Conexões mediterrâneas: Oriente e Ocidente através da História, Literatura e Arqueologia / Hélade / 2019

O estudo das conexões mediterrânicas e as humanidades

Os estudos sobre as conexões mediterrânicas trazem um histórico de pesquisas desde os anos 80 do século passado, nos quais historiadores, arqueólogos, antropólogos, geógrafos e literatos passaram a observar com mais acuidade e criticidade modelos que enfatizam o caráter estático e limitante de culturas passando a realçar de maneira mais aguda a fluidez e conectividade dos povos, pensando o tempo presente e a Antiguidade. Já na primeira metade do século XX, mais intensamente nas últimas décadas deste século e primeiras décadas do século XXI, críticas foram e são feitas aos modelos de entendimento sobre conectividade, muitas delas pautadas em uma perspectiva eurocentrista e nacionalista. Tais modelos negligenciavam a força e prevalência do local em detrimento ao destaque dado ao ‘global’, observados na perspectiva econômica de centro-periferia, perspectiva esta inserida no conceito de sistema-mundo, com suas bases no conceito de economia-mundo, criado por Braudel (1949) e desenvolvido por Wallerstein (1974, 1980, 1989), Arrighi (1994) e Amin (1974), com bases anticolonialistas.

Destacamos ainda o estudo de Price (2012) onde afirma que existem dois tipos de cultos nas províncias romanas: os cultos étnicos e os cultos eletivos. Estes últimos, responsáveis por uma maior interação e circulação cultural das divindades. De acordo com o autor, os cultos eletivos eram, em sua grande maioria cultos estrangeiros, e necessitavam, assim, da criação de novos grupos de adoradores nos locais onde estes residiam. Dessa forma, os cultos se movimentavam, circulavam assim como as pessoas, assim como as ideias (PRICE, 2012, p. 7-8). Novas reflexões trouxeram à tona novas compreensões sobre as manifestações culturais, políticas e religiosas que giravam em torno de um Mediterrâneo fluido, atemporal, e fortaleceram a necessidade de encontrar categorias analíticas mais precisas. É sabido hoje o quão importante é reconhecer a necessidade em se respeitar as singularidades dos povos – o que podemos chamar de pesquisas sobre localismo – em meio a natureza global das relações políticas e econômicas e suas repercussões cultural, social e religiosa intragrupos.

Outro estudo de fundamental importância foi realizado por Polanyi (1944), porque apresentava ao mundo uma perspectiva antropológica inovadora às reflexões sobre a economia dos povos antigos. Mais adiante, Braudel revolucionou os estudos sobre a economia e cultura mediterrânica ao abranger o mundo natural e a vida material, economia, demografia, política e diplomacia vivida no Mediterrâneo da segunda metade do século XVI. Renfrew e Cherry (1986) desenvolvem na arqueologia o conceito de Peer Polity Interaction para explicar as mudanças na sociedade e na cultura material. De acordo com este modelo, resumidamente, havia três tipos principais de interação: competição, incluindo guerra e emulação competitiva; ‘transmissão simbólica’, em que as sociedades absorveriam sistemas simbólicos de seus vizinhos, como sistemas numéricos, estruturas sociais e crenças religiosas, porque preenchiam um nicho vazio em sua sociedade; e, por fim, a ‘transmissão de inovação’, onde a tecnologia se espalharia pelo comércio, doações e outras formas de troca.

Em vista dos recursos teóricos que estes célebres e basilares autores nos legaram, este dossiê Conexões mediterrânicas: Oriente e Ocidente através da História, Literatura e Arqueologia pretende apresentar ao leitor as questões concernentes às conectividades entre os povos que habitaram os litorais Leste e Oeste do Mediterrâneo. Oito artigos, uma entrevista com Hans Beck, professor da Universidade de Münster, Alemanha, e um posfácio redigido por Tamar Hodos, professora da Universidade Bristol, Inglaterra, compõem este dossiê. Estes buscam refletir sobre esta intricada rede de relações comerciais, políticas e religiosas existentes nas cidades que circundavam o Mediterrâneo e naquelas que adentravam rumo ao interior, com discussões conceituais e estudos de caso com grande qualidade e profundidade.

Assim como os navegantes, os bens materiais e as ideias que singraram este ‘cimento líquido’ – usando o termo cunhado por Gras (1998, p. 7) – os pesquisadores, ao longo dos séculos XX e XXI vem singrando os conceitos que circundam este imenso mar e os povos que por ele passavam e dependiam. Acreditamos que as contribuições de nossos autores façam com que o leitor navegue conosco neste mar de reflexões, e se encante com as proposições e interações recíprocas sugeridas.

Boa leitura!

Referências

AMIN, S. Accumulation on a World Scale: A Critique of the Theory of Underdevelopment. Nova York: Monthly Review Press, 1974.

ARRIGHI, G. The Long Twentieth Century: Money, Power, and the Origins of Our Times. New York: Verso, 1994.

BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin. 1949.

GRAS, M. O Mediterrâneo Arcaico. Lisboa: Ed. Teorema, 1998 (1995).

POLANYI, K. The Great Transformation. Foreword by Robert M. MacIver. New York: Farrar & Rinehart. 1944.

PRICE, S. Religious Mobility in the Roman Empire. The Journal of Roman Studies. Vol. 102, 2012, pp. 1-19

RENFREW, C.; CHERRY, J. F. (Eds.): Peer Polity Interaction and Socio-Political Change. Cambridge University Press, Cambridge, 1986.

WALLERSTEIN, I. The Modern World-System, Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York / London: Academic Press. Vol. 1, Vol. 2 e Vol. 3, 1974, 1980 e 1989.

Juliana Figueira da Hora – Pesquisadora de pós-doutorado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), doutora e Mestre em Arqueologia pela mesma instituição. Professora do Mestrado Interdisciplinar da Universidade Santo Amaro (UNISA) e membro pesquisador do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (LABECA). Para consultar demais publicações da autora: https: / / usp-br.academia.edu / JulianaHora. E-mail: [email protected]

Maria Aparecida de Oliveira Silva – Doutora em História Social (2007) pela Universidade de São Paulo, com estágios na École française de Rome (PDEE / CAPES) e na Universidade Nova de Lisboa (FAPESP). Pós-Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (2010) e em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2012). Pesquisadora do Grupo Heródoto / Unifesp, do Grupo de Pesquisa em Práticas Mortuárias no Mediterrâneo Antigo (Taphos / USP). Professora Orientadora Ad-hoc do PPGH / UnB e líder do Grupo CNPq LABHAN / UFPI. Para consultar demais publicações da autora: https: / / independent.academia.edu / MariaAparecidadeOliveiraSilva. E-mail: [email protected]

Vagner Carvalheiro Porto – Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. É Co-coordenador do LARP, Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (USP) no qual desenvolve pesquisa docente sobre as províncias romanas da Síria-Palestina e da Península Ibérica. É Coordenador do Grupo de Pesquisas CNPq-ARISE – Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas. Para consultar demais publicações do autor: https: / / usp-br1.academia.edu / VagnerCarvalheiroPorto. E-mail: [email protected]


HORA, Juliana Figueira da; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira; PORTO, Vagner Carvalheiro. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]

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