Schopenhauer e seus discípulos a partir de correspondências – SCHOPENHAUER (V-RIF)

SCHOPENHAUER, A. Carteggio con i discepoli. 2 volumes. Organização e tradução de Domenico M. Fazio. Lecce: Pensa MultiMedia, 2018 (Schopenhaueriana, 12). Resenha de: CIRACÌ, Fabio; DEBONA, Vilmar. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v9, n.1, jan./jun., p.173-179, 2018.

Nos últimos anos a pesquisa internacional sobre o pensamento e a fortuna de Schopenhauer experimenta um momento de fermentação intelectual particularmente flórido, conduzido de forma sábia pelo Prof. Matthias Koßler, presidente da Schopenhauer-Gesellschaft e da SchopenhauerForschungsstelle de Mainz/Frankfurt am Main. Tal efervescência cultural pode ser notada, por exemplo, pela necessidade de se publicar uma segunda edição, atualizada e melhorada, do Schopenhauer-Handbuch, da Editora Metzler (2018), a menos de quatro anos de sua primeira edição (2014), esgotada. A referida efervescência é confirmada também pela recente edição das Preleções sobre Filosofia geral ou A doutrina da essência do mundo e o espírito humano – Volume 4: Metafísica dos costumes (Meiner Verlag, 2017), assim como do Volume 3: Preleções sobre Filosofia geral: Metafísica do belo, previsto para julho de 2018. Uma ulterior confirmação da vivacidade intelectual da Schopenhauer-Forschung é fornecida não apenas pelo sucesso dos últimos congressos internacionais, como o recente VIII Colóquio Internacional Schopenhauer, organizado pela Seção Brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft, em Curitiba, mas também pelas sempre crescentes traduções dos Werke de Schopenhauer em todo o mundo, como a recente e valiosa tradução do Tomo II de O mundo por Eduardo Ribeiro da Fonseca (Editora da UFPR, 2014), bem como aquela, do mesmo livro, empreendida por Jair Barboza (Editora Unesp, 2015). Muito significativa é, enfim, a abertura de uma Seção Espanhola da Sociedade Schopenhauer, conduzida pelo ativo Carlos Javier González Serrano.

Na Itália, pelo incentivo do Prof. Domenico M. Fazio, está em andamento, há mais de dez anos, uma verdadeira Schopenhauer-Renaissance. Tal renascimento teve início com a fundação do Centro interdipartimentale di ricerca su Schopenhauer e la sua scuola da Università del Salento (2005) e com a instalação da Seção Italiana da SchopenhauerGesellschaft (2011). As pesquisas do Centro e da Seção traduziram-se de imediato em numerosas publicações, sobretudo aquelas veiculadas pela prestigiosa Coleção universitária Schopenhaueriana (Pensa MultiMedia, Lecce) que, com o Carteggio con i discepoli (doravante, Correspondências com os discípulos), de A. Schopenhauer, chega ao seu décimo segundo volume. Somente no último ano vieram à luz, na Itália, duas expressivas obras: a fundamental tese de Alessandro Novembre sobre Il giovane Schopenhauer. L’origine della metafisica della volontà (Mimesis, 2018, 624 p.) e o estudo histórico-analítico de Fabio Ciracì sobre La filosofia italiana di fronte a Schopenhauer. La prima ricezione (1857-1914) pela Pensa MultiMedia (650 p.).

A última grande e preciosa colaboração dessas pesquisas à comunidade científica e aos apaixonados por Schopenhauer são justamente os dois volumes de A. Schopenhauer, Correspondências com os discípulos, que consiste na edição e tradução de todas as cartas entre Schopenhauer e seus discípulos, organizada pelo Prof. Domenico M. Fazio, com 960 páginas. Trata-se de um epistolário com um total de 319 cartas. As novidades contidas na publicação dessas correspondências são numerosas e importantes, e terão de ser levadas em conta pelas pesquisas futuras. Em primeiro lugar, preenche-se, com ela, uma lacuna da editoria científica italiana: vem à luz, finalmente, uma tradução completa das correspondências entre Schopenhauer e seus discípulos, inteiramente nova e inédita em língua italiana, com exceção apenas de alguns fragmentos de cartas traduzidos em As Conversações (I Colloqui), organizadas pelo incomparável A. Verrecchia (BUR, Milão, 2000). Além disso, as Correspondências com os discípulos fornecem ao leitor um poderoso conjunto de notas e documentos capaz de corrigir, integrar e completar as edições major publicadas até o momento, inclusive em língua alemã: a edição iniciada por Paul Deussen (1928-1942, com 866 cartas) e completada por Arthur Hübscher (1978, 1987), e a última (a melhor), que foi publicada na terceira edição das cartas (2008) em versão eletrônica para o Schopenhauer im Kontext III. Comparada a todas essas edições, as Correspondências com os discípulos, organizadas por Domenico M. Fazio não apenas são mais completas e precisas, mas também mais ponderadas e atentas em relação às fontes, dado que corrigem os não poucos erros contidos nas edições precedentes, até mesmo os equívocos do histórico presidente da Schopenhauer-Gesellschaft e organizador dos Werke schopenhauerianos, Arthur Hübscher, célebre (talvez equivocadamente) por sua acribia filológica. Mas isso faz parte da lógica do avanço das pesquisas, que se aperfeiçoam de tempos em tempos, em um processo de contínua e gradual melhoria.

Voltemo-nos, então, às Correspondências com os discípulos. Fazio restitui ad integrum, de maneira oportuna e precisa, fontes documentais e referências de naturezas variadas (filosofia, literatura, ciências e artes) sobre as quais Schopenhauer e seus interlocutores discutem nas cartas. Os textos são agilmente reconduzidos aos contextos, uma vez que as referências frequentemente implícitas, às vezes quase ocultas, entre remetente e destinatário são esclarecidas à luz de debates e querelas que o organizador das correspondências, com sabedoria, entrega ao leitor de modo claro, construindo em forma de notas uma espécie de subtexto paralelo, uma robusta urdidura para a densa trama das cartas. Deste ponto de vista, a publicação das correspondências de Schopenhauer com os seus discípulos consiste no complemento, centrado na Escola em sentido estrito, da documentação contida na antologia La Scuola di Schopenhauer: testi e contesti, publicada na Schopenhaueriana, em 2009. A antologia, de fato, apresentava como introdução um longo ensaio do próprio Fazio, no qual foram descritos os contextos relativos à Schopenhauer-Schule, que introduziam pela primeira vez o leitor no pensamento dos maiores Schüler e o instruíam, de forma sistemática, acerca da articulação interna da Escola, entendida em sentido estrito, ou seja, aquela dos alunos conhecidos direta e pessoalmente pelo filósofo de O mundo (apóstolos e evangelistas), ou mesmo da escola em sentido lato, dos metafísicos Eduard von Hartmann, Julius Bahnsen, Philipp Mainländer; ou ainda dos grandes schopenhauerianos heréticos, como Paul Rée, Georg Simmel, Friedrich Nietzsche e Max Horkheimer; e, finalmente, dos guardiões da tradição, como Paul Deussen, Hans Zint, Arthur Hübscher e Rudolf Malter.

Ora, com a mesma acuidade, Fazio introduz as Correspondências com os discípulos com um rico ensaio sobre “a Escola de Schopenhauer através da correspondência com os discípulos”, que soma 137 páginas. Trata-se de uma verdadeira dissertação, na qual Fazio não apenas apresenta os protagonistas das cartas, mas tem presente os numerosos fios temáticos que se desdobram ao longo das correspondências, indicando os principais temas de debate, conduzindo o leitor em meio a um denso epistolário com a familiaridade e a simplicidade de um longo e reflexivo conhecimento da obra e da vida de Schopenhauer.

O aparato contém verdadeiras pérolas, incluindo algumas descobertas interessantes, às quais Fazio chega por meio de um meticuloso trabalho de escavação filológica, servindo-se para tanto, dentre outros instrumentos, dos mais avançados sistemas de pesquisa para a recuperação de fontes de dados na rede. Dentre as referidas descobertas, para ficarmos com alguns exemplos, está a primeira resenha dos Parerga e Paralipomena, publicada em Hamburg em uma revista feminina de moda (para grande surpresa do próprio Schopenhauer); e também encontramos o texto, escrito em 1851 por Frauenstädt, mas revisado e corrigido pelo próprio filósofo de O mundo, para o tópico “Schopenhauer” do célebre Léxico de conversas, de Meyer.

Além disso, Fazio tira do esquecimento histórico algumas personalidades intelectuais de certa expressividade que, embora desconhecidas para a maioria, eram importantes interlocutores do Sábio de Frankfurt. Entre eles, aparecem as figuras de Carl Georg Bähr e Johann August Becker, dois pensadores que teriam privilegiado o caminho marcado por seus estudos do Direito: o primeiro é o autor de uma obra intitulada A filosofia schopenhaueriana em seus traços fundamentais, que Schopenhauer apreciou muito; já o segundo, considerado por Schopenhauer como “o apóstolo mais douto”, é o protagonista de uma densa correspondência que põe o mestre frente a questões problemáticas e a possíveis contradições de sua metafísica e de sua ética. Becker leva um serrado confronto epistolar com o mestre, as suas dubia são expostas de forma tão rigorosa e com profundida teórica que, em um certo momento, Schopenhauer deixa passar as perguntas do estudante talentoso. Além disso, contra a vontade do mestre, entre os discípulos se difunde uma cópia não autorizada das cartas de Becker com Schopenhauer, tamanho o interesse que elas despertavam entre os outros Schüler.

Mas numerosos são os personagens que preenchem as páginas dessa rica correspondência, alguns dos quais muito pitorescos, alguns outros, no limite do grotesco. É o caso do pregador católico Georg Christian Weigelt, “evangelista ativo e fanaticamente fiel”, com as suas aulas populares sobre Schopenhauer. Ou o caso de Carl Grimm, que assina seus epigramas filosóficos com os evocativos noms de plume de Placidus ou Carolus Mirgius. Ou ainda o caso do agricultor Carl Ferdinand Wiesike, seguidor de Schopenhauer, ao qual erigiu uma capela, celebrando uma espécie de missa laica. Sem contar que em volta de Wiesike havia se formado uma “comunidade silenciosa de hereges e santos extravagantes”, sobre a qual Nietzsche também escreverá. Mas aquele que – dentre todos os seguidores, apóstolos, evangelistas ou meros admiradores desta surpreendente Escola – ostenta a maior simpatia é Julius Frauenstädt, incansável promotor das obras do mestre e fiel discípulo: é ele quem segue Schopenhauer ao longo de uma extenuante caminhada por Frankfurt, em busca de respostas sobre o mistério da vontade metafísica. É também ele quem, continuamente, por carta ou pessoalmente, indaga o mestre sobre a natureza do Wille ou sobre a questão da liberdade individual. E é ele quem se documenta quanto às publicações relativas ao mestre, sugere ingenuamente comparações (como aquela entre Schopenhauer e Helmholtz) que não só perturbam Schopenhauer, mas que são motivos de terríveis reprimendas por parte do mestre a Frauenstädt. É o caso das Cartas sobre a filosofia schopenhaueriana (1854), que o bom Frauenstädt publica, emulando as famosas cartas de Karl Leonhard Reinhold sobre Kant. O julgamento que Schopenhauer expressa sobre as Cartas, em sua carta de resposta a Frauenstädt, não permite réplica: após ter nomeado com gratidão o discípulo como Erzevangelist, Schopenhauer passa às críticas: “Já que nada é perfeito, gostaria de mostrar-lhe o que eu gostaria que fosse feito de forma diversa”, e elenca os numerosos defeitos da obra. Finalmente, Schopenhauer envia ao mal compreendido discípulo a sua própria versão do trabalho daquele, glosada e marcada com numerosos corrigenda. Entre altos e baixos, o pobre arque-evangelista tentará arcar com o fardo de cada reprimenda do mestre e, mesmo fazendo de tudo e de todas as formas – por exemplo, procurando um editor para os Parerga, escrevendo artigos e obras in nomine magistri – nunca mais receberá do mestre aquele atestado de estima que o filósofo endereça a outros discípulos, como a Bähr e a Becker. A fidelidade de Frauenstädt a Schopenhauer, no entanto, é exemplar, prossegue mesmo após a morte do mestre, de quem ele passa a ser testamentário para os escritos científicos. Além disso, Frauenstädt providencia o lançamento da primeira edição dos Werke, publica um léxico schopenhaueriano comentado, que permanecerá insuperável por muito tempo. Junto a outro discípulo, o doctor indefatigabilis Ernst Otto Lindner, defende a memória de Schopenhauer da maledicente biografia escrita pelo aluno “apóstata” Wilhelm Gwinner, na qual Schopenhauer é descrito como um pensador misantropo, bizarro e avarento. Uma imagem (a representada por Gwinner) que logrou espaço em uma época e que, com isso, condicionaria a recepção do pensamento schopenhaueriano, obstaculizando a ideia de o Sábio de Frankfurt poder contar com numerosos discípulos e com uma Escola.

O epistolário se encerra com as cartas do jovem Julius Bahnsen a Schopenhauer no ano de sua morte. Encerra-se assim a Escola em sentido estrito, aquela dos discípulos diretos de Schopenhauer, e se abre, de outro modo, aquela dos Schüler metafísicos, à qual o filósofo dinamarquês pertencerá por direito com a publicação das Contribuições à caracterologia (1867) e de A contradição na ciência e na essência do mundo (18801882), passando para a história como o schopenhaueriano metafísico mais radical.

Provavelmente o que mais chama a atenção em Correspondências com os discípulos é o fato de que, contra todas as expectativas, o diálogo contínuo, às vezes serrado com seus discípulos, inclusive sobre questões centrais e relevantes do sistema filosófico (a discussão sobre o pessimismo, a questão da conversão total da voluntas, o problema da liberdade individual etc.) não parece levar Schopenhauer a revisar ou retroceder em sua doutrina filosófica. O filósofo é resoluto. Seu posicionamento pode, eventualmente, mudar em relação ao destinatário – às vezes é mais impetuoso (com Frauenstädt), às vezes mais prudente (com Becker) -, mas isso se deve à estima intelectual atribuída ao interlocutor do momento. No entanto, não há retornos ou redefinições referentes ao seu sistema metafísico ou a algum tema específico.

Mesmo antes de ser admirado como mestre por um grande grupo de discípulos, Schopenhauer havia mitigado algumas de suas proposições metafísicas fundamentais elaboradas na juventude. De fato, lembremos que na primeira edição de O mundo, de 1819, Schopenhauer era um decidido jovem de trinta e poucos anos, que afirma sem titubear ter resolvido o problema de Kant, fazendo a vontade coincidir totalmente com a coisa em si. Com a publicação das Ergänzungen a O mundo, em 1844, entretanto, o filósofo, agora com 56 anos, expressa um posicionamento mais cauteloso: no célebre capítulo 50 de O mundo, intitulado “Epifilosofia”, Schopenhauer imprime uma nova dimensão metafísica e epistemológica à sua filosofia, mais próxima a Kant: o Wille já não coincide de forma irrestrita com a coisa em si, mas torna-se uma espécie de fenômeno primitivo e originário (Urphaenomen), a última portinhola (ou o último véu de Maja) antes do noumenon. Esta mudança de perspectiva se faz inteiramente presente nas cartas, atuando como um verdadeiro escudo hermenêutico. Schopenhauer deixa isso claro para Becker em uma carta de 21 de setembro de 1844: “Aqui estão o caminho e a ponte, a porta que leva para fora do mundo: eu só posso mostrá-la, mas não abri-la para o senhor, nem posso dizer o que há para além dela e o que acontece lá, nem como é, fora do tempo, aquilo que no tempo se apresenta como mudança”. Aliás, de mistério e de presença misteriosa se imantam, com frequência, as respostas que Schopenhauer endereça às questões cada vez mais prementes dos alunos, que reivindicam mais orientações sobre a natureza da vontade, e que apresentam ao mestre, entre prudência e cautela, algumas contradições ou aporias de seu sistema. Schopenhauer, porém, não se abala, colocando-se serenamente no limiar daquela ponte, considerando, sim, as questões, mas sem visar qualquer solução para elas: “Pode-se perguntar – escreve na Epifilosofia – até onde chegam, na essência em si do mundo, as raízes da individualidade”, mas nenhuma resposta afirmativa pode ser dada. Nesse sentido, Schopenhauer pretende consolidar suas conquistas filosóficas, mas certamente não colocá-las em xeque. E é nesses termos que se deve ler também a ideia de Escola por parte de Schopenhauer: não é por acaso que o filósofo de O mundo, fundador da ética laica e ateia, recorre muitas vezes à metáfora religiosa da igreja, composta por apóstolos e evangelistas. Seu objetivo é conquistar à sua causa novos seguidores, possíveis divulgadores de sua filosofia, desde que estes tenham chegado, antes, à verdade. Como em todo culto que se preze – laico ou religioso -, também os dogmas metafísicos da doutrina schopenhaueriana levaram a numerosas heresias: com implicações cátaras, como o Weltdysangelium pessimista de Bahnsen, ou mesmo com os reformadores, como o Inconsciente de Hartmann e a morte de Deus de Mainländer, ou ainda com os verdadeiros heresiarcas, como Nietzsche ou Rée. Mas as sementes heréticas dessas declinações do schopenhauerismo já estavam presentes na Escola em sentido estrito e nas discussões entre discípulos e mestre.

Portanto, quem pretendesse ler as Correspondências com os discípulos esperando encontrar nelas retratações ou revisões de teses sustentadas pelo filósofo nas obras publicadas ficaria desapontado. É claro que às vezes Schopenhauer concede explicações que a um leitor atento podem parecer menos sistemáticas do que em O mundo ou nos escritos sobre Ética. Vez ou outra o filósofo recorre a metáforas, mas é o próprio Schopenhauer quem sempre remete os discípulos às obras, indicando que já havia esclarecido tudo nos escritos publicados. Schopenhauer, por outro lado, busca continuamente as “provas empíricas” de sua metafísica da vontade, mesmo quando se arrisca a incorrer em solenes enganos, como aquele relativo às “mesas giratórias” e ao mesmerismo, todos fenômenos que ele interpreta à luz da vontade na natureza, como confirmado pela presença de um Wille ainda não objetivado em objetos.

No entanto, duas coisas saltam aos olhos do leitor: a primeira é a vastidão dos interesses culturais de Schopenhauer, que transparece em cada uma das páginas das correspondências, sua insaciável Wissensdurst, sua sede de conhecimento para cada ramo do conhecimento, filosofia, arte, ciência ou religião; o segundo é o desejo de ser universalmente reconhecido como filósofo: as cartas testemunham a tentativa inesgotável de ostentada autopromoção, de afirmação das próprias descobertas e méritos, a luta para ser reconhecido como o único e autêntico herdeiro da filosofia crítica de Kant.

Além de ser uma preciosa mina de informação, e além de apresentar-nos uma galeria discreta de personalidades intelectuais, algumas delas muito interessantes, as Correspondências com os discípulos oferecem ao leitor não apenas uma imagem mais nítida do homem Schopenhauer, como também, por meio do espesso diálogo com as notas e as fontes discutidas, o organizador do epistolário recria um universo intelectual e um horizonte histórico que a crítica muitas vezes negligencia. A figura de Schopenhauer resulta certamente menos idealizada, menos associada ao mito do gênio indomável ou à figura do bizarro misantropo, mas a dimensão do pensador resulta enriquecida, assim como revelam-se a profundidade e a vastidão de seu pensamento, e emergem com limpidez a sua extraordinária individualidade, a sua originalidade, a força de suas convicções e a vontade de apresentar sua filosofia como um único pensamento e um pensamento único.

Com efeito, as Correspondências com os discípulos indicam numerosas pistas de pesquisa sobre o pensamento de Schopenhauer e sobre as interpretações de seus primeiros seguidores: para a Schopenhauer-Forschung o epistolário não representa somente um porto da pesquisa italiana e internacional, mas, sobretudo, o cais do qual poderão partir novas e mais longínquas navegações.

Fabio Ciracì – Professor da Università degli Studi del Salento (Lecce). Secretário do Centro Interdipartimentale di ricerca su A. Schopenhauer e la sua Scuola. E-mail: [email protected]

Vilmar Debona – Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]

 

Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve (Org.). Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. João Pessoa: Ideia, 2010. Resenha de: DEBONA, Vilmar. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.2, n.2, p.216-221, 2011.

Diferentemente do que se sucedeu até o final dos anos 80 do século passado, temos percebido que as pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre o pensamento de Schopenhauer vêm se tornando mais profícuas durante as duas últimas décadas. Atestam esta constatação (i) as cinco edições bianuais do Colóquio Internacional Schopenhauer do Brasil, iniciadas em 2001, na cidade de Curitiba (PR), e promovidas pela Sociedade Schopenhauer do Brasil1 em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Filosofia das Universidades anfitriãs, (ii) as cinco edições anuais do Encontro Para saber mais Schopenhauer, iniciadas também em Curitiba, em 2007, (iii) o fortalecimento do GT-Schopenhauer, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), (iv) a fundação, no primeiro semestre de 2010, da Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, (v) as três edições do Encontro Nietzsche-Schopenhauer organizado pelo Grupo de Estudos APOENA, da Universidade Federal do Ceará, (vi) as publicações de traduções de parte significativa da obra do pensador que se somam àquelas que ainda estão sendo preparadas, (vii) além da produção de artigos, resenhas, capítulos de livros e livros de reconhecida qualidade.

O livro Arthur Schopenhauer no Brasil, cuja valiosa iniciativa devemos ao professor Deyve Redyson, da Universidade Federal da Paraíba, além de ser motivado pelo contexto da memória dos 150 anos da morte do filósofo, rememoradas em 2010, soma-se de forma especial às atividades listadas acima e ao espectro da produção acadêmica levada a cabo pela Schopenhauer-Forschung brasileira. A obra foi lançada durante a reunião do GT-Schopenhauer no XIV Encontro da ANPOF, na cidade de Águas de Lindóia (SP), em outubro de 2010. Nela estão reunidos dezenove textos de alguns dos mais importantes pesquisadores brasileiros da opera schopenhaueriana, dentre os quais podemos citar: Jair Barboza, Jarlee O. Salviano, Flamarion C. Ramos, Lean [DR] o Chevitarese, Kleverton Bacelar etc, assim como um importante texto da professora Pilar López de Santa María, da Universidad de Sevilla, pesquisadora que verteu a quase totalidade da obra do pensador para a língua espanhola.

No primeiro capítulo do livro, intitulado Três prefácios e alguns retratos: Schopenhauer e suas fisionomias, o professor Jair Barboza (UFSC) apresenta-nos uma reflexão sobre alguns dos elementos distintivos da filosofia do pensador a partir dos três prefácios de sua obra magna e de três conhecidas imagens do filósofo: o óleo sobre tela de Sigismund Ruhl (1815-18), que apresenta um Schopenhauer jovem, seguro, confiante, sereno e radiante, nas palavras de Cosima Wagner (Cf. Hübscher); a imagem de Johannes Schaefer (1855) que, no contexto da severa crítica à filosofia universitária e à “hegeliaria”, revela a fisionomia de um Schopenhauer mau humorado; e o óleo sobre tela de Jules Lunteschuetz (1859) que, na visão de Barboza, apresenta um Schopenhauer rejuvenescido, algo atestado no curto prefácio à terceira edição de O mundo devido à concretização da tão esperada fama e do, naquele momento, triunfante sistema.

No segundo capítulo, La crítica de Schopenhauer a la ética kantiana, lemos uma detalhada análise da professora Pillar López (Univ. de Sevilla) sobre em que medida o fato de, em geral, a etiqueta identificadora do pensamento kantiano consistir em elementos concernentes à sua crítica do conhecimento, e, no caso de Schopenhauer, na metafísica da vontade e no pessimismo, isso não impede o reconhecimento da importância histórica que têm as discussões sobre a ética em ambos os pensamentos. Ao partir do pressuposto de que a discrepância entre esses dois autores seja máxima no que respeita à ética, a autora propõe-se a contemplar cada um desses pensamentos, assim como o confronto de Schopenhauer em relação a Kant, como corretivo frente aos excessos de cada um deles (cf. p. 23).

Já no terceiro capítulo, sob o título de Fazer da natureza uma morada: a Sinnlichkeit de Feuerbach e a Vorstellung de Schopenhauer, Deyve Redyson (UFPB) analisa alguns pontos de contato entre esses dois pensadores que, segundo o autor, estão envolvidos nas mesmas questões filosóficas de sua época, como a filosofia da religião e o idealismo transcendental kantiano. Apesar de reconhecer como difícil a tarefa de pensar essas duas filosofias em conjunto, Redyson argumenta que a forma e a estrutura a partir das quais estão arquitetados tais pensamentos podem “nos auxiliar na compreensão de diversas categorias da filosofia especulativa e de suas incursões na noção de deus e de natureza, além de estarem na circunferência histórica como os representantes da nova filosofia ou filosofia do futuro” (p. 50).

Os capítulos 4 e 5 apresentam duas diferentes interpretações sobre uma mesma temática, o Estoicismo no pensamento de Schopenhauer. Em Sobre o cuidado de si: Schopenhauer e a tradição estoica, Luizir de Oliveira (UFPI) defende que, em grande medida, os pensamentos de Sêneca e do filósofo alemão convergem, embora não se trate de uma mera justaposição de ideias, para um mesmo ponto: “as estruturas de representação mental e seu papel na construção de uma “vida feliz” pensada não apenas como um ideal a ser atingido, mas como uma possibilidade efetiva hic et nunc” (p. 74); identificação esta que, segundo o autor, pode ser operada pela noção de “cuidado de si”. Por sua vez, Jarlee Salviano (UFRB), no capítulo intitulado O estoicismo pro tempore de Schopenhauer, apresenta uma análise que se diferencia daquela de Luizir principalmente por estar mais próxima, nas palavras do próprio autor, “da visão tradicional de Schopenhauer como o pai do pessimismo” (cf. p. 93). Nesta linha de argumentação – que ao reconhecer a presença da filosofia da Stoa no pensamento schopenhaueriano, não chega a afirmar que se tratam de pensamentos similares ou das mesmas preocupações – Salviano pontua um diálogo com seu colega brasileiro Jair Barboza, este um defensor da tese de que há, no pensamento schopenhaueriano, um determinante movimento entre o pessimismo teórico e o otimismo prático. Um dos argumentos de Jarlee Salviano é o de que, antes de se qualificar Schopenhauer como um estoico (para ele, o estoicismo schopenhaueriano é apenas mais uma faceta deste pensamento), às expensas de uma leitura pouco detida do Estoicismo, o leitor atento teria de percorrer atentamente até o fim do último livro de O mundo, justamente onde encontramos a ênfase na negação total da vontade. De acordo com Salviano, o quarto Livro da obra principal não sugere uma anestesia da afirmação consciente da vontade, ao contrário do que se teria no âmbito das reflexões sugeridas pelos Aforismos para a sabedoria de vida, como, por exemplo, mediante a própria noção de sabedoria de vida e outros elementos que supostamente angariariam uma filosofia do consolo, espécie de alívio para a existência prenhe de sofrimentos. Jarlee, ao indicar alguns limites da “leitura reconfortante” elaborada por Barboza, pretende, no fundo, indicar que este consolo de Schopenhauer “não consola” e que, menos ainda, este jamais poderia representar o ponto final do seu pensamento. Importante aqui é frisar que a natureza destas problemáticas está sendo investigada por outros intérpretes brasileiros da obra do pensador alemão, o que, de alguma forma, revela o estado da arte de tais pesquisas em nosso país.

Na sequência, no capítulo 6, temos uma reflexão de Flamarion Caldeira Ramos (UFABC) sobre A religião e a crítica da religião na filosofia de Schopenhauer, onde o autor apresenta algumas das principais incursões do pensador sobre a religião, paralelamente à sua metafísica. Ramos analisa, por exemplo, a afirmação presente nos Parerga em que o filósofo considera que os resultados morais do cristianismo, quando fundamentados apenas no cristianismo, permanecem sob fábulas, ao passo que da sua filosofia podem receber fundamentos racionais. Segundo Flamarion, isso não garante uma mera adesão do filósofo ao discurso religioso: “Mesmo com todas as limitações do discurso racional, da ciência e da filosofia, Schopenhauer mantém-se afastado de uma queda na religião…” (p. 124-25). No capítulo 7, Lean [DR] o Chevitarese (UFRRJ) considera o emblemático tema do lugar ocupado pela eudemonologia nos escritos de Schopenhauer. Em vista de problematizar como, não obstante o eminente ponto de vista metafísico deste pensamento, ainda restaria ao indivíduo uma “liberdade para a prática de vida”. Pelo reconhecimento de que o filósofo apresenta a possibilidade de uma orientação eudemonológica para se enfrentar o “mal de viver”, Chevitarese vai buscar – numa análise sobremaneira contrastante com aquela apresentada por Jarlee Salviano, já mencionada acima – um posicionamento diante da presença de uma postura positiva frente à existência, com o fito de compreender a proposta dessa “orientação de conduta” em face da recusa do pensador ao livre-arbítrio.

Com este nível de reflexão e problematização, a obra Arthur Schopenhauer no Brasil segue dispondo de várias outras análises não menos importantes que as mencionadas até aqui. Podemos resumir da seguinte forma os temas elegidos pelos demais autores: o professor Eduardo de Siqueira (UFRRJ), tendo por base a sempre indicada, mas quase constantemente evitada influência de Schopenhauer no pensamento de Wittgenstein, intenta circunscrever a ampla questão da influência do primeiro sobre certos rumos da filosofia contemporânea, assim como indicar alguns pontos sobre os quais ele incide. Por sua vez, o professor Kleverton Bacelar (UFBA) apresenta uma importante reflexão sobre a quarta motivação na psicologia do filósofo germânico, a saber, a motivação ascética, da “dor própria”, como última mola propulsora da ação humana, tema que dá muito que pensar enquanto consequência sistemática dessa filosofia, já que se somaria às três conhecidas motivações (egoísmo, maldade e compaixão) apresentadas em Sobre o fundamento da moral. O professor Jorge Miranda de Almeida (UESB), no capítulo intitulado A existência e as situações limites em Kierkegaard e Schopenhauer, objetiva demonstrar como os dois pensadores tecem suas críticas aos idealistas a partir de uma convicção em comum, a de que “o homem não pode ser reduzido a uma compreensão conceitual de si mesmo, mas o lançar-se, o debruçar-se sobre si mesmo para que a existência não seja apenas folhas mortas (…)” (p. 199).

Além disso, o livro apresenta também vários textos de pós-graduandos (a maioria deles doutorandos e alguns docentes em respeitadas Universidades do país), que desenvolvem suas pesquisas a partir do pensamento schopenhaueriano no Brasil, os quais elencamos aqui, seguindo a ordem disposta pela obra. Vilmar Debona (USP/PUCPR), em A noção de caráter adquirido: uma “liberdade” pela sabedoria de vida, problematiza a possibilidade de uma “liberdade” no âmbito da sabedoria de vida devido à “margem de manobra” que o indivíduo ainda pode obter mediante a noção de caráter adquirido. Dax Moraes (UERN), em A afirmação da vontade-de-viver no suicídio: a vida como representação, analisa em que medida o ato do suicídio, no pensamento schopenhaueriano, não se confunde com a negação da vontade-de-viver, sendo aquele um “não” negativo à vida, contrariamente ao “não” positivo da negação da vontade, esta independente da influência dos motivos exteriores. Daniel Quaresma Soares (USP), em seu capítulo intitulado O indivíduo como sofrimento, a arte como libertação, tece considerações pontuais sobre a metafísica schopenhaueriana do belo. Katia Santos (USP), em A liberdade no pensamento de Schopenhauer, considera, com olhar minucioso, como a liberdade é tema incisivo em diversos âmbitos dessa filosofia. Catarina Rochamonte (UFRN), em A vontade como atividade, investiga como a noção fundamental de Vontade presentifica-se de forma multifacetada em outras noções, como a autoconsciência, a causalidade e o caráter. Marcelo Santos (UFPB), no capítulo O tao da vontade: breve estudo comparativo entre a negação da vontade e a não-ação, analisa “alguns elementos dos escritos taoístas que apresentam forte parentesco ou eco com conceitos importantes da filosofia (…) schopenhaueriana” (p. 329). Marcio Quirino (UFPB), em O aspecto místico da metafísica do belo, apresenta uma investigação sobre alguns aspectos do estatuto do “místico” em Schopenhauer, detendo-se na argumentação sobre como a metafísica do belo angaria um desses aspectos. Mariana Poyares (USP), em O mundo no espelho: Schopenhauer, Borges e o idealismo, aponta “como o idealismo construído por Borges sobre tantos alicerces (…) compartilha com o idealismo schopenhaueriano características fundamentais”. Por fim, Carlos Hugo da Silva (UFPB), em A crítica de Schopenhauer à obscura filosofia dos idealistas, analisa em que medida Schopenhauer, ao tecer suas críticas contra os idealistas alemães, empreende-as mediante a estratégia de apontar problemas nas questões clássicas da filosofia, tanto no que respeita à teoria do conhecimento, à filosofia da natureza, quanto à ética e ao método de transmissão de argumentos filosóficos.

Ao rememorar os 150 anos da morte de Arthur Schopenhauer, a obra aqui resenhada acaba por espelhar parte significativa das pesquisas em torno desse pensamento no Brasil. Agradecendo a iniciativa e o trabalho do professor Redyson frente à organização deste livro, desejamos a todos os pesquisadores, leitores e admiradores do pensamento schopenhaueriano uma profícua leitura.

Notas

1 É importante notar que a Sociedade Schopenhauer do Brasil, atualmente presidida pela introdutora dos estudos sobre o pensador alemão nas universidades brasileiras, a professora Maria Lúcia Cacciola (USP), mantém constantes cooperações com a Schopenhauer-Gesellschaft da Alemanha (esta que completou seu primeiro centenário de existência em 2011 e cujo fundador foi o amigo de Frie [DR] ich Nietzsche, Paul Deussen). Assim, a exemplo das seções italiana e japonesa desta renomada organização alemã, a seção brasileira da mencionada Sociedade está incorporando cada vez mais professores pesquisadores de modo a num âmbito tão duramente criticado pelo filósofo, o acadêmico – fazer ecoar, enquanto debate filosófico, o tratamento dos grandes temas com os quais o pensador se ocupou. De forma geral, podemos afirmar que, antes dessa crescente recepção universitária em terras tupiniquins, a filosofia schopenhaueriana parecia se resumir às investidas da literatura machadiana. Hoje, porém, as Memórias póstumas de Brás Cubas estão longe de serem referência necessária quando queremos notar a presença e a influência de Schopenhauer em nosso país.

Vilmar Debona – Doutorando em Filosofia pela USP. Professor na PUC-PR. Bolsista CAPES na Università degli Studi del Salento (Lecce, Itália). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]