Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette – ALVES (Tempo)

ALVES, Rubem. Variações sobre o prazerSanto Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette.  São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. 188 p. Resenha de: COSTA, Tati. Livro para saborear: método científico regado a sensibilidades. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.

Pelo que sei, só existe um lugar, no universo inteiro,
onde o puro pensamento é capaz de mover
a matéria. Esse lugar é o corpo. No corpo, a gente
pensa na moqueca e a boca fica cheia d’água. (p. 144)

Resenhar obra de Rubem Alves é saboroso desafio pela qualidade de sua escrita e erudição de seus conhecimentos. Resenhar, com objetivo de circulação acadêmica orientada ao conhecimento histórico, é como acrescentar pitada de pimenta ao desafio. Porque a experiência de vida narrada pelo autor, então aos 77 anos, carrega uma provocação ao fato de que ambientes educacionais, acadêmicos e científicos ignoram o aspecto sensível do conhecimento e as dimensões do amor, prazer, desejo e alegria. Felizmente, nas ciências humanas, algumas experiências com história do tempo presente têm se dedicado a desafios semelhantes. Por exemplo, já se trilha com sabedoria a história das sensibilidades; já se trabalha, há algum tempo, a arte de uma boa conversa nas pesquisas com história oral. E, na história cultural, cada vez mais nos debruçamos sobre as artes e artistas da poesia e literatura, da música, da culinária, das imagens, buscando dimensões de economias do desejo ali presentes. Desde o início, o autor sugere aproximações entre a construção do conhecimento e a gastronomia, destacando as coincidentes raízes etimológicas de saber e sabor. Recorda inclusive que, antigamente, quando uma comida era saborosa, dizia-se: “esta comida sabe bem”.

O livro transita por variações nas quais os objetos de análise são retomados por diferentes pontos de vista e, a cada capítulo, têm caráter ensaístico. Além do prefácio, do próprio autor, 12 ensaios variam bastante em estrutura narrativa. Nos títulos, lê-se marcante presença de bom humor, combinado com provocações críticas. As notas de rodapé, por exemplo, recebem o nome de notas de canapé, termo que Rubem Alves considera mais apropriado, pois devem ser “coisas pequenas e saborosas, algumas doces, outras apimentadas, que abrem o apetite, e que são servidas no meio da festa”.1

Atenta, sobretudo, às questões de história e memória, algo que ocupa significativamente a cena dos atuais estudos históricos, minha observação versa sobre o potencial metodológico da obra como contribuição para as pesquisas em História cultural, História do tempo presente e História oral. Além disso, o livro oferece uma bela retomada de autores clássicos, prato cheio para quem pesquisa apropriações e percursos de leitura a respeito de Nietzsche, Marx, Fernando Pessoa, Bachelard, Paulo Freire, Wittgenstein, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, William Blake, entre outros.

A velhice é o ponto de onde fala (ou escreve) o autor: “A consciência da morte nos dá uma maravilhosa lucidez”.2 Tal singularidade sobre a fase da vida nos informa a respeito tanto dele quanto das categorias que lhe são atribuídas: escritor vencedor do prêmio Jabuti em 2009, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pedagogo, poeta, cronista, contador de estórias, ensaísta, teólogo e psicanalista.

Quando fala sobre envelhecimento, refere-se às metamorfoses do ser humano ao longo do tempo, o processo histórico das mudanças no corpo e nas perspectivas sobre a experiência. Em se considerando a frequente participação de pessoas idosas na História oral, o testemunho do autor sugere ingredientes úteis à linha epistemológica interessada em considerar as elaborações, as composições narrativas, os processos de autopercepção que operam durante a produção e registro dos relatos, como sinalizam Walter Benjamin,3 Alessandro Portelli4 e Eduardo Coutinho.5

Outro diálogo importante: a realização de entrevistas é ato de sensibilidade que exige o gosto por uma boa conversa, e uma epistemologia sobre o prazer da boa conversa é um dos elementos presentes na obra. O encontro entre a pessoa que pesquisa histórias de vida e aquela que narra é um espaço de arte e sabedoria, onde o prazer do corpo revela-se essencial. A dimensão do corpo como elemento de conhecimento tem fundamental importância para quem trabalha com o tema da memória na história. Lembremos, por exemplo, da discussão de Henri Bergson em “Matéria e Memória,”6 atualizada no debate de Ecléa Bosi7 sobre sociedade e memória nas lembranças dos velhos e complementada no diálogo com Paul Ricoeur8 na dimensão da memória compartilhada entre as pessoas “próximas”. Considerando-se as diversas operações entre memória individual e coletiva, é através do universo corporal que a lembrança de uma experiência vivida se inscreve na pessoa.

Mas a memória vive tanto de lembranças quanto de esquecimento, tema que recebe de Rubem Alves um ensaio específico, intitulado “O esquecimento: Barthes (ou ‘Me esqueci do sabido para me lembrar do esquecido’)”. Leem-se algumas propostas produzidas na velhice, quando Barthes dedicou-se à pesquisa e à experimentação. Outra lição importante para o trabalho com História oral:

se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu corpo passado.9

A relação entre saberes e fases da vida, alvo da reflexão de Rubem Alves, delineia uma rota de aproximação da obra com o fazer histórico no contemporâneo:

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.

Não estaria aí uma inspiração para a história do tempo presente? Uma história escrita a partir da compreensão de que essa ciência chegou à “beira da falésia,” e que toma como objeto de atenção o próprio processo de construção da pesquisa, em seus caminhos e descaminhos, escolhas e descartes, enfim, a “operação historiográfica” em si, tomada como objeto de análise.

Por aí transitamos para o diálogo com a concepção de ciência discutida pelo autor: embate sobre os limites da objetividade em relação às subjetividades e saberes do corpo, um universo além do saber “lógico-racional”. Afinal, indaga Rubem Alves, o que faz uma boa moqueca? O livro de receitas não é garantia de sucesso se não contar com a experiência da cozinheira. Por aí se insere a questão do método científico regado a sensibilidades: juntar ingredientes só resultará em uma boa moqueca se for capaz de gerar água na boca. E, para isso, é imperativo contar com os saberes do corpo, que vão desde a memória do gosto ideal de uma moqueca, passam pela sabedoria dos gestos de salpicar temperos e mexer os ingredientes até atingir o ponto.

A inspiração, esse elemento que todos conhecemos (buscamos, ao menos), é essencial nas escolhas do prato a preparar, das quantidades e qualidades de ingredientes, nos momentos de aumentar ou diminuir o fogo. Por esse caminho, Rubem Alves nos conduz ao paradoxo da (im)possibilidade de um método para a escrita ou para a inspiração. Contudo, tal ponto faz da obra uma inspiradora provocação! Preocupado com que a própria escrita seja prazerosa como uma boa conversa, nos ensina sobre as relações entre oralidade e escrita e sugere alguns temperos narrativos para se contar uma boa história:

Um artigo científico é isso: o relato do caminho que se seguiu para se ir do ponto de onde se partiu até o ponto aonde se chegou. Isso se chama método. Mas o corpo não entende a linguagem do método. Método são procedimentos racionais. Mas o corpo é um ser musical. “O organismo é uma melodia que se canta,” diz Merleau-Ponty citando o biólogo Uexküll.10

Mesmo que Rubem Alves defenda sua escrita “contra o método,” com a licença e respeito profundo ao autor, ouso ler, a partir do livro que tenho em mãos, uma proposta metodológica. Não se trata de um método linear, objetivo, racional, como o da ciência cartesiana ou, para a história, no sentido hegeliano. Trata-se, a meu ver, de uma metodologia da inspiração e das sensibilidades — considerando que o sufixo possa ser uma forma de situar em palavras um sentido mais aberto de conhecimento.

Tratar de métodos e metodologias é demanda presente. Diversas áreas da ciência tiveram uma “crise” ou “virada” epistemológica,11 principalmente nas transições e revoluções que caracterizaram o decorrer do século XX. Depois do que se nomeou linguistic turn, o próprio papel do autor na produção do conhecimento científico é reconhecida como questão-chave e, se buscarmos uma emergência da temática, poderemos desfiar interessante debate, reunindo temporalidades por meio das obras de Walter Benjamin,12 Roland Barthes,13 Michel Foucault14 e Giorgio Agamben.15 Daí se decanta um desafio de como operar a transição, à la Deleuze e Guattari, da “árvore do conhecimento” para o conhecimento “rizomático”.16

É com uma escrita por imagens, de caráter sensivelmente rizomático, que se exibe no livro uma metodologia para a construção do saber sensível: no modo de escrever, acompanhado por boa música; no conselho, “para aprender lógica, leia poesia;” nas mil e uma maneiras diferentes que o autor encontra para inserir o diálogo com autores e teorias ou, como ele gosta de dizer, nas conversas com os autores. E traz até uma “receita” para encontrar inspiração, por meio da descrição de Nietzsche:

Repentinamente, com certeza e sutileza indescritível, algo se torna visível, audível, algo nos sacode em nossas últimas profundezas e nos lança por terra… A gente não busca, ouve. Não pede ou dá, aceita. Como o relâmpago, um pensamento se ilumina, com necessidade, sem hesitações com respeito à sua forma.17

Com a metáfora: “ideias são bailarinas, a inspiração é a solista,” o texto se compõe organicamente como num corpo de baile. A cadência do conhecimento científico que considere a inspiração como elemento metodológico está afinada, por exemplo, com o trabalho de Durval Muniz Albuquerque Jr.,18 quando diz que a história é a arte de “inventar” o passado, e com a defesa de João-Francisco Duarte Jr.19 por uma educação (do) sensível. Ambos pontuam uma metamorfose do próprio olhar sobre a verdade, ao longo da história da ciência: mais do que absoluta, a verdade figura como o horizonte de possibilidades, quando se considera a relação de interdependência entre a realidade observada e o seu registro pelo observador.

Rubem Alves ocupa-se dos limites da linguagem para dar conta da experiência sensível. E os problemas que ocorrem quando a ciência, estritamente racional, ignora ou silencia uma importante gama de conhecimentos presentes nos saberes do corpo, não ditos em palavras puramente lógicas. Como uma trilha do prazer, propõe a metodologia da sapiência culinária: ter conhecimento do desejo e do que fazer para produzi-lo. A função da inteligência, nesse sentido, “é organizar o poder de tal forma que ele se transforme em ponte entre o desejo e seu objeto”.20

Nesse sentido, destaco “Os saberes do corpo,” sexto ensaio do livro, dedicado a uma ideia “bergsoniana”: a percepção que temos de algo é a percepção de seus efeitos sensíveis, processo que ocorre de modo muito íntimo nos caminhos da subjetividade. Além do conhecimento acumulado, verificado e atestado, existe um nível subjetivo do conhecimento, elaborado por cada pessoa. Um exemplo: a forma como cada pessoa sente o sabor da mesma manga. A experiência é incomunicável, impossível de traduzir-se em palavras, menos ainda em dados verificáveis.

Sete são os ensaios dedicados ao que arrisco chamar de uma epistemologia do conhecimento sensível. Seguem-se outros cinco em torno das variações sobre o prazer. Inspiram-se na prática, algo comum no universo musical, de compor “variações sobre o mesmo tema”. Além de obras eruditas que trabalham a partir dessa modulação, as Jam Sessions de blues ou jazz têm a mesma levada, com boa dose de improvisação. A cada ensaio, Rubem Alves compõe uma variação sobre o prazer, partindo do ponto de vista de uma área do conhecimento, em companhia de um autor central. A primeira variação, teologia, possui como ponto de partida um texto de longa história. Trata-se do De doctrina christiana, de Santo Agostinho (354–430 d.C.). A segunda variação, filosofia, é uma conversa com Nietzsche, escrita de modo transliterário, em que as ideias “nietzscheanas” são transpostas ao texto, com destaque para a especialidade de Nietzsche: ir além da preocupação com as coisas que podem se tornar palavras, para buscar o universo do indizível, que é visível, audível, sensível. A terceira variação, economia, é uma conversa do autor com Marx, num cenário boêmio, regado a cerveja e envolto por uma fumaça de charuto. A quarta variação, culinária, aproxima os temas da ciência e do saber ao espaço culinário, conversando com cozinheiras como Babette.

Acompanha o cafezinho, do ensaio Post scriptum, um saboroso chocolate mentolado dedicado à ausência do amor e do prazer na educação. Pela minha leitura a partir da História, devemos compartilhar essa observação, já que nosso ofício está ligado à educação em todos os níveis da escola formal, do ensino básico até o superior. E, mesmo quando não nos dedicamos diretamente à docência, concentramo-nos em pesquisas, estamos a produzir um conhecimento que, para ter sentido de ser, carrega o devir de se dirigir a um público e servir como ferramenta do saber.

O gosto que fica na boca após a leitura desse livro delicioso é o sabor de um texto escrito com prazer. Metáforas na arte da escrita, permeada por imagens da culinária e da música, revelam a importância da experiência pessoal e da potência sensível para o exercício da pesquisa e construção do conhecimento científico. Para Rubem Alves, o primeiro passo é o sonho. Levar o corpo a trabalhar, por prazer, mais do que por dever. Que o professor se ponha a sonhar e a ensinar a sonhar… Por isso, encerro com uma frase do filósofo e escritor Euclides Sandoval, leitor de Nietzsche e professor durante 40 anos, do ensino básico à faculdade de Artes, em um de seus cadernos diários: “Antes de uma aula, é preciso que o professor durma… E sonhe”.

1 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 7.         [ Links ] 2 Idem, Ibidem, p. 9.
3 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e políticaEnsaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987.         [ Links ] 4 Alessandro Portelli, “A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais,” Tempo, vol. 1, n. 2, Rio de Janeiro, 1996, p. 59-72.         [ Links ] 5 Eduardo Coutinho, “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”, Projeto História, n. 15, São Paulo, 1997, p. 165-191.         [ Links ] 6 Henri Bergson, Matéria e memóriaensaio sobre a relação do corpo com o espírito, 4. Ed., São Paulo, WMF M. Fontes, 2010.         [ Links ] 7 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3. Ed., São Paulo, Cia das Letras, 1994.         [ Links ] 8 Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, Campinas, Editora da Unicamp, 2007.         [ Links ] 9 Roland Barthes apud Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 52.         [ Links ] 10 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 17.         [ Links ] 11 Dentre possíveis abordagens, menciono autores que situam o tema em suas áreas de estudo, com a ressalva de serem escolhas dentro de variado e saboroso menu! Roger Chartier debate a história entre certezas e inquietudes; Fritjof Capra dedica-se ao diálogo entre teorias das ciências físicas e biológicas, com sistemas políticos e sociais; Beatriz Sarlo pensa a emergência da cultura da memória a partir da guinada subjetiva. Cf. Roger Chartier, À beira da falésiaa história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2002.         [ Links ] Fritjof Capra, As conexões ocultasciência para uma vida sustentável, São Paulo, Cultrix, 2005.         [ Links ] Beatriz Sarlo, Tempo passadocultura da memória e guinada subjetiva, São Paulo, Cia das Letras; Belo Horizonte, UFMG, 2007.         [ Links ] 12 Aqui me refiro ao ensaio “O autor como produtor”, de 1934, Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e políticaEnsaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987.         [ Links ] 13 Roland Barthes, “A morte do autor” (1968), In: ______. O rumor da língua. 2. Ed., São Paulo, M. Martins, 2004, p. 65-78.         [ Links ] 14 Michel Foucault, O que é um autor?, 4. Ed., Lisboa, Passagens; Vega, 2000.         [ Links ] 15 Giorgio Agamben, “O autor como gesto,” In: ______. Profanações, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 55-62.         [ Links ] 16 Giles Deleuze, Felix Guatari, “Introdução: Rizoma,” Mil platôscapitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 11-37.         [ Links ] 17 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p.23.         [ Links ] 18 Durval Muniz Albuquerque Jr., HistóriaA arte de inventar o passado, Bauru, Edusc, 2007.         [ Links ] 19 João-Francisco Duarte Jr., O Sentido dos SentidosA Educação (do) Sensível, 4. Ed., Curitiba, Criar Edições, 2006.         [ Links ] 20 Rubem Alves, op cit., p. 147.

Tati Costa – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Florianópolis (SC), Brasil. E-mail: [email protected].