Pariremos com prazer | Casilda Rodrigáñez Bustos

Casilda Rodriganez
Charla Casilda Rodrigáñez Bustos | Imagem: Instituto Europeo de Salud Mental Perinatal

Casilda Rodrigañez Bustos nasceu na cidade de Madrid na Espanha, em 16 de maio de 1945. bióloga, escritora e feminista, em seus livros ela abordou questões sobre o corpo das mulheres, o parto, a maternidade, as culturas pré-patriarcais, a análise crítica do patriarcado relacionando a desconexão das mulheres com seus corpos, entre outros assuntos dessa natureza. No Brasil, dois de seus livros foram publicados pela Editora Luas: A Matrística: aqui e agora e o livro resenhado. Dentre suas obras, escreveu El asalto al HadesLa sexualidad y el funcionamiento de la dominaciónLa Represión del deseo materno y la génesis del estado de sumisión inconsciente, além de vários artigos e ensaios – todos estes ainda sem tradução para o português brasileiro. Os originais desses textos encontram-se disponíveis no site da autora: https://sites.google.com/site/casildarodriganez/.

Pariremos com prazer aborda positivamente o útero como potência de vida, reconectando-o ao prazer e anunciando os meandros da invenção do parto com dor. O livro engloba as discussões: “Pariremos com prazer”, “Parto orgásmico: testemunho de mulher e explicação fisiológica” e “Estender a teia”. Na primeira parte do livro, “Pariremos com prazer”, Casilda apresenta a tese do parto com prazer e a renúncia à dor no parto como significado de reapropriação feminista do poder fisiológico do útero descontraído e exercitado para o orgasmo. Em “Parto orgásmico: testemunho de mulher e explicação fisiológica”, analisa a capacidade autoerótica das mulheres nos antigos rituais voltados para o exercício uterino e a preparação para o parto natural. Ela analisa, em imagens artísticas, a aparição destes rituais. E, finalmente, “Estender a teia” aborda a reconquista e o reaprendizado dos movimentos uterinos, tais como sentir sua pulsação e cadenciar seu fluxo em todo o corpo para recuperar a maternidade como local de afeto e de empoderamento. Para apresentar a tradução, a Editora Luas convidou a ginecologista feminista Halana Faria e a terapeuta reichiana Cláudia Rodrigues para escreverem o Prefácio. Leia Mais

1913: antes da tempestade – ILLIES (FH)

ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016. 368p. Resenha de: VIEIRA, Vinícius de Castro Lima. Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies. Faces da História, Assis, v.6, n.1, p.472-477, jan./jun., 2019.

Ao texto de prazer, Roland Barthes, em 1973, propôs uma caracterização como o texto que procura ser desejado pelo leitor, que produz o deleite pelas/das palavras, que contenta pela ironia, pela erudição, pela fineza, pela cultura e pela inovação. Um texto de prazer, e esse é um detalhe crucial, não é aquele necessariamente dedicado a narrar o prazer, não é o pornográfico; o texto de prazer é aquele no qual se regozija pela forma de produção, pelo erotismo das palavras que instigam.

Para mim, não houve possibilidades – e aqui já me entrego de imediato – de ler o livro, 1913: antes da tempestade, de Florian Illies, e não lembrar das palavras de Barthes. Aliás, o prazer do texto no livro de Illies, ao menos nesta edição brasileira, começa – em um oximoro erótico – antes mesmo da leitura: já está encaminhado na belíssima capa estampada pelo quadro Rua à Noite, de Max Beckmann, que envolve o miolo composto por papel off-white de excelente qualidade e com uma agradável composição tipográfica. Por isso, não pretendo aqui fazer apenas comentários críticos sobre o trabalho de Illies, mas também escrever uma resenha que instigue a leitura do livro.

Mas atenção: não é porque o livro de Illies tenha sido um texto de prazer para este leitor, agora alocado na posição de autor, que o será, automaticamente, para outros. Pode ser que alguém sinta um completo enfado pelo livro; como também é possível que eu mesmo, num outro momento, eventualmente não o identifique mais como um texto de prazer. O prazer é individual, presente, momentâneo e efêmero. Como o sentido de um texto que só se completa nas co-criações do leitor, o prazer, por mais que o texto o procure, não está garantido. O prazer existe em função de alguém e é específico de um leitor em um certo momento; afinal, “se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer este é bom, aquele é mau (…). O texto (o mesmo acontece com a voz que canta) só me pode arrancar este juízo, nada objetivo: é isso. E mais ainda: é isso para mim!” (BARTHES, 2009, p. 137).

O livro de Illies cativa pela fina ironia, pelo bom humor, pelo nítido cuidado com as palavras e pelo vasto trabalho de pesquisa. A estrutura narrativa é descontínua, cada capítulo se refere a um mês do ano de 1913 e é subdividido em pequenas seções. Isso não impede, contudo, a percepção e o acompanhamento do transcorrer de determinadas situações, casos e conflitos ao longo do ano. Dessa forma, o livro pode ser apreciado em vários regimes de leituras, dentre os quais dois se destacam: o primeiro seria o da leitura fragmentária, mais interessada nas crônicas envolventes do cotidiano de personagens admiráveis como Rilke, Picasso, Kafka, Schiele, Freud e Schönberg; o segundo seria o da visão totalizante, que permite a percepção de uma espécie de zeitgeist do modernismo europeu no início do século XX. Evidentemente, esses regimes de leituras são mais complementares do que excludentes.

A nacionalidade alemã, a formação em história da arte e a atuação profissional como marchand de arte e jornalista cultural, são aspectos biográficos e profissionais de Illies que ajudam a compreender alguns desses encaminhamentos narrativos, como a natureza jornalística da prosa curta, direta e objetiva e, também, o decalque no destaque evidente ao mundo artístico-cultural germanófono.

Em 2000, o nome de Illies já havia reverberado bastante na intelectualidade alemã com a publicação de seu primeiro livro, Generation Golf, em que fazia uma análise de sua própria geração, nascida nos anos 1970 e modelada no transcorrer das duas décadas seguintes. Não foi por acaso, portanto, que 1913 se tornou um sucesso de crítica e de vendas logo após o seu lançamento, em 2012, na Alemanha; sendo, posteriormente, traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e português. O livro chegou ao Brasil, em 2016, numa edição publicada pela editora Estação Liberdade, com tradução de Silvia Bittencourt e sob auspícios do Ministério das Relações Exteriores alemão.

Ao final da leitura de 1913, fica uma certa impressão de que este ano foi arrebatador, repleto de eventos inaugurais que seriam emblemáticos durante um longo período. Para me ater apenas a exemplos integrantes do inventário de Illies, poderia citar: o início da operação da primeira linha de montagem nas fábricas da Ford; a inauguração dos 57 andares do edifício Woolworth, em Nova Iorque, assumindo o posto de mais alta construção do mundo naquele momento; a publicação do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, marco da literatura modernista; as primeiras audições públicas de Canções de Guerre e de Sagração da Primavera, obras-primas de Schönberg e de Stravinsky, respectivamente; o retorno de Mona Lisa ao Museu do Louvre, dois anos depois de ter sido roubada; a realização da exposição Armory Show, que consolidaria a hegemonia do modernismo nas artes; a circulação do primeiro número da revista Vanity Fair entre muitas outras coisas. Tudo isso em 1913.

Ora, se for feito um levantamento tão detalhado quanto o de Illies para outros anos do último século, talvez se chegue a impressões similares de importância, de efervescência e de singularidade. O diferencial do ano de 1913 é especialmente definido pelo que se segue, pois o desenvolvimento econômico-tecnológico, a agitação cultural e, até mesmo, um certo chacoalhar nos costumes ocorre às vésperas da Primeira Guerra Mundial. E isso se torna ainda mais peremptório na narrativa de Illies por não haver indícios no cotidiano das pessoas de apreensão, medo ou desconfiança generalizados para com o futuro.

Evidentemente, as pessoas, em 1913, não poderiam conhecer a “tempestade” que lhes aguardavam; sobretudo porque as experiências traumáticas da Primeira Guerra Mundial estavam tão recheadas de ineditismo que não seria viável nem mesmo vislumbrá-las no horizonte de expectativas. A clivagem que a grande guerra mundial operou no espaço de experiências daquela geração permite que nós, hoje, retrospectivamente, compreendamos como foi possível a formulação de certos prognósticos, como o de David Starr, presidente da Universidade de Stanford em junho de 1913: “A grande guerra europeia, uma ameaça eterna, jamais chegará. Os banqueiros não arranjarão o dinheiro para tal guerra, a indústria não a manterá, os estadistas não terão como levá-la a cabo. Não acontecerá nenhuma grande guerra” (STAR apud ILLIES, 2016, p. 177); ou mesmo o de Lênin, em março desse mesmo ano: “Uma guerra entre a Áustria e a Rússia seria muito útil para a revolução na Europa Ocidental. Todavia, é quase impossível imaginar que Francisco José e Nicolau nos façam este favor” (LÊNIN apud ILLIES, 2016, p. 89).

Essa percepção de que a grande guerra mundial não estava inserida no campo das probabilidades, em 1913, emerge no olhar microscópico lançado por Illies sobre o período. Um olhar que focaliza o cotidiano de determinados integrantes – ou daqueles que viriam sê-los, em breve – das elites culturais, políticas, intelectuais, acadêmicas e científicas do continente europeu, em especial, das “capitais do modernismo” – Viena, Paris, Berlim e Munique. Illies pouco ou nada nos diz sobre os pobres e os camponeses europeus, nem sobre o cotidiano nos trópicos ou nos continentes asiático e africano. Um historiador, por outro lado, que empregasse um olhar instrumentalizado pelo telescópio1, sobre o mesmo período, talvez pudesse afirmar, pautado em elementos – que o próprio Illies menciona – como o aumento dos gastos militares, o incremento no contingente do exército austro-húngaro ou o aumento das tensões políticas nos Balcãs, que já estaria sendo tramado um cenário de guerra. E, assim, estaríamos diante de um bom exemplo das variações interpretativas proporcionadas pelos chamados jogos de escalas (REVEL, 1998).

Porém, Florian Illies não é esse historiador, não é essa sua intenção, nem, muito menos, é esse o seu olhar. Ele prefere nos deliciar com as intimidades da vida dos outros. Prefere nos contar a ida de Hitler para a Alemanha, em maio, fugindo do recrutamento do exército austríaco; a intensa paixão do feioso Oskar Kokoschka com a belíssima Alma Mahler, que lhe promete casamento se ele pintar uma “grande obra-prima” (ILLIES, 2016, p. 138); a apreensão de Freud para o encontro com seu ex-colaborador Jung, no IV Congresso da Associação Psicanalítica; e as indecisões de Kafka, suas “gagueiras por escrito” (ILLIES, 2016, p. 191), nas cartas trocadas com sua amada Felice Bauer.

Aliás, Kafka é um dos personagens mais proeminentes da narrativa de Illies e merece aqui um comentário mais detido. Quando finalmente consegue se decidir, um dos maiores escritores do século XX, pede Felice Bauer em casamento de uma forma no mínimo sui generis. Escreve Kafka:  […] pondere Felice, diante desta incerteza é difícil pronunciar as palavras e também deve ser estranho ouvi-las. Ainda é cedo demais para dizer. Mas depois será tarde demais, não haverá mais tempo para discutir essas coisas, como você menciona na última carta. Mas não há mais tempo para hesitar demais, pelo menos é o que sinto, e por isso pergunto: dadas as condições acima, difíceis de eliminar, não quer pensar em se tornar a minha esposa? Você quer isso? […] Considere, Felice, as mudanças que se sucedem conosco em um casamento, o que cada um perderia, o que cada um ganharia. Eu perderia a minha solidão, assustadora na maioria das vezes e ganharia você, a quem amo acima de todas as pessoas. Você, porém, perderia a vida que tem agora, com a qual tem estado quase inteiramente satisfeita. Perderia Berlim, o escritório de que tanto gosta, as amigas, os pequenos prazeres, a perspectiva de se casar com um homem saudável, alegre e bom, de ganhar filhos bonitos e com saúde, algo que você, pense bem, realmente almeja. No lugar destas perdas incalculáveis, você ganharia uma pessoa doente, fraca, insociável, taciturna, triste, inflexível e quase sem esperança (KAFKA apud ILLIES, 2016, pp. 191-192).

Illies então segue, comentando ironicamente, “Quem não diria sim imediatamente? Um pedido de casamento em forma de admissão de falência” (ILLIES, 2016, p. 192).

Tudo bobagem, poderiam dizer os estudiosos presos à ortodoxia de uma história estrutural desencarnada. Mas acho que a essa altura já está bastante evidente que as miudezas, as de Illies aqui, em particular, podem municiar importantes reflexões. Se ainda não estiver, vamos a um exemplo ainda mais claro.

Um exemplo de reflexão teórico-conceitual que o livro de Illies encaminha aparece bem localizado no início do capítulo dedicado ao mês de março e diz respeito à importância em conferir uma dimensão histórica ao conceito de moderno. Como sabemos, o que é tomado, proposto e entendido como moderno, em uma determinada época, é objeto de disputa, envolvendo, em alguns casos, passado e presente, tradição e ruptura. À cada geração, ao menos desde meados do século XIX, o que é identificado como moderno é redefinido constantemente, de modo a consolidar o rompimento com parcelas de um passado e ser associado às experiências presentes. Toda essa reflexão é belamente ilustrada por Illies a partir do relato das relações do crítico de arte Julius Meier-Graefe com as vanguardas artísticas:  Sempre assistimos, espantados e admirados, a como os propagandistas mais impetuosos da vanguarda têm olhos apenas para aquela única revolução artística. Quando chega a geração seguinte, disposta a fazer a última vanguarda parecer antiquada, a perícia, o discernimento, o “olho” firme muitas vezes não funcionam mais. É o caso aqui. Meier-Grafe, que por iniciativa própria abrira os olhos dos alemães para Delacroix e Corot e Cézane e Manet e Degas e muitos outros, está sentado na casa de campo em Berlim-Nikolassee e escreve, impassível, a sentença: “Frente ao nome de Picasso, o historiador do futuro ficará paralisado e constatará: aqui se chegou ao fim”. Ponto. Inimaginável que, depois da destruição das formas do cubismo, seja possível seguir em frente. O grande autor, talvez o estilista mais ardente da crítica de arte do século, um mestre em narrar a “evolução” da arte, agora a enxerga, sobriamente, chegando ao fim. Lá, no mesmo ponto em que hoje enxergamos seu início (ILLIES, 2016, p. 87).

É preciso, ainda, fazer três comentários sugestivos e críticos sobre aspectos formais do livro, dois deles de responsabilidade do próprio autor e o outro me parece que mais específico à edição brasileira. Primeiramente, a ausência de indicações precisas das referências das fontes, ao meu olhar viciado de historiador, incomoda bastante. A lista das referências bibliográficas que segue ao final do livro é muito geral e não ajuda muito outros pesquisadores que eventualmente quiserem desenvolver ou mesmo checar algumas informações citadas por Illies. Certamente, o autor e os editores optaram por suprimir as notas de rodapé para favorecer a fluidez do texto, mas, ainda sim, poderiam ter se valido das notas de fim, com as quais obteriam efeito parecido, sem comprometer o rigor. Outra carência importante é a de um índice remissivo. Como são muitos nomes citados inúmeras vezes, esse índice, provavelmente, seria gigantesco, porém ajudaria os pesquisadores, estudantes e mesmo os curiosos com interesses mais específicos, a identificar os momentos exatos em que cada personagem é mencionado. Não posso deixar de sinalizar, por fim, os problemas de ortografia e de digitação que a edição brasileira apresenta. Para me bastar no mais grosseiro, o nome de Virginia Woolf aparece, ao menos três vezes, erroneamente grafado como “Virgina”. Detalhe que não anula a qualidade do livro, mas que precisará ser objeto de uma revisão mais cuidadosa em futuras reedições.

Estamos, portanto, diante de uma obra que tem méritos, defeitos e limitações, mas que consegue, antes de tudo, despertar o interesse do leitor pelo período e pelo desenrolar do próprio livro. Illies escolhe tão bem as palavras que nos deixa em dúvida se lemos num único fôlego para conhecer os desfechos de todas aquelas situações ou se diminuímos o ritmo para desfrutar pausadamente das imagens produzidas pela narrativa. E, ainda assim, no final, ficamos curiosos dos destinos das vidas ali narradas, desejosos de perceber de que modo a grande guerra alterou aqueles cotidianos e produziu outras sociabilidades, apreensões e “normalidades”. Por isso, seria formidável se Illies nos presenteasse com um 1915 ou um 1918. Enfim, foi ótimo para mim. Espero que para vocês também seja.

Notas

1 Quando me refiro aos olhares telescópicos e microscópicos faço alusão ao comentário de José Gonçalves Gondra sobre o trabalho de Jacques Revel. Sobre esse tema, consultar: GONDRA, 2012; REVEL, 1998.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 2009.

ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016.

GONDRA, José. Telescópios, microscópios e incertezas: Jacques Revel na história e na história da educação. In.: LOPES, Eliane; FARIA FILHO, Luciano (Org.). Pensadores sociais e história da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. v. 2.

REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

Vinícius de Castro Lima Vieira – Mestre em História Política pela UERJ, Rio de Janeiro-RJ, e doutorando em História Política na mesma instituição. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES). E-mail: [email protected].

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Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette – ALVES (Tempo)

ALVES, Rubem. Variações sobre o prazerSanto Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette.  São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. 188 p. Resenha de: COSTA, Tati. Livro para saborear: método científico regado a sensibilidades. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.

Pelo que sei, só existe um lugar, no universo inteiro,
onde o puro pensamento é capaz de mover
a matéria. Esse lugar é o corpo. No corpo, a gente
pensa na moqueca e a boca fica cheia d’água. (p. 144)

Resenhar obra de Rubem Alves é saboroso desafio pela qualidade de sua escrita e erudição de seus conhecimentos. Resenhar, com objetivo de circulação acadêmica orientada ao conhecimento histórico, é como acrescentar pitada de pimenta ao desafio. Porque a experiência de vida narrada pelo autor, então aos 77 anos, carrega uma provocação ao fato de que ambientes educacionais, acadêmicos e científicos ignoram o aspecto sensível do conhecimento e as dimensões do amor, prazer, desejo e alegria. Felizmente, nas ciências humanas, algumas experiências com história do tempo presente têm se dedicado a desafios semelhantes. Por exemplo, já se trilha com sabedoria a história das sensibilidades; já se trabalha, há algum tempo, a arte de uma boa conversa nas pesquisas com história oral. E, na história cultural, cada vez mais nos debruçamos sobre as artes e artistas da poesia e literatura, da música, da culinária, das imagens, buscando dimensões de economias do desejo ali presentes. Desde o início, o autor sugere aproximações entre a construção do conhecimento e a gastronomia, destacando as coincidentes raízes etimológicas de saber e sabor. Recorda inclusive que, antigamente, quando uma comida era saborosa, dizia-se: “esta comida sabe bem”.

O livro transita por variações nas quais os objetos de análise são retomados por diferentes pontos de vista e, a cada capítulo, têm caráter ensaístico. Além do prefácio, do próprio autor, 12 ensaios variam bastante em estrutura narrativa. Nos títulos, lê-se marcante presença de bom humor, combinado com provocações críticas. As notas de rodapé, por exemplo, recebem o nome de notas de canapé, termo que Rubem Alves considera mais apropriado, pois devem ser “coisas pequenas e saborosas, algumas doces, outras apimentadas, que abrem o apetite, e que são servidas no meio da festa”.1

Atenta, sobretudo, às questões de história e memória, algo que ocupa significativamente a cena dos atuais estudos históricos, minha observação versa sobre o potencial metodológico da obra como contribuição para as pesquisas em História cultural, História do tempo presente e História oral. Além disso, o livro oferece uma bela retomada de autores clássicos, prato cheio para quem pesquisa apropriações e percursos de leitura a respeito de Nietzsche, Marx, Fernando Pessoa, Bachelard, Paulo Freire, Wittgenstein, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, William Blake, entre outros.

A velhice é o ponto de onde fala (ou escreve) o autor: “A consciência da morte nos dá uma maravilhosa lucidez”.2 Tal singularidade sobre a fase da vida nos informa a respeito tanto dele quanto das categorias que lhe são atribuídas: escritor vencedor do prêmio Jabuti em 2009, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pedagogo, poeta, cronista, contador de estórias, ensaísta, teólogo e psicanalista.

Quando fala sobre envelhecimento, refere-se às metamorfoses do ser humano ao longo do tempo, o processo histórico das mudanças no corpo e nas perspectivas sobre a experiência. Em se considerando a frequente participação de pessoas idosas na História oral, o testemunho do autor sugere ingredientes úteis à linha epistemológica interessada em considerar as elaborações, as composições narrativas, os processos de autopercepção que operam durante a produção e registro dos relatos, como sinalizam Walter Benjamin,3 Alessandro Portelli4 e Eduardo Coutinho.5

Outro diálogo importante: a realização de entrevistas é ato de sensibilidade que exige o gosto por uma boa conversa, e uma epistemologia sobre o prazer da boa conversa é um dos elementos presentes na obra. O encontro entre a pessoa que pesquisa histórias de vida e aquela que narra é um espaço de arte e sabedoria, onde o prazer do corpo revela-se essencial. A dimensão do corpo como elemento de conhecimento tem fundamental importância para quem trabalha com o tema da memória na história. Lembremos, por exemplo, da discussão de Henri Bergson em “Matéria e Memória,”6 atualizada no debate de Ecléa Bosi7 sobre sociedade e memória nas lembranças dos velhos e complementada no diálogo com Paul Ricoeur8 na dimensão da memória compartilhada entre as pessoas “próximas”. Considerando-se as diversas operações entre memória individual e coletiva, é através do universo corporal que a lembrança de uma experiência vivida se inscreve na pessoa.

Mas a memória vive tanto de lembranças quanto de esquecimento, tema que recebe de Rubem Alves um ensaio específico, intitulado “O esquecimento: Barthes (ou ‘Me esqueci do sabido para me lembrar do esquecido’)”. Leem-se algumas propostas produzidas na velhice, quando Barthes dedicou-se à pesquisa e à experimentação. Outra lição importante para o trabalho com História oral:

se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu corpo passado.9

A relação entre saberes e fases da vida, alvo da reflexão de Rubem Alves, delineia uma rota de aproximação da obra com o fazer histórico no contemporâneo:

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.

Não estaria aí uma inspiração para a história do tempo presente? Uma história escrita a partir da compreensão de que essa ciência chegou à “beira da falésia,” e que toma como objeto de atenção o próprio processo de construção da pesquisa, em seus caminhos e descaminhos, escolhas e descartes, enfim, a “operação historiográfica” em si, tomada como objeto de análise.

Por aí transitamos para o diálogo com a concepção de ciência discutida pelo autor: embate sobre os limites da objetividade em relação às subjetividades e saberes do corpo, um universo além do saber “lógico-racional”. Afinal, indaga Rubem Alves, o que faz uma boa moqueca? O livro de receitas não é garantia de sucesso se não contar com a experiência da cozinheira. Por aí se insere a questão do método científico regado a sensibilidades: juntar ingredientes só resultará em uma boa moqueca se for capaz de gerar água na boca. E, para isso, é imperativo contar com os saberes do corpo, que vão desde a memória do gosto ideal de uma moqueca, passam pela sabedoria dos gestos de salpicar temperos e mexer os ingredientes até atingir o ponto.

A inspiração, esse elemento que todos conhecemos (buscamos, ao menos), é essencial nas escolhas do prato a preparar, das quantidades e qualidades de ingredientes, nos momentos de aumentar ou diminuir o fogo. Por esse caminho, Rubem Alves nos conduz ao paradoxo da (im)possibilidade de um método para a escrita ou para a inspiração. Contudo, tal ponto faz da obra uma inspiradora provocação! Preocupado com que a própria escrita seja prazerosa como uma boa conversa, nos ensina sobre as relações entre oralidade e escrita e sugere alguns temperos narrativos para se contar uma boa história:

Um artigo científico é isso: o relato do caminho que se seguiu para se ir do ponto de onde se partiu até o ponto aonde se chegou. Isso se chama método. Mas o corpo não entende a linguagem do método. Método são procedimentos racionais. Mas o corpo é um ser musical. “O organismo é uma melodia que se canta,” diz Merleau-Ponty citando o biólogo Uexküll.10

Mesmo que Rubem Alves defenda sua escrita “contra o método,” com a licença e respeito profundo ao autor, ouso ler, a partir do livro que tenho em mãos, uma proposta metodológica. Não se trata de um método linear, objetivo, racional, como o da ciência cartesiana ou, para a história, no sentido hegeliano. Trata-se, a meu ver, de uma metodologia da inspiração e das sensibilidades — considerando que o sufixo possa ser uma forma de situar em palavras um sentido mais aberto de conhecimento.

Tratar de métodos e metodologias é demanda presente. Diversas áreas da ciência tiveram uma “crise” ou “virada” epistemológica,11 principalmente nas transições e revoluções que caracterizaram o decorrer do século XX. Depois do que se nomeou linguistic turn, o próprio papel do autor na produção do conhecimento científico é reconhecida como questão-chave e, se buscarmos uma emergência da temática, poderemos desfiar interessante debate, reunindo temporalidades por meio das obras de Walter Benjamin,12 Roland Barthes,13 Michel Foucault14 e Giorgio Agamben.15 Daí se decanta um desafio de como operar a transição, à la Deleuze e Guattari, da “árvore do conhecimento” para o conhecimento “rizomático”.16

É com uma escrita por imagens, de caráter sensivelmente rizomático, que se exibe no livro uma metodologia para a construção do saber sensível: no modo de escrever, acompanhado por boa música; no conselho, “para aprender lógica, leia poesia;” nas mil e uma maneiras diferentes que o autor encontra para inserir o diálogo com autores e teorias ou, como ele gosta de dizer, nas conversas com os autores. E traz até uma “receita” para encontrar inspiração, por meio da descrição de Nietzsche:

Repentinamente, com certeza e sutileza indescritível, algo se torna visível, audível, algo nos sacode em nossas últimas profundezas e nos lança por terra… A gente não busca, ouve. Não pede ou dá, aceita. Como o relâmpago, um pensamento se ilumina, com necessidade, sem hesitações com respeito à sua forma.17

Com a metáfora: “ideias são bailarinas, a inspiração é a solista,” o texto se compõe organicamente como num corpo de baile. A cadência do conhecimento científico que considere a inspiração como elemento metodológico está afinada, por exemplo, com o trabalho de Durval Muniz Albuquerque Jr.,18 quando diz que a história é a arte de “inventar” o passado, e com a defesa de João-Francisco Duarte Jr.19 por uma educação (do) sensível. Ambos pontuam uma metamorfose do próprio olhar sobre a verdade, ao longo da história da ciência: mais do que absoluta, a verdade figura como o horizonte de possibilidades, quando se considera a relação de interdependência entre a realidade observada e o seu registro pelo observador.

Rubem Alves ocupa-se dos limites da linguagem para dar conta da experiência sensível. E os problemas que ocorrem quando a ciência, estritamente racional, ignora ou silencia uma importante gama de conhecimentos presentes nos saberes do corpo, não ditos em palavras puramente lógicas. Como uma trilha do prazer, propõe a metodologia da sapiência culinária: ter conhecimento do desejo e do que fazer para produzi-lo. A função da inteligência, nesse sentido, “é organizar o poder de tal forma que ele se transforme em ponte entre o desejo e seu objeto”.20

Nesse sentido, destaco “Os saberes do corpo,” sexto ensaio do livro, dedicado a uma ideia “bergsoniana”: a percepção que temos de algo é a percepção de seus efeitos sensíveis, processo que ocorre de modo muito íntimo nos caminhos da subjetividade. Além do conhecimento acumulado, verificado e atestado, existe um nível subjetivo do conhecimento, elaborado por cada pessoa. Um exemplo: a forma como cada pessoa sente o sabor da mesma manga. A experiência é incomunicável, impossível de traduzir-se em palavras, menos ainda em dados verificáveis.

Sete são os ensaios dedicados ao que arrisco chamar de uma epistemologia do conhecimento sensível. Seguem-se outros cinco em torno das variações sobre o prazer. Inspiram-se na prática, algo comum no universo musical, de compor “variações sobre o mesmo tema”. Além de obras eruditas que trabalham a partir dessa modulação, as Jam Sessions de blues ou jazz têm a mesma levada, com boa dose de improvisação. A cada ensaio, Rubem Alves compõe uma variação sobre o prazer, partindo do ponto de vista de uma área do conhecimento, em companhia de um autor central. A primeira variação, teologia, possui como ponto de partida um texto de longa história. Trata-se do De doctrina christiana, de Santo Agostinho (354–430 d.C.). A segunda variação, filosofia, é uma conversa com Nietzsche, escrita de modo transliterário, em que as ideias “nietzscheanas” são transpostas ao texto, com destaque para a especialidade de Nietzsche: ir além da preocupação com as coisas que podem se tornar palavras, para buscar o universo do indizível, que é visível, audível, sensível. A terceira variação, economia, é uma conversa do autor com Marx, num cenário boêmio, regado a cerveja e envolto por uma fumaça de charuto. A quarta variação, culinária, aproxima os temas da ciência e do saber ao espaço culinário, conversando com cozinheiras como Babette.

Acompanha o cafezinho, do ensaio Post scriptum, um saboroso chocolate mentolado dedicado à ausência do amor e do prazer na educação. Pela minha leitura a partir da História, devemos compartilhar essa observação, já que nosso ofício está ligado à educação em todos os níveis da escola formal, do ensino básico até o superior. E, mesmo quando não nos dedicamos diretamente à docência, concentramo-nos em pesquisas, estamos a produzir um conhecimento que, para ter sentido de ser, carrega o devir de se dirigir a um público e servir como ferramenta do saber.

O gosto que fica na boca após a leitura desse livro delicioso é o sabor de um texto escrito com prazer. Metáforas na arte da escrita, permeada por imagens da culinária e da música, revelam a importância da experiência pessoal e da potência sensível para o exercício da pesquisa e construção do conhecimento científico. Para Rubem Alves, o primeiro passo é o sonho. Levar o corpo a trabalhar, por prazer, mais do que por dever. Que o professor se ponha a sonhar e a ensinar a sonhar… Por isso, encerro com uma frase do filósofo e escritor Euclides Sandoval, leitor de Nietzsche e professor durante 40 anos, do ensino básico à faculdade de Artes, em um de seus cadernos diários: “Antes de uma aula, é preciso que o professor durma… E sonhe”.

1 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 7.         [ Links ] 2 Idem, Ibidem, p. 9.
3 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e políticaEnsaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987.         [ Links ] 4 Alessandro Portelli, “A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais,” Tempo, vol. 1, n. 2, Rio de Janeiro, 1996, p. 59-72.         [ Links ] 5 Eduardo Coutinho, “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”, Projeto História, n. 15, São Paulo, 1997, p. 165-191.         [ Links ] 6 Henri Bergson, Matéria e memóriaensaio sobre a relação do corpo com o espírito, 4. Ed., São Paulo, WMF M. Fontes, 2010.         [ Links ] 7 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3. Ed., São Paulo, Cia das Letras, 1994.         [ Links ] 8 Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, Campinas, Editora da Unicamp, 2007.         [ Links ] 9 Roland Barthes apud Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 52.         [ Links ] 10 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 17.         [ Links ] 11 Dentre possíveis abordagens, menciono autores que situam o tema em suas áreas de estudo, com a ressalva de serem escolhas dentro de variado e saboroso menu! Roger Chartier debate a história entre certezas e inquietudes; Fritjof Capra dedica-se ao diálogo entre teorias das ciências físicas e biológicas, com sistemas políticos e sociais; Beatriz Sarlo pensa a emergência da cultura da memória a partir da guinada subjetiva. Cf. Roger Chartier, À beira da falésiaa história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2002.         [ Links ] Fritjof Capra, As conexões ocultasciência para uma vida sustentável, São Paulo, Cultrix, 2005.         [ Links ] Beatriz Sarlo, Tempo passadocultura da memória e guinada subjetiva, São Paulo, Cia das Letras; Belo Horizonte, UFMG, 2007.         [ Links ] 12 Aqui me refiro ao ensaio “O autor como produtor”, de 1934, Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e políticaEnsaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987.         [ Links ] 13 Roland Barthes, “A morte do autor” (1968), In: ______. O rumor da língua. 2. Ed., São Paulo, M. Martins, 2004, p. 65-78.         [ Links ] 14 Michel Foucault, O que é um autor?, 4. Ed., Lisboa, Passagens; Vega, 2000.         [ Links ] 15 Giorgio Agamben, “O autor como gesto,” In: ______. Profanações, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 55-62.         [ Links ] 16 Giles Deleuze, Felix Guatari, “Introdução: Rizoma,” Mil platôscapitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 11-37.         [ Links ] 17 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p.23.         [ Links ] 18 Durval Muniz Albuquerque Jr., HistóriaA arte de inventar o passado, Bauru, Edusc, 2007.         [ Links ] 19 João-Francisco Duarte Jr., O Sentido dos SentidosA Educação (do) Sensível, 4. Ed., Curitiba, Criar Edições, 2006.         [ Links ] 20 Rubem Alves, op cit., p. 147.

Tati Costa – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Florianópolis (SC), Brasil. E-mail: [email protected].

Desejo e prazer na Idade Moderna – MONZANI (RFA)

MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e prazer na Idade Moderna. 2. ed. Curitiba: Champagnat, 2011. Resenha de: VIEIRA, Fabiano de Mello. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.23, n.32, p.223-230, jan./jun, 2011.

Em Desejo e prazer na Idade Moderna, publicado primeiramente pela Editora da Unicamp e que recebeu agora da Editora Champagnat sua segunda edição, Luiz Roberto Monzani aponta os resultados parciais de uma pesquisa de fôlego realizada em seu estágio de livre docência em meados dos anos 1990. Motivado pela experiência em ler Sade de forma mais específica, Monzani encontra nos textos do Marquês a expressão mais nua e crua de algumas premissas que nortearam a Idade Moderna no que diz respeito à concepção de natureza humana. Com o cuidado em deixar seu campo teórico bem delimitado, o autor faz um recorte preciso nas teorias modernas, que, assim como Sade, apontam uma natureza humana passional, contrária à concepção clássica. Nessa trajetória, Monzani dialoga principalmente com Malebranche, Hobbes e Condillac, mostrando os movimentos realizados por cada um destes na elaboração de uma lógica própria das paixões.

O trabalho de Monzani é minucioso, valorizando sua forma muito particular de escrita e deixando claro, a cada linha, que, se a ideia de escrever sobre as paixões da modernidade do ponto de vista de uma seleção criteriosa de autores é uma tarefa um tanto quanto árdua, ele não a faz de outra maneira senão por meio de uma brilhante contextualização que se inicia na análise da chamada “querela do luxo”, o primeiro capítulo de um total de quatro.

O autor justifica a escolha feita para o começo da discussão da seguinte maneira:

de fato, o exame da chamada querela do luxo mostra-se exemplar para tentar compreender o conjunto das transformações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o século XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das novas concepções (sobre o desejo e o prazer) (p. 21).

Partindo daí, Monzani mostra que os textos de Voltaire escritos a partir de 1736 geraram muita polêmica ao apontar uma apologia aos tempos modernos, em que o luxo é produto dos avanços científicos e tecnológicos, e principal responsável pelo desenvolvimento do comércio nas sociedades. Ou seja, haveria, portanto, uma “vantagem” dos tempos modernos diante dos antigos e o luxo seria um dos responsáveis por tal consequência.

Quando o luxo começa a fazer parte do cotidiano das pessoas, iniciam-se, de forma mais maciça, os ataques a ele. A primeira a atacar foi a Igreja, tomando como exemplo Fénelon (arcebispo de Cambray, exemplo de ordem rígida e norma do bem comum). Para Fénelon, “o luxo é um dos maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como de deter a inconstância das modas” (p. 29). A razão deve predominar e o luxo adquire status de desvio, patologia. Monzani dá ainda algum destaque para La Bruyère e Bayle, que a partir de suas críticas contrárias à Fénelon – mas cada qual com sua maneira muito particular de abordagem – incrementaram a discussão. O primeiro, aproximando-se mais de Fénelon, exalta algumas virtudes, como coragem e honra, e as coloca em oposição às exigências de uma vida luxuosa, enquanto Bayle critica o saudosismo das posições anteriores e coloca a renúncia ao luxo no campo de uma necessidade das sociedades desfavorecidas da época. Ou seja, para Bayle, a ordem moral não teria tanta força diante da necessidade.

Todo esse percurso na história do luxo ao longo do tempo se justifica no final do capítulo, com a explanação sobre a “Fábula das Abelhas” de Mandeville, que narra a história de uma colmeia (como espelho da sociedade humana) marcada pela desonestidade e pelo egoísmo, mas que vive em plena prosperidade. A abordagem feita por Mandeville denuncia a essência naturalmente egoísta do homem, porém, necessária para o desenvolvimento de uma sociedade próspera e feliz. Necessária, pois obedece a um critério utilitarista que visa à produção de benefícios individuais e consequentemente coletivos. O fato é que, após alguns desdobramentos teóricos, a questão do luxo para nosso autor resume-se da seguinte forma:

o problema do luxo faz o primeiro rompimento com a cadeia tradicional: necessidade – desejo – satisfação e remete a outra: desejo – necessidade indeterminada – elaboração imaginária – concretização do objeto – satisfação fugaz – desejo (p. 69).

É sobre o desejo que Monzani trata no segundo capítulo. Ele parte do desejo que tem como par de oposição a aversão e que se junta com outros dois pares: amor/ódio e prazer/desprazer, formando assim a lógica que perdura desde a antiguidade e que é assim apresentada por Santo Tomás. O amor a um bem supremo (summum bonum) guiará todas as paixões do homem. Para Santo Tomás, por exemplo, Deus representa esse bem e, assim, segue-se a lógica nas palavras de Monzani:

o objeto apreendido é, em primeiro1ugar, amado (ou odiado) e, em virtude desse ato passional primordial primário, passa a ser desejado (ou não) e sua posse levará à delectação (ou não) (p. 76).

Thomas Hobbes é o primeiro a fazer uma importante inversão dessa montagem, no século XVII, porém, é fato que a atenção hobbesiana mostrou-se mais inclinada ao “produto” advindo da natureza do homem do que ela propriamente. Para Hobbes, as experiências são vivenciadas enquanto movimento em um primeiro momento e atendem também à exigência de um movimento – o vital – até chegarem ao coração e alcançarem o estatuto de paixões. Nesse retorno são qualificadas como “boas” ou “ruins”, provocando prazer ou aversão, respectivamente. Essa qualificação se dá em relação à sua participação junto ao movimento vital. Ou seja, há uma tendência a ser “bom”, o movimento que vai em direção à autopreservação – primeira lei natural do homem. A necessidade de se autopreservar leva o homem ao egoísmo em seu grau máximo e, dessa forma, aproxima-se da ideia lançada por Mandeville e sua “Fábula das abelhas”.

Contudo, essa idéia, segundo Monzani, fez com que alguns autores, como Gadave, Malherbe e Magri, reconhecessem o par prazer/ dor como fenômeno primeiro na lógica das paixões, porém, não é essa a ideia que nosso autor expõe. Sua leitura a respeito da lógica passional em Hobbes supõe o desejo como item primeiro da tríade, atuando em parceria com o conatus – movimento vital. Ou seja, o que vem primeiro é o conatus, que de certa forma é desejo de conservação de si.

Assim diz Monzani:

não há nenhum dualismo original em Hobbes, como se poderia ser levado a pensar: existe uma única tendência, que nos inclina a certas coisas, e nos leva a repudiar outras. É o mesmo desejo que se especifica em aproximação ou distanciamento, conforme o caso. Desejo de autoconservação (p. 93).

O prazer para Hobbes, segundo Monzani, seria “o efeito benéfico do movimento vital” (p. 97) e o amor se dá quando o objeto de desejo está presente. Como é possível perceber, os elementos da lógica passional continuam os mesmos e o que muda é a ordem em que se encontram.

Considerando o desejo em Hobbes como algo que mantém a sua essência inquieta, Monzani, em seu terceiro capítulo, aprofunda essa noção a partir do ponto de vista de alguns outros autores, dentre eles Malebranche e Locke.

Malebranche era um padre que, sobre influência direta de autores cristãos, como Santo Agostinho e São Tomás, conceituou a vontade como uma inclinação irresistível ao bem – à felicidade. “Aos olhos de Malebranche só há um motivo de amor: a felicidade, que nada mais é que o estado de prazer” (p. 149). A inquietude para esse autor encontra fundamento na característica finita do bem em satisfazer o desejo de felicidade, visto que o homem não tem Deus como a única causa dos prazeres. Ou seja, a busca contínua de felicidade elege objetos finitos como estatutos do bem enquanto tal, em uma sucessão também contínua. A conclusão é que nenhum objeto traz a felicidade completa e, pensando assim, Malebranche se mantém fiel à tradição agostiniana de que a inquietude nada mais é do que

o movimento incessante em direção a Deus que nos criou para ele, para amá-lo, que obedece à estrita definição de vontade entendida como movimento para o bem em geral e que nos ilumina, a cada repouso, no sentido de apontar para a insuficiência dos bens particulares, não invencíveis, reconduzindo essa própria vontade no ultrapassamento progressivo dessas mesmas coisas finitas (p. 155).

Malebranche ainda nos possibilita outra leitura da inquietude, agora em um plano horizontal, da experiência da consciência, mostrando que a característica indefinida do desejo é inerente à natureza humana. Segundo Monzani, essas duas leituras representam “a estrita consequência da dupla concepção de vontade que analisamos antes: como movimento em direção ao bem e como desejo de felicidade” (p. 158). Esse polo antropocêntrico da teoria malebranchista muito se assemelha à noção de desejo em Hobbes, porém, é preciso destacar uma diferença fundamental. Malebranche contesta o caráter originário do desejo, pois se é renovado incessantemente é porque existe algo anterior, impulsionando-o.

Ainda trabalhando o capítulo sobre a inquietude, Monzani acrescenta à discussão a teoria de Locke, que, a partir de uma laicização da teoria malebranchista, inaugura a tendência que prevaleceu no final do século XVII e boa parte do século XVIII. A partir da ideia de um uneasiness – termo que mais tarde encontrou em “inquietude” sua melhor tradução – diz que o homem busca a felicidade, porém, uma felicidade palpável, resultante de um estado de deleite/prazer. Ele chama de bem aquilo que proporciona o prazer ou diminui o desprazer, o contrário chama de mal. Todas as ações do homem buscam, então, eliminar o uneasiness e, consequentemente, produzir prazer que constitui a felicidade. Sendo assim, uneasiness pode ser definido como uma insatisfação que coloca em movimento.

Monzani, mesmo após uma verdadeira “dissecação” da uneasiness lockeana, em alguns momentos ainda não é capaz de torná-lo livre de comparações com a teoria malebranchista e a hobbesiana. Ora se aproxima da noção de inquietude de Malebranche, ora assemelha-se com a noção de desejo em Hobbes, mas tal complexidade não passou despercebida por Monzani. Assim ele diz:

de qualquer maneira, de Hobbes a Locke, via Malebranche, a análise enriqueceu-se e aprofundou-se. O mesmo fenômeno aparece dotado de significações inéditas. Mas isso foi conseguido à custa de ambiguidades, de deslizes conceituais e lexicais (p. 185).

O certo é que essa passagem por Locke possibilita o encontro com a teoria de Condillac, seu seguidor e responsável pela operação da última inversão na lógica das paixões e que é tratada no quarto capítulo do livro. Monzani observa que na obra chamada O tratado das sensações, de 1754, Condillac utiliza-se da metáfora da estátua de mármore como ficção metodológica para embasar sua hipótese de que nunca se conhece a natureza mais íntima das coisas, apenas aquilo que nos é sensível. Para ele, “há duas coisas a serem consideradas: o dado inicial, a percepção, e o conjunto das diferenciações progressivas, a que esse dado se submeterá até atingir seu grau pleno, que é o que se denomina o conhecimento” (p. 193). Dessa forma, pensar uma estátua de mármore como apenas uma estrutura receptiva, livre de qualquer conhecimento prévio, possibilita o entendimento do caminho proposto por Condillac na constituição de um sujeito.

Monzani aponta que Condillac examina individualmente cada um dos sentidos, fazendo uma espécie de montagem (desmontagem) da máquina sensível, de modo a entendê-la posteriormente na relação entre os diversos sentidos. As sensações trariam então contentamento ou descontentamento a partir de experiências de prazer ou desprazer, respectivamente. Para Condillac, o prazer, bem como a dor (desprazer), pode ser corporal ou espiritual, sendo apenas os corporais sensíveis, enquanto os espirituais acontecem em um nível intelectual. As experiências de prazer e desprazer vividas pelo sujeito provocam o movimento de aproximação do que lhe causou prazer ou afastamento daquilo que lhe causou desprazer, iniciando assim o ciclo formado pela seguinte ordem estabelecida: “prazer/dor – inquietude – necessidade – desejo – satisfação” (p. 246). Condillac resume a nova ordem da seguinte maneira

mudemos a cena, e suponhamos que a estátua tenha obstáculos a ultrapassar para obter a posse daquilo que deseja. Agora as necessidades subsistem por muito tempo antes de serem satisfeitas. O mal-estar, fraco em sua origem, torna-se insensivelmente mais vivo; ele se transforma em inquietude, por vezes termina em dor. Enquanto a inquietude é leve, o desejo tem pouca força, a estátua sente-se pouco pressionada a gozar: uma sensação viva pode distraí-la e suspender sua dor. Mas com a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em que ele age com tanta violência, que só se encontra remédio no gozo: ele se transforma em paixão (CONDILLAC 1947-1950 apud MONZANI, 2011, p.241)

A diferença entre Locke e Condillac, nesse ponto, está na distinção que Condillac faz entre inquietude e desejo, caracterizando o primeiro como algo que “despertaria” o desejo a partir de sentimentos desagradáveis intensos, enquanto em Locke a inquietude pode ser entendida como derivada do próprio desejo. Essa nova lógica sugerida por Condillac – em que se encontra a primazia do prazer – rompe com o ciclo da necessidade e possibilita o aparecimento do supérfluo. Nesse ponto, é possível perceber a intenção de Monzani ao justificar a importância de trabalhar minuciosamente no primeiro capítulo o conceito de luxo e suas variações ao longo da história. A inversão total da escala que se inicia com a primazia do amor perante as outras paixões coloca ainda o desejo nessa posição, em Hobbes, até alcançar a ordem estabelecida por Condillac, em que o prazer inicia a cadeia.

Na conclusão, Monzani reforça a ideia de que se trata de uma pesquisa em andamento e, portanto, o que se tem são resultados de um percurso que, ao chegar nesse ponto, se desdobra ainda em algumas outras possibilidades, dentre elas duas em especial. A primeira trata- -se de uma possível articulação entre a ideia de estátua em Condillac e a de sujeito em Rousseau como tendo um mesmo ponto de partida; e a segunda na inclusão da discussão sobre o “sexo” – resultante dessa revalorização do princípio do prazer – no discurso filosófico.

Por fim, pode-se dizer que a obra Desejo e prazer na Idade Moderna, de Luiz Roberto Monzani, possui elementos que a caracteriza como um criterioso exemplar de história da filosofia, cheio de contextualizações, e uma excelente amarração entre os diversos autores escolhidos, porém, não se limita a isso, pois o rigor com que trata os conceitos “cirurgicamente” delimitados demonstra também a veia epistemológica do autor.

Fabiano de Mello Vieira – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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Prazeres dissidentes. – DÍAZ-BENÍTEZ; FIGARI (REF)

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 600 p. Resenha de: NICHINIG, Claudia Regina. Entre a perversão e a dissidência: práticas sexuais, corpos e prazeres. Revista Estudos Feministas, vol. 18, no. 3, p. 943-945, setembro-dezembro – 2010.

Ao publicizar novas pesquisas sobre formas de sexualidade no Brasil, a partir de novos e velhos enfoques revisitados, Prazeres dissidentes demonstra a importância e a efervescência do campo. A coletânea lançada em setembro em Buenos Aires, em outubro em São Paulo e em novembro de 2009 no Rio de Janeiro é fruto do encontro de pesquisadores no Grupo de Trabalho “Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais ‘dissidentes’: paradigmas teóricos e etnográficos”, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 2007, durante a VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM).

Permeado por autores como Michel Foucault e Georges Bataille, considerados autores clássicos no estudo do erotismo e da sexualidade, e somadas as discussões teóricas levantadas por Judith Butler, principalmente no artigo de abertura da coletânea de Vitor Grunvald,1 que traz com propriedade a discussão acerca dos conceitos de abjeção, política da performatividade e lesbianidade, o livro se divide em quatro partes – “Corpos e interações de fronteira”, “Encontros ao avesso”, “Sociabilidades fluidas” e “Jogos proibidos” -, que revelam formas de sexualidade e busca de prazeres considerados marginais. Leia Mais

Páginas de prazer – DeNIPOTTI (HE)

DeNIPOTTI, Cláudio. Páginas de prazer. Campinas: UNICAMP, 1999. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. Sobre o prazer. História & Ensino, Londrina, v. 6, p. 203-205, out. 2000.

Podemos imaginar um distinto senhor caminhando pelas ruas empoeiradas de Curitiba, numa tarde quente de verão, nos anos dez. O fraque, a cartola e a bengala não traem a distinção de um jovem advogado.

A cidade pretende cosmopolitismo e, às vezes, os sons urbanos até enganam; engraxates, vendedores de jornais, ambulantes, conversas pessoais trazem consigo as vozes dissonantes, por um momento, da imigração em massa.

Flanando calmamente, o nosso distinto senhor aproveita os lentos minutos que seguem o almoço, que seus amigos chamam de déjeuner, numa inútil tentativa de se sentirem mais próximos da sonhada Europa.

Ele caminha em direção à Biblioteca Pública e, evidentemente, deseja que conhecidos notem a sua entrada no prédio, assim, manteria a imagem de letrado. Poucos passos faltam para o prédio, quando uma bela senhora, acompanhada pela ama, de traços joviais e muito bem vestida cruza-lhe o caminho. Rapidamente, retira o chapéu e cumprimenta a jovem senhora, que lhe retribui com um sorriso e um longo olhar de soslaio, pelo menos foi o que imaginou.

Isto foi preocupante. A esposa de seu melhor amigo. Alguns pensamentos impuros lhe assaltam a mente. Um conflito interno toma proporções épicas: ao mesmo tempo que se deleita com os devaneios carnais, sente-se extremamente culpado. Sonha com o colo da bela dama, mas, vê-se execrado pela sociedade.

Ao adentrar a biblioteca, desiste do compêndio de direito que iria consultar e, envergonhado, sem o demonstrar, solicita a obra de Mantegazza, Higiene do amor. Preocupa-se, agora, com a normalidade dos seus pensamentos. Até onde, para ele, aqueles pensamentos impuros são desvios patológicos?

Enquanto toma o livro na mão, tenta se consolar afirmando a si mesmo que, pelo menos, não era pederasta, provado pelo desejo que o assolou a poucos instantes.

A consulta ao livro poderia lhe ajudar a resolver o conflito entre o desejo e a situação social. De suas páginas, reafirmase a superioridade do casamento monogâmico e, esperança longínqua, o médico aceita o divórcio como solução para casamentos infelizes (claro que sob certas circunstâncias). Convencido, de certa maneira, pelas orientações do médico que, para ele, tinha atingido um grau superior do conhecimento, como quase todos os médicos, encerra a consulta e retorna ao seu escritório de advocacia.

Talvez, esse personagem imaginário, que parece saído de uma obra literária considerada “água-com-açúcar”, não fosse tão incomum naqueles dias. O saber médico atingia o seu ponto culminante, entre os letrados, como ciência que explicava a vida e determinava a melhor maneira de vivê-Ia, superando, para muitas pessoas o papel, da Igreja. Sendo assim, as orientações que partiam desse saber tinham quase força de lei.

É justamente neste universo mental, que Cláudio DeNipotti aventurou-se com o seu livro Páginas de Prazer (Editora da UNICAMP, 1999). Inspirado pelas proposições de Robert Darton sobre leitura, o autor busca, numa pesquisa minuciosa, compreender o universo dos leitores da Biblioteca Pública do Paraná, durante a década de dez, no início do século.

Não vamos estranhar se pudermos imaginar um leitor como o jovem advogado acima, ou centenas de outros personagens, após a leitura do livro. Fugindo do padrão de trabalhos acadêmicos, o texto nos remete para o mundo dos leitores que buscam orientações, explicações, respostas ou, até mesmo, o simples prazer, para as suas sexualidades. E este é um trabalho difícil, pois o autor, aqui no caso, o historiador, deve seguir indícios muito tênues, quase imperceptíveis. Os livros de consultas da biblioteca, redescobertos ao acaso, puderam indicar alguns caminhos, mas não se tornariam algo, sem o trabalho indiciário executado pelo autor.

Para conduzir o leitor nesse seu trabalho, o autor, utilizando um recurso original, cria um personagem, um bibliotecário bem plausível, que irá nos ciceronear pelas ruas de Curitiba e pelas leituras de alguns freqüentadores da Biblioteca Pública.

O texto é construído numa relação constante entre o particular e o geral, isto é, a partir das leituras individuais de obras que tratam direta ou indiretamente sobre a sexualidade, podemos perceber como era pensada esta questão por uma camada da população que se quer letrada e culta.

Assim, acredito que o livro em questão conseguiu atingir o que François Furet chamou de primum movens do historiador, a curiosidade intelectual e a atividade gratuita de conhecimento do passado (Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989). O que DeNipotti nos traz é a redescoberta de personagens há muito esquecidos, de preocupações cotidianas mas que pouco aparecem nos nossos livros de História. Pode caber ao título do livro, resumi-lo. Efetivamente, são páginas de prazer.

André Luiz Joanilho – Professor Adjunto da UEL e do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL

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