro poderia ser mais propositivo.13 Os três últimos itens do livro, a saber, “Delineamentos para estabelecer a História Comparada em sua especificidade”, “A História Comparada e sua instância coletiva” e “Considerações Finais – Por uma História Relacional” tendem a sintetizar o que autor apresenta anteriormente. Vale destacar o alerta que o autor reforça sobre as propostas de grandes sínteses econômicas e sociais. Segundo o texto, esses projetos não são de história comparada, pois oferecem panoramas descritivos. A característica marcante é “examinar sistematicamente como um mesmo problema atravessa duas ou mais realidades histórico-sociais distintas…Faz-se por mútua iluminação de dois focos distintos de luz, e não por mera superposição de peças”.14 A partir dessa característica a história comparada pode ser aplicada tanto na narrativa quanto na escala de observação. Esses elementos levam à reflexão sobre como realizar o trabalho. Para Barros, a realização de projetos coletivos “atravessados por um ‘problema’” é defendida por pesquisadores, como Marcel Detienne, que tem consciência da dificuldade de analisar duas sociedades (contíguas ou não) simultaneamente. Outra perspectiva presente no livro é a de Jürgen Kocka, que destaca que o historiador deve dispor de uma erudição e disposição disciplinar e interdisciplinar. A diferença entre Detienne e Kocka, sobre este aspecto, está na defesa que este último faz da possibilidade de realização de trabalhos individuais. Porém, nessa concepção, o historiador dependerá cada vez mais dos trabalhos rea-lizados pelos seus pares.15 Ao final do livro o autor retorna aos tópicos anteriores sobre as reflexões recentes que dão nomes como “história transnacional”, “global”, “cruzada”, “inter-conectada”. Para Barros, o que está em questão não é uma disputa para saber qual termo sairá “vencedor”. O desafio aos historiadores contemporâneos é se está nascendo uma “família historiográfica” de “História Relacional”.16 A obra História Comparada, tema desta resenha, é um instrumento válido para os que estão iniciando nas leituras sobre diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Como ponto de partida, oferece uma espécie de guia historiográfico de diferentes abordagens sobre a comparação. Mesmo sem muitas análises permite ao leitor seguir adiante e, com isso, cumpre um importante serviço à iniciação científica.

1 http://www.hcomparada.historia.ufrj.br/revistahc/revistahc.htm. Acesso em maio de 2014.

2 BARROS, José D’Assunção. História Comparada.Petrópolis: Vozes, 2014. p. 47.

3 Ibidem, p. 33-38.

4 Ibidem, p. 49.  8 Ibidem, p. 17.

9 Ibidem, p. 90.

10 Ibidem, p. 92 11 Ibidem, p. 135.

12 Ibidem, p. 82-84.

13 Ibidem. p. 136-141.

14 Ibidem. p. 143.

15 Ibidem. p. 157-162.

16 Ibidem. p. 163-166.

Igor Salomão Teixeira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Correspondência: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História – Av. Bento Gonçalves, 9500. Prédio 43311, Sala 116. E-mail: [email protected].

A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai – ALBUQUERQUE (RTF)

ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010, 268p. Resenha de: BALLER, Leandro. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 2, jul.-dez., 2012.

De forma clara o autor no início do livro observa as suas relações com os su-jeitos, ou atores sociais da pesquisa, mostrando ao leitor a sua análise metodológica e teórica, sem perder de vista o seu metiê, que é a Sociologia, ou melhor, às Ciências So-ciais, sem, todavia, esquecer dos perigos que uma pesquisa no ambiente fronteiriço re-presenta ao pesquisador.

Isso posto, auxilia na compreensão do objetivo central do trabalho que está ligado a pensar as representações nacionais e as relações de poder entre o Brasil e o Paraguai, a partir dos discursos dos imigrantes, líderes camponeses paraguaios, jornalistas, empresários, religiosos, entre outros. Acredito que as tipologias de fontes utilizadas supriram os objetivos no tratamento da problemática, as entrevistas, as reportagens nos jornais e revistas, e os documentos analisados foram suportes para pensar tais representações, no recorte da análise.

Referente à bibliografia ela se mostrou variada tanto no tocante às explicações teóricas e do tema específico, percebi uma preocupação em aplicar a interdisciplinaridade especialmente na construção textual, mesmo compreendendo que tal preo-cupação é resultado imediato do trabalho de campo, ou seja, não basta utilizar a inter-disciplinaridade referindo-se apenas a autores e obras de outras áreas, mas sim, esta-belecer da melhor forma possível um diálogo interdisciplinar.

As fronteiras são conceituadas na pesquisa como um limite territorial nas migrações fronteiriças, quanto à presença de brasileiros no Paraguai, sem deixar de lado, as questões políticas, jurídicas e culturais. As representações abordadas pelo au-tor muitas vezes são negativas por meio de conflitos violentos e disputas de território, a imigração clandestina, o tráfico de drogas e o roubo de carros é uma das realidades reforçadas pela imprensa, não que isso seja mentira, mas auxilia na estigmatização acentuada dessas ocorrências. O fenômeno da imigração produz pluralidades de fronteiras, entre o material e o simbólico, a abordagem historiográfica como paradigma a ser seguido nos leva a aplicar grande parte de seus significados na Marcha para o Oeste, algumas vezes confundida até mesmo com a abordagem de Turner, como um mito fundacional da identidade que é elaborada pelos historiadores, a percepção da alteridade pelos antropólogos, sociólogos e geógrafos, que tentam explicar o movi-mento migratório no Brasil pelas frentes de expansão e frente pioneira. No caso dos Brasiguaios isso não se aplica nas migrações fronteiriças. O autor reconhece as diferentes perspectivas e inovações no cenário dos atuais estudos fronteiriços especial-mente etnográficos e históricos, e não apenas aqueles que se dão em relação aos estudos que refletem sobre locais privilegiados de análise, dessa forma encontramos nesses atores sociais o cruzador de fronteiras e o reforçador de fronteiras, tais processos po-dem ser vistos nas teorias pós-coloniais.

A articulação do autor entre as vertentes de pensamento se dá de maneira bastante clara, como por exemplo, com o que denominamos na historiografia de pós-moderno. “Os espaços de intercâmbio cultural não significam espaços de integração social. Hibridismo não é sinônimo de integração” (p. 51). O que parece ser uma característica do pesquisador em relação ao tema; quero dizer que a clareza entre correntes de pensa-mento é para mim um “trânsito” intelectual que coloca o autor em evidência na perspectiva dos estudos fronteiriços.

Seguindo como referência as teorias dos movimentos migratórios tradicionais – migrar do mais pobre para o mais rico – a tônica migracional do Brasil para o Para-guai está invertida, e a grande quantidade de brasileiros indo para o país vizinho a par-tir de 1960 e se acentuando na década de 1970 se explica por alguns fatores; como a proximidade geopolítica, a migração espontânea, as políticas de incentivo, a construção da Itaipu, e o boom do comércio fronteiriço.

O autor retoma os principais eventos históricos do século XIX para dar um ponto de partida à sua explicação e mostrar a ocorrência histórica do movimento migratório, bem como denota a situação política entre 1870 e 1932, um período entre guerras que o Paraguai sobreviveu entre golpes políticos. A abordagem que o pesquisador dá na retomada da articulação política entre os dois países após a Guerra da Tríplice Aliança, mostra um período de ditaduras, concessões e apoio, inclusive na construção de grandes projetos. O que se denominou de estratégias geopolíticas que mostrava o crescimento do Paraguai, era na verdade a legitimação do governo de Stroessner (1954-1989), com o Brasil atuando como expansionista e subimperialista naquele país, Stroessner facilitou a entrada e a compra de grandes extensões de terras nas zonas de fronteiras por estrangeiros, entre eles a maioria brasileiros.

No tocante ao comércio e o seu crescimento o autor denota a importância que é a baixa carga de impostos naquele país e o crescimento das cidades mais próximas ao Brasil, o que se percebe é a forma de fazer este comércio “ilegal” de exportação e importação entre os dois países (sacoleiros, muambeiros, camelôs, atravessadores, […]). O que se percebe é que a economia paraguaia se volta para fora do país e não ao seu interior, especialmente uma dependência para com o Brasil, frutos das políticas de expansão dos dois países que ultrapassa os territórios nacionais.

O quantitativo demográfico brasileiro no Paraguai não é exato, até pela diferente metodologia de controle que é exercida pelos dois países, mas por outro lado, é também fruto de interesses políticos e econômicos, seja do governo, da igreja, da imprensa em geral, etc. essa inexatidão não é neutra de valores, e quanto à ilegalidade e legalidade demográfica há um receio político nessas áreas de fronteiras, como, por exemplo, brasileiros “legais” ocupando cargos políticos, ou mesmo em questões mais diretas como a questão de votos e bases eleitorais em cidades nos dois países.

Os fluxos migratórios ao Paraguai são frutos de duas frentes, uma vinda do sul do Brasil – a maior – e outra do norte e nordeste – a menor. O que ocorre segundo o autor, são várias migrações internas no interior do Brasil e depois ultrapassa-se a barreira internacional, como percebemos nas fontes orais (p. 73/74/75), dessa forma há uma mescla migracional e de naturalidade no interior das famílias. O Paraná é uma das últimas fronteiras nacionais em direção ao Paraguai, desses dois fluxos migratórios.

O autor com o auxílio da bibliografia de Sprandel denota classificações ou estratificações sociais dos brasileiros no Paraguai em seis grupos diferentes (p. 76/77). Há outros autores como Oliveira que pensa essas classificações como categorias na-tivas, tendo assim um sentido histórico e analítico mais rico, do que um sistema de conceitos sociológicos. O autor “utiliza também as classificações dos próprios agentes sociais, que a todo instante estabelecem suas hierarquias sociais e as nomeiam de várias formas” (p. 78). Essa realidade é diversa e complexa para o autor, justamente porque a problemática estudada, em relação às identidades dos imigrantes que viera já de regiões distintas do Brasil.

No Paraguai a frente de expansão capitalista atua em antagonismo, pois en-riquece os de “fora”, ao mesmo tempo em que empobrece e expulsa os pequenos agricultores, o que provoca uma mudança nos sistemas políticos e econômicos, justamente por causa dos organismos de fomento – Bancos – com o fim das ditaduras, os agricultores pobres vislumbram novas possibilidades de propriedade no Brasil com o Pl-no Nacional de Reforma Agrária (PNRA), para muitos pesquisadores esse é o movimento que deu origem aos denominados Brasiguaios. Nesse mesmo contexto, os empresários e grandes agricultores se mantiveram no país e se fortaleceram, com outros incentivos, acordos e demandas, como por exemplo, com o Mercosul em 1995 (Tratado de Assunção), especialmente com o plantio de soja e a aplicação de novas tecnologias, sendo desse montante entre 70 e 80% responsáveis os imigrantes e desses em sua maioria brasileiros.

O autor denota alguns exemplos de como essa expansão é desigual no Paraguai. Por exemplo, ele cita a renda per capita no departamento de Alto Paraná no Paraguai que gira em torno de 14 mil dólares, enquanto no restante do país ela cai para aproximadamente 950 dólares. Os principais indicadores dessa expansão é a pre sença brasileira que se dá pelo plantio em larga escala de soja, pela Usina de Itaipu, e pelo comércio da Ciudad del Este, o que de certa forma legitima nesse contexto espacial um crescimento na zona fronteiriça, não descartando em momento algum a expansão em seus moldes para o interior daquele país. No interior do país ocorrem outras formas de vislumbrar essa expansão ocorrendo até mesmo atritos interclasses, haja vista que adentram as áreas dos Menonitas.

Esses atritos e conflitos fazem com que muitos empresários agrícolas, e grandes agricultores brasileiros voltem seus olhares para a aquisição de propriedades no Brasil comprando terras especialmente em MT, RN, PA, e GO. Por outro lado, quem permanece no Paraguai acaba aumentando seu poder econômico e político com a nacionalização dos filhos e descendentes, como ocorre em Santa Rita. “Nessa perspectiva, os estrangeiros seriam os porta vozes dos ideais da modernidade, enquanto os paraguaios seriam tradicionais e atrasados […]” (p. 90).

A influência cultural brasileira no Paraguai se dá muito em relação ao idioma português nas zonas fronteiriças, essa questão mexe com “todos” os aspectos culturais nacionais paraguaios desde as escolas, televisão, rádios, fachadas de lojas, letreiros públicos, entre outras formas. Tais aspectos acabam mesclando as culturas em um com-plexo, ambíguo e ambivalente movimento migratório, com seus conflitos, sejam “bons ou ruins”, em permanente desequilíbrio econômico de um país que se adapta no interior do outro.

O autor explora de maneira hábil as fontes a que se propõe sobre os conflitos na zona de fronteiras, mostrando a perspectiva bilateral das questões que envolvem brasileiros e paraguaios, e ainda que há outros imigrantes que não são brasileiros nestes locais. Existe até mesmo de maneira bastante visível uma tendência conflituosa entre paraguaios e indígenas naquele país, o que mostra que as relações de poder não são uníssonas. Aparecem nesse contexto de disputas de terras as várias narrativas coletadas pelo autor como a visão de paraguaios, brasileiros, jornalistas, autoridades, professores, motoristas, diretores de escolas, entre outros profissionais e segmentos. Muitos deles pela perspectiva do autor buscam mostrar a origem do movimento migratório para o Paraguai na “oferta” que se dava no período ditatorial em ambos os países.

Atualmente e na visão do autor ele percebe as formas de resistência nestas relações de poder, bem como se ordenam os discursos políticos de políticos brasileiros no Paraguai, e de discursos políticos paraguaios, ou seja, as decisões se dão na maioria das vezes obedecendo a conjunturas políticas da atualidade, e propósitos políticos lo-cais, sempre atuando sobre forte pressão, um exemplo, é a aprovação da Lei de Segurança Nacional Fronteiriça, que antes era defendida sob o jugo da questão territorial e não era aprovada, no momento de sua aprovação ela foi defendida enquanto propósito da identidade e do nacionalismo. E mais atualmente a criação do Mercosul deu espaços de infiltração multinacional nessas mesmas áreas. Considero as percepções do autor excelentes ao remeter muitas dessas questões atuais a um passado memoria-lístico dramático nas relações dos dois países, ou seja, mesmo em momentos de “apa rente” tranqüilidade, a disputa é um ponto efervescente em qualquer discussão entre pessoas desses dois países, seja nos meios políticos, intelectuais especialmente de es-querda, e muito mais ainda entre proprietários e campesinos, isto é, se estabelece na percepção do autor uma disputa cotidiana no senso comum. E este aspecto mostra co-mo o autor se relaciona com seus interlocutores, bem como, a maneira como explora a literatura em relação ao método da História Oral.

A narração histórica da nação na fronteira ocorre por recortes sincrônicos, sem uma perspectiva linear, dilemas que remontam aos impérios metropolitanos, sem-do primeiro por questões religiosas – Jesuítas – depois por questões de enfrentamento – Guerra da Tríplice Aliança – e por último a influência geopolítica – proximidade territorial – entre Brasil e Paraguai.

O autor percebe um discurso atual no Paraguai que os leva a uma imagem negativa da presença dos brasileiros, como os coloniais Bandeirantes, esses discurso se fortalece com a monumentalização dos locais de memória, que para as “pessoas comuns” possui um valor simbólico importante. A visualização é propagada por bispos que exercem forte influência política, além de religiosa em alguns Departamentos, por outro lado, estes discursos sofrem resistências internas por parte da imprensa que muitas vezes defende os brasileiros que ali residem. Nota-se que as fronteiras imprecisas do século XVII, fazem com que religiosos até hoje se vejam como guardiões das fronteiras, como ocorria, por exemplo, com as reduções indígenas, o Paraguai atual-mente herda excessivamente esse discurso, de proteção espanhola, seja na Argentina guaranítica, e nas margens dos grandes rios dessas regiões. O Brasil traz consigo o es-tigma de imperialista e/ ou expansionista, como se apresentavam os Bandeirantes do Século VXII, contra os indígenas convocados pelos espanhóis para defender esse território.

Outros defendem o progresso que os brasileiros levam ao Paraguai, podemos perceber isso como uma luta simbólica, em que o brasileiro está em permanente avanço silencioso no outro país, na visão de segmentos de esquerda. Não se negou em mo-mento algum a ressignificação da memória que se herdou das duas batalhas – Tríplice Aliança, e Guerra do Chaco. Bem como, os marcos simbólicos de ambas que se juntam num mesmo sentimento nas experiências bélicas do passado, reforçando com isso o nacionalismo paraguaio. Pelo lado brasileiro essas experiências segundo o autor podem ser denotadas pelos escravos, ou seja, as questões bélicas funcionam como um espécie de calvário para o Paraguai. Terminam-se os combates, mas continuam as lu-tas simbólicas de heróis e traidores. O autor retoma e conduz muito bem o revisionismo historiográfico do pós-guerra no Paraguai, especialmente com Leon Pomer, Ju-lio José Chiavenatto, e Francisco Doratioto, sem deixar de lado outras abordagens so-bre a questão, como uma que se apresenta nos livros didáticos do Paraguai em que a figura de Solano Lopes não é aceita como herói pelos próprios paraguaios.

Nesse ínterim a figura de Stroessner não demora à aparecer como o “pa-triarca do progresso”, sendo ele o principal personagem da imigração brasileira para o Paraguai, essa questão durante anos personificou sua imagem com o auxílio das forças armadas, às vezes se compara à outros heróis do passado surgindo lado-a-lado com outros famosos personagens. Em 35 anos de ditadura ele apoiou a entrada de capital estrangeiro e de imigrantes com o “intuito” de desenvolver o país, uma ditadura personalista que viu desde a ascensão com a construção da Usina de Itaipu Binacional, até a decadência com o final das ditaduras na América do Sul. Mas para o povo para-guaio apenas em 2008 se rompeu com o Partido Político Colorado e os ideais de Stroessner com a eleição do bispo Fernando Lugo, nota-se uma espécie de nostalgia a Stroessner no Paraguai, que o autor denota como a necessidade de uma construção identitária forte e coletiva espelhada no General, especialmente para pessoas que viveram naquele período, bem como pelos imigrantes brasileiros que foram favorecidos pelo seu sistema de governo.

As lembranças dos momentos significativos servem para demarcar fronteiras políticas e culturais, e reafirmar identidades nacionais no confronto contemporâneo na zona fronteiriça […], as recordações do passado servem para reativar e alimentar os sentidos das lutas do presente” (p. 159). Percebe-se que de uma coletividade pode haver a reativação e intensificação dos ressentimentos, reafirmando inferioridades e superioridades nacionais.

O autor denota o “jogo” de representações que se configuram, nestas “fronteiras entre ‘nós’ e ‘eles’”, a partir de discursos classificatórios entre imigrantes brasileiros e os paraguaios, faz inclusive uma rememoração no tempo histórico na in-tenção de mostrar os caracteres do jogo identitário e de alteridade, desde o movimento migratório europeu para a América e em consequência para o Brasil e seus principais descendentes – italianos, alemães, portugueses, holandeses (…). Nesse sentido, muito do que é representado no Paraguai é o que se herdou desses discursos provindos da Europa, com ideologias prontas e que são reproduzidas no Paraguai, como por exemplo, a ideologia do trabalho, da limpeza, da organização, e a valorização dessa cultura considerada superior tanto por parcelas paraguaias, quanto por parcelas brasileiras. Esse ethos classificatório mostra na relação entre as pessoas dos dois países a gestação de preconceitos que também ganham força em outro tempo histórico – a Guerra da Tríplice Aliança no século XIX.

Tais analises valorativas mostradas por meio de suas fontes cria estigmas que provocam outras conseqüências, como as ondas nacionalistas nesses países e a construção de discursos de ambos os lados que fazem com que se generalizam aspectos culturais, sociais, agrícolas, econômicos, religiosos, entre outros, nos dois países. Esses aspectos estigmatizantes encontram teses que advém do período colonial, como já foi posto anteriormente. A relação de poder nessa construção de discursos encontra variá-veis que servem para denotar a realidade, ou para atender um objetivo atual ligado a questões políticas e de propriedade, o que o autor chama de figuração de poder, que está diretamente permeada nas relações de poder, momentos em que as construções das imagens são feitas, aparecendo geralmente o valorativo superior e inferior, isto é, é a produção das identidades que estão em disputa, em um meio bastante dinâmico que são os movimentos migratórios nas zonas fronteiriças e nesse contexto “todos” os fa-tores culturais estão atuantes.

Talvez a grande expectativa que o autor lançou e que é difícil de conferir em sua escrita clara e objetiva, é de como legitimar estes discursos, por se tratar, como ele mesmo afirma, de realidades heterogêneas, e de representações homogêneas, para isso o esforço do autor é interessante, pois a percepção desses discursos classificatórios neste contexto fronteiriço é um jogo de expressões que de certa forma explicam tais expectativas como disputas simbólicas, em que se percebe as resistências, as imposições, as micro relações sociais, as tensões culturais e especialmente como isso “tudo” é res-significado pelas pessoas, isso quer dizer “os termos estão em permanente mudança de sentido e são ativados conforme as relações conflituosas que se estabelecem no cenário das relações interculturais” (p. 191). As relações discursivas muitas vezes são produzidas pela imagem do espelho do ‘outro’, e este ‘outro’ não pode ser generalizado, seja em seu espaço, tempo, ou história. Enfim o que denota-se aqui é um Brasil com aspectos supe-riores, e um Paraguai inferiorizado.

Acredito que as identidades fronteiriças é o cerne da pesquisa do autor, o entrelaçamento das propostas que discute no decorrer do livro, é resultado de uma extensa pesquisa. Consolidar identidades a meu ver é impossível, em um ambiente fronteiriço e que envolvem práticas culturais discrepantes, e a latente sociabilidade co-mo percebe-se na coexistência entre brasileiros, paraguaios, e Brasiguaios, isso se torna ainda mais complexo, pois não existem construções/produções/processos humanos eternos, e a identidade faz parte desse jugo em meio as expressões e dos discursos pro-duzidos e que alimentam essas práticas e o seu cotidiano; como ocorre com a im-prensa, intelectuais, políticos, empresários, religiosos, camponeses, campesinos, entre outros grupos, sejam eles grupos étnicos, nacionais, de proprietários, comunidades, etc.

Percebe-se que são os vários conflitos de ordem objetiva e subjetiva que demonstram a complexidade da pesquisa, ao observar a tentativa de construção indentitária como algo que não age sem a resistência de grupos, comunidades, nações, etnias, ou seja, as relações de poder que o autor inúmeras vezes aborda é uma complexa rede de simbologias e concretudes que não se auto explicam, muito pelo comtrário servem para legitimar perspectivas despreparadas que não percebem a ambiva-lência que está alocada nos dois lados desses países, isto é, o olhar bilateral do autor nos leva a ver que a noção de cidadania se conquista e se perde ao longo do processo histórico que existe enquanto ocorrência histórica entre Brasil e Paraguai, e posterior-mente com os Brasiguaios. Uma história que tem genealogia próxima de meio século de ocorrência e que sofre interferências desde o século XVII, até a atualidade.

As práticas culturais que fazem parte da convivência de brasileiros e paraguaios considerados “puros” são claras, como por exemplo, a música, o tererê, o idio-ma, a moeda, as escolas, as famílias […]. Tais práticas corroboram na hibridação desse novo grupo e dos considerados “puros” como um processo inacabado. Por último concordo com a abrangência maior que o autor dá ao termo Brasiguaio, algo que já de-fendi em outros estudos, isso quer dizer que a compreensão em torno do que é ser brasiguaio é independente do entendimento desse grupo, como sentido de etnicidade; quero pensar que muitos estudos auxiliam a pensar esta perspectiva enquanto escolha teórica e metodológica em relação ao tema, mas que não dá conta da totalidade que representa a formação do grupo, bem como a sua manutenção no tempo presente, sem, todavia deixar de reconhecer a importância de outras abordagens, no ambiente fronteiriço, especialmente entre os conflitos harmoniosos ou de tensões que o Brasil mantem com os países vizinhos na América do Sul.

As hipóteses de futuras e prováveis pesquisas que o autor levanta no final do livro são riquíssimas, justamente por que não se pode cair em perspectivas generalizantes em relação às fronteiras e aos países e suas gentes que circundam o Brasil. Ou seja, cada caso possui suas especificidades. Acredito que a mobilidade do autor em re-lação às diferentes “correntes” de pensamento, seja na Sociologia, na Antropologia, na Geografia e na História, é importante para a que a obra não sofra classificações teóricas e metodológicas, quero dizer que a preocupação em abordar diferentes perspectivas como a pós-modernidade, o marxismo, a história do tempo presente, a história oral, a imprensa, entre outras sintetiza para o leitor não especialista no assunto uma realidade complexa da fronteira e que pode ser compreendida por meio das fontes trabalhadas, independente das questões simétricas ou assimétricas sobre a identidade. Esta resenha não substitui a leitura integral do livro, tem como objetivo, estabelecer pontos de reflexões e de abordagens que a pesquisa do autor denota.

Leandro Baller – Universidade Federal Mato Grosso do Sul. Centro de Ciências Humanas e Sociais Campus de Nova Andradina, Cidade Universitária Rodovia MS 134 Km 3. CEP 79750-000. Nova Andradina – MS – Brasil. E-mail: [email protected].

Autos and Progress: The Brasilian Search for Modernity – WOLFE (RTF)

WOLFE, Joel. Autos and Progress: The Brasilian Search for Modernity. New York: Oxford University Press, 2010, 269 p. Resenha de: FRANCO, Gilmara Yoshihara. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 2, jul.-dez., 2012.

Os resultados da pesquisa que Joel Wolfe, professor da University of Massa-chusetts, apresenta no seu mais recente livro, Autos and Progress: The Brasilian Search for Modernity demonstram a análise de um objeto ainda pouco estudado no Brasil: os carros. A originalidade da narrativa é o fato de que ela se debruça sobre a análise do pro-cesso de modernização brasileira através de um produto de consumo. Nesse sentido, o autor vai na contramão dos estudos que partiram do café como sendo a grande fonte geradora de riqueza e que deu início à modernização no Brasil, focando o carro- e não o café- como elemento propulsor da modernização no país. Ao longo do texto, Wolfe traça um panorama da relação que os brasileiros desenvolveram com o universo automobilístico no decorrer do século XX e os significados dessa relação para a modernização do país.

A intenção de Wolfe é demonstrar que, embora tenham surgido como verdadeira “panaceia”, causando inclusive espanto e curiosidade logo que desembarcaram no Brasil, no início do século passado, os carros propiciaram a formação de uma rede de comunicação, ligando as maiores cidades do país, situadas em sua grande maioria próximas ao litoral, ao interior tido como “incivilizado”, ou seja: a opção pelo carro como meio de transporte implementou um grandioso sistema de estradas de rodagem e contribuiu para conectar os grandes centros urbanos com áreas que, em geral, eram de difícil acesso e que não dispunham de um meio de transporte rápido e eficaz como as ferrovias

O argumento central de Wolfe é de que a chegada dos carros, a instalação de fábricas de automóveis no Brasil, a adoção do sistema de transporte rodoviário em detrimento ao ferroviário e, posteriormente, a criação de novos postos de trabalho que consolidaram uma categoria bem remunerada e socialmente atuante, ligada ao auto-mobilismo, propiciaram debates sobre a necessidade de unificar fisicamente a nação e imprimiu um novo caminho ao processo de modernização no Brasil ao longo do último século.

Embora o início do texto careça de uma análise mais profunda acerca das questões políticas presentes na virada no século XIX para XX, momento de implementa-ção da República no Brasil, em que os republicanos projetavam alternativas para o sistema de transportes do país, o autor faz uma caracterização bastante interessante da atmosfera urbana nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo quando da chegada dos primeiros automóveis em solo brasileiro. No primeiro capítulo aponta, por exemplo, a chegada do primeiro automóvel ao Brasil, importado por Alberto Santos Dumont e o impacto que a novidade causou na população que olhou deslumbrada para aquela nova tecnologia.

Os carros eram, naquele momento, objeto de luxo, importados por membros da elite que amealhou fortuna com o plantio de café e com a nascente indústria. Se inicialmente causaram espanto na população, logo deixaram de ser “exóticos” e passaram a compor a paisagem urbana, assinala o autor.

A divulgação do produto que era o sonho de consumo da elite, ainda nas primeiras décadas do século XX, ocasionou o surgimento de revistas como a Auto-Propulsão, Auto-Sport, Revista de Automóveis. A badalada revista Fon-Fon! também noti-ciava, costumeiramente, matérias sobre o estilo moderno que os carros inspiravam ao desfilar pela ruas de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Entre os mais destaca-dos escritores, como João do Rio e Olavo Bilac, a adesão àquele produto que simbolizava a modernidade foi inconteste.

De acordo, ainda, com Joel Wolfe, essas novas tecnologias moldaram não apenas o imaginário brasileiro, mas ampliou a possibilidade de comunicação entre as mais distantes regiões. Automobilismo tornou-se muito mais do que um interesse em carros e condução, tornou-se também um conjunto de ideias sobre o futuro do Brasil.

Além de um novo segmento de mídia, ao longo das décadas de 1910 e 1920, o aumento crescente de automóveis, especialmente o Ford T, mobilizou proprietários para formação de associações como o Automóvel Clube do Brasil, propiciou o surgi-mento de novos personagens no mercado de trabalho como mecânicos e chauferes, impulsionou a extração de matéria prima como o látex, da região norte do Brasil, utiliza-do na fabricação de componentes dos carros, como a fabricação de pneus. Em pouco tempo, o mercado brasileiro chamou a atenção de montadoras como a Ford.

Todavia, o processo de consolidação do carro como meio efetivo de transporte não foi necessariamente fácil. Joel Wolfe destaca a situação do sistema viário brasileiro do início do século XX e nota que a maioria das estradas remontava ao tempo das antigas Entradas. Em outras palavras, segundo o autor, para consolidar o automóvel como ferramenta de comunicação e transporte seria necessário implementar um siste-ma viário que desse o suporte para o tráfego de carros.

Analisando a construção das primeiras estradas de rodagem, Wolfe se centra menos nas atitudes políticas e atém-se mais detidamente nas ações realizadas pelos entusiastas e negociantes que apostavam no carro como uma alternativa para o sistema de transporte e para a integração da nação. A crença, segundo Wolfe, era que “a unificação nacional poderia, não só impulsionar o desenvolvimento econômico aumentando significativamente o mercado interno, mas também diminuir a probabilidade de um conflito entre comunidades rurais e urbanas” (p. 34/35).

Os dois primeiros capítulos demonstram que a tarefa de promover o debate pa-ra difundir o uso dos carros mobilizou a ação de membros dos Automóveis Clubes, sediados nas principais capitais do Brasil. Essas associações promoveram exposições de carros, inicialmente em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre e, posteriormente, em outras regiões do país. A propaganda automobilística era destaque também em face da realização de incursões e disputas entre motoristas que se aventuravam, desbravando caminhos que, posteriormente, tornaram-se estradas conhecidas, como a Rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Esses raids eram amplamente noticiados pela imprensa e os leitores que acompanhavam as aventuras pelos jornais acabavam sendo conquistados pela magia provocada pelo “ronco” dos motores.

A instalação da primeira linha de montagem da Ford no Brasil, ainda na década de 1920, e o uso cada vez mais comum dos caminhões para o transporte de cargas e mercadorias contribuíram para transformar a imagem do carro de objeto de luxo para meio de transporte, assinala o autor. Ele nota ainda que o crescente entusiasmo dos brasileiros com a instalação de um sistema viário, capaz de ligar as mais diversas regi-ões do país, acabou se traduzindo no slogan “governar é construir estradas”, utilizado pelo candidato a presidente da República, Washington Luís, eleito em 1926.

Para Wolfe, gradativamente os brasileiros adotaram aspectos do fordismo e do americanismo, ressignificando-os ao sabor de suas intenções. “Abraçar essas ideias foi parte e parcela do projeto modernista de construção da nação. Brasileiros pegaram os componentes da cultura do Fordismo e Americanismo que eles acreditavam que melhor servia para suas necessidades” (p. 59).

Tais ideias também se traduziram na iniciativa feita por Henri Ford, a partir de concessão do governo do Pará na década de 1920. Com objetivo de extrair látex para fabricação de borracha, Ford criou a cidade de Fordilândia e, posteriormente, Belterra, estabelecendo no cotidiano dessas localidades os princípios fordistas. Embora as cida-des não tenham prosperado, o texto nos permite inferir que a iniciativa de sua criação demonstra o fascínio que a modernidade, representada por esses conceitos, exercia sobre a elite brasileira.

Do quarto capítulo em diante, Wolfe se concentra na ação empreendida pelo governo federal para tornar o sistema de transporte brasileiro viável e analisa os desdobramentos sociopolíticos e econômicos desse processo. Nesse aspecto, destaca o papel desempenhado por Getúlio Vargas, qualificando-o como um político modernista, observando que Vargas “sempre manteve o foco na unificação do Brasil e fomentou um amplo senso de nacionalismo” (p.91). Naquele contexto, a chamada Marcha para Oeste, que tinha como objetivo “ocupar” as regiões interiores do Brasil, era também uma fon-te para a ampliação do uso dos carros e aumento de estradas para conectar o país.

Dentre as ações realizadas ao longo da chamada Era Vargas, com a finalidade de expandir o sistema de transportes, o autor enumera: 1) a criação de setores específicos para cuidar da questão viária brasileira, como o Departamento Nacional de Estra-da de Rodagem, em 1937; 2) o incentivo ao turismo interno através das novas estra-das, com a divulgação de hotéis, restaurantes e guias de viagem. Com essa ação, o autor destaca a intenção do governo Vargas em valorizar cidades históricas como Ou-ro Preto, que a tornou “monumento nacional” em 1933, com a finalidade de chamar a atenção dos mais abastados para opções de férias dentro do Brasil; 3) o fomento de atividades esportivas como o futebol e, em especial, as corridas de carros que mobilizavam a imprensa e angariavam mais adeptos para o universo automobilístico; 4) a aprovação do Código Nacional de Trânsito, em 1941, o qual, em virtude do aumento da frota brasileira e dos acidentes que desde os primeiros tempos produziam vítimas por todo o país, regulamentava o tráfego colocando fim ao vazio legal que, nesse as-pecto, ainda existia em muitas localidades.

Joel Wolfe aponta também que durante o governo Vargas a indústria automobilística brasileira alçou um novo patamar, especialmente quando Brasil entrou na Se-gunda Guerra Mundial ao lado dos Estados Unidos. Segundo o autor, as criações da Fábrica Nacional de Motores e da Companhia Siderúrgica Nacional possibilitaram instituir as bases para a ampliação do parque industrial brasileiro. Naquele ambiente, iniciaram-se também os debates acerca da necessidade de buscar reservas nacionais de petróleo que pudessem suprir o mercado interno.

A produção de aço pela Companhia Siderúrgica Nacional satisfazia a demanda interna por essa matéria prima e ainda propiciava as bases para uma futura ampliação do parque industrial brasileiro. O autor assinala ainda que a forma como o governo federal organizou as condições de vida dos trabalhadores, fornecendo-lhes moradias subsidiadas, serviços de saúde, lazer e escolas públicas de qualidade, retomava os conceitos sociais do fordismo aplicados anteriormente em Fordilândia e Belterra.

Para Wolfe, embora não tenham conseguido atingir o objetivo inicial, todas as ações implementadas no governo de Getúlio Vargas denotam aspectos de uma política de unificação nacional que tinha como um dos pontos centrais a utilização de um sis-tema que comunicação que se apoiava na indústria automotiva.

Em seguida, o texto percorre os anos do governo Juscelino Kubitschek. Para Wolfe, nesse período, o automobilismo continuou sendo uma alavanca para o progresso. De acordo com as palavras do autor: em seus cinco anos de mandato (1956-1961), Kubitschek supervisionou a criação de uma indústria automobilística nacional através da entrada ampla de investimento estrangeiro, a construção de estradas que ligavam regiões distantes e a construção de Brasília (…) (p. 113).

Nesse processo, o autor considera que instalação de montadoras como a Willys-Overland do Brasil e, posteriormente, Ford e Chevrolet, contribuiu para ampliar e consolidar um segmento de trabalhadores que, graças às condições oferecidas pelos postos nessas fábricas, puderam ascender socialmente – seja comprando seus próprios carros e/ou financiando suas casas – ter acesso à educação formal, necessária para manusear máquinas e realizar outros tipos de trabalhos que esse segmento da indústria exigia. Para muitos desses trabalhadores, que migraram especialmente da região Nordeste para São Paulo, onde se concentravam algumas dessas montadoras, a conquista dos benefícios advindos de seus postos de trabalho, favoreceu e estimulou o desenvolvimento de suas cidadanias.

Para Wolfe, a política de JK tinha, finalmente, conseguiu aliar “ordem e progresso”. A mudança da capital para Brasília, a construção de novas estradas, a ampliação de parque industrial brasileiro e o aumento dos postos de trabalhos eram o sinal claro de um processo de modernização apoiado na indústria automobilística. Todavia, o autor não considera que, junto com o progresso, a carroceria dos “caminhões” trans-portava também auto custo para a economia brasileira que representou o projeto desenvolvimentista implementado por Kubitschek.

Na última parte do livro, Joel Wolfe traça a complexa relação entre a opção pelo sistema de integração nacional através dos automóveis e a realidade sociopolítica e econômica do Brasil de meados da década de 1960 até o fim da ditadura militar em 1985.

Para o autor, a atmosfera de otimismo, a crença de que os automóveis constituíam um símbolo de modernidade e que poderiam impulsionar o crescimento nacional contrastam com o cenário que se instalou no Brasil a partir da eleição de Jânio Quadros. Para tanto, ele analisa como foi contraditória e complexa a relação entre carros e progresso, apontando as conquistas e as consequências resultantes do caminho que a sociedade brasileira escolheu para a modernização.

A complexidade dessa relação pode ser visualizada, de modo bastante claro, durante o governo militar (1964 – 1985). Naquele período, o governo deu uma nova roupagem ao desenvolvimentismo dos anos JK e investiu na ampliação da infraestrutura nacional como forma de solução para os problemas internos. Nesse sentido, Wol-fe analisa que uma das apostas dos militares foi a ampliação da malha viária brasileira. O principal investimento se traduziu na construção da Transamazônica. Aliado aos trabalhos da abertura dessa rodovia, o governo militar também criou assentamentos rurais através do Programa de Integração Nacional (PIN) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), visando: 1) ocupar os “espaços vazios” da região norte; 2) reduzir o drama social provocado pela seca do Nordeste e, de quebra, aumentar a produção interna de alimentos; 3) mitigar os índices de inflação que incomodava a classe média nos grandes centros; 4) diminuir a migração para cidades de grande porte e, consequentemente, o aumento da favelização nos espaços urbanos e; 5) afastar a ameaça de agitações por parte dos trabalhadores sem terra.

As medidas adotadas pelo militares, segundo Wolfe, embora tenham ampliado a malha viária brasileira, não trouxeram os benefícios sociais inicialmente imaginados pelo staff do regime. Ao contrário, a falta de compreensão da realidade social brasileira por parte dos tecnocratas militares agravou o crescente fluxo de migração para as grandes cidades e gerou consequência, tais como: crescimento desordenado dos espaços urbanos; maior dependência de carros de passeio, ônibus e caminhões; proletarização social, aumento dos números de acidente de trânsito, desemprego e crescimento dos índices de criminalidade.

O autor analisa também as mudanças da conjuntura social e econômica verificadas tanto em âmbito mundial como no cenário nacional, a partir da década de 1970. As consequências da crescente globalização da economia e da crise do petróleo em 1973, por exemplo, impuseram novas posturas à indústria automotiva. Enquanto esse segmento buscava modernizar a produção e ampliar mercados, no Brasil testava-se o álcool como solução para uma eventual escassez de combustíveis. De outro lado, o endurecimento do regime e o agravamento das condições de vida dos trabalhadores fomentavam greves do setor automotivo; manifestações que pediam a volta da democracia e contestavam o status quo da política nacional. Aquele cenário turbulento culminou com o surgimento do PT – Partido dos Trabalhadores, cuja base era composta, em sua maioria, por trabalhadores vinculados ao setor automotivo.

Naquele período, além de se ocuparem com os problemas internos, com o pro-cesso não menos tumultuado de Abertura política, que culminou com a eleição do metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva para presidente do Brasil, as páginas de jornal e os noticiários de televisão divulgavam a atuação de esportistas como Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Airton Senna que contribuíam para, ao cabo de cada corrida, aumentar a paixão dos brasileiros pelos carros.

Por fim, conclui Joel Wolfe, os resultados da opção pela integração nacional através dos carros e a busca do Brasil pela modernidade, não foram “nem um triunfo total nem uma perfeita tragédia”. Ao contrário, foi um esforço, uma busca para fazer dos muitos brasis uma “única” e moderna nação.

O livro de Joel Wolfe é significativamente original. Indispensável para pensar o Brasil do século XX; nossas concepções de modernidade e os caminhos que trilhamos para atingi-la.

Gilmara Yoshihara Franco – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/FRANCA Correspondência: Programa de Pós-Graduação em História Av. Eufrásia Monteiro Petraglia, 900 – Jd. Antonio Petraglia – CEP: 14409-160 Franca/SP E-mail: [email protected].

A invenção do Nordeste e outras artes – ALBUQUERQUE JÚNIOR (RTF)

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009. 340 p. Resenha de: MARTINELLO, André Souza. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.

O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido.” Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1999, p.307).

No ano de 2009 tivemos uma década da publicação da tese de doutoramento em História, defendida por Durval Muniz de Albuquerque Junior na Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP. Torna-se oportuno trazer novamente ao debate algumas abordagens e temáticas lançadas pelo autor, na obra intitulada: “A Invenção do Nordeste e outras artes”. Como registra a primeira edição do livro, o historiador recebeu com essa pesquisa, no concurso promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, a classificação de melhor trabalho de História no Concurso Nelson Chaves de Teses sobre o Norte e Nordeste brasileiro, no ano de 1996. Nesses últimos dez anos, desde a publicação da premiada pesquisa, Durval tem se tornado autor cada vez mais conhecido e se destacado no campo da historiografia brasileira e das ciências humanas de maneira geral; entre suas obras mais recentes, uma aborda a pesquisa, a escrita e as teorias da História, “História: arte de inventar o passado”, publicado pela Edusc (em 2007)1 e um livro da série “Preconceitos” da Cortez editora: “O preconceito contra a origem geográfica e de lugar.” (2007)2 De maneira geral, pode-se dizer que Durval tem-se preocupado com temas que envolvam o pensamento e a utilização das reflexões de Michel Foucault, por vezes relacionada à escrita da História, e também outra temática de seus textos está no que poderia ser denominado de História dos Espaços. Além de fazer parte do corpo docente do Departamento de um Programa de Pós-Graduação concentrado na abordagem “História e Espaço” na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Durval vem realizando pesquisas e publicando trabalhos articulando literatura, (crítica à) identidade regional, discursos constitutivos de espaços, regionalismos e vínculos territoriais, como fez, por exemplo, no Encontro Nacional de História-ANPUH realizado em 2007, na conferência intitulada: “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”.3 Leitor assíduo (e conhecedor) da literatura brasileira, em “A invenção do Nordeste”, Durval se lança a compreensão de como ao longo do tempo, obras e diferentes autores, de épocas e escolas diversas, descreveram o Nordeste brasileiro e inscreveram essa região no país. Mas a literatura que Durval se utiliza como fonte, não é apenas aquela entendida como “ficcional”, como romances ou novelas, mas inclui textos (sociológicos) de Gilberto Freyre, por exemplo. Quais formas, nomeações e descrições constituíram o Nordeste brasileiro? Passando por João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Quiroz; e “outras artes”, subtítulo do livro, também são utilizadas por Durval, com intenção de apontar em um conjunto diverso de massa documental como se identificaram determinadas representações no e do nordeste, seja literatura ou não. Luiz Gonzaga, Candido Portinari, Glauber Rocha, Di Cavalcanti, Dorival Caymmi, José Lins do Rego, Josué de Castro, Luis da Camara Cascudo e Euclides da Cunha.

O que há em comum nesse conjunto tão variado de personagens descritos nesse livro está justamente, na forma peculiar com que cada um realizou suas obras, de maneira a constituir (e inventar) a nordestinização de uma parte do Brasil, como um espaço Outro em relação ao centro-sul, centro-oeste ou norte do país: p.311) “[…] o Nordeste quase sempre não é o Nordeste tal como ele é, mas é o Nordeste tal como foi nordestinizado.” A idéia principal presente no livro, parece apontar a constituição do nordeste enquanto espaço da negação, o Outro do sul maravilha que se construía em alteridade e paralelo, cada vez colocado mais distante do sul. É como se ao longo do tempo tivesse ocorrido um constante e profundo afastamento das regiões nordeste e sul, afastamento que foi se constituindo por diversos olhares, interpretações e sentidos.

Vários apelos e constatações de artistas, escritores, nordestinos e intelectuais do país, formaram uma geografia do nordeste; justifica Durval da sua opção em abordar algumas fontes por ele eleita como vozes privilegiadas e edificadoras de determinados espaços e características como sendo nordestinas. A busca por uma distinção por parte do sul, em relação ao nordeste, também contribuiu na invenção desse último. p.307) “O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste.” Linguagens constituíram uma forma espacial de sentidos e de uma comunidade imaginada, (p.23) as diversas formas de comunicação, cinema, literatura, teatro, pintura, música, produção acadêmica, poesia são exemplos de linguagens que não apenas representam o real, como instituem o mesmo. Enquanto alguns propuseram fórmulas de alterações das realidades sócio-ambientais nordestinas, para resgatá-las de certa condição de atraso ou subdesenvolvimento, outros cantavam a tristeza da seca e suas conseqüências, como a partida dessa região sofrida. Para quem emigrou, o nordeste torna-se um espaço da saudade, com embalo de muitas melodias, poesias, danças e tradições inventadas para o constantemente lembrar o que é ser nordestino.

Poesias tratavam de registrar a sensação de ter de migrar forçosamente em direção a outros espaços, o exterior, o longínquo, o fora dali; já no cinema e na pintura, pensava-se estar documentando a realidade das condições de retirantes, da natureza agreste, tórrida e cada vez mais inabitável ou desumana. Todos, diz o autor, construíram argumentação que levou a nordestinização de um espaço que está pretensamente localizado ao nordeste de um Outro. Se há uma referência como sendo a central, torna-se assim viável a visualização de um nordeste. Ou seja, a constituição, ao longo de mais de duzentos anos, do nordeste e dos nordestinos (o espaço como gente), foram vistos e caracterizados como um problema: (p.20) “O que podemos encontrar de comum entre todos os discursos, vozes e imagens […] é a estratégia da estereotipização.” As artes que mapearam ou apresentavam o nordeste como temática, tornaramse monumentos que atuaram na constante alimentação de imagens que nos chegam até aos nossos dias, como tradutoras e representantes do nordeste e de uma identidade de nordestino, seja ela física (corporal), lingüística (sotaque, expressões), econômica, moral e social. Há um conjunto variado de categorias e formas, nas quais se tornam possíveis encontrar e apontar características de nordestinos e do espaço desse povo, e isso pode ser observado nos diferentes produtores de sentidos que Durval traz em cena para falar dessa região ou criá-la como uma região, no sentido de ser homogênea, ter uma mesma identidade, uma mesma história e expressar uma única cultura, por isso, é que o autor afirma que se trata de uma invenção, entre outras, pela criação de uma imagem homogênea de uma parte do Brasil.

Não devemos esquecer também que anteriormente a essa obra de Durval, a doutora em Ciência Política, Iná Elias de Castro, havia apontado, analisando, entre outras documentações, discursos de políticos eleitos e representantes de Estados do nordeste no Congresso Nacional, entre 1946 e 1985, o processo de construção e cristalização do Nordeste como em posição de constante necessidade, frente às demais regiões do país. Inclusive, muitas das críticas e questões levantadas por Durval, já haviam sido lançadas por Iná de Castro em 1992 na obra “O Mito da Necessidade.

Discursos e práticas do regionalismo nordestino”,4 o que sugere possíveis (e quem sabe, interessantes) possibilidades de comparação entre a tese defendida na História por Durval e na Ciência Política por Iná. É claro que utilizando fontes e documentação diferentes, por si própria, já nos sugerem resultados não propriamente semelhantes, somado a isso à perspectiva disciplinares e o referencial teórico diferente mobilizado por ambos. Iná também buscou dialogar com aspectos e obras sobre regionalismos, e Durval deixa claro que sua intenção está mais por se afastar dessa temática e aproximar sua análise a instituições e construções de identidades. É claro que ainda há outras possibilidades de comparação, utilização e iniciação do debate das críticas presentes sobre interpretações do nordeste brasileiro. Principalmente quando se publica recentemente, novas re-edições do livro “A Invenção do Nordeste”.

1 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru (SP): Edusc, 2007.

2 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.

3 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”. Conferência realizada XXIV Simpósio Nacional de História – ANPUH, História e Multidisciplinariedade: territórios e deslocamentos, julho 2007. Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/otempo ovento o evento.pdf.

André Souza Martinello – Universidade Federal de Santa Catarina.

Territórios & Fronteiras | UFMT | 2008

Territorios e Fronteiras3 Golpe midiático-civil-militar

A Revista Territórios e Fronteiras (Cuiabá, 2008-) publica artigos, resenhas, entrevistas, dossiês e edições críticas de documentos relacionados, preferencialmente, à disciplina da História e aos temas associados à constituição de territórios e fronteiras na história, em suas diferentes formas, realidades e dimensões. Administrada e apoiada financeiramente pelo Programa de Pós-graduação em História da UFMT, cuja área de concentração é “História, Territórios e Fronteiras”, a revista tem por meta constituir um espaço de debates e de divulgação da produção científica vinculada a esses temas. O periódico também recebe contribuições interdisciplinares e ligadas a áreas afins, a exemplo da Sociologia, Antropologia, Educação, Geografia, Ciência Política, Relações Internacionais etc.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 1984-9036

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