Teoria do drone – CHAMAYOU (V-RIF)

CHAMAYOU Gregoire mutacoes.com .br Teoria do drone
Grégoire Chamayou. https://mutacoes.com.br/

CHAMAYOU G Teoria do Drone2 Teoria do droneCHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Resenha de: KRITSKI, Pedro Mateo Bàez; AYMORÉ, Débora de Sá Ribeiro. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.11, n.23. p. 1-6, jul. 2020.

À onisciência corresponde a onipotência1

Doutor em filosofia, pesquisador do CNRS – Centre Nacionale de Recherche Scientifique – desde 2010, especialista das obras de Michel Foucault (1926 – 1984) e de Immanuel Kant (1724 – 1804), o filósofo francês Grégoire Chamayou (1976 – presente) parece ter uma preferência pela análise das estratégias que os agentes políticos utilizam para administrar aqueles que estão sob sua tutela. Se na sua tese de doutorado, intitulada Les corps vils: Éxpérimenter sur les êtres humains aux XVIIIe et XIXe siècles (La Découverte, 2008), o autor se concentra na busca do conhecimento como justificativa para o uso desses corpos, em Les chasses à l’homme (La Fabrique, 2010) Chamayou conta a história da transformação e do uso do conceito de “caça” como teoria e prática do uso da força violenta para a dominação de indivíduos.

Os dois primeiros livros nos permitem traçar certa continuidade em relação ao seu terceiro trabalho, intitulado “Teoria do drone” (2015 [2013]), como o resultado da fusão de dois elementos de análise: a relação entre os conceitos de conhecimento e força violenta, que nortearam o seu estudo sobre os modos com os quais os agentes políticos submeteram os indivíduos em dois casos particulares da história. Podemos dizer que em “Teoria do drone” esses conceitos tomam a forma de um objeto real, material. O drone é definido por Chamayou como “[…] câmeras de vídeo voadoras, de alta resolução, armadas de mísseis”2. Em outras palavras, um “olho-que-tudo-vê” e que também é capaz de projetar força remotamente. A vigilância e a projeção de força materializadas em um objeto que prescinde de um homem embarcado (UCAV – unmanned combat air vehicule) são o mote do livro. O advento de uma tecnologia com tais características traz novos problemas que são explorados pelo autor, dentre os quais destacamos dois: (1) quais são os limites éticos e epistêmicos diante da grande enxurrada de informação gerada pela vigilância, teoricamente ilimitada, que esses objetos voadores oferecem? E, (2) como ficam a legitimação das guerras modernas e o Estado com essa nova forma de projeção de poder? Os Estados Unidos, segundo Chamayou, possuem mais de 6.000 drones de diferentes modelos e 160 Predators para uso da Força Aérea. A obra também estima que 2.640 a 3.474 pessoas foram mortas entre os anos de 2004 e 2012, no Paquistão. Segundo o autor, a superioridade tecnológica pode transformar a guerra numa prática unilateral, pois ela inibe o risco de morrer enquanto se mata3. O prólogo do livro suscita claramente essa imagem no leitor, ao narrar e transcrever partes de diálogos travados entre um operador e um piloto de drone durante uma missão no Afeganistão.

Mas antes mesmo de entrar nos efeitos do uso do drone, é preciso conhecer essa matéria estranha. Ao fazer uma genealogia desse objeto técnico, o autor nos leva para uma breve história do drone, tomando como origem dessa tecnologia a ideia do engenheiro John W. Clark. Segundo Chamayou, em 1965, ao refletir sobre as tecnologias para o enfrentamento de ambientes hostis, Clark apresenta três estratégias: o envio de uma máquina para sofrer a hostilidade, o envio de um homem superprotegido ou a utilização de veículo apropriado ao ambiente hostil. Nesta última opção, o comando do veículo seria feito por um indivíduo em ambiente seguro. A terceira opção, chamada tecnologia telequírica (de manipulação à distância) possui um ganho evidente: retirar do ambiente hostil o corpo biológico vulnerável4.

A história avança até a Segunda Guerra Mundial, na qual os drones são utilizados como alvo de treinamento, sendo chamados “drones-alvo” (target drones) pelo exército americano. No final dos anos 1970, os Estados Unidos cessam o desenvolvimento de drones, que foi continuado em outros locais. Como em Israel, que utiliza drones em 1973 no Yom Kippur (no combate contra as forças egípcias) para confundir a defesa inimiga; mesma tática utilizada, em 1982, na guerra contra os sírios, adicionando-se, no entanto, máquinas fotográficas aos aviões aeromodelo como modo de obter informações privilegiadas. Após o 11 de setembro de 2001, o exército dos Estados Unidos começa o uso massivo de drones após armá-los, com sucesso, com de mísseis anticarro5.

O resultado dessa história é que a adição de sensores e de atuadores no que antes era tido como um aeromodelo transforma substancialmente o objeto técnico: o drone amplia capacidades humanas. Com o poder de vigiar por meio da captação de imagens em instantes contínuos ou descontínuos, as câmeras embarcadas de um drone levam àqueles que os possuem mais perto da onisciência. Apesar de serem uma realização limitada do “olho-quetudo-vê”, o drone é capaz de estender o poder de vigilância e de monitoramento. Detalhando a dimensão desse poder ao leitor, Chamayou divide-o em seis princípios.

O primeiro princípio consiste no que ele chama de princípio do olhar persistente ou de vigília permanente6. O drone é capaz de se manter de um modo permanente em uma missão, pois tanto o piloto como o operador podem se revezar em turnos sem que a aeronave precise voltar à base. Aliada a essa persistência, temos o segundo princípio, o princípio da totalização das perspectivas ou de vista sinóptica7. Trata-se do poder que esses objetos possuem de ver tudo, uma vez que o drone carrega consigo dezenas de microcâmeras que permitem a extensão do campo de visão, cuja resolução apresenta uma escala variável.

O terceiro princípio importante para entender a capacidade de vigilância do drone, segundo o nosso autor, é o que diz sobre a capacidade de memória e de interpretação de dados. Descrito por Chamayou como princípio de arquivamento total ou do filme de todas as vidas8 esse princípio de vigilância traz a componente do tempo para a onisciência que surge através do uso do drone. Pela possibilidade de arquivar todos os dados de monitoramento remoto, temos, então, o poder de identificação e de controle da vida de indivíduos pela estocagem, indexação e análise das informações coletadas.

Toda tecnologia traz uma nova capacidade aos seres humanos, tais capacidades podem conduzi-los aos seus limites. Um problema relacionado ao grande poder de levantamento de dados é, justamente, quem irá interpretá-los. Como dar sentido aos dados brutos? Chamayou considera que a investigação desse tipo de problema já está em curso, na direção de construir “[…] sistemas cognitivos integrados para a vigilância automatizada”9. Isto é, há pesquisas direcionadas para a produção de “máquinas escribas”, que façam esse trabalho cognitivo de um modo automatizado. No futuro, segundo o autor, teríamos sistemas capazes de interpretar, filtrar e indexar dados, antecipando e mesmo facilitando o trabalho de pesquisa sobre as vidas registradas nesses extensos bancos de dados coletados pelos drones.

Sobre a vigilância permitida pelo uso do drone, ainda precisamos detalhar o quarto e o quinto princípios. No quarto princípio, a imagem é apenas um modo de obter informação. Dado que o drone é capaz de embarcar sensores que emulam os outros sentidos humanos, temos o princípio da fusão de dados10. O poder de onisciência do drone é composto por ouvidos e muitos outros órgãos análogos aos sentidos humanos. Isso leva ao problema da relação entre dados de naturezas distintas. Pois, enquanto os seres humanos muitas vezes esquecem boa parte das informações que obtém por meio dos sentidos, as informações coletadas pelos drones não perecem e, com isso, permitem a sua fusão com informações de outras fontes. Essa fusão de dados constitui a base para a composição dos padrões de comportamento e dos desvios realizados pelos vigiados, seja um indivíduo ou uma coletividade.

Naturalmente, ao princípio da fusão de dados, adiciona-se o princípio da esquematização das formas de vida11 que visa, basicamente, construir patterns of life com os dados coletados dos alvos da vigilância. A relação de dados espaço-temporais – com cronogramas que contém a localização, o deslocamento, os itinerários e os acidentes – é fundamental para o desenvolvimento de uma cartografia das vidas humanas. Com essa combinação de “onde” e “quando” os bancos de dados seriam úteis não somente para perseguir suspeitos, mas também para identificar novos elementos através de comportamentos fora do comum. Isto é, levantam-se dados para formar padrões e formamse padrões para detectar mais facilmente as anomalias e os desvios de comportamento.

Finalmente, a detecção de anomalias compõe o sexto e último princípio da vigilância do drone. O chamado princípio de detecção das anomalias e de antecipação preventiva12, que mostra o grau de vigilância permitido por esse objeto. A padronização de comportamentos por meio do levantamento de dados permite uma categorização entre o que é normal e do que é anormal. Com o conhecimento do passado comportamental dos indivíduos, é possível agir a partir do que se entende como o futuro das suas ações. E, assim, esse tipo de vigilância traz consigo uma vontade de antecipação, uma ação preventiva guiada por padrões referenciados em grandes bancos de dados. Ao invés de decisões humanas, transferem-se, ao que parece, a decisão ao “olho-que-tudo-vê” e que passa a ser tratado também como o que tudo sabe.

Invulnerabilidade? Efeitos na guerra e no Estado

Segundo Chamayou, na guerra tradicional, ou seja, sem uso de drones, há relação de reciprocidade: as duas partes envolvidas estimam perdas de efetivo. O drone, no entanto, projeta poder sem projetar necessariamente vulnerabilidade. Mesmo distante de suas fronteiras, é possível aumentar o poder de alcance das armas de telecomando, ao mesmo tempo em que se mantém o operador e o piloto em local protegido, distantes do local das operações. O telecomando possibilita a distância segura, que garante a invulnerabilidade.

Uma questão incontornável que é posta ao leitor do livro é a seguinte: se a guerra pressupõe a projeção de poder e de vulnerabilidade das partes envolvidas, que tipo de relação se estabelece quando se projeta apenas o poder, e não a vulnerabilidade? A resposta inicial de Chamayou é chamar esta situação de guerra unilateral. Porém, ao longo da obra a sua resposta se radicaliza ao ponto de denominar o uso de drones como meio para um homicídio fora de combate13.

Como dispositivo tecnológico, o drone altera não somente as relações entre os combatentes, mas também, e ao mesmo tempo, as relações entre a sociedade e o Estado. Tradicionalmente, a relação que o Estado entretém com os seus cidadãos muda conforme se encontre em estado de paz ou de guerra. Em estado de paz, a vida dos cidadãos depende do Estado. E, no estado de guerra, considerado como meio para retomar o estado de paz, o Estado expõe a vida dos cidadãos14. E é nesse ponto que a invulnerabilidade do indivíduo transferida para o coletivo gera efeitos surpreendentes.

Com o drone, Chamayou nos lembra, temos uma resposta possível ou ao menos uma alternativa para essa antiga questão que se coloca com a inversão do protego ergo obligo, dos tempos de paz, para o obligo ergo protegor, do estado de guerra: “[…] sabendo que quando o soberano expõe a vida de seus súditos na guerra não os protege mais, em que base ainda pode fundar o dever de obediência de seus súditos?”15. A tendência da “dronização” atribui segurança ao Estado liberal, ou seja, a capacidade de “[…] conciliar a restrição liberalsecuritária das finalidades da soberania do Estado com a manutenção de suas prerrogativas guerreiras. Fazer a guerra, mas sem sacrifício”16.

No entanto, no século XXI, a necessidade de preservação do combatente é reforçada pela criação dos dispositivos telecomandados. Se na Inglaterra do século XIX o pacifismo democrático encontrou no alistamento de indianos como novo meio para fazer a guerra sem custos para o cidadão inglês, evitando assim “[…] sacrificar vidas nacionais no altar do império”17, o drone, nos tempos contemporâneos, permite o militarismo democrático em outro patamar, ou seja, a guerra com os seus custos virtualmente eliminados pelo advento da máquina de guerra capaz de projetar invulnerabilidade.

Com os riscos sócio-políticos transferidos para o drone, toma-se em conta o impacto dele nas “[…] ferramentas da teoria econômica da decisão. Se o comandante-chefe democrático for por hipótese um agente racional, quais serão os efeitos dessa arma low cost em seu cálculo?”18. Segundo o autor, há uma tripla redução de custos no uso dos drones: a redução dos custos políticos, econômicos e éticos ou políticos, considerando os efeitos sentidos pela violência comedida19. Em certo sentido, com o drone, é mais barato ir à guerra.

A redução dos custos de guerra, por sua vez, acaba por fundir ambições de Estado e as ambições de mercado. E com essa fusão do “preservar o capital eleitoral” com o “vender novas armas”20, o poder de barganha que os trabalhadores possuíam no começo do século XX e durante a guerra fria vê-se solapado juntamente com muitas das vantagens econômicas e sociais obtidas pela independência do Estado em relação aos corpos humanos.

Deste modo, o drone é objeto central em um momento em que, segundo Chamayou, “[…] a história do Welfare State articula-se à do Warfare State”21. No caso dos Estados Unidos, em que parte significativa de sua população jovem permanece inapta para o serviço militar, o conflito armado passa por duas soluções: um reinvestimento do exército em material humano ou uma independência maior do exército com relação à mão de obra humana. O drone aparece como via para a segunda opção, tornando-se um: “Fazer a guerra sem pôr em risco a vida de seus próprios indivíduos. Conservar sem perder. Proteger, sempre”22.

As consequências políticas do uso desses objetos técnicos, para Chamayou, o fazem parte de uma das etapas de um sonho maior, ou de um desejo prático e real, de fabricação de “autômatos políticos”. O autor entende que a crença é de que, com a automatização, há perda da subjetividade humana pela distância do agente político possível pela máquina “Nesse modo de dominação, que procede pela conversão de suas ordens em programas e de seus agentes autômatos, o poder, que já era distante, passa a ser inapreensível. Onde está o sujeito no poder?”23. Para o autor, o sonho é de um poder sem corpo, concretizado pela imagem do robô. “O sonho é construir uma força sem corpo, um corpo político sem órgãos humanos – em que os antigos corpos arregimentados dos sujeitos teriam sido substituídos por instrumentos mecânicos que seriam, em rigor, seus únicos agentes”24.

Questões Finais

Ao ler a obra “Teoria do drone” não se percebe somente a história de um objeto técnico-militar, que aos poucos se torna financeiramente acessível para além das situações de guerra. A obra retrata muito bem as histórias de ideias e de vontades humanas que se cruzam ao serem veiculadas e potencializadas por esse meio técnico-militar de ação. No limite, o drone representa o desejo de concretização, pela via da técnica, de uma vontade de poder. Com origem na própria sociedade, esse ser criado tende a se diferenciar dela e a afetar sensivelmente as suas características essenciais. Uma via tecnológica para o antigo desejo humano da onisciência e da onipotência.

Finalmente, é possível pensar a atualidade da obra. As declarações de guerra contra um “inimigo invisível”, recorrentes nos discursos jornalísticos e políticos desde a declaração da pandemia gerada pela SARS COVID-19, denotam a vontade da sociedade pela adoção de meios de ação eficientes, orientadas pela tecnociência. Diante de uma doença que ameaça a espécie humana, expondo a vulnerabilidade, encontramo-nos talvez em mais um dos limiares entre a tecnologia de vigilância, seus usos e as suas consequências

Notas

1 CHAMAYOU, Teoria do drone, p. 47

2 Idem, p. 20

3 Idem, p. 21

4 Idem, p. 29

5 Idem, p. 36 – 37

6 Idem, p. 48

7 Idem, p. 48 – 49

8 Idem, p. 49

9 Idem, p. 51

10 Idem, ibidem

11 Idem, p. 52

12 Idem, p. 53

13 Idem, p. 174

14 Idem, p. 195

15 Idem, p. 196 – 197

16 Idem, p. 198

17 Idem, p. 204 – 206

18 Idem, p. 207

19 Idem, p. 207 – 208

20 Idem, p. 212

21 Idem, p. 213

22 Idem, p. 213 – 214

23 Idem, p. 228

24 Idem, p. 242

Pedro Mateo Bàez Kritski – Doutorando em Filosofia na Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3603-2624

Débora de Sá Ribeiro Aymoré – Professora Substituta de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1384-6681

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Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba – SILVA (V-RIF)

SILVA, Wallace Lopes (Org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis/Fundação Biblioteca Nacional, 2015. Resenha de: SÁVIO, Nilton José Sales. É possível pensar o samba por meio da filosofia? Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.10, set, p.261-264, 2019.

E se pensássemos o samba por meio da filosofia? Uma análise possível? Bom, talvez estranharíamos um pouco, na medida em que parece não ser algo da alçada do pensamento filosófico como o conhecemos. Ora, provavelmente nunca diríamos algo desse gênero, se no lugar do samba estivesse a música erudita, por quê? Existiria um limite do que podemos ou não pensar filosoficamente? Alguns até argumentarão que seria possível, pouco provável, mas possível, estudar o samba, desde que fosse por meio da estética. E se quiséssemos mais? Ir mais longe? Pensar a ética pelo/no samba? Com certeza, isso não seria possível se ficássemos restritos a formação que a academia nos proporciona, aos sistemas que nos apresentam. Devemos nos questionar sobre esses sistemas: por que o grupo de autores não poderia ser expandido? Por que os temas não são ampliados? Por que temos dificuldade em encontrar uma filosofia legitimamente brasileira?

A obra organizada por Silva é precisamente uma resposta a esse modo de se fazer filosofia, que propõe considerar inclusive a forma como são construídos os sistemas, como as regras são dadas e de onde elas vêm. Ao longo dos seus onze capítulos, compostos por artigos de diversos autores, a filosofia afroperspectivista é apresentada, de forma dinâmica, séria e muito original, mesmo incômoda. Um projeto de alta magnitude como este é incômodo, não tem saída, por quê? Porque propõe repensar a forma como fazemos filosofia, indo até as origens: a filosofia é mesmo grega? A história é recomposta, o universal torna-se pluriverso, “o reconhecimento de várias possibilidades, de muitas perspectivas”1, não somente europeus, soma-se africanos, indígenas e povos ameríndios.

Por consequência, olhar o mundo por meio do afroperspectivismo, nos permite falar do samba, porque reivindica que todo o jogo seja revisto: o europeu dominava as regras, o árbitro, o campo e toda a torcida estava ao seu favor. Desse modo, continuaríamos blasfemando se cogitássemos uma filosofia brasileira, se olhássemos nossas particularidades e quiséssemos refletir sobre elas, não haveria espaço: o Brasil também é negro e indígena. Quando esquecemos isso nunca seremos originais, o jogo naquele universo é deles, entramos em campo derrotados, sem direito a questionarmos as instâncias superiores. Não obstante, e se buscássemos encontrar quem somos? Não com a intenção de que eles nos aprovassem – o que não mudaria o quadro, seria o mesmo jogo, as mesmas regras. Segundo esta compreensão, aparentemente acredita-se que a filosofia tradicional é excluída, pelo contrário, o pluriverso não a despreza, ele busca evidenciar a multiplicidade de perspectivas, de atores, de lugares de fala, isso inclui o pensamento europeu. Como demonstração é interessante observar as referências dos capítulos da obra: Nietzsche, Deleuze, Guattari, Lacan, dentre outros. A diferença é que nessa roda também são convidados: Molefi Asanti, Théophile Obenga, Mogobe Ramose, Maulana Karenga, dentre muitos outros. A partir desse panorama, seria enganoso crer que é procurada a supremacia desta filosofia, o mesmo quadro, apenas com regras novas, outro árbitro, campo e torcida. Não existe a intenção de centralização cultural, o próprio uso de uma bibliografia que inclui autores tradicionais serve como início da defesa.

Fatalmente, em torno dessa construção indenitária realizada pelo afroperspectivismo, as suspeitas são enormes, dado a dimensão dos preconceitos, as acusações serão variadas: falta de rigor e critérios, racismo às avessas, pseudofilosofia etc. Seria improfícuo responder a essas acusações, quando partem, na maioria das vezes, de um senso comum transvestido de ciência, critica-se antes de estudar, é um criticismo a priori. Por outro lado, muito proveitoso seria a dedicação à leitura da obra, pois o “rigor e critério” passam pela análise do contraditório, algo bem esquecido pelos “críticos a priori”: se embasam em informações gerais, no “ouvir falar”, sem sequer darem ao trabalho da leitura, do conhecimento da proposta, de seu estudo. O próprio receio – ou a acusação – acima referido, do estabelecimento de uma supremacia afroperspectivista, seria facilmente distanciado com a simples leitura.

Um dos primeiros aspectos que saltam aos olhos analisando a obra, consiste no enraizamento dos temas às vidas dos pesquisadores e pesquisadoras, sem que isso seja fator preponderante para suposta falta de “rigor e critério”. Todos e todas têm suas experiências com o samba, seja porque são frequentadores assíduos dos espaços onde ele é feito, seja ainda por uma vinculação afetiva. Ao contrário de ser um problema, indubitavelmente é uma virtude do trabalho.

Os onze capítulos da obra, em nossa concepção, podem ser divididos em dois grupos: I) fundamentos afroperspectivistas e do samba (capítulos de 1 a 4): nessa primeira parte os assuntos são mais extensos, abordam aspectos mais pluriversais da temática, procuram falar de origens, expondo ainda os fundamentos conceituais de toda a obra, a afroperspectividade; II) Rostos e vozes do samba (capítulos de 5 a 11): esta parte é mais restrita, na medida em que trata, em cada capítulo, de um/uma grande sambista, no qual procura-se aplicar, em análises muito originais, os conceitos e fundamentos expostos na primeira parte.

O primeiro capítulo intitulado Praças negras: territórios, rizomas e multiplicidade nas margens da Pequena África de Tia Ciata (Wallace Lopes Silva e Renato Noguera) considera o enraizamento do samba no sentido espacial (Pequena África e outras localidades), bem como seus limites originários, a saber, as relações entre o espaço, as pessoas e o samba; Sambando para não sambar, afroperspectivas filosóficas sobre musicidade do samba e a origem da filosofia é de Renato Noguera é um verdadeiro manifesto da afroperspectividade, expondo suas origens, suas múltiplas possibilidades e princípios fundadores; em Arqueologia do samba enquanto arqueologia do poder, Filipi Gradim, com referencial nietzschiano, pensa a distinção entre começo e princípio em face do advento do samba, com o escopo de entender “de onde vem o samba? Ou melhor: o que é o samba desde que o samba é o que é?”2, posteriormente analisa variáveis que compunham as manifestações na casa de Tia Ciata; no último capítulo da primeira parte, Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba: um território de anunciação, Sylvia Helena de Carvalho Arcuri propõe que olhemos as rodas de samba em seu potencial espacial, simbólico e criativo, não somente no que diz respeito à arte, contudo, no plano geral da cultura, e além, no próprio pensamento: filosofar na roda de samba, com ela e sobre ela.

A segunda parte do livro é um convite para que possamos vivenciar o samba, conhecer sua poesia e seus poetas, ou ainda, seus filósofos: Noel Rosa, Wilson Batista, Dona Ivone Lara, Bezerra da Silva, Leci Brandão, Jovelina, Zeca Padodinho e Almir Guineto. O trabalho realizado pelos autores, não é simples análise das letras, é isto e muito mais. Os sambistas são mostrados por seu discurso, poética e pensamento, sem que tenhamos somente uma análise estética, em muitos momentos emerge a ética e a própria metafísica. Noel Rosa e Wilson Batista: Intensidade e cartografia na embriaguez de um andar vadio e delirante de Felipe Ribeiro Siqueira e Wallace Lopes, nos apresenta a ressignificação da figura do malandro e do próprio conceito de vagabundo; Marcelo de Mello Rangel no capítulo Dona Ivone reencanta o tempo no sonho, no amor e no samba, analisa o conceito de tempo na poética de Dona Ivone Lara, no qual permite o estabelecimento de um espaço ético que fornece ferramentas para enfrentarmos os problemas concretos da existência; Felipe Ribeiro Siqueira em Bezerra da Silva, a máquina de guerra do samba, critica o lugar subalterno da imaginação em relação à razão, abrindo caminho para pensar a obra de Bezerra da Silva, com determinante presença da política; A força de Leci Brandão de Marcelo José Derzi Moraes aduz a força da criação da sambista, que passa por um pensamento estético-político, sendo intérprete dos marginalizados e minorias; Eduardo Barbosa no seu trabalho intitulado Jovelina: pérola do espírito partideiro, realiza singela e cuidadosa homenagem à Jovelina Perola Negra; Felipe Ribeiro Cerqueira no capítulo Zeca Pagodinho e o tempo rubato, com muitos relações conceituais com o capítulo sobre Bezerra da Silva – também de sua autoria –, desenvolve o problema do tempo, segundo a poética de Zeca Pagodinho; Almir Guineto: o moralismo do samba diante dos impasses do gozo, trata do moralismo interpretado por Almir Guineto, a partir de uma análise lacaniana realizada pelo autor Guilherme Celestino.

O cuidadoso leitor e crítico poderá ter percebido que ao longo do texto, não é realizada críticas diretas nem ao afroperspectivismo, tampouco aos trabalhos contidos na obra, seria simples omissão de nossa parte? Não, ao contrário, decidimos que não as apresentaríamos, com a finalidade de que elas não tivessem mais atenção do que o convite ao estudo da obra. Afinal, para aqueles que dão de ombros para os temas aqui abordados, que estão confortáveis na forma como a filosofia é feita em geral, qualquer crítica serviria de pretexto para que ignorassem a obra, ou mesmo, argumentassem ardilosamente quanto a suposta desnecessidade de seu estudo. Nosso principal objetivo consistiu em divulgar o trabalho, fruto de inumeráveis esforços, que apresenta um caminho original para que pensemos velhos temas da filosofia tradicional. A obra também pode ser vista como excelente material para a formação de professores, visto que propõe um caminho para abordagens da disciplina na sala de aula, em ambientes no qual a “filosofia universal” pouco atinge ou não ressoa, principalmente em realidades socioeconômicas de vulnerabilidade e de risco. Os temas que esta filosofia desenvolve estão próximos dos jovens, falam diretamente do que eles vivenciam cotidianamente. Isso não nos levaria a uma proposta exclusivista de estudo da filosofia – amplamente praticada desde sempre nesses espaços, com ampla conveniência dos formadores, sem nenhum incômodo geralporém, abriria espaço mesmo para os próprios pensadores tradicionais, sem querer que o afroperspectivismo se torna apenas uma “isca”, que acabe por levar novamente aos universais.

Notas

1 SILVA, Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba, p. 16.

2 Ibidem, p.57.

Nilton José Sales Sávio – Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

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Nietzsche et le relativisme – STELLINO; TINLAND (V-RIF)

STELLINO, Paolo; TINLAND, Olivier (Org.) Nietzsche et le relativisme. Bruxelles: Éditions OUSIA, 2019. Resenha de: NASSER, Eduardo. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.10, n 2, maio/ago., p, 158-161, 2019.

Relativismo não constitui realmente uma corrente ou escola filosófica. E não obstante prestigiados pensadores, como Galileu ou Comte, falarem em princípio da relatividade ou relativo, com um sólido lastro teórico, o termo é muito frequentemente utilizado no ambiente intelectual contemporâneo com a intenção de desmoralizar ou expor falhas latentes de sistemas e doutrinas. Contudo, a fim de enfrentar desafios de nosso tempo, como inclusão social e cultural, é também preciso destacar a emergência de um interesse renovado pelo relativismo, agora movido pela convicção de que o conceito dispõe de uma gama de frutíferos e pouco conhecidos significados que passam ao largo da percepção vulgar, como vem revelando, especialmente, Maria Baghramian.

É no interior desse cenário filosoficamente mais estimulante que Nietzsche et le relativisme é concebido. Organizado por Paolo Stellino e Olivier Tinland, e dividido em três partes, o livro consiste na reunião de artigos apresentados por reputados estudiosos no colóquio internacional com título homônimo, realizado em 2016 na Université Paul Valéry – Montpellier III. De forma geral, o propósito é confrontar a atribuição largamente difundida, de viés injurioso, de relativismo ao pensamento nietzschiano, sem, contudo, deixar de examinar possíveis contribuições de Nietzsche para uma melhor compreensão dos debates mais atilados sobre o tema (e vice-versa).

Redigido por Olivier Tinland, o texto introdutório confere estruturação ao livro. Seguindo a linha dos estudos mais recentes sobre relativismo, Tinland polemiza com as visões trivializadas de modo a evidenciar a complexa teia de conceitos que enseja a adequada interrogação de teses relativistas. “Simplificando ao extremo, pode-se distinguir três maneiras de caracterizá-las, segundo o objeto de relativização, o contexto de relativização, e o modo de relativização” (p. 17). E esses domínios estão sujeitos a divisões e subdivisões: os objetos relativizáveis estão separados em campos de saber (cognitivo, moral, jurídico, político, estético, religioso, etc.) que, por sua vez, possuem ramificações internas (relativismo cognitivo, por exemplo, pode se fragmentar em relativismo epistêmico, alético, racional e conceitual); os contextos de relativização dividem-se em subjetivo e cultural e/ou histórico; os modos de relativismo, atinentes aos tipos de enunciação, distinguem-se pelo enfoque moderado e forte, e pelas enunciações relativistas mesmas, que podem ser restrita (ou de primeira ordem) e total (ou de segunda ordem).

De posse desses instrumentos conceituais, os textos tangenciam pelo menos três objetos de relativização (cognitivo, moral e estético), oferecendo apreciações nem sempre congruentes sobre o contexto e o modo de relativização constatáveis em Nietzsche.

No decurso do livro, é manifesta certa prevalência de discussões de cunho epistemológico. Englobam a primeira e segunda parte, e são abalizadas por duas linhas de leitura: (i) Nietzsche enquanto um relativista antirrealista, filiado a Kant e ao neokantismo, que radicaliza a modernidade, pavimentando o caminho para o pensamento pós-moderno; (ii) Nietzsche como um relativista realista que promove uma reforma da ontologia substancialista.

A primeira propensão interpretativa pode ser observada nos trabalhos de Helmut Heit, João Constâncio, Luca Lupo e Pietro Gori. No artigo que inicia o livro, “Nietzsche et « le relativisme épistémique »”, Heit almeja mostrar de que modo é possível enxergar em Nietzsche um relativismo epistêmico oriundo de sua frequentação de autores ligados à tradição kantiana. Não obstante a irrelevância do termo relativismo para o filósofo – cuja única ocorrência está localizada na terceira Consideração extemporânea –, e apesar de seu desinteresse por debates mais técnicos sobre epistemologia, é razoável afirmar que “Nietzsche propõe uma versão específica do relativismo, entendido como virtude epistêmica” (p. 41). Após travar contato com Schopenhauer e, sobretudo, Lange, ele desenvolve uma teoria do conhecimento construtivista, movido pelo objetivo mais audacioso de delinear condições para a elevação da cultura. Em “« La vérité relative ». Remarques sur la négation langéenne et postkantienne de la vérité absolue chez Nietzsche”, Constâncio propõe demonstrar que “desde o início, e em numerosas passagens decisivas de seus escritos, Nietzsche subscreve uma concepção de « verdade » que Friedrich Albert Lange retirou de sua leitura da Crítica da razão pura de Kant, a saber, a concepção de « verdade relativa »” (p. 69). Guiando-se por cinco teses basilares daquilo que denomina de póskantismo de Nietzsche (1- caráter transcendental das categorias; 2- mundo estruturado por conceitos e juízos; 3- incognoscibilidade da coisa-em-si; 4- rejeição da verdade no sentido metafísico; 5- impossibilidade da metafísica após Kant), conta apontar de que forma a filosofia nietzschiana está alinhada ao neokantismo naturalista e psicologista de Lange, culminando na concepção de verdade relativa, restringida à experiência, e emancipada de qualquer finalidade prescritiva. Para Lupo, em “Pour une généalogie du relativisme nietzschéen: Schopenhauer”, é “no quadro de uma triangulação com Kant e Schopenhauer que se pode identificar uma possível inclinação do pensamento nietzschiano em direção a posições relativistas” (p. 126). Nietzsche utiliza o termo Relativismus na terceira Consideração extemporânea tendo em conta os impasses éticos e existenciais decorrentes da interdição kantiana e schopenhaueriana do acesso epistêmico à verdade absoluta. Por fim, Gori, em “Le pragmatisme et la pensée perspectiviste: des programmes comportementaux pour faire face au relativisme”, entende que Nietzsche, assim como William James, redefine o significado da verdade – que passa, então, a possuir valor operatório, condizente com um tipo de relativismo –, à medida que se ampara nos resultados da epistemologia moderna. Antirrealista, Nietzsche deve ser acolhido como um representante do fenomenalismo que, por seu turno, “se apresenta como um desenvolvimento do kantismo no sentido antimetafísico” (p. 158).

Num outro extremo, deparamo-nos com as abordagens de Yannick Souladié e Dorian Astor. Em “Un scepticisme de la force contre le relativisme”, Souladié traz à baila um Nietzsche envolvido com uma forma branda de relativismo (conhecimento condicionado pela educação, alimentação, saúde, etc.) que não se dedica a anular o valor do conhecimento ou “a possibilidade de um conhecimento autêntico, de uma « verdade »” (p. 95). O perspectivismo nietzschiano não incorre na defesa da igualização alética das perspectivas – que, a propósito, deve ser tratada como um sinal de declínio –, pois vislumbra a vontade de potência enquanto referente último. Com efeito, o nível do conhecimento exprime uma forma mais superficial de relativismo que é antecedido por uma ontologia relacional: “a vontade de potência apreendida em seu interior, fora de toda perspectiva relativa (exterior), é relação” (p. 97). Essa subsunção da epistemologia à ontologia é também aventada por Astor em “Relativisme ou relationnisme? Le concept de réalité chez Nietzsche et Whitehead”. Ao propor uma comparação oportuna entre as concepções de realidade em Nietzsche e Whitehead, Astor pretende exibir de que maneira esses filósofos, em oposição à atitude preponderante na ciência e na metafísica, estão empenhados na defesa de uma realidade relativa; consiste numa “ontologia da relação fundada sobre o caráter processual do Ser, quer dizer, do Devir” (p. 172).

A tendência predominante nas discussões epistêmicas se estende para os artigos que se ocupam do relativismo ético e estético em Nietzsche; reproduz-se a disputa entre realismo e antirrealismo no campo dos valores. Contudo, o problema adquire uma feição manifestamente distinta do quadro apresentado acima. Trata-se, fundamentalmente, de aclarar se Nietzsche suprime total ou parcialmente o relativismo quando se serve de expedientes realistas para efetuar uma crítica dos valores.

Essa segunda espécie de problematização é preparada pelo texto de Scarlett Marton, “De Foucault à Nietzsche: pluralité d’interprétations et importance des critères”. A proposta de Marton é defender a tese de que Foucault imprime uma deformação no pensamento nietzschiano quando nele reconhece o marco de uma nova hermenêutica. Para Foucault, Nietzsche não estaria preocupado em inquirir o significado, mantendo-se na superfície das interpretações. Visto por este prisma, somos levados à enganosa suposição de que Nietzsche promove uma equivalência de interpretações, ou um relativismo, quando, a bem da verdade, a sua meta é acomodar criticamente as interpretações em disposições hierárquicas; mediante a eleição de um critério – a vida ou a constante luta de forças –, pretende-se entabular um processo judicativo com a finalidade de apartar boas e más interpretações. O critério de avaliação deveria ser fixo, apesar de exprimir o vir-a-ser, e transcendente ao nível interpretativo (e, se assim é, imune aos relativismos identificados nos debates epistêmicos?). Em razão de não ter considerado esse intento mais genuíno que Foucault enseja a introdução de “um certo relativismo na filosofia nietzschiana” (p. 225). O desacordo entre o caráter inclusivo do relativismo e o intuito hierarquizante de Nietzsche é também tratado por Isabelle Wienand e Janske Hermens em “Nietzsche et le relativisme: la conception nietzschéenne de la santé”. Inserindo-se no sinuoso terreno da filosofia da medicina, o artigo coloca a hipótese de que “a concepção nietzschiana de saúde ilustra de maneira eloquente a posição nuançada ante a questão do relativismo” (p. 244). Malgrado ser um relativista ontológico, visto que se recusa a oferecer uma definição de saúde, Nietzsche não pode ser designado um relativista axiológico. Quando alude à grande saúde, ele admite que se trata de um estado subordinado ao vir-a-ser, sem, no entanto, deixar de se servir do conceito com pretensões avaliativas e normativas. Ainda que os autores não considerem ser um resultado inconsequente, assinalam que “Nietzsche defende duas posições diferentes ou mesmo contrárias” (p. 245). Na mesma esteira, Paolo Stellino, em “Projectivisme et relativisme moral chez Nietzsche”, considera que Nietzsche apoia um tipo de relativismo moderado na esfera dos valores; a filosofia nietzschiana pode ser aproximada de um projetivismo moral sem redundar num relativismo total. Beneficiando-se de recursos da ética contemporânea, Stellino salienta que apesar de ser um relativista moral descritivo, Nietzsche seguramente não pode ser chamado de um relativista moral meta-ético – pois exige um critério de avaliação dos valores extrínseco às perspectivas – ou um relativista moral normativo – pois estimula que o indivíduo crie a sua própria tábua de valores. Destarte, não se pode acolher “o perspectivismo moral nietzschiano no sentido de um relativismo radical” (p. 275). Contestando igualmente a atribuição precipitada de relativismo a Nietzsche, mas no âmbito da estética, temos o artigo de Maria João Mayer Branco, que encerra o livro, “La tâche du joueur. Jeu et crise des valeurs chez Nietzsche”. Branco revela que o concepção nietzschiana de jogo, subtraída de valor e de incumbências prescritivas, “suspende os efeitos da relativização geral dos critérios de validade que regulam, não somente a criação artística, mas a totalidade da vida humana até a modernidade” (p. 278). Atento aos perigos produzidos pela autonomização da arte na modernidade, Nietzsche fala em jogo, uma concepção autorreferida que viabiliza, tanto para a arte, como também para a filosofia, a criação do novo.

Como foi possível constatar, a virtude de Nietzsche et le relativisme é fornecer um mapeamento escrupuloso dos desafios que cercam a compreensão da natureza e do alcance do relativismo nietzschiano e, no limite, indagar se de fato é legítimo classificar Nietzsche como um filósofo relativista.

Eduardo Nasser – Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e pela Ernst-Moritz-Arndt-Universität Greifswald. Professor na Universidade Federal do ABC. E-mail: [email protected]

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Il giovane Schopenhauer. L’origine della metafisica della volontà – NOVEMBRE (V-RIF)

NOVEMBRE, Alessandro. Il giovane Schopenhauer. L’origine della metafisica della volontà. Milão/Udine: Mimesis, 2018. Resenha de: RAMOS, Flamarion Caldeira. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.10, n 2, maio/ago., p, 162-167, 2019.

Embora a pesquisa acadêmica sobre a filosofia de Schopenhauer já tenha oferecido ótimos frutos, principalmente nos últimos trinta anos (por ocasião do seu segundo centenário em 1988, quando surgiu o volume mais extenso do tradicional Schopenhauer Jahrbuch), ainda faltava um trabalho de fôlego que conseguisse reconstruir em todos os seus aspectos a gênese de sua “metafísica da vontade”. Com a publicação do livro Il giovane Schopenhauer. L’origine della metafisica della volontà (Milão, Udine: Mimesis, 2018, 624 p.) de Alessandro Novembre essa lacuna foi preenchida com grande êxito. Trata-se de uma obra riquíssima que promete e realiza uma leitura profunda e sistemática de todas as fontes ora disponíveis para a pesquisa sobre a origem da filosofia de Schopenhauer.

É verdade que alguns passos na direção dessa tarefa já haviam sido dados e nesse sentido podemos citar trabalhos como o seminal livro de Arthur Hübscher, Denker gegen den Strom (Bonn: Bouvier, 1973), que contém importantes contribuições para o estudo do “jovem Schopenhauer”; o livro de Yasuo Kamata Der junge Schopenhauer: Genese der Grundgedankens der Welt als Wille und Vorstellung (Freiburg/München, Verlag Karl Aber, 1988), que faz uma perspicaz leitura dos Manuscritos Póstumos e oferece uma interpretação original da primeira edição de O mundo como vontade e representação; a biografia de Rüdiger Safranski (Schopenhauer und die wilden Jahre der Philosophie, Carl Hanser Verlag, Munique-Viena, 1987; Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Tradução Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011), que, partindo da leitura dos escritos póstumos e da correspondência reconstrói os dados biográficos de Schopenhauer. Nos últimos anos surgiram algumas importantes contribuições para a compreensão da presença de Schelling na gênese da metafísica de Schopenhauer, como os trabalhos de Jair Barboza Infinitude Subjetiva e Estética: Natureza e Arte em Schelling e Schopenhauer (São Paulo: Unesp, 2015) e de R. Jan Berg Objektiver Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings und Schopenhauers (Würzburg, K & N, 2003). É possível encontrar, além disso, contribuições sobre a presença do “pensamento oriental” na origem da filosofia de Schopenhauer, a saber no período que vai do início de seus estudos (1803-1804) até a redação de O mundo como Vontade e Representação (1814-1818). Nos últimos anos, além de estudos que versam sobre as primeiras leituras que Schopenhauer empreendeu das obras de Platão e Kant, têm surgido pesquisas sobre a importância de Schulze e Fichte na gênese de algumas concepções fundamentais da filosofia de Schopenhauer. O livro em questão surgiu justamente da tese de doutorado de Alessandro Novembre sobre a presença de Fichte no pensamento do jovem Schopenhauer: Il giovane Schopenhauer e Fichte. La duplicità della coscienza (Lecce/Mainz, 2011). Mas o êxito alcançado com a presente publicação, que justifica a ampliação do título, se dá pelo fato de que não se trata mais “apenas” (como se fosse pouco) de rastrear os traços fichtianos do jovem Schopenhauer. Novembre conseguiu desdobrar todos os laços da gênese da metafísica da vontade de Schopenhauer. Não apenas a relação do jovem filósofo com Fichte, Schelling, ou o impacto de Schulze em sua formação filosófica. O autor reconstruiu com grande apuro filológico todos os passos do jovem Schopenhauer, da sua formação petista ao encontro com o pensamento oriental; da leitura dos românticos ao confronto com “o divino Platão e o assombroso Kant”, e ainda mais.

O livro percorre em ordem cronológica os manuscritos do jovem Schopenhauer, desde as primeiras linhas do primeiro volume que contém as anotações dos anos 18041811, passa pelas anotações das aulas de Schulze e Fichte, a descoberta do pensamento oriental, acompanha a elaboração da dissertação de 1813 e desemboca nos primeiros esboços (a partir de 1814) da obra magna O mundo como vontade e representação (obra que, como se sabe, foi publicada no final de 1818 já com a data de 1819). Para dar conta da amplitude desta temática, o livro foi estruturado em quatro grandes partes: a primeira delas tem como título “Os manuscritos dos anos 184-1811: da formação petista ao estudo da filosofia”. Nela, o autor persegue a “pré-compreensão do mundo” do joveníssimo Schopenhauer e o dualismo entre o temporal e o eterno (capítulo 1). Constituinte da primeira visão de mundo que Schopenhauer desenvolve nesses primeiros escritos é a contraposição entre a ordem do tempo e a ordem das coisas eternas, a partir da qual surgem as questões metafísicas sobre a distinção entre o sensível e o suprassensível, o mundo corpóreo e o mundo dos espíritos e, na esfera da moralidade, entre o bem e o mal. Ao final deste primeiro capítulo, Novembre analisa a distinção entre duas concepções de vontade, que surge dessa visão dualista do mundo. Assim, “em relação ao problema do mal, Schopenhauer admite, como os maniqueístas, a possibilidade de que uma potência divina que quer o bem (cuja vontade é “boa”) coexista com uma potência divina que quer o mal (cuja vontade é “má”)”(p.61). A partir desse dualismo, Novembre reconstrói os dois sentidos de vontade na história da filosofia, a primeira enquanto boúlesis, que é a vontade moral orientada para o bem, tal como elaborada e desenvolvida na tradição da filosofia moral antiga, nomeadamente Platão e Aristóteles até a recepção estóica de Cícero que a traduz como voluntas e a concebe como “quae quid cum ratione desiderat” (p. 64). A tradição judaico-cristã, por sua vez, conceberá a possibilidade de um querer que se dirige não apenas para o bem, mas conscientemente ao mal (thélema). Será principalmente com Agostinho que essa possibilidade será inteiramente desdobrada a fim de explicar o “pecado original” e, exatamente por isso, o bispo de Hipona é considerado o “inventor da vontade” nesse sentido dualista que permitiria pensar num querer voltado não só para o bem, mas também para o mal (Ibid, p. 64-5). Como comprovam os textos posteriores de Schopenhauer, sua concepção de vontade deve ser compreendida antes como thélema do que como boúlesis.

Após esse primeiro passo, o segundo percorre as anotações das aulas de Schulze em Göttingen, cujos cursos de metafísica e psicologia, o jovem Schopenhauer acompanha a partir do semestre de inverno de 1810-1811. De modo paralelo, o autor rastreia as primeiras leituras que Schopenhauer empreendeu de Platão, Schelling e Kant. Como se sabe, Schopenhauer seguirá o conselho de Schulze de dedicar-se antes de tudo e exclusivamente à leitura de Platão e Kant. O que se nota menos, e essa é uma importante contribuição da investigação de Novembre, é que a leitura da Geschichte der Philosophie de Tennemann foi determinante na leitura que Schopenhauer fez dos dois filósofos: desde então o filósofo lia Platão e Kant como complementares e identifica phainomenon e Erscheinung, por um lado, e coisa em si e Ideia, por outro. Com a análise desses elementos, Novembre conclui a primeira parte de seu livro afirmando que “todo o desenvolvimento sucessivo do pensamento de Schopenhauer, até o fim da primeira elaboração de seu sistema maduro, é a resultante problemática destas duas forças contrastantes: o vetor (em sentido amplo) platônico – afirmação da possibilidade, da parte do homem, de conhecer a realidade absoluta – e o vetor (em sentido estrito) kantiano – afirmação dos limites da faculdade humana cognoscente, ou seja, da impossibilidade, da parte do homem, de conhecer a realidade absoluta” (p. 102).

A segunda parte do livro tem como título: “O confronto com Fichte e Schelling (1811/12): do entusiasmo inicial à definitiva aversão”. Trata-se agora de investigar a estadia de Schopenhauer em Berlim, para onde ele se transfere “na esperança de encontrar em Fichte um verdadeiro filósofo e um grande espírito” (p. 102, Cf. GB, p. 261). De fato, Schopenhauer acompanha em Berlim pelo menos três cursos de Fichte entre 1811 e 1812: um curso introdutório chamado “Sobre o estudo da filosofia”, o curso “Sobre os fatos da consciência” e o curso “Sobre a Doutrina-da-Ciência”. É pela transcrição de Schopenhauer que se conhecem tais cursos (HN II, p. 16-216). Como nota Kossler, “pode-se dizer que Schopenhauer, que mais tarde em seus escritos publicados insultou Fichte chamando-o sobretudo de “fanfarrão”, foi um ouvinte extremamente atento e sério, que, no entanto, logo traduzia o que ouvia para o seu pensamento intuitivo, ligando- o a uma ordem de ideias já existente. (…) Não obstante, Schopenhauer assistiu ao curso inteiro e jamais deixou de justificar a ausência de um registro”1. De fato, ainda que rejeite boa parte do que absorve desses cursos fichtianos, o confronto com o autor da Wissenschaftslehre foi de fundamental importância para o desenvolvimento intelectual de Schopenhauer. Novembre se detém principalmente na reflexão de Schopenhauer, a partir das aulas de Fichte, sobre o conhecimento do absoluto, e para isso desempenha papel central a discussão sobre a noção de intuição e o conhecimento para além dos limites da filosofia crítica kantiana. É nesse contexto que a relação entre gênio e loucura, como dois modos de conhecimento fora da circunscrição do saber fenomênico surge no pensamento de Schopenhauer. Novembre não deixa de fazer uma digressão sobre o modo como o pensamento romântico (em Jean Paul e E. T. A Hoffmann) tratou a questão. Ainda mais essencial, porém, é nesse contexto a tematização sobre o conceito de Besonnenheit2. Esse conceito, central para a compreensão da filosofia de Schopenhauer como um todo, surge a partir dos cursos de Fichte. Para este, a Besonnenheit é compreendida como a “consciência superior” constitutiva da filosofia definida como “saber do saber”. É a consciência da consciência, contraposta à mera consciência empírica. Enquanto a consciência comum está voltada para as coisas, a absolute Besonnenheit volta-se para a consciência da consciência das coisas, para o saber, a percepção. De fato, se quase todos os comentários de Schopenhauer sobre o curso de Fichte são críticos, pelo menos um ponto parece encontrar a concordância do jovem filósofo: a existência de um ponto de vista superior ao do senso comum, da consciência empírica. Daí o significado do termo Besonnenheit – que encontrará todo um desenvolvimento em O Mundo como Vontade e Representação.

Paralelamente aos cursos de Fichte, Schopenhauer empreendeu a leitura de diversas obras de Schelling. O interesse por Schelling pode ser explicado por sua admissão da cognoscibilidade da coisa em si, o que estava em conformidade com as lições que Schulze oferecia de sua filosofia. Portanto, foi com grande expectativa que o jovem Arthur se interessou pelos dois filósofos: havia a promessa de uma nova metafísica que, não obstante pretenda estar legitimada diante do criticismo, pudesse resgatar o conhecimento e, de certa forma, contornar o “pesadelo” da crítica kantiana. Em seu intuito de unificar Kant e Platão, Schopenhauer estava em busca justamente dessa nova metafísica. O entusiasmo, porém, cedeu lugar à decepção e, no final das contas, o jovem Schopenhauer considerou fraudulenta a promessa de Fichte e Schelling (o assim chamado “idealismo alemão”): ambos fazem um “uso transcendente do intelecto”, o que torna suas filosofias ilegítimas do ponto de vista do criticismo kantiano (capítulo 6). Nessa parte do trabalho, Novembre reconstrói a crítica de Schopenhauer às filosofias de Fichte e Schelling, prescindindo do sarcasmo e do rancor com que ele quase sempre se exprime, e focalizando, antes, as razões propriamente teóricas de suas críticas. “No fundo, permanece sempre a mesma objeção: o uso transcendente do intelecto” (p. 215). Concepções tais como a de “intuição intelectual” e “absoluto”, fundamentais para Fichte e Schelling (e também para Hegel) são rejeitadas e suas filosofias rebaixadas ao nível da filosofia pré-crítica. Por isso, afirma Schopenhauer, a “doutrina de Schelling deve rejeitar-se pelo mesmo motivo pelo qual deve rejeitar-se a dogmática de Wolff: pelo uso transcendente das categorias e das leis da sensibilidade pura” (HN, II, p. 328, citado por Novembre, p. 210).

A partir da terceira parte do livro, chamada “Uma primeira tentativa de metafísica pós-kantiana: a teoria da ‘consciência melhor’”, Novembre passa a detalhar a concepção própria que Schopenhuaer começa a esboçar em 1812. Essa empresa é desdobrada em dois momentos. Num primeiro (capítulo 7), trata-se de investigar o surgimento de um pensamento autônomo no projeto de um “verdadeiro criticismo” e na figura da “consciência melhor”. Num segundo momento (capítulo 8), são analisados os manuscritos de 1813 em que a teoria da consciência melhor é desenvolvida sistematicamente. Nessa parte da obra, portanto, trata-se de acompanhar, desde suas origens até seu desaparecimento, a teoria de Schopenhauer sobre a “consciência melhor” (besseres Bewußtsein), constitutiva do primeiro esboço de sistema que o jovem filósofo desenvolveu entre 1812 e 1813. Novembre investiga a gênese dessa teoria, rastreia suas origens, visíveis já nas anotações das aulas de Fichte, seu apogeu em certo momento dos escritos juvenis, até seu desaparecimento, por conta do resultado da tensão constitutiva da experiência intelectual do jovem Schopenhauer: a tensão entre a “alma platônica” e a “alma kantiana”. Ao fim desse tensionamento, resultará que a noção de “consciência melhor” não será apta para desenvolver uma metafísica que estivesse à altura de um “verdadeiro e completo criticismo” e nem cumprirá os requisitos especulativos para a “decifração do enigma do mundo” – a noção de “sujeito puro do conhecimento” elaborada a partir de 1814 assumirá o protagonismo e cumprirá aquilo que era visado pela noção juvenil de “consciência melhor”. Com isso, vê-se que, ainda que tenha sido fundamental a reflexão sobre a filosofia de Fichte no período berlinense, a filosofia madura de Schopenhauer se constitui à medida que sua contraposição ao autor da Doutrina-da-Ciência fica mais evidente. O mesmo pode ser dito sobre sua relação com Schelling: se ainda na Dissertação sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente3 de 1813 é possível encontrar traços de Schelling no conceito de “vontade” e de “caráter inteligível”, da mesma forma, a concepção madura de Schopenhauer sobre a “vontade de viver” como “coisa em si” se constitui em seu afastamento da filosofia do autor das Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana.

Com isso, chegamos à parte quarta e final da obra, chamada “O abandono da teoria da consciência melhor e a origem da metafísica da vontade”. No nono capítulo, Novembre analisa os conceitos de vontade e caráter inteligível na Dissertação de 1813. À luz do que foi visto até aqui, ou seja, após a análise sistemática dos manuscritos de Schopenhauer até 1813, sua visão da filosofia kantiana – bastante influenciada pela leitura cética de Schulze, seu impulso platônico em direção ao conhecimento da “verdade” que ele identifica com o âmbito do “suprassensível”, Novembre interpreta a primeira edição da Dissertação de 1813 como resultante de uma leitura crítica de duas obras seminais do “idealismo alemão”: o System der Sittenlehre de Fichte e o Freihetsschrift4 de Schelling. Com isso, fica mais ainda mais claro o sentido da passagem aludida acima, do jovem Schopenhauer se contrapondo à via seguida pela filosofia do idealismo alemão – sobretudo Fichte e Schelling, cujo conhecimento profundo Schopenhauer desde então já possuía, como a pesquisa historiográfica vem demonstrando há algum tempo,– e amadurecendo seu próprio pensamento rumo ao “sistema” que vem à luz em 1818 com O mundo como vontade e representação.

Concluído esse movimento, Novembre passa então a dedicar sua investigação aos “pródromos da metafísica da vontade”, no décimo capítulo volta-se para os manuscritos de 1814 centralizando sua análise no desenvolvimento da doutrina do caráter inteligível. Em seguinda, no décimo primeiro capítulo, tematiza o estudo do Oupnek´hat e o encontro com a sabedoria indiana. É nesse mesmo contexto que o conceito de uma universal “vontade de viver” é elaborado, o que dará as condições de possibilidade de nascimento do “sistema” na mesma medida em que a teoria da “consciência melhor” é definitivamente abandonada. Com essa reconstrução genética da filosofia de Schopenhauer, o autor encontra-se em condições de fornecer “uma chave explicativa particularmente fecunda” para resolver alguns pontos problemáticos da obra magna do filósofo. À análise desses pontos e ao desenvolvimento dessa chave interpretativa é dedicado o último capítulo do livro, intitulado “Dos manuscritos juvenis a O mundo como vontade e representação”. Com esse último passo, percebe-se que a contribuição oferecida pela obra de Novembre vai além de uma investigação doxográfica sobre as fontes do pensamento de Schopenhauer, sua interpretação de outros filósofos e a aparição de alguns conceitos chaves em seus manuscritos. Tem-se em vista uma reconstrução da filosofia de Schopenhauer que tornaria possível lidar com suas aporias ao menos de modo diverso daquele que muitas vezes aparece na literatura crítica: ao invés de desconsiderar o momento aporético na filosofia de Schopenhauer, ou de enfatizá-lo ao ponto de tornar o sistema contraditório e, portanto, inconsistente, ou ainda esboçar interpretações ou soluções que, por mais engenhosas e refinadas que sejam, se fundam em uma conceitualidade ou numa terminologia estranha ao pensamento de Schopenhauer, o que se propõe é, mesmo reconhecendo a presença e a efetividade do “momento aporético”, “uma explicação conceitual e terminologicamente intrínseca ao pensamento de Schopenhauer, considerado não apenas ‘sincronicamente’, mas em todo o processo de sua evolução” (p. 27). O leitor que acompanhar o percurso de Novembre nessa reconstrução genética da filosofia de Schopenhauer até o fim descobrirá que a chave interpretativa proposta está na doutrina do caráter inteligível: seu papel silenciosamente fundador será destacado na interpretação do momento crucial da metafísica da vontade, a saber, o argumento de analogia e a passagem da vontade como fenômeno à vontade como coisa em si. Não é o caso, nesta breve resenha, de desdobrar os termos do problema e nem mesmo resumir a argumentação de Novembre em favor da centralidade da teoria do caráter inteligível5 na metafísica da vontade de Schopenhauer. Faço questão apenas de indicar esse passo como exemplo das muitas contribuições que essa obra monumental oferece ao estudo da filosofia de Schopenhauer. Embora não se possa dizer do trabalho de Novembre – e nem de nenhum outro – que ele tenha conseguido dar conta de toda a riqueza intrínseca à experiência intelectual de Schopenhauer na elaboração de sua metafísica da vontade (em sua primeira versão), é certo que todo estudioso da gênese de sua filosofia terá que necessariamente se remeter a esse trabalho. Certo é, também que o material presente nos escritos póstumos de Schopenhauer é constituído de uma riqueza inesgotável, o que nos deve manter atentos para as novas edições que estão sendo publicadas agora. Enfim, com sua obra Novembre certamente não disse tudo que era possível dizer sobre o pensamento do jovem Schopenhauer, mas o pesquisador que quiser desbravar esse período da filosofia do autor de O mundo como vontade e representação terá a partir de agora esse estudo precioso no mínimo como incontornável ponto de partida.

Notas

1 Kossler, M. “A única intuição – o único pensamento: Sobre a questão do sistema em Fichte e em Schopenhauer”. Revista Dois Pontos: Curitiba, São Carlos, vol. 4, n. 1, p. 153-173, abril, 2007, p. 158.f

2 Ao traduzir o artigo “Sobre o papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer de Mathias Kossler (In Debona, Vilmar et al. (Orgs.). Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade. Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Curitiba: Editora UFPR, 2015, pp. 19-35), optamos por traduzir Besonnenheit por “discernimento”, ao invés de “lucidez” ou “reflexão”, ou mesmo “clarividência” ou “clareza de consciência” tal como essa palavra foi traduzida por Jair Barboza em sua tradução de O mundo como vontade e representação (São Paulo: Unesp, segunda edição, 2015, 2 vols). A tradução por “discernimento” é de fato contestável e hoje eu reveria essa opção. Como me alertou sobretudo o Professor Oswaldo Giacoia Jr, “discernimento” caracteriza sobretudo uma operação do entendimento contrária ao que tenta expressar a Besonnenheit. De qualquer forma, por conta da polissemia dessa palavra e pelo fato de que o próprio Novembre a menciona sempre no original e apresenta uma miríade de traduções possíveis, deixarei a mesma aqui sem tradução.

3 Acaba de ser publicada pela Editora Unicamp a tradução da dissertação de Schopenhauer (a partir da segunda edição de 1847) com o título Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente – Uma dissertação filosófica. Trad. Oswaldo Giacoia Jr. e Gabriel Valladão Silva.

4 Philosophischen Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zusammenhängenden Gegenstände (1809).

5 A interpretação de Novembre se alinha a algumas interpretações recentes que destacam o papel central da teoria do caráter na filosofia de Schopenhauer, como John E. Atwell, Schopenhauer on the Character of the World, The Metaphysics of Will, Berkeley u. a., 1995; e Matthias Kosler, “Die Philosophie Schopenhauers als Erfahrung des Charakters, in: Birnbacher (Hg.): Schopenhauer im Kontext, Deutsch-polnisches SchopenhauerSymposion 2000, Wurzburg, 2002, 91-112.

Flamarion Caldeira Ramos – Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo com estágio na Johannes Gutemberg Universität Mainz. Professor na Universidade Federal do ABC. E-mail: [email protected]

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Schopenhauer e seus discípulos a partir de correspondências – SCHOPENHAUER (V-RIF)

SCHOPENHAUER, A. Carteggio con i discepoli. 2 volumes. Organização e tradução de Domenico M. Fazio. Lecce: Pensa MultiMedia, 2018 (Schopenhaueriana, 12). Resenha de: CIRACÌ, Fabio; DEBONA, Vilmar. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v9, n.1, jan./jun., p.173-179, 2018.

Nos últimos anos a pesquisa internacional sobre o pensamento e a fortuna de Schopenhauer experimenta um momento de fermentação intelectual particularmente flórido, conduzido de forma sábia pelo Prof. Matthias Koßler, presidente da Schopenhauer-Gesellschaft e da SchopenhauerForschungsstelle de Mainz/Frankfurt am Main. Tal efervescência cultural pode ser notada, por exemplo, pela necessidade de se publicar uma segunda edição, atualizada e melhorada, do Schopenhauer-Handbuch, da Editora Metzler (2018), a menos de quatro anos de sua primeira edição (2014), esgotada. A referida efervescência é confirmada também pela recente edição das Preleções sobre Filosofia geral ou A doutrina da essência do mundo e o espírito humano – Volume 4: Metafísica dos costumes (Meiner Verlag, 2017), assim como do Volume 3: Preleções sobre Filosofia geral: Metafísica do belo, previsto para julho de 2018. Uma ulterior confirmação da vivacidade intelectual da Schopenhauer-Forschung é fornecida não apenas pelo sucesso dos últimos congressos internacionais, como o recente VIII Colóquio Internacional Schopenhauer, organizado pela Seção Brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft, em Curitiba, mas também pelas sempre crescentes traduções dos Werke de Schopenhauer em todo o mundo, como a recente e valiosa tradução do Tomo II de O mundo por Eduardo Ribeiro da Fonseca (Editora da UFPR, 2014), bem como aquela, do mesmo livro, empreendida por Jair Barboza (Editora Unesp, 2015). Muito significativa é, enfim, a abertura de uma Seção Espanhola da Sociedade Schopenhauer, conduzida pelo ativo Carlos Javier González Serrano.

Na Itália, pelo incentivo do Prof. Domenico M. Fazio, está em andamento, há mais de dez anos, uma verdadeira Schopenhauer-Renaissance. Tal renascimento teve início com a fundação do Centro interdipartimentale di ricerca su Schopenhauer e la sua scuola da Università del Salento (2005) e com a instalação da Seção Italiana da SchopenhauerGesellschaft (2011). As pesquisas do Centro e da Seção traduziram-se de imediato em numerosas publicações, sobretudo aquelas veiculadas pela prestigiosa Coleção universitária Schopenhaueriana (Pensa MultiMedia, Lecce) que, com o Carteggio con i discepoli (doravante, Correspondências com os discípulos), de A. Schopenhauer, chega ao seu décimo segundo volume. Somente no último ano vieram à luz, na Itália, duas expressivas obras: a fundamental tese de Alessandro Novembre sobre Il giovane Schopenhauer. L’origine della metafisica della volontà (Mimesis, 2018, 624 p.) e o estudo histórico-analítico de Fabio Ciracì sobre La filosofia italiana di fronte a Schopenhauer. La prima ricezione (1857-1914) pela Pensa MultiMedia (650 p.).

A última grande e preciosa colaboração dessas pesquisas à comunidade científica e aos apaixonados por Schopenhauer são justamente os dois volumes de A. Schopenhauer, Correspondências com os discípulos, que consiste na edição e tradução de todas as cartas entre Schopenhauer e seus discípulos, organizada pelo Prof. Domenico M. Fazio, com 960 páginas. Trata-se de um epistolário com um total de 319 cartas. As novidades contidas na publicação dessas correspondências são numerosas e importantes, e terão de ser levadas em conta pelas pesquisas futuras. Em primeiro lugar, preenche-se, com ela, uma lacuna da editoria científica italiana: vem à luz, finalmente, uma tradução completa das correspondências entre Schopenhauer e seus discípulos, inteiramente nova e inédita em língua italiana, com exceção apenas de alguns fragmentos de cartas traduzidos em As Conversações (I Colloqui), organizadas pelo incomparável A. Verrecchia (BUR, Milão, 2000). Além disso, as Correspondências com os discípulos fornecem ao leitor um poderoso conjunto de notas e documentos capaz de corrigir, integrar e completar as edições major publicadas até o momento, inclusive em língua alemã: a edição iniciada por Paul Deussen (1928-1942, com 866 cartas) e completada por Arthur Hübscher (1978, 1987), e a última (a melhor), que foi publicada na terceira edição das cartas (2008) em versão eletrônica para o Schopenhauer im Kontext III. Comparada a todas essas edições, as Correspondências com os discípulos, organizadas por Domenico M. Fazio não apenas são mais completas e precisas, mas também mais ponderadas e atentas em relação às fontes, dado que corrigem os não poucos erros contidos nas edições precedentes, até mesmo os equívocos do histórico presidente da Schopenhauer-Gesellschaft e organizador dos Werke schopenhauerianos, Arthur Hübscher, célebre (talvez equivocadamente) por sua acribia filológica. Mas isso faz parte da lógica do avanço das pesquisas, que se aperfeiçoam de tempos em tempos, em um processo de contínua e gradual melhoria.

Voltemo-nos, então, às Correspondências com os discípulos. Fazio restitui ad integrum, de maneira oportuna e precisa, fontes documentais e referências de naturezas variadas (filosofia, literatura, ciências e artes) sobre as quais Schopenhauer e seus interlocutores discutem nas cartas. Os textos são agilmente reconduzidos aos contextos, uma vez que as referências frequentemente implícitas, às vezes quase ocultas, entre remetente e destinatário são esclarecidas à luz de debates e querelas que o organizador das correspondências, com sabedoria, entrega ao leitor de modo claro, construindo em forma de notas uma espécie de subtexto paralelo, uma robusta urdidura para a densa trama das cartas. Deste ponto de vista, a publicação das correspondências de Schopenhauer com os seus discípulos consiste no complemento, centrado na Escola em sentido estrito, da documentação contida na antologia La Scuola di Schopenhauer: testi e contesti, publicada na Schopenhaueriana, em 2009. A antologia, de fato, apresentava como introdução um longo ensaio do próprio Fazio, no qual foram descritos os contextos relativos à Schopenhauer-Schule, que introduziam pela primeira vez o leitor no pensamento dos maiores Schüler e o instruíam, de forma sistemática, acerca da articulação interna da Escola, entendida em sentido estrito, ou seja, aquela dos alunos conhecidos direta e pessoalmente pelo filósofo de O mundo (apóstolos e evangelistas), ou mesmo da escola em sentido lato, dos metafísicos Eduard von Hartmann, Julius Bahnsen, Philipp Mainländer; ou ainda dos grandes schopenhauerianos heréticos, como Paul Rée, Georg Simmel, Friedrich Nietzsche e Max Horkheimer; e, finalmente, dos guardiões da tradição, como Paul Deussen, Hans Zint, Arthur Hübscher e Rudolf Malter.

Ora, com a mesma acuidade, Fazio introduz as Correspondências com os discípulos com um rico ensaio sobre “a Escola de Schopenhauer através da correspondência com os discípulos”, que soma 137 páginas. Trata-se de uma verdadeira dissertação, na qual Fazio não apenas apresenta os protagonistas das cartas, mas tem presente os numerosos fios temáticos que se desdobram ao longo das correspondências, indicando os principais temas de debate, conduzindo o leitor em meio a um denso epistolário com a familiaridade e a simplicidade de um longo e reflexivo conhecimento da obra e da vida de Schopenhauer.

O aparato contém verdadeiras pérolas, incluindo algumas descobertas interessantes, às quais Fazio chega por meio de um meticuloso trabalho de escavação filológica, servindo-se para tanto, dentre outros instrumentos, dos mais avançados sistemas de pesquisa para a recuperação de fontes de dados na rede. Dentre as referidas descobertas, para ficarmos com alguns exemplos, está a primeira resenha dos Parerga e Paralipomena, publicada em Hamburg em uma revista feminina de moda (para grande surpresa do próprio Schopenhauer); e também encontramos o texto, escrito em 1851 por Frauenstädt, mas revisado e corrigido pelo próprio filósofo de O mundo, para o tópico “Schopenhauer” do célebre Léxico de conversas, de Meyer.

Além disso, Fazio tira do esquecimento histórico algumas personalidades intelectuais de certa expressividade que, embora desconhecidas para a maioria, eram importantes interlocutores do Sábio de Frankfurt. Entre eles, aparecem as figuras de Carl Georg Bähr e Johann August Becker, dois pensadores que teriam privilegiado o caminho marcado por seus estudos do Direito: o primeiro é o autor de uma obra intitulada A filosofia schopenhaueriana em seus traços fundamentais, que Schopenhauer apreciou muito; já o segundo, considerado por Schopenhauer como “o apóstolo mais douto”, é o protagonista de uma densa correspondência que põe o mestre frente a questões problemáticas e a possíveis contradições de sua metafísica e de sua ética. Becker leva um serrado confronto epistolar com o mestre, as suas dubia são expostas de forma tão rigorosa e com profundida teórica que, em um certo momento, Schopenhauer deixa passar as perguntas do estudante talentoso. Além disso, contra a vontade do mestre, entre os discípulos se difunde uma cópia não autorizada das cartas de Becker com Schopenhauer, tamanho o interesse que elas despertavam entre os outros Schüler.

Mas numerosos são os personagens que preenchem as páginas dessa rica correspondência, alguns dos quais muito pitorescos, alguns outros, no limite do grotesco. É o caso do pregador católico Georg Christian Weigelt, “evangelista ativo e fanaticamente fiel”, com as suas aulas populares sobre Schopenhauer. Ou o caso de Carl Grimm, que assina seus epigramas filosóficos com os evocativos noms de plume de Placidus ou Carolus Mirgius. Ou ainda o caso do agricultor Carl Ferdinand Wiesike, seguidor de Schopenhauer, ao qual erigiu uma capela, celebrando uma espécie de missa laica. Sem contar que em volta de Wiesike havia se formado uma “comunidade silenciosa de hereges e santos extravagantes”, sobre a qual Nietzsche também escreverá. Mas aquele que – dentre todos os seguidores, apóstolos, evangelistas ou meros admiradores desta surpreendente Escola – ostenta a maior simpatia é Julius Frauenstädt, incansável promotor das obras do mestre e fiel discípulo: é ele quem segue Schopenhauer ao longo de uma extenuante caminhada por Frankfurt, em busca de respostas sobre o mistério da vontade metafísica. É também ele quem, continuamente, por carta ou pessoalmente, indaga o mestre sobre a natureza do Wille ou sobre a questão da liberdade individual. E é ele quem se documenta quanto às publicações relativas ao mestre, sugere ingenuamente comparações (como aquela entre Schopenhauer e Helmholtz) que não só perturbam Schopenhauer, mas que são motivos de terríveis reprimendas por parte do mestre a Frauenstädt. É o caso das Cartas sobre a filosofia schopenhaueriana (1854), que o bom Frauenstädt publica, emulando as famosas cartas de Karl Leonhard Reinhold sobre Kant. O julgamento que Schopenhauer expressa sobre as Cartas, em sua carta de resposta a Frauenstädt, não permite réplica: após ter nomeado com gratidão o discípulo como Erzevangelist, Schopenhauer passa às críticas: “Já que nada é perfeito, gostaria de mostrar-lhe o que eu gostaria que fosse feito de forma diversa”, e elenca os numerosos defeitos da obra. Finalmente, Schopenhauer envia ao mal compreendido discípulo a sua própria versão do trabalho daquele, glosada e marcada com numerosos corrigenda. Entre altos e baixos, o pobre arque-evangelista tentará arcar com o fardo de cada reprimenda do mestre e, mesmo fazendo de tudo e de todas as formas – por exemplo, procurando um editor para os Parerga, escrevendo artigos e obras in nomine magistri – nunca mais receberá do mestre aquele atestado de estima que o filósofo endereça a outros discípulos, como a Bähr e a Becker. A fidelidade de Frauenstädt a Schopenhauer, no entanto, é exemplar, prossegue mesmo após a morte do mestre, de quem ele passa a ser testamentário para os escritos científicos. Além disso, Frauenstädt providencia o lançamento da primeira edição dos Werke, publica um léxico schopenhaueriano comentado, que permanecerá insuperável por muito tempo. Junto a outro discípulo, o doctor indefatigabilis Ernst Otto Lindner, defende a memória de Schopenhauer da maledicente biografia escrita pelo aluno “apóstata” Wilhelm Gwinner, na qual Schopenhauer é descrito como um pensador misantropo, bizarro e avarento. Uma imagem (a representada por Gwinner) que logrou espaço em uma época e que, com isso, condicionaria a recepção do pensamento schopenhaueriano, obstaculizando a ideia de o Sábio de Frankfurt poder contar com numerosos discípulos e com uma Escola.

O epistolário se encerra com as cartas do jovem Julius Bahnsen a Schopenhauer no ano de sua morte. Encerra-se assim a Escola em sentido estrito, aquela dos discípulos diretos de Schopenhauer, e se abre, de outro modo, aquela dos Schüler metafísicos, à qual o filósofo dinamarquês pertencerá por direito com a publicação das Contribuições à caracterologia (1867) e de A contradição na ciência e na essência do mundo (18801882), passando para a história como o schopenhaueriano metafísico mais radical.

Provavelmente o que mais chama a atenção em Correspondências com os discípulos é o fato de que, contra todas as expectativas, o diálogo contínuo, às vezes serrado com seus discípulos, inclusive sobre questões centrais e relevantes do sistema filosófico (a discussão sobre o pessimismo, a questão da conversão total da voluntas, o problema da liberdade individual etc.) não parece levar Schopenhauer a revisar ou retroceder em sua doutrina filosófica. O filósofo é resoluto. Seu posicionamento pode, eventualmente, mudar em relação ao destinatário – às vezes é mais impetuoso (com Frauenstädt), às vezes mais prudente (com Becker) -, mas isso se deve à estima intelectual atribuída ao interlocutor do momento. No entanto, não há retornos ou redefinições referentes ao seu sistema metafísico ou a algum tema específico.

Mesmo antes de ser admirado como mestre por um grande grupo de discípulos, Schopenhauer havia mitigado algumas de suas proposições metafísicas fundamentais elaboradas na juventude. De fato, lembremos que na primeira edição de O mundo, de 1819, Schopenhauer era um decidido jovem de trinta e poucos anos, que afirma sem titubear ter resolvido o problema de Kant, fazendo a vontade coincidir totalmente com a coisa em si. Com a publicação das Ergänzungen a O mundo, em 1844, entretanto, o filósofo, agora com 56 anos, expressa um posicionamento mais cauteloso: no célebre capítulo 50 de O mundo, intitulado “Epifilosofia”, Schopenhauer imprime uma nova dimensão metafísica e epistemológica à sua filosofia, mais próxima a Kant: o Wille já não coincide de forma irrestrita com a coisa em si, mas torna-se uma espécie de fenômeno primitivo e originário (Urphaenomen), a última portinhola (ou o último véu de Maja) antes do noumenon. Esta mudança de perspectiva se faz inteiramente presente nas cartas, atuando como um verdadeiro escudo hermenêutico. Schopenhauer deixa isso claro para Becker em uma carta de 21 de setembro de 1844: “Aqui estão o caminho e a ponte, a porta que leva para fora do mundo: eu só posso mostrá-la, mas não abri-la para o senhor, nem posso dizer o que há para além dela e o que acontece lá, nem como é, fora do tempo, aquilo que no tempo se apresenta como mudança”. Aliás, de mistério e de presença misteriosa se imantam, com frequência, as respostas que Schopenhauer endereça às questões cada vez mais prementes dos alunos, que reivindicam mais orientações sobre a natureza da vontade, e que apresentam ao mestre, entre prudência e cautela, algumas contradições ou aporias de seu sistema. Schopenhauer, porém, não se abala, colocando-se serenamente no limiar daquela ponte, considerando, sim, as questões, mas sem visar qualquer solução para elas: “Pode-se perguntar – escreve na Epifilosofia – até onde chegam, na essência em si do mundo, as raízes da individualidade”, mas nenhuma resposta afirmativa pode ser dada. Nesse sentido, Schopenhauer pretende consolidar suas conquistas filosóficas, mas certamente não colocá-las em xeque. E é nesses termos que se deve ler também a ideia de Escola por parte de Schopenhauer: não é por acaso que o filósofo de O mundo, fundador da ética laica e ateia, recorre muitas vezes à metáfora religiosa da igreja, composta por apóstolos e evangelistas. Seu objetivo é conquistar à sua causa novos seguidores, possíveis divulgadores de sua filosofia, desde que estes tenham chegado, antes, à verdade. Como em todo culto que se preze – laico ou religioso -, também os dogmas metafísicos da doutrina schopenhaueriana levaram a numerosas heresias: com implicações cátaras, como o Weltdysangelium pessimista de Bahnsen, ou mesmo com os reformadores, como o Inconsciente de Hartmann e a morte de Deus de Mainländer, ou ainda com os verdadeiros heresiarcas, como Nietzsche ou Rée. Mas as sementes heréticas dessas declinações do schopenhauerismo já estavam presentes na Escola em sentido estrito e nas discussões entre discípulos e mestre.

Portanto, quem pretendesse ler as Correspondências com os discípulos esperando encontrar nelas retratações ou revisões de teses sustentadas pelo filósofo nas obras publicadas ficaria desapontado. É claro que às vezes Schopenhauer concede explicações que a um leitor atento podem parecer menos sistemáticas do que em O mundo ou nos escritos sobre Ética. Vez ou outra o filósofo recorre a metáforas, mas é o próprio Schopenhauer quem sempre remete os discípulos às obras, indicando que já havia esclarecido tudo nos escritos publicados. Schopenhauer, por outro lado, busca continuamente as “provas empíricas” de sua metafísica da vontade, mesmo quando se arrisca a incorrer em solenes enganos, como aquele relativo às “mesas giratórias” e ao mesmerismo, todos fenômenos que ele interpreta à luz da vontade na natureza, como confirmado pela presença de um Wille ainda não objetivado em objetos.

No entanto, duas coisas saltam aos olhos do leitor: a primeira é a vastidão dos interesses culturais de Schopenhauer, que transparece em cada uma das páginas das correspondências, sua insaciável Wissensdurst, sua sede de conhecimento para cada ramo do conhecimento, filosofia, arte, ciência ou religião; o segundo é o desejo de ser universalmente reconhecido como filósofo: as cartas testemunham a tentativa inesgotável de ostentada autopromoção, de afirmação das próprias descobertas e méritos, a luta para ser reconhecido como o único e autêntico herdeiro da filosofia crítica de Kant.

Além de ser uma preciosa mina de informação, e além de apresentar-nos uma galeria discreta de personalidades intelectuais, algumas delas muito interessantes, as Correspondências com os discípulos oferecem ao leitor não apenas uma imagem mais nítida do homem Schopenhauer, como também, por meio do espesso diálogo com as notas e as fontes discutidas, o organizador do epistolário recria um universo intelectual e um horizonte histórico que a crítica muitas vezes negligencia. A figura de Schopenhauer resulta certamente menos idealizada, menos associada ao mito do gênio indomável ou à figura do bizarro misantropo, mas a dimensão do pensador resulta enriquecida, assim como revelam-se a profundidade e a vastidão de seu pensamento, e emergem com limpidez a sua extraordinária individualidade, a sua originalidade, a força de suas convicções e a vontade de apresentar sua filosofia como um único pensamento e um pensamento único.

Com efeito, as Correspondências com os discípulos indicam numerosas pistas de pesquisa sobre o pensamento de Schopenhauer e sobre as interpretações de seus primeiros seguidores: para a Schopenhauer-Forschung o epistolário não representa somente um porto da pesquisa italiana e internacional, mas, sobretudo, o cais do qual poderão partir novas e mais longínquas navegações.

Fabio Ciracì – Professor da Università degli Studi del Salento (Lecce). Secretário do Centro Interdipartimentale di ricerca su A. Schopenhauer e la sua Scuola. E-mail: [email protected]

Vilmar Debona – Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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Schopenhauer, niilismo e redenção – RODRIGUES (V-RIF)

RODRIGUES, Eli Vagner Francisco. Schopenhauer, niilismo e redenção. Campinas: Editora Phi, 2017. Resenha de: SOUZA, Cláudia Franco. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 8, n.1, p.211-214, 2017.

A partir do século XIX o niilismo se torna um tema central da historia da filosofia. Nietzsche ocupa certamente um lugar de destaque no panorama desta tema tica, principalmente devido ao aforismo 125 da Gaia Ciência, em que o filosofo anuncia que Deus está morto. O livro Schopenhauer, niilismo e redenção apresenta uma nova perspectiva de leitura da questão do niilismo na obra de Schopenhauer, mostrando a profundidade deste tema no pensamento filosófico do pensador em questão, que dialoga proximamente com a crise da razão.

Ao mesmo tempo em que o autor Eli Vagner Francisco Rodrigues utiliza as interpretações do pensamento de Schopenhauer realizadas tanto por Nietzsche quanto por Heidegger, o pesquisador mostra também os limites destas interpretações, como fica claro na seguinte passagem do seu livro:

A tentativa de identificar aspectos da filosofia de Schopenhauer com algumas características apontadas por Nietzsche e Heidegger em suas análises do niilismo se mostra, ao meu ver, produtiva para a compreensão da natureza do pensamento schopenhaueriano. Muitas vezes, porém, as análises de Nietzsche e Heidegger levam a ambiguidades que podem comprometer este trabalho (p. 105).

Salientar os limites da interpretação da filosofia schopenhaueriana que e feita tanto por Nietzsche quanto por Heidegger e de suma importância porque acentua a independência e a relevância da potencia do pensamento filosófico de Schopenhauer, que ocupa um lugar de especial importância na Historia da Filosofia no que toca a questão do niilismo, como esclarece o pesquisador Eli Rodrigues.

Um outro aspecto metodológico importante presente no livro em questão e a utilização do trabalho da Professora Maria Lu cia Cacciola para esclarecer pontos centrais da filosofia de Schopenhauer, como a questão do nada (p. 97). A perspectiva de leitura de Maria Lu cia Cacciola aparece em outros trechos do livro, revelando a importância e a profundidade da pesquisa sobre Schopenhauer que e realizada no Brasil.

Ao longo dos quatro capítulos que compõem o livro Schopenhauer, niilismo e redenção, o Professor Eli Rodrigues vai mostrando como a questão do niilismo encontra-se presente na filosofia de Schopenhauer ainda que este termo na o apareça na obra do filosofo, como esclarece a seguinte passagem, logo no início do primeiro capítulo:

Antes de ocupar-se das considerações sobre a origem do termo “niilismo” ou da derivação “niilista” é necessário esclarecer que os mesmos não aparecem em nenhum momento na obra de Schopenhauer. As considerações metafísicas, estéticas e éticas do filósofo enceram sem dúvida, posições niilistas em relação ao mundo, como aqui é defendido (p. 45).

Ao tratar das origens do niilismo, Eli Rodrigues destaca o aparecimento deste termo tanto na literatura, como aponta Franco Volpi, ao ressaltar a utilização do termo no romance Pais e Filhos de autoria de Turgueniev, quanto na filosofia ao comentar a carta escrita por Jacobi endereçada a Fichte, onde aparece o problema filosófico da “desvalorização dos valores supremos” (p. 47).

O autor de Schopenhauer, niilismo e redenção mostra que no livro Niilismo, de Franco Volpi, a obra filosófica de Schopenhauer na o ocupa o devido lugar:

O aspecto que se mostra pouco explorado na obra de Volpi é o da influência da filosofia de Schopenhauer no contexto da efervescência das ideias niilistas. O autor aponta a importância da reflexão schopenhaueriana como inspiração do enfoque nietzschiano sobre o tema, porém dá maior importância ao desenvolvimento efetuado por Nietzsche do que propriamente à análise da influência (p. 54).

Neste sentido, o livro de Eli Rodrigues acaba por preencher esse espaço vazio deixado por Volpi no que toca a importância da filosofia de Schopenhauer em relação ao tema do niilismo, tornando-se uma leitura imprescindível para todos os estudiosos que pretendem se debruçar sobre esse tema.

Ao tratar da metafísica da vontade e do niilismo no segundo capítulo, o pesquisador Eli Rodrigues mostra como a questão do nada ocupa um lugar de destaque na filosofia de Schopenhauer, como podemos ler neste trecho:

histórica para a humanidade contraria radicalmente a concepção que Schopenhauer tem do mundo. O mundo para o filósofo, não oculta uma ordenação originária de uma inteligência e nem encontra na razão um ponto de partida ou um fundamento para uma possível ordenação que possa estabelecer um sentido de “justificação” para a existência da natureza e dos seres vivos, racionais ou não. A teologia, as teodiceias e as filosofias tributárias de uma justificação da totalidade se opõem radicalmente à concepção de Schopenhauer (p. 88).

Eli Rodrigues mostra que a filosofia pessimista, e ate irracionalista e sombria para alguns interpretes mais radicais do pensamento de Schopenhauer, se constitui como um polo essencial na historia da filosofia no que tange a problema tica do niilismo. E através de suas reflexo es, o autor brasileiro revela quão debitaria e a filosofia de Nietzsche do seu mestre da juventude que foi Schopenhauer.

Ainda no segundo capítulo, ha a discussão sobre a metafísica da vontade e a e tica da compaixão. A e tica, ao ocupar um lugar de destaque na filosofia de Schopenhauer, e a ascese como caminho para a libertação, representaria o desprendimento da vontade (pp. 96-97). E o homem liberto da vontade e um homem de frente para o nada. A posição niilista seria, neste sentido, um caminho para a redenção (p. 97).

Nos dois últimos capítulos do livro, o autor Eli Rodrigues mostra as relações de Nietzsche com o niilismo schopenhaueriano. Todas as reflexo es desenvolvidas ao longo destas paginas são relevantes se considerarmos que o maior discípulo de Schopenhauer foi Nietzsche, e, frente a grandiosidade de Nietzsche, ha o risco de se interpretar a filosofia de Schopenhauer sob a perspectiva nietzschiana. Nestes dois capítulos, fica clara a diferença entre a filosofia, de certo modo niilista de Schopenhauer, e a interpretação nietzschiana do pensamento schopenhaueriano.

Para além destes aspectos, no terceiro capítulo Eli Rodrigues estabelece a relação entre a e tica e a teoria da arte schopenhaueriana, como podemos ler na seguinte passagem:

A ética de Schopenhauer está ligada à sua teoria da arte. Para o filósofo, a contemplação estética tem dois elementos inseparáveis: o conhecimento do objeto considerado, – não como coisa particular, mas como exemplar da ideia platônica, isto é, como forma permanente de uma espécie -, e a consciência do puro sujeito do conhecimento, sem a vontade (p. 113).

O pesquisador brasileiro desenvolve toda uma reflexa o entre sujeito do conhecimento e abandono do princípio da razão, revelando que o artista, de acordo com a visa o de Schopenhauer, se ocuparia da essência do mundo, desconectado do princípio da razão (p. 114).

No ultimo capítulo encontra-se uma importante discussão sobre a questão do suicídio a partir da filosofia de Schopenhauer. O suicida ainda estaria preso a s teias da vontade, segundo o filosofo em questão (p. 138) e, então, o suicídio na o se relacionaria de modo algum com a redenção, que só poderia ser alcançada por meio da ascese, que por sua vez, como sabemos, ocupa um lugar muito próprio nessa filosofia.

O livro Schopenhauer, niilismo e redenção e uma leitura incontornável para todos aqueles que desejam conhecer mais sobre a filosofia schopenhaueriana, mas também para os pesquisadores inclinados ao aprofundamento dos debates em torno da questão do niilismo. Trata-se de uma obra solida, bem estruturada e uma importante referencia para os estudos sobre Schopenhauer e o niilismo.

Cláudia Franco Souza – Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]

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En présence de Schopenhauer – HOUELLEBECQ (V-RIF)

HOUELLEBECQ, Michel. En présence de Schopenhauer. Paris: Editions de L’Herne, 2017. Resenha de: RODRIGUES, Eli Vagner Francisco. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.8, n.2, p, 140-149, 2017.

O Enfant terrible da literatura francesa contemporânea, Michel Houellebecq, premio Goncourtem 2010 (Prix Goncourt du premier roman1) por La Carte et le Territoire (O Mapa e o Território), lançou, em 2017, pela editora francesa “Editions de LHerne”, seu livro sobre a filosofia de Schopenhauer. Houellebecq e autor da recente e pole mica obra “Submissa o”, uma espécie de distopia na qual uma França, enfraquecida em suas lideranças progressistas pelas disputas políticas contemporâneas, pautadas pela tolerância e pelo multiculturalismo, seve , depois de um rápido processo de transição política, totalmente inesperado pela maioria dos analistas políticos, dirigida por um líder islâmico. A derrota do pensamento explicitamente descrita em “Submissa o” e a resistência em defender certos ideais do iluminismo, como a ideia de progresso, por exemplo, apontam, nesta e em outras obras, para uma aproximação de Houellebecq com pontos de vista muito próximos da perspectiva schopenhaueriana. Entre suas obras mais conhecidas figuram “Partículas Elementares”, de 1998, sucesso editorial que praticamente lançou Houellebecq no mundo literário (e da pole mica) e que gerou um filme do diretor alemão Oskar Roehler. A obra e considerada um clássico do niilismo literário contemporâneo, título que, por si só , aponta para diversas contradiço es, mas que também revela que alguns traços da atmosfera filosófica do final do seculo XIX constituem uma influencia perene na cultura ocidental. O romance recebeu o Premio Décembre de melhor livro do ano em 1998. Em 2001, Houellebecq publicou “Plataforma”, e, quatro anos depois, “La Possibilité d’une île” (A possibilidade de uma ilha), que ganhou o Premio Interallié. Em 2015, no mesmo dia em que Houellebecq retornou a s livrarias com “Submission” (Submissa o – a palavra/tradução- ocidental para Isla ), a equipe editorial de Charlie Hebdo foi dizimada por dois terroristas islâmicos. Com prefacio de Agathe Novak-Lechevalier, docente sênior

da Universidade de Paris X – Nanterre, e editora do “Cahier” dedicado a Michel Houellebecq da mesma editora, (L’Herne), a obra sobre Schopenhauer e um apanhado de comenta rios a trechos dos dois volumes de O mundo como vontade e representação e dos Aforismos sobre a sabedoria de vida.

Houellebecq tem em Schopenhauer, segundo ele próprio, um dos autores centrais para o desenvolvimento, tanto das características de seus personagens, quanto da visa o geral sobre a cultura e a civilização atuais. Suas obras representam o que já foi definido pela crítica como um exemplo de uma escrita niilista efetivamente marcada pelas contradição es da chamada modernidade tardia (pós-modernidade), na contramão do politicamente correto, sobretudo na caracterização do comportamento das personagens, invariavelmente envolvidas em uma atmosfera de miséria afetiva, nas contradições da sexualidade pós 68 e no tratamento de questões políticas e culturais. Mas como seria possível tal influencia se na o se trata de um filosofo pós-moderno? A resposta para tal vínculo estaria na inspiração pessimista em relação aos ideais civilizatórios, uma concepção muito próxima da concepção e do papel do artista em relação a verdade metafísica e moral e, por assim dizer, nenhum entusiasmo em relação ao islamismo, entre outros aspectos. A obra Em Présence de Schopenhauer (Editions de L’Herne, Paris, 2017, 91 paginas), ainda sem previsão de tradução para o português, pretende, segundo o próprio autor, em linhas gerais, sustentar a tese segundo a qual a atitude intelectual de Schopenhauer deve ser uma referencia para aqueles que se ocupam da filosofia nos dias atuais. Sua estratégia de escrita foi a de analisar longos trechos do “Mundo como Vontade e como Representação”, dos suplementos ao “Mundo” e dos “Aforismos sobre a sabedoria de vida”, passagens pelas quais declara ter um apreço especial, e comenta -las de maneira livre, ensaística. O resultado evidencia que Houellebecq e um leitor, como se esperava, experimentado em questões este ticas e que apresenta uma interpretação atenta e penetrante de passagens cruciais da obra do filosofo de Frankfurt. Por outro lado, a obra pode ser considerada um “pequeno livro”, pela extensa o e pelo formato (livro de bolso).

Houellebecq, como indico acima, optando pela abordagem ensaística, nao nos entrega uma obra em padrão acadêmico, pautada e orientada pelo rigor metodológico das analises e interpretações, mas, ao mesmo tempo, demonstra um conhecimento “técnico” incomum entre escritores e ensaístas e tece comenta rios, na maioria das vezes, oportunos, seguros e estimulantes. Sua abordagem evidencia um conhecimento de problemas relacionados a política, epistemologia e, sobretudo a este tica e historia da filosofia. Sobre um problema crucial da teoria do conhecimento, Houellebecq afirma:

Há algo de reconfortante sobre imaginar o próprio corpo como um objeto imediato; e preocupante em considerar a pluralidade, uma fonte inesgotável de infortúnio na prática, como consequência das condições formais do conhecimento; especialmente quando sabemos (e será o mérito do século XX ter estabelecido) que eles não têm a segurança de posse que Kant emprestou a eles. (p. 29, tradução nossa)2.

No capítulo introdutório, intitulado “Sors de L’enfance, Ami, Reveille-toi”, epígrafe de “O Mundo como Vontade e como Representação”, Houellebecq narra seu encontro com a obra de Schopenhauer. “Quando peguei emprestados os Aforismos sobre a sabedoria na vida na biblioteca municipal do VII distrito, eu poderia ter vinte e seis ou vinte e sete anos. Em qualquer caso, e muito tarde, para uma descoberta tão considerável”. (p. 22). Nessa apresentação o traço crítico e sarcástico, que alia s se nota em toda sua obra, transparece no texto do autor de “Partículas Elementares” em relação a filosofia nietzschiana:

Depois de duas semanas de pesquisa, consegui obter “O Mundo como Vontade e Representação”, numa prateleira da livraria de Presses Universitaires de France, boulevard Saint-Michel; na época, o livro só estava disponível naquela ocasião (durante meses eu estava surpreso, em voz alta, tive que expressar meu espanto para dezenas de pessoas: estávamos em Paris, uma das principais capitais europeias, e o livro mais importante do mundo nem sequer foi republicado! Na filosofia eu estava quase em Nietzsche; em uma constatação de falha, na verdade. Achei sua filosofia imoral e repulsiva, mas seu poder intelectual se me impôs. Gostaria de destruir o nietzscheanismo, espalhar seus fundamentos, mas não sabia como fazê-lo; intelectualmente, fui espancado. Escusado será dizer que a leitura de Schopenhauer, novamente, mudou tudo. Eu nem o culpo pelo pobre Nietzsche; Ele teve a infelicidade de vir depois de Schopenhauer, assim como ele teve o infortúnio, na música, de atravessar o caminho de Wagner. (p. 23).

Apesar da declarada aversão a filosofia moral de Nietzsche, Houellebecq, concorda com o jovem filo logo da Terceira Extemporanea e determina assim o proposito específico de sua obra sobre Schopenhauer. Houellebecq destaca que, na obra

supracitada, escrita pouco antes da guinada crítica, Nietzsche elogia a profunda honestidade de Schopenhauer, sua probidade, seu senso de justiça como pensador. Nietzsche destaca magnificamente seu estilo, um tipo de bonomia mal-humorada que lhe da certo desgosto elegante característico dos grandes estilistas em literatura. “Tal e o objeto ampliado deste volume: proponho mostrar, através de algumas das minhas passagens favoritas, por que a atitude intelectual de Schopenhauer continua a ser um modelo para qualquer futuro filosofo” (p. 25).

Houellebecq destaca que na primeira parte de sua obra capital, na qual Schopenhauer determina o mundo dos objetos como um todo, na primeira perspectiva como representação, permanece-se sempre condicionado pelo sujeito. Nesta fase de seu trabalho, “ele na o tem trinta anos”, nota um Houellebecq admirado: Schopenhauer, apo s duas obras (“Da quadrupla raiz do princípio de razão suficiente” e “Sobre a visa o e as cores”), chegou a um uma posição perfeitamente clara: ele assimilou a crítica kantiana, da qual teria dado uma visa o mais franca e mais exata. “O mundo e minha representação”. Segundo Houellebecq, o primeiro Wittgenstein, em seu Tractatus Logico Philosophicus, não dirá nada ale m disso: “O mundo e o que acontece”3. As primeiras paginas do “Mundo” seriam, segundo Huellebecq, apenas uma síntese, particularmente clara, desses primeiros trabalhos. As afirmações do autor podem causar algum incomodo no publico especializado, mas, apesar de Houellebecq na o pretender ficar meramente na para frase do texto schopenhaueriano, ele também na o tem a intenção, como ja constatamos, de aprofundar temas com rigor acadêmico. Ao contra rio de Wittgenstein – retoma Houellebecq – que emite a famosa conclusa o ao final de seu Tractatus “sobre o que na o se pode falar devemos nos calar”, Schopenhauer vai nos falar exatamente sobre o que na o se pode falar: sobre o amor, a morte, a piedade, a tragédia e a dor. Assim, segundo Houellebecq, ele alcançou uma gloria imperecível penetrando no domínio mais comum aos romancistas, aos músicos e aos escultores (romanciers, musiciens, sculpteurs). Sua introdução neste mundo se da , nota Houellebecq, de maneira segura e serena, pois ele leva consigo na o uma obra esotérica e subjetiva, mas a estrutura de um verdadeiro sistema filosófico. O traço destacado com entusiasmo por Houellebecq e que essa introdução ao universo das “questões proibidas” se da magistralmente e com uma ênfase e predileção pela estética.

Houellbecq inicia o segundo capítulo convidando o leitor da mesma forma que Schopenhauer: a olhar para as coisas (Porte un regardattentifsur les choses). O convite e provocativo e inicia tico. Houellebecq explica com clareza exemplar o conceito de Ideia platônica a partir desse convite alvissareiro. Quando, animados pelo poder da mente, afirma, abandonamos o modo habitual de considerar as coisas, deixamos de desvendar, a luz do princípio de razão em suas diferentes formas, suas relações entre elas. Quando, pela contemplação, ja na o se considera o lugar, o onde, o quando, e o porque e o proposito das coisas, mas simplesmente e apenas a natureza delas; quando também na o se deixa o pensamento abstrato, os princípios da razão ocuparem a consciência; quando, ao invés de tudo isso, se depara com a intuição de todo o poder da mente, que recai no próprio eu e a consciência inteira esta cheia da contemplação pacífica de um objeto natural diretamente presente – seja uma paisagem, uma arvore, uma rocha, um edifício ou qualquer outro objeto, nesse momento o sujeito se esquece de si próprio. O sujeito puro, como um espelho claro do objeto, de tal maneira que e como se o objeto estivesse sozinho, sem que ninguém o percebesse, e que na o podemos mais distinguir a intuição de quem a experimenta. Na medida em que a consciência e inteiramente preenchida e absorvida por uma imagem intuitiva e u nica; quando finalmente o objeto se libertou de toda relação com outra coisa, e o sujeito de toda relação com a vontade: então o que se sabe na o e mais o particular, mas a Ideia, a forma eterna. Ora, a apresentação de Houellebecq, ale m de ser clara e didática, introduz o leitor em um aspecto fundamental para a compreensão da obra de Schopenhauer, a saber, a transição da este tica para a e tica. O objeto imediato da vontade, continua Houellebecq, nesse estado de contemplação, deixa de ser um objeto para a vontade, porque o indivíduo desapareceu no momento da contemplação: tornou-se o puro sujeito do conhecimento, liberado da vontade, da dor e do tempo.

E nesse ponto que Houellebecq da uma contribuição para o tema da este tica e para a cultura contemporânea. A proposito do papel do artista nesse processo e, considerando a inatualidade do conceito de gênio para a condição este tica de nosso século, Houellebecq afirma:

Esta descrição da contemplação límpida – na origem de toda a arte – é tão limpa que se esqueceria de seu caráter profundamente inovador. Antes de Schopenhauer, vimos todo o artista como alguém que fabricava coisas – certamente de uma fabricação difícil e de uma ordem especial… Mas o ponto original, o ponto gerador de toda a criação, é fundamentalmente diferente; consiste em uma disposição inata – e, consequentemente, não ensinável – na contemplação passiva e estupefata do mundo…Para o mundo de hoje, no qual a arte se tornou acessível para as massas e gera fluxos financeiros consideráveis, isso tem consequências cômicas…O artista, sozinho entre os homens, conserva uma faculdade de percepção pura, que normalmente é encontrada apenas na infância, na loucura ou no reino dos sonhos. O homem comum, este produto industrial da natureza, que fabrica milhares a cada dia, é, como dissemos, incapaz, pelo menos de maneira sustentada, dessa percepção puramente desinteressada que constitui a contemplação. (p. 40 e ss).

A analise de Houellebecq introduz um dos problemas mais relevantes da este tica, retomada por Nietzsche, e que se encontra na própria cisão de duas filosofias fundamentais para a historia do problema e que envolve a ética e a arte. Houellebecq vai ao ponto nevrálgico da discussão ao indicar a famosa frase de Stendahl, segundo a qual “A beleza e uma promessa de felicidade”. Esta frase pode ser considerada como o foco de uma grande disputa filosófica. Se tal proposição fosse transformada em uma pergunta, a resposta a questão determinaria, necessariamente, viso es radicalmente opostas sobre o papel da arte em relação a vida humana e a e tica. Houellebecq lança mão do curtíssimo para grafo 40 do Mundo, que trata do conceito de sublime e no qual Schopenhauer, a guisa de conclusa o de um raciocínio anterior, afirma que “o Excitante, portanto, e , em toda parte, para ser evitado na arte” (p. 47). Além da oposição entre as concepções de Schopenhauer e Nietzsche em relação a este tica apontada por Houellebecq, uma questão um tanto mais contemporânea na o deixa de ser notada pelo autor francês. Apos a arte do século XX, observa, o “espectador e quem põe a mesa”, os ReadyMade de Duchamp são objetos conceituais. Ora, nada poderia ser mais contra rio a concepção de Schopenhauer em relação a intuição artística, afirma Houellebecq. Para Schopenhauer, a beleza na o e uma propriedade pertencente a certos objetos do mundo, a exclusa o dos outros; na o e , portanto, uma habilidade técnica que possa produzir sua aparência. O que ele expressa, ainda mais brutalmente, pela frase: “Dizer que uma coisa e bela e expressar que e o objeto de nossa contemplação este tica”. Segundo Houellebecq, como a ideia é e continua a ser intuitiva, o artista não esta ciente em abstração da intenção e proposito de seu trabalho: não e um conceito, mas uma ideia que o guia: ele não pode dar nenhuma explicação sobre sua maneira de fazer as coisas: ele trabalha como que inconscientemente. Certamente esse destaque relativo a este tica distanciando conceito de ideia como fundamento da arte, ale m da questão da contemplação o desinteressada, mereceriam analises mais aprofundadas a partir da interpretação de Houellebecq. O autor, por sua vez, mesmo em um capítulo demasiado curto, apresenta um problema complexo com objetividade.

No terceiro capítulo, Houellebecq deixa sua veia polemista mais uma vez em evidencia. Intitulado “Ainsis’objective le vouloir-vivre”, “Assim, objetiva-se a vontade de vida”, expressa o extraí da diretamente do texto do “Mundo”, o capítulo apresenta trechos dos para grafos 23 e 24, bem como trechos do capítulo XXVIII do segundo volume (Suplementos), a fim de demonstrar, a partir dos textos schopenhauerianos, que sua própria concepção de natureza e sociedade encontra solida argumentação a partir das teses do “Mundo”. A vida animal na o e apenas absurda, e atroz, afirma. A visa o de mundo que Houellebecq desenvolve em obras como “Partículas elementares”, “O mapa e o território” e mesmo no recente “Submissa o” revelam traços inegáveis da influencia da filosofia da natureza de Schopenhauer.

Se é o mundo como um todo inaceitável, não é proibido experimentar, para a vida, um desprezo particular. Não para “vida humana”; por toda a vida. A vida animal não é apenas absurda, é atroz. Que coisa execrável é essa natureza da qual somos parte! Exclama Schopenhauer seguindo Aristóteles. A passagem citada, com sua imensa frase final, profunda como o abismo, a majestosa desolação e o horror, é uma daqueles que podem causar uma estupidez, uma consciência final, como uma cristalização do relâmpago dos sentimentos espalhados pela experiência da vida; é difícil imaginar que alguém, em qualquer momento da história, possa adicionar uma única palavra. Quero dedicar isso especialmente aos leitores ecologistas (p. 61).

A passagem a que se refere Houellebecq, do para grafo 29 do mundo, ultimo para grafo, do segundo livro do “Mundo”, trata do fluxo infinito dos desejos humanos intercalados pelo tedio.

No capítulo intitulado “Le the a tredu monde” (O teatro do mundo), Houellebecq destaca a importância da perspectiva trágica para a filosofia de Schopenhauer. Para tal empreende uma analise da tragédia enquanto forma artística privilegiada. Na esteira de Schopenhauer afirma que as formas de descrição de um grande infortúnio são elementos indispensáveis para a constituição da tragédia. As muitas maneiras diferentes pelas quais o poeta traz esta descrição, lembra Houellebecq, podem ser reduzidas a três espécies: através da malícia excepcional, ao lado dos limites do possível, de um personagem que será o arquiteto do infortúnio; através de um destino cego, isto e , por acaso e erro e finalmente pela simples situação dos personagens, um contra o outro, pelas circunstancias; na o ha necessidade de um erro monstruoso, de um destino extraordinário ou de um personagem atingir os limites da perversidade humana; pelo contra rio, personagens que são moralmente familiares para no s, colocados em circunstancias comuns, esta o em relação um ao outro em situações que os obrigam a se prepararem, em plena consciência e em plena consciência, os Infortúnios mais horríveis, sem que a culpa seja claramente atribuível a uma das partes. Esta e , no fundo, a maior das tragédias, pois tem seu fundamento na natureza volitiva corriqueira. Em suas manifestações cotidianas e natural e simples, por outro lado, determina, na soma total das ações, o fundo absurdo da discórdia natural.

Ao final de sua apresentação, Houellebecq questiona o papel dos “Aforismos para a sabedoria de vida”. Na interpretação do autor, paralelamente a sua missa o de apresentar uma representação do mundo consistente com o estado das ciências, acessível a intuição e que satisfaça a razão, a filosofia tem tradicionalmente uma outra função que seria a de fornecer conselhos aplicáveis a condução da vida. Houellebecq afirma que e difícil dizer porque Schopenhauer decide se lançar a tal empresa, mas que certamente lamentaríamos a inexistência desse livro tão brilhante e tão acessível (Aforismo para a sabedoria de vida). Assim, mesmo apresentando sua versa o trágica do mundo Schopenhauer nos apresenta a mensagem sempre u nica e radical do budismo. Mas, segundo Houellebecq, de um budismo, temperado, humanizado e adaptado a nossa cultura. Ao final de sua apresentação, o autor de “Submissa o” sugere uma filiação de sua obra com o pensamento do mestre alemão ao afirmar que a tragédia da banalidade, produzida por circunstancias comuns, tornada ainda mais inescapável, continua a ser escrita, sugerindo claramente sua adesão a esta visão estética.

No ultimo capítulo, denominado “La conduit da la vie: ce que lon a” (O caminho da vida: o que temos), o autor retoma a questão da validade, eficácia e valor dos “Aforismos” através de uma questão sobre a força de interferência do intelecto em relação a fortuna. Nesse sentido, Houellebecq coloca uma questão fundamental que seria a de saber se as forças intelectuais são favoráveis ou na o a felicidade humana. Com uma passagem do capítulo terceiro dos “Aforismos” (Daquilo que alguém tem), Houellebecq ilustra a posição de Schopenhauer favorável a conservação de riquezas que possam conferir ao indivíduo autonomia para se esquivar da “corveia geral”, isto e , dos regimes de trabalho aos quais a imensa maioria da humanidade e submetida a ponto de uma multidão esmagadora e esmagada pelo trabalho árduo na o poder afirmar “O dia me pertence”. Mas, e bom lembrar, a citação escolhida por Houellebecq para fechar o livro finaliza com uma depreciação em relação aqueles que, possuindo riqueza e condições, na o investem seu tempo no desenvolvimento da humanidade através do estudo da ciência e do investimento no desenvolvimento intelectual próprio. A passagem dos Aforismos nos faz lembrar, em vários aspectos, o famoso texto de Kant sobre o esclarecimento, no qual o filosofo de Konigsberg afirma que a preguiça e a covardia são causas da tutela e inimigas da autonomia do indivíduo.

Mas a fortuna herdada alcança o seu valor supremo quando cabe àquele que, dotado de forças espirituais superiores, persegue aspirações que não são de todo compatíveis com a atividade remunerada. Nesse caso, tal homem é duplamente dotado pelo destino e pode agora viver para o seu gênio, mas pagará multiplicada por cem a sua dívida para com a humanidade, realizando o que nenhum outro poderia e produzindo algo que contribui para o bem e a honra da coletividade humana. Outro, por sua vez, em tais condições tão favoráveis, merecerá o reconhecimento da humanidade pelas suas atividades filantrópicas. Quem, ao contrário, possuidor de fortuna herdada, nada realizar com ela, mesmo se de modo parcial ou por tentativa, ou sequer chegar a viabilizar para si mesmo, mediante o estudo profundo de uma ciência, a possibilidade de fomentála, é um mandrião desprezível. (p. 90).

Houellebecq parece querer destacar tanto a crítica feroz de Schopenhauer as condições brutais a s quais a massa humana esta submetida quanto dar voz ao moralista esclarecido que habitaria nos recônditos da alma schopenhaueriana.

De forma declaradamente ensaística e, por isso mesmo, na o referenciada pela fortuna crítica e por recursos exegéticos – esta nunca foi a intenção do autor -, a obra Em Présence de Schopenhauer na o pode ser considerada uma grande obra de um autor contemporâneo sobre a filosofia de Schopenhauer. No entanto, guardadas as proporções e as expectativas, pode ser apreciada com algum proveito pelo público especializado interessado em questões este ticas e pelo leitor comum interessado em uma introdução. De qualquer forma, aos estudiosos da obra de Schopenhauer e de sua influencia sobre a cultura contemporânea em geral, acrescenta-se mais um testemunho do alcance, profundidade e perenidade da obra do mestre de Frankfurt.

Notas

1 O prêmio Goncourt é considerado o maior prêmio literário da França. É atribuído a um romance para celebrar o melhor livro de ficção em prosa a cada ano.

2 Todas as traduções do texto de Houellebecq são de autoria do autor da resenha. Para os trechos nos quais o autor do livro cita a obra de Schopenhauer optei pela tradução do Prof. Jair Barboza, como no caso dos “Aforismos para a sabedoria de vida”.

3 No original “Die Weltistalles, was der Fall ist”. Na tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos, “O mundo é tudo o que é o caso”. Tractatus Lugicus-Philosophicus, Editora EDUSP.

Eli Vagner Francisco Rodrigues – Professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: [email protected]

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Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud – FONSECA (V-RIF)

FONSECA, Eduardo Ribeiro da. Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud. Curitiba: Editora UFPR, 2016. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.7, n.2, p.153-159, 2016.

O esforço de realizar um entrecruzamento de duas produções intelectuais pode ser conduzido pela capacidade de se gerar novas fugas e novas reflexo es, mas também pode – talvez muito facilmente – recair em uma espécie de linearidade erma que revela apenas aquilo que o próprio esforço suscitou. No caso do livro de Eduardo Ribeiro da Fonseca, Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud, a leitura parece ter transcorrido o rumo de novas e prolíficas ponderações, permitindo outras viso es na o apenas sobre a relação entre os dois autores, mas sobretudo fazendo evidenciar as muitas analises que podem partir dessa intersecção.

Os autores abordados pelo referido livro na o deixam de intensificar o problema de um possível entrecruzamento, já que, uma vez que na o se tratam de pensadores vinculados necessariamente por uma dimensão histórica e conceitual demasiado estrita – pois Freud na o e , a primeira vista, um filosofo e, tanto mais, um filosofo pós-kantiano –, pode então advir a tendência de se tomar o predecessor pelas lentes do sucessor. Isto e , a análise mais ligeira buscaria encontrar em Schopenhauer uma espécie de ancoradouro conceitual e até mesmo histórico para o trabalho clínico-especulativo realizado posteriormente por Freud, como que desenvolvendo uma fundamentação da psicanalise a s avessas, fazendo emergir, desde uma leitura a posteriori, uma espécie de legitimidade para o trabalho empreendido pelo me dico vienense. A primeira grandeza do livro de Eduardo Ribeiro da Fonseca e justamente a de declarar-se contra rio a essa posição, asseverando que:

Um dos nossos principais objetivos é ajudar a preencher a lacuna histórica e existente dentro da psicanálise, principalmente quanto ao reconhecimento de Schopenhauer como precursor do conceito de um psiquismo de base orgânica, baseado na noção de impulsos inconscientes e sem fundamento – isto é, irracionais. Essa é, essencialmente, a natureza do “golpe narcísico” que, segundo Freud, a própria psicanálise infligiu à humanidade (p. 25).

Trata-se, portanto, de permitir a composição de um estudo feito com base em uma igualdade e na o como uma espécie de causalidade fortuita. Nesse sentido, a escolha instrumental feita pelo autor indica a acuidade com o rigor da analise, pois encontra um ponto de reflexa o que obscurece os privilégios de um pensador perante o outro e destaca justamente os liames conceituais, sendo que “guardadas as diferenças específicas, aceita-se que, tanto para o filosofo quanto para o psicanalista, o corpo humano e a chave para o entendimento da função psicológica, tenda a sexualidade como ponto focal” (p. 29).

A estrutura do livro divide-se, então, em duas partes. A primeira e dedicada a analise da noção de corpo na obra de Schopenhauer, enquanto a segunda parte e voltada para a esta analise na obra de Freud. Os dois pensadores são tomados segundo as próprias características de suas produções, de modo que a primeira parte do livro, por exemplo, inicia-se com um dos pontos centrais do pensamento de Schopenhauer, isto e , a noção de representação, apontando que, para o filosofo alemão, “a noção de representação e um processo fisiológico, fruto da atividade do sistema nervoso central, dentro de um complexo processo de apercepça o da efetividade, submetida ao princípio de razão” (p. 36). Já se delineia aqui a tônica que conduz todo o trabalho, isto e , buscar evidenciar nos conceitos – seja de Schopenhauer, seja de Freud – de que maneira a estrutura de seus pensamentos e conduzida pela chave de leitura fornecida pelo corpo.

Em Schopenhauer, como demonstra Eduardo Ribeiro da Fonseca, o corpo e mais do que um simples adendo ao todo de uma teoria sistema tica, mas e muitas vezes o fenômeno que permite entender a dina mica daquilo que o filosofo alemão busca apreender (Vontade e Representação). Enquanto ponto central, a noção de corpo e , dessa maneira, extensivamente retrabalhada por Schopenhauer com vistas a continuamente obter resultados e reflexo es mais acuradas no que tange ao problema principal. A começar pelo traço imediato do conhecimento, inserido no âmbito da representação, o pensador de Frankfurt centraliza o corpo como primeiro motor das capacidades perceptivas, pois “através do sentimento do próprio corpo, a percepção de todos os outros objetos se realiza” (p. 40), de tal modo que “o conhecimento intelectual resulta da influencia exercida pelos dados exteriores junto ao corpo” (p. 41). A dinâmica da representação – sobretudo se considerada aquela derivada de uma estrutura estritamente kantiana – e sensivelmente alterada, pois “o estudo do corpo como objeto imediato expõe a fisiologizaçao do processo de apreensão do mundo como representação” (p. 44). O passo que da então Schopenhauer – e que bem destaca Eduardo Ribeiro da Fonseca – e avançar sobre essa noção de corpo deslocando-o também para o âmbito da mediação, delineando aqui os contornos gerais da relação conflituosa que o filosofo identifica como sendo central na existência de cada indivíduo, na o devido a um aparato transcendente, mas como uma inerência da estrutura imanente na qual o ser humano encontra-se.

E com base nessa estrutura conflituosa, a qual parte de um instrumento que, antecedente a razão, já tem sua própria dimensão operacional, que o filosofo pode então apresentar suas ponderações sobre os limites dessa mesma razão humana, já que, como bem pontua o autor do livro, para Schopenhauer “somos prejudicados pelo uso de um instrumento que deveria estar a nosso serviço” (p. 53), pois, demonstrando-se o conflito existente entre o âmbito imediato e mediato em que o corpo se situa, a razão acaba por apresentar-se como nada mais do que “deficitaria”. E com base nessa suspeita perante os alcances da razão que se desenvolvem as considerações sobre a Vontade e, na o por outra razão, e neste ponto que a noção de corpo enquanto chave de leitura acaba por encontrar as consequências mais prolíficas da analise desenvolvida pelo autor sobre o pensamento do filosofo alemão.

Para além de uma limitação epistemológica, Schopenhauer avança sobre a problema tica da Vontade partindo justamente das limitações encontradas no âmbito da Representação. A pretensa o do filosofo e , portanto, de ir ale m do mero reconhecimento da existência de representações, valendo-se então de uma via metafísica, sendo que “o que a metafísica do filosofo de Frankfurt sugere e que o querer confere sentido essencial ao corpo e deve ser considerado como o seu próprio íntimo, cuja característica mais profunda e a de ser, em grande medida, inconsciente” (p. 58). A amplitude desse ir além, como reconhece o Eduardo Ribeiro da Fonseca, na o se restringe a limitação de uma analise sobre os alcances da cognoscibilidade humana, mas visa atingir, em função de seu impulso metafísico, os tracejados cósmicos do que se encontra inscrito justamente na fenomenalizaçao privilegiada que e o corpo. Para o filosofo, “a Vontade nos aparece como um conceito obtido por extensa o a partir do conceito de vontade individual, não sendo, portanto, possível observa -lá em si mesma, mas apenas senti-la no corpo” (p. 72).

Ao analisar “cara ter e sexualidade” na obra de Schopenhauer – como o faz no terceiro capítulo – o autor apresenta o que ha de singular nas reflexo es do filosofo de O mundo como vontade e representação, isto e , a compreensão da sexualidade como vinculada a própria analise previa realizada sobre o corpo. Sexualidade, nesse sentido, e mais do que simples limitação física, mas e o ponto em que corpo se mostra como importante chave de leitura, pois o filosofo “ve na Vontade de viver e no desejo sexual que a expressa a possibilidade de estabelecer uma passagem da Vontade para a Representação” (p. 85). A passagem a qual se refere o autor encontra-se intimamente ligada com as diversas consequências que daí retira o filosofo, como a sua posição tomada por pessimista, ou mesmo o reconhecimento do confronto entre vida e morte situado na própria essência da existência, a qual na o encontra muitas saí das, salvo a sublimação perante os impulsos de vida e morte.

Na segunda parte, referente a s obras e pensamento de Freud, Eduardo Ribeiro da Fonseca, ja nas primeiras linhas destaca a diferença entre os autores. Enquanto o filosofo de Frankfurt possui um cara ter especulativo como traço central de sua produção, o psicanalista vienense, por sua vez, pretende dedicar-se a produção de uma ciência – como Freud bem pontua em seu Projeto para uma psicologia científica – e, de forma lateral ou muitas vezes indireta, vem a realizar exercícios especulativos. E interessante pontuar que, salvaguardando essa diferença, o autor consegue apresentar em seu livro os resultados semelhantes que as duas conduções metodológicas fornecem.

A perspectiva teórica de Freud parte de uma problema tica que mobiliza a reflexa o, já que “a consideração de que existe uma fronteira tênue entre o que caracteriza um indivíduo avaliador, o seu corpo orgânico e o objeto representado” (p. 112). já traz em si um problema. No caso de Freud, na o se trata de uma questão de reconhecimento da formação e limites do intelecto, mas, antes, da estrutura das dimensão es formadoras do âmbito psicológico em relação com a base orgânica. Repousa aí um conflito muito próximo aquele já apontado por Schopenhauer entre a base formativa do reconhecimento inicial do indivíduo perante ele mesmo (o corpo) e o mundo que cerca esse indivíduo, a tal ponto que, como evidencia o autor, “Freud, como Schopenhauer, pensa o Eu consciente como um representante psíquico do organismo diante do mundo efetivo, como um verdadeiro advogado dessa efetividade junto a s forças orgânicas que exigem satisfaça o” (p. 121).

E no esforço pela formulação conceitual e instrumental de sua nova ciência, a psicanalise, que Freud depara-se com a necessidade de explicitação da relação entre consciente e inconsciente de uma forma que Schopenhauer na o enfrentou. Reticente com o uso de atribuições consideradas como demasiado especulativas, parece ter sido a tônica do pensador austríaco buscar por esclarecimentos no campo da concretude “orgânica” do corpo, daí a relevância do corpo na formação de suas primeiras conjecturas sobre os conceitos centrais da psicanalise e, de igual modo, daí a aparente rejeição a categorias consideradas demasiado abstratas ou “metafísicas”. O embate e as restrições reconhecidos pelo filosofo alemão como decorrentes do desconhecimento sobre o psiquismo são tomados por Freud como a base da formulação da noção de repressão, evitando a todo custo o emprego de termos como Vontade, sobretudo a maneira utilizada por Schopenhauer. Entretanto, apesar dessa aparente divergência, e também nesse âmbito que se manifesta uma importante proximidade entre os autores;

A partir da noção de repressão revela-se todo um campo comum entre os autores, que envolve o problema do desconhecimento humano acerca da natureza do psiquismo. Para superar a dificuldade de investigar racionalmente algo que não segue as leis da consciência – e, portanto, desorienta o investigador –, ambos usam como bússola o corpo e seus impulsos conscientes, que são surpreendidos em ato, nos interstícios da racionalidade (p. 136).

E necessário pontuar que, quanto mais Freud avança em suas considerações sobre aquilo que se mostra como que vetado a primeira averiguação de um pesquisador, isto e , os mean [DR] os do inconsciente, mais o medico vienense depara-se com os rumos especulativos, a tal ponto que, ao considerar a relação do homem com a espécie, tem de fazer notar o caráter na o limitado as formulações mais imediatamente orgânicas. E o que ocorre, por exemplo, na apresentação do conceito de libido, em que Freud, valendo-se de explicações fisiológicas e orgânicas, tem de fornecer um salto tema tico para ser capaz de explicar o vínculo na o explicitamente orgânico que mobiliza toda organicidade, pois, nas palavras de Eduardo Ribeiro da Fonseca, “a função do cérebro, como a de qualquer coisa física, esta sujeita a lei da inercia, e se faz ativa apenas quando o intelecto e posto em movimento pela vontade”, considerando-se que, “na psicanalise, por outro lado, e a libido que ativa ate mesmo a unia o entre as células do organismo, que funciona de acordo com um princípio de prazer, sendo papel do aparelho psíquico reduzir ao máximo os efeitos da estimulação” (p. 150). A libido não e assumida por Freud como sendo uma espécie de vontade schopenhaueriana, mas também na o diz respeito unicamente a organicidade, mas revela um impulso que se perfaz no âmbito biológico sem reduzir-se a esse no sentido de uma causalidade.

Enquanto a teoria da libido na o apresenta maiores problemas em uma consideração pontual, isto e , no aspecto singular da manifestação orgânica dos indivíduos, e com relação ao fundamento da libido – o impulso – que Freud encontra a necessidade de formulação es mais especulativas. A explicação que fornece Eduardo Ribeiro da Fonseca sobre a noção de impulso faz antever o ponto de aproximação mais inusitado entre os dois autores analisados:

Do ponto de vista de Freud, o impulso é uma força poderosa, radical, indeterminada, atemporal, arcaica, avaliativa e própria não só dos organismos complexos, mas do conjunto integral da natureza. O registro do impulso vai além do indivíduo e de sua espécie, portanto, adquire uma conotação metafísica, sendo que, ainda que esta ampliação do conceito escape aos domínios próprios da psicanálise, ela é sempre considerada pelo psicanalista vienense (p. 170).

Esse e o ponto em que se pode antever um dos traços mais originais do trabalho de Eduardo Ribeiro da Fonseca, uma vez que esse, na comparação analítica entre os dois autores, tomando o corpo como chave interpretativa e avaliativa, faz evidenciar um processo inverso ao habitualmente conferido para a analise de autores sucedidos temporalmente (sobretudo quando trata-se da psicanalise, já tão conhecida por produzir jogos de espelhos a seu favor): na o e Schopenhauer quem serve como que indiscriminadamente a pretensa o de legitimidade dos conceitos freudianos, mas, como pode ser antevisto, e Freud quem confere o privilegio da originalidade a produção filosófica schopenhaueriana. Ale m disso, parece estar indicado, ainda que de forma indireta, a possibilidade de se considerar a relação de ambos os autores frente a especulação metafísica, já que o filosofo de Frankfurt declara a necessidade de enfrenta- lá e o medico vienense reluta tanto quanto possível a ceder aos seus encantos, sendo que e , ao fim e ao cabo, as expansões de suas especulações metafísicas o que confere os traços mais inovadores de ambos os pensamentos. Cabe a Eduardo Ribeiro da Fonseca o me rito de ter demonstrado mais do que a estreita passagem que o corpo representa enquanto chave interpretativa nas obras dos pensadores elencados, mas também por ter viabilizado um novo caminho hermenêutico que faz voltar as atenções para Schopenhauer na o apenas como o pensador que primeiro lançou as bases para uma das teorias mais relevantes do século XX, mas por ser o pensador que transcende, com suas especulações metafísicas, as próprias dimensões e limitações dessa teoria.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade – DEBONA et al (V-RIF)

DEBONA, Vilmar; FONSECA, Eduardo Ribeiro; HULSHOF, Monique; MATTOS, Fernando Costa; RAMOS, Flamarion Caldeira. (Orgs.). Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade. Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Curitiba: Editora UFPR, 2015. Resenha de: DIAS, Claudia Assunpção. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.7, v.1, p.224-230, 2016.

O livro Dogmatismo e antidogmatismo: filosofia crítica, vontade e liberdade, uma coletânea de vinte e oito textos, foi organizado por um grupo de ex-orientandos de Maria Lucia Cacciola e visou não apenas prestar uma homenagem a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo, mas também demonstrar a grande importância da homenageada no cenário filosófico brasileiro. O elemento que mais justifica o reconhecimento de tal importância e a iniciativa da organização do livro remete necessariamente a difusa o promovida por Cacciola do pensamento de Schopenhauer no meio acadêmico do Brasil por meio de suas traduções, publicações, aulas e conferencias. Com efeito, a sua tese de doutoramento, intitulada Schopenhauer e a questão do dogmatismo, foi o primeiro trabalho acadêmico de folego sobre Schopenhauer defendido no país1, fato representativo na o apenas por ter consistido, nas palavras de seu orientador – outra grande figura da filosofia brasileira, Rubens Rodrigues Torres Filho -, numa “reviravolta na interpretação de Schopenhauer”2, mas por ter sido capaz de promover uma nova frente de pesquisas, que, ao partir de Kant, de Schelling ou de Fichte, não toma Schopenhauer apenas como um discípulo ou interprete, mas como pensador original e influenciador de muitos outros grandes nomes, dentre eles Nietzsche e Freud. Foi devido aos interesses de Cacciola por Schopenhauer, a época na o estudado de forma rigorosa, e as colaborações com seus orientandos da USP, como Jair Barboza, seu primeiro orientando, que se abriu um campo fértil de novos estudos schopenhauerianos em terras tupiniquins. Surgem, a partir de então, variadas traduções das obras do filosofo, começa-se a organizar um Colóquio Internacional Schopenhauer (com sete edições já realizadas), inaugura-se uma Seção brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft, que e presidida por Cacciola, cria-se o GT Schopenhauer da ANPOF e a Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, assim como o numero de dissertações e teses aumentam significativamente3.

Para além dos muitos feitos da homenageada, que por si só justificariam a publicação da extensa obra aqui resenhada, interessa-nos destacar que o núcleo conceitual da pesquisa e da produção de Maria Lu cia Cacciola, espelhado no oportuno título do Festschrift em questão, consiste na problematização do dogmatismo a partir do pensamento schopenhaueriano. Em sua fecundidade, o modo com que a tema tica e abordada pela autora cumpre a tarefa de romper com a imagem de um Schopenhauer que, ao admitir a vontade como essência, teria restabelecido o dogmatismo que a filosofia crítica kantiana havia implodido. Conforme notam os organizadores na Apresentação do livro, Cacciola se encarrega de mostrar por que Schopenhauer não só na o e um pensador “pré -crítico”, como também pretendeu radicalizar o projeto kantiano de na o assumir o “mundo da representação” como absolutamente real (cf. p. 6), limitando ainda mais o papel da razão e buscando a essência do mundo no próprio mundo, ao invés de ser em ideais transcendentes4. Assumir a vontade como essência cósmica e no horizonte de uma metafísica imanente na o acarretaria, pois, em tomar a metafísica da vontade como dogmática, já que, como bem argumenta a autora em sua tese, e o próprio Schopenhauer que reivindicara um “fundo escuro” e grundlos, sem fundamento, para a vontade que se manifesta no cara ter de cada fenômeno.

Além disso, conforme assinala Lean [DR] o Chevitarese num dos capítulos do Festschrift (cf. pp. 181-186), Cacciola assumiu o desafio de indicar em que medida Schopenhauer deu cabo ao seu projeto de não conceber a vontade como absoluto. E ela faz isso argumentando, p. ex., que o “como” (als) do título da obra magna do pensador – O mundo como vontade e representação -, traduz-se na defesa de que a vontade só e coisa-em-si relativamente, ou seja, em relação ao fenômeno, do mesmo modo como este e fenômeno tão somente em relação a coisa-em-si. Indicando, com isso, um possível cara ter perspectivista na metafísica schopenhaueriana, Cacciola sublinhara em vários de seus trabalhos5 a importância de se entender que, se ha algum dogmatismo no sistema do filosofo do “pensamento único”, só poderia se tratar de um dogmatismo imanente (immanenter Dogmatismus), conforme comenta o próprio Schopenhauer em seus Fragmentos para a história da filosofia6.

Dito isso quanto a s linhas norteadores do trabalho filosófico da homenageada, cabe observar brevemente que o conjunto de temas dos textos que compõem o Festschrift reflete bem a vastidão de interesses de pesquisa de Cacciola, assim como o universo de temas a partir dos quais ela, como orientadora, formou um significativo grupo de pesquisadores e especialistas brasileiros sobre a filosofia clássica alemã . Conforme afirmam os organizadores,

Embora a maior parte das contribuições verse sobre a filosofia schopenhaueriana (a ponto de transformar o presente livro numa importante fonte para o estudo do filósofo, abrangendo as diversas facetas de seu pensamento, da teoria do conhecimento à metafísica, da ética à estética, passando pela reflexão filosófica sobre a religião), não se pode deixar de notar a variedade de suas perspectivas: temos contribuições sobre Nietzsche, Kant, a psicanálise, textos sobre autores tão diferentes como Bodin e Schulze ou Reinhold […] (p. 8).

Outra linha de interesse da homenageada e a estética em seus diversos ramos, das artes plásticas ao cinema, abarcando a poesia, a musica e a pintura. Na obra em questão, assuntos desse domínio da filosofia aparecem em nada menos que seis capítulos. Como a problemática sobre a metafísica imanente schopenhaueriana e sua abordagem “antidogmática” empreendida por Cacciola abrange também a conhecida metafísica do belo de Schopenhauer, pretendemos tecer a seguir alguns comenta rios sobre dois capítulos do livro que nos interessam mais de perto, por tratarem de noções da este tica desse pensamento.

O primeiro deles e de autoria de Matthias Kossler e se intitula Sobre o papel do discernimento [Besonnenheit] na estética de Arthur Schopenhauer. Ao elencar os diversos âmbitos da filosofia schopenhaueriana nos quais o discernimento se faz presente (teoria do conhecimento, e tica, negaça o da vontade e este tica), Kossler mostra de forma clara como e possível identificar variados graus dessa noção, cujo aumento depende da intensidade da separação entre vontade e intelecto. Ou seja, quanto mais incomum for o discernimento de dado indivíduo, mais o seu intelecto estaria distanciado de sua raiz, a vontade, de modo que o aumento exagerado do discernimento, segundo Schopenhauer uma “anormalidade”, indicaria o cara ter do gênio (artístico), que intuiria os objetos do mundo sem considerar apenas um lado desses objetos, aquele referido a própria vontade e que lhe interessa, mas também os outros lados, independentes do serviço e interesse da vontade. De forma resumida, Kossler afirma que “na este tica, o discernimento capacita os artistas a apreender as coisas de maneira objetiva e assim apresentá-las em suas obras de modo que no observador essa apreensão objetiva, que Schopenhauer caracteriza como intuição das Ideias, seja ocasionada” (p. 23-24, grifo nosso). No entanto, o comentador na o chega a desenvolver uma analise sobre como esse discernimento atuaria no processo mesmo de exposição artística. Talvez o momento da apresentação ou da exposiçao (Darstellung) artística seja o que mais exige uma destreza pragmatica e “discernida”, já que e necessário despertar a fantasia do espectador. Diferentemente do momento da criação, em que a metafísica do belo schopenhaueriana admite ate mesmo um poder intuitivo que domina o artista e que e espontâneo, o momento da exposição soa menos intuitivo, menos espontâneo e mais dado a uma aça o refletida e direcionada a um fim, como se observa no caso de um poeta, por exemplo, que precisa seguir rigorosamente determinados passos ou regras, escolher as palavras adequadas, o ritmo e a rima, para transmitir de forma objetiva a Ideia intuí da. Ora, se, conforme afirma Kossler, supusermos que “discernimento e o contra rio da espontaneidade”, e assumirmos também que o momento menos espontâneo do artista refere-se a seus procedimentos este ticos (menos metafísico-intuitivos), na o seria ainda mais pertinente uma problematização do conceito schopenhaueriano de discernimento na esfera da exposição artística, ao invés de ser no âmbito da criação/intuição?

O segundo texto que nos motiva a comentar, também sobre este tica, e o de Jair Barboza, intitulado Contra a tradição: Schopenhauer como filósofo acústico. Como já indica o título, o autor apresenta argumentos que mostram em que medida Schopenhauer pode ser visto como um pensador que inverteu a hierarquia dos sentidos que, em geral, na tradição ocidental, reserva a visa o e a s artes visuais a primeira posição. O filosofo que classificou a musica como arte suprema e ate mesmo destacada da hierarquia que espelha os graus de manifestação da vontade teria também, em algum sentido e ao menos em certos contextos, submetido as artes visuais a experiencia auditiva. Conforme destaca Barboza, para Schopenhauer, “enquanto pelas artes visuais ainda apreendemos uma “copia” das Ideias, nas artes de sons sentimos a expressa o direta da vontade como coisa-em-si” (p. 191). O elemento mais contundente da argumentação do autor e o da conhecida equivalência que o pensador alemão faz entre os sons e o espectro dos reinos naturais: para ele, o mundo e seus reinos arquetípicos confundem-se com a musica e, nesse sentido, mesmo se na o houvesse mundo fenomênico, ainda poderia haver música. Compreender ou captar o mundo fenomênico significaria, então, ouvi-lo em seus diversos tons ou de acordo com as quatro vozes de uma harmonia, cada um correspondendo a um reino natural específico: o baixo ao mineral, o tenor ao vegetal, o contralto ao animal e o soprano ao humano. Pelo conhecido destaque e enaltecimento da música, o filosofo que desenvolveu boa parte de sua filosofia sob o signo da visa o, conforme bem demonstra o autor (cf. p. 189-190), e que – acrescentemos – publicou um ensaio intitulado justamente Sobre a visão e as cores, poderia mesmo ser tomado, por mais esse motivo, como um pensador contra a tradição.

No entanto, uma possível problema tica que poderia surgir da questão apresentada por Barboza, e que foi apontada apenas de passagem pelo autor, diz respeito ao lugar que a poesia ocuparia entre a oscilação da primazia dada por essa filosofia, por um lado, para a visa o e, por outro, para a audição. Se assumida como “um meio termo entre arte visual e arte auditiva” (p. 191), não teríamos que admitir – para discutirmos a concepção schopenhaueriana de poesia – uma suspensa o provisória dos argumentos que disputam o primeiro lugar apenas para a visa o ou apenas para a audição, classificando-as, quiçá , num mesmo patamar? Elementos para respondermos a essa questão poderiam ser encontrados em vários textos do filosofo. E um possível horizonte de argumentação pode ser aquele ilustrado pelo autor nas ultimas linhas do capítulo (cf. p. 194). Ao tratar do tema das artes nos Suplementos (Tomo II) de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer nos surpreende com uma diferenciação nos títulos de seus capítulos: para a arquitetura e a poesia, os títulos são Estética da arquitetura e Estética da poesia, já para a musica, o título e Metafísica da música. Se esta diferenciação serve como argumento para detectarmos a preferencia ou a primazia outorgada pelo filosofo a musica e, assim, a audição, conforme sugere Barboza, a questão pode instigar uma problema tica conceitual mais ampla. Isso porque, notadamente em suas Preleções sobre a Metafísica do belo e no Livro III do Tomo I de sua obra magna, o filosofo da vontade adverte justamente para a importância de distinguirmos entre metafísica do belo e este tica. No entanto, como se percebe pelos títulos dos Suplementos, com exceção da musica, as artes parecem ser abordadas tanto sob a chave da metafísica (do belo) quanto da este tica. E assim podemos pensar a questão mencionada sobre a particularidade da poesia – que se situaria entre arte visual e arte auditiva -, uma vez que ela, em específico, quando tomada sob a perspectiva da metafísica e situada no topo da pirâmide hierárquica das artes como reveladora da Ideia de humanidade; já quando tomada sob a perspectiva da Este tica do Tomo II, o que esta em questão são, sobretudo, as suas técnicas de apresentação (metro, rima, vocabulário etc) e dos me todos mais convenientes para o poeta atingir seu objetivo, ou seja, uma questão que envolve diretamente questões relativas tanto a audição quanto a visão.

A julgar pela natureza dos temas dois dois capítulos aqui comentados em específico, torna-se indispensável afirmarmos que a obra resenhada pode ser considerada uma fonte profícua para debates sobre variados temas da filosofia clássica alemã e, como na o poderia deixar de ser, para a pesquisa sobre Schopenhauer. Os vinte e oito capítulos, que versam sobre a já assinalada pluralidade de temas e abordagens, assim como o nobre proposito pelo qual veio a publico – o de homenagear uma grande figura da filosofia brasileira – fazem de Dogmatismo e antidogmatismo um livro de interesses transversais, recomendável tanto para especialistas quanto para iniciantes.

Ademais, torna-se impossível a tarefa de apresentarmos aqui o todo desta obra singular, tarefa que, por isso, confiamos ao leitor.

Notas

1 A tese foi defendida em 1991 no Departamento de Filosofia da USP e publicada como livro em 1994, pela Edusp, tornando-se uma referência obrigatória para os estudos brasileiros sobre Schopenhauer.

2 TORRES FILHO, R. R. Prefácio. In: CACCIOLA, M, L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 16.

3 Para um registro das principais atividades de pesquisa, traduções e publicações sobre Schopenhauer que foram e estão sendo realizadas no Brasil, cf. CACCIOLA, M. L.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. O. Gechichte und aktuelle Situation der Schopenhauer-Studien in Brasilien, 2015; e, para outra versão do mesmo material, CACCIOLA, M. L.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. O. A história e a atual situação dos estudos schopenhauerianos no Brasil, 2013.

4 Nesse sentido, vale observar que a dissertação de mestrado de Cacciola aborda justamente a temática da crítica da razão em Kant e Schopenhauer. Cf. CACCIOLA, M. L. A crítica da razão no pensamento de Schopenhauer, 1982.

5 Recentemente a autora publicou um texto intitulado justamente sobre o assunto no anuário Schopenhauer-Jahrbuch (cf. CACCIOLA, M. L. Immanenter Dogmatismus, p. 151-162).

6 “[…] poder-se-ia chamar meu sistema de dogmatismo imanente, pois, embora seus princípios doutrinais sejam de fato dogmáticos, não ultrapassam todavia o mundo dado na experiência, mas apenas esclarecem o que ele é, já que o decompõe em suas partes componentes” (SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a história da filosofia, p. 118).

Referências

CACCIOLA, Maria Lúcia. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

_____. Immanenter Dogmatismus. Schopenhauer-Jahrbuch. Würzburg: Königshausen & Neumann, Bd. 93, 2012, pp. 151-162.

_____. A crítica da razão no pensamento de Schopenhauer. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.

CACCIOLA, Maria Lúcia; DEBONA, Vilmar; SALVIANO, Jarlee Oliveira. Gechichte und aktuelle Situation der Schopenhauer-Studien in Brasilien. Schopenhauer-Jahrbuch. Würzburg: Königshausen & Neumann, Bd. 96, 2015.

_____. A história e a atual situação dos estudos schopenhauerianos no Brasil. Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer. Rio de Janeiro, Vol. 4, Nº 1 – primeiro semestre de 2013, pp. 146-150.

SCHOPENHAUER, Arthur. Fragmentos para a história da filosofia. Trad. Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Iluminuras, 2003.

TORRES FILHO, Rubens Ro [DR] igues. Prefácio. In: CACCIOLA, Maria Lúcia. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

Claudia Assunpção Dias – Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Sobre a vontade na natureza

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. Tradução, prefácio e notas de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. Resenha de: SILVA, Luan Corrêa da. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.4, n.2, p.103-111, 2013.

Gabriel Valladão Silva acaba de publicar, pela editora L&PM, a primeira tradução brasileira, e direta do alemão, do escrito Sobre a vontade na natureza, com o subtítulo Uma discussão das confirmações que a filosofia do autor obteve das ciências empíricas desde seu aparecimento, publicado pela primeira vez em 1836 e reeditado em 1854. A tradução também acompanha uma apresentação e notas do tradutor.

Passados dezessete anos desde a primeira edição de O mundo como vontade e como representação (1818), Arthur Schopenhauer quebra o silêncio e divulga neste texto aquilo que ele pensa ser, de certo modo, a “prova real” de sua doutrina, isto é, a confirmação da filosofia do Mundo oferecida pelas ciências empíricas que vinham se desenvolvendo em seu tempo. A estratégia de Schopenhauer é a de considerar os relatos de cientistas das mais diversas áreas como confirmações empíricas da sua doutrina, tendo como fio condutor “os degraus da natureza de cima para baixo”, ou seja, da complexidade das ações mais arbitrárias dos entes animais até a manifestação mais fundamental da natureza que é a gravidade. Desse modo, mais do que prestar contas da credibilidade de sua posição, o filósofo encontra uma excelente oportunidade para desenvolver a temática na qual todas as ciências empíricas encontram o seu limite, a saber, a da identidade metafísica da vontade em meio à pluralidade das suas aparições.

Com muito entusiasmo, Schopenhauer oferece conselhos aos “jovens sedentos de verdade”, dizendo-lhes para não perder tempo com a filosofia de cáte [DR] a, universitária, e, em vez disso, estudarem as obras de Kant e também as suas (Prefácio, 41). Teria sido Kant o responsável por introduzir a seriedade na filosofia, que Schopenhauer faz questão de manter em pé, uma seriedade que é expressa sobretudo na verdade fundamental e paradoxal da oposição entre mera aparição e coisa em si que, no contexto do Mundo, traduzem-se em termos de representação e vontade. Esse substrato de toda aparição e de toda natureza, a coisa em si, embora barrado pela doutrina kantiana do idealismo transcendental como absolutamente incognoscível, se corporificado em termos de vontade torna-se aqui aquilo que nos é imediatamente conhecido e confiado; que, diferentemente do que supunham os filósofos até então, não é inseparável e nem tampouco resultado da cognição, mas fundamentalmente primária a esta, podendo se manifestar sem ela, como é o caso, aliás, em grande parte dos reinos da natureza. Assim, portanto, toda a diversidade de constituição e organização da natureza, o seu maquinário, são em si e fora da aparição (da representação) absolutamente idênticas àquilo que reconhecemos em nós mesmos como vontade.

É por isso que a física, em seu sentido mais antigo grego de “physis”, deve chegar, em todas as suas ramificações, a um ponto final onde as suas explicações já não avançam mais, e este ponto é a sua fronteira com a metafísica. Diante do caráter inacessível e obscuro da metafísica, os cientistas viam-se pressupondo muitas vezes em suas explicações, intencionadamente ou não, noções tais como “força vital”, “força da natureza”, “impulso de constituição”, etc., que em última instância não querem dizer mais do que um “x”, “y” ou “z” desconhecido. Nos casos em que os cientistas foram adiante e espiaram por detrás das cortinas dessa fronteira, arriscando um passo além de simplesmente percebê-la como tal, eles experimentaram verdadeiramente um pressentimento comum ao dos filósofos da natureza, “semelhante àquele de mineradores que, escavando duas galerias a partir de dois pontos muito distantes entre si, uma em direção à outra, após ambos terem trabalhado muito tempo na escuridão subterrânea, confiando apenas na bússola e no nível, experimentam finalmente a felicidade de há muito desejada de ouvir as marteladas um do outro” (Introdução, 48).

Sobre a vontade na natureza é dividido em oito capítulos, além do Prefácio adicionado à segunda edição (1854), Introdução e a Conclusão. São eles: Fisiologia e patologia; Anatomia comparada; Fisiologia vegetal; Astronomia física; Linguística; Magnetismo animal e magia; Sinologia e Indicação à ética. Poderíamos sugerir uma divisão metodológica do escrito em duas partes: na primeira, até Astronomia física, Schopenhauer segue explicitamente o fio condutor da gradação “decrescente”, em relação às espécies da natureza, e “ascendente”, em direção às leis mais gerais, tendo como clímax as confirmações no reino inorgânico; e na segunda parte encontramos confirmações complementares, e não menos importantes, daquelas oferecidas na primeira parte, assim, o magnetismo animal aparece apropriadamente após já se ter considerado o magnetismo mineral, por exemplo.

No primeiro capítulo, Fisiologia e patologia, Schopenhauer encontra comprovações na Fisiologia e na Medicina de que na tentativa de explicar o funcionamento do organismo, seja no estado de saúde ou de doença, os cientistas eram obrigados a admitir um princípio condutor da vida, como fonte primordial das funções vitais. Jean Pierre Flourens teria demonstrado que o cérebro é a morada do arbítrio (atos da vontade motivados), mas não da vontade, e Albrecht von Haller teria avançado em comprovar que não somente as ações externas acompanhadas de consciência, mas também os processos vitais totalmente inconscientes ocorrem sob a direção do sistema nervoso: as primeiras direcionadas pelos nervos do cérebro guiando ações externas (sistema nervoso central) e os últimos, porém, sem essa mediação, guiando ações internas. Tem-se, portanto, o cérebro como morada dos motivos, e um “segundo” cérebro, o cérebro abdominal do sistema nervoso simpático, como responsável pelos estímulos internos; “o primeiro pode ser comparado ao ministério do exterior, o último, ao do interior: a vontade, porém, permanece autárquica e onipresente” (Fisiologia e patologia, 71). A verdadeira fisiologia explicaria, assim, o que há de espiritual no ser humano como produto do que nele é físico, e a verdadeira metafísica ensinaria que justamente este “eu físico” é apenas aparição de algo espiritual, a vontade.

Em Anatomia comparada Schopenhauer encontra aliados entre os zootomistas, fisiólogos e biólogos para enfrentar o argumento físico-teológico da constituição anatômica dos animais, partindo da tese de que “o caráter do querer como um todo deve estar na mesma relação para com a forma e a constituição de seu corpo que o ato singular da vontade está para a ação corporal singular que o executa” (Anatomia comparada, 83). A adequação perfeita do animal à sua forma de vida própria, como também a perfeição de sua constituição e organização, entendida como uma absoluta conformidade a fins, indicam de modo bastante evidente que aqui não agiriam forças da natureza casuais e desorientadas, mas uma vontade. Ocorre que não se pensava em uma vontade que não fosse guiada pelo conhecimento, de tal modo que presumidamente a ação da vontade tinha de ser uma ação exterior e, assim, a vontade cujo produto é o animal teria de ser externa a ele; de acordo com essa visão, o animal teria de existir na representação antes mesmo de existir em realidade, ou em si. O touro chifra porque quer chifrar e o pássaro voa porque quer voar a partir da Ideia que constitui a espécie, e cada órgão deve ser tomado como expressão de uma manifestação universal, concretizado no desejo fixo característico de cada espécie enquanto vontade para a vida (Wille zum Leben).

Descendo mais um degrau na escala dos seres, o reino vegetal recebe seu desenvolvimento em Fisiologia vegetal, cujo objetivo principal é o de mostrar como também os vegetais são movidos pela vontade, onipresente em todos os níveis, todavia visível aqui de forma muito mais lenta. As comprovações e relatos apresentados indicam que o movimento das plantas é espontâneo, isto é, dependente de um princípio interno que “acolhe imediatamente a influência de agentes externos” (Fisiologia vegetal, 114), como relata Georges Cuvier, e apenas por hesitação é que não se atribuíra sensibilidade às plantas, preferindo-se termos menos fortes tais como “nervimobilidade”. Entendida como sinônimo de manifestação da vontade, a espontaneidade evidencia também algum grau de conhecimento – e até de escolha – manifestada nas plantas como excitação; exemplos disso encontramos em espécies de trepadeiras que, obstinadas em extrair o seu alimento de outras plantas vivas, descrevem ao longo de seu crescimento um movimento circular similar àquele das minhocas, permitindo sua aproximação do alvo. A dificuldade de se reconhecer, portanto, um sentido interno para os vegetais, um “instinto vegetal”, também resulta da influência da antiga opinião de que a consciência é condição para a vontade. De fato, as plantas possuem somente algo análogo à cognição, o estímulo, mas a vontade elas possuem plenamente de forma imediata, pois esta enquanto coisa em si está em tudo o que aparece.

A coisa em si também é vontade na natureza inorgânica, e suas forças são idênticas àquilo que em nós aparece na forma do querer. Em Astronomia física, capítulo central de Sobre a vontade na natureza, a vontade é considerada a partir de seu menor grau de expressão, que conhecemos pelas leis que regem a matéria. Que a todo movimento possamos atribuir uma causa e um efeito, isto é, que haja na natureza uma identidade causal, isso pode nos ser constatado exteriormente, pelo intelecto; é apenas a sua ocasião. Mas que a condição do movimento ou ação seja interna, nisso reside todo o mistério e obscuridade, cuja compreensão só pode ser alcançada na direção contrária àquela do intelecto, ou seja: “quanto mais próximo, portanto, um lado do mundo estiver, tanto mais perderemos o outro de vista” (Astronomia física, 152). Assim, também onde a relação de causa e efeito parece nitidamente compreensível, no patamar mais inferior da natureza inorgânica, uma identidade interior permanece misteriosa; algo que é ainda mais latente quando nos elevamos até o fenômeno (Phänomen) da vida no reino orgânico, expresso na desproporção magnífica existente entre a germinação rudimentar de uma semente e a complexidade e diferenciação das inúmeras espécies vegetais, gerando a impressão de estarmos diante de “um verdadeiro milagre” (Astronomia física, 146). A resolução do enigma da vida e da existência reside, portanto, na passagem (Übergang) de uma explicação a partir de causas para a compreensão da própria vontade que, quando estabelecida pela reflexão, revela-nos o segredo para o qual a filosofia busca solução há tanto tempo, trata-se da identidade metafísica da vontade.

No breve capítulo Linguística Schopenhauer vai além do meramente linguístico, visa mostrar como que algumas expressões da linguagem ordinária e também científica vão além das aparentes metáforas e de outras figuras de linguagem, e contêm em si uma sabedoria concreta ligada à essência das coisas, como expressão mais imediata de nossos pensamentos (Linguística, 156). Já no extenso Magnetismo animal e magia, Schopenhauer encontra nas sabedorias ocultas comprovações ainda mais profundas de sua filosofia, sobretudo no magnetismo animal e nas curas simpáticas, que já vinham garantindo certo espaço nas discussões mais científicas. Se podemos definir a magia como “actio in distans” (ação à distância), ou seja, ação que não ocorre por via causal determinada mas sim por via subterrânea metafísica, então devemos supor que haja um nexo metafísico em oposição ao nexo físico dos corpos. O “sobrenatural” escapa de nossa compreensão causal, suspende o isolamento na ordem do indivíduo e amplia a ação da vontade que agora extrapola o seu limite corpóreo. Após inúmeras referências às maiores contribuições daqueles que se ocuparam do assunto, Schopenhauer conclui que o verdadeiro agente do magnetismo animal, e de toda ação mágica, é a vontade. Assim, o magnetismo animal e a magia são efetivamente como uma metafísica prática – nos termos que Francis Bacon já utilizara para designar a magia, como metafísica empírica ou experimental – são a antecipação daquilo que é desenvolvido na sua metafísica da vontade, cuja decomposição do mundo em vontade e representação serve de melhor correlato teórico.

A Sinologia, que há muito pouco vinha se desenvolvendo na Europa, já apresentava resultados e desafios que também corroboravam a filosofia de Schopenhauer. O dado mais relevante diz respeito à difusão do Budismo no oriente – considerado por Schopenhauer como a mais nobre das religiões (Sinologia, 198) – o que no mundo chinês é testemunhado pela profunda admiração a Dalai-Lama e a Teshu-Lama. A apropriação ocidental da palavra chinesa “tien” tem como correspondente mais imediato “céu”, mas em sentido figurado revela-se também em seu sentido metafísico, como o princípio supremo e todas as coisas, dentre as suas inúmeras designações, “o espírito celeste é dedutível daquilo que é a vontade da espécie humana” (Linguística, 205). E por fim, em Indicação à Ética, Schopenhauer antecipa algumas questões presentes em dois escritos publicados sob a rubrica Os dois problemas fundamentais da Ética (1841), são eles: Sobre a liberdade da vontade e Sobre o fundamento da moral. Dentre essas questões está a asseidade da vontade, isto é, a sua autodeterminação no mundo, que deve ser condição primeira de uma Ética séria, bem ancorada na metafísica. O que Schopenhauer chama de vontade é o que conhecemos em nosso próprio interior, um verdadeiro ens realissimum (ente realíssimo); a explicação do mundo não parte, assim, de um desconhecido, mas daquilo que nos é mais íntimo, apenas de uma maneira totalmente distinta de todo o resto que aparece (Indicação à Ética, 213).

Nos Suplementos ao Mundo, publicados em 1844, Schopenhauer remete ao Sobre a vontade na natureza todo o capítulo intitulado Da cognoscibilidade da coisa em si, onde ele diz:

Já em 1836 publiquei com o título “Sobre a vontade na natureza” os suplementos mais essenciais deste livro, que contém o avanço mais característico e importante da minha filosofia: a passagem [Übergang] da aparência [Erscheinung] para a coisa em si, que Kant deu por impossível (…). E isto é feito de maneira mais exaustiva e rigorosa no capítulo “Astronomia física”; de modo que não espero encontrar uma expressão mais correta e precisa do núcleo da minha filosofia, daquela estabelecida ali. Aquele que deseja conhecer a fundo e examinar com seriedade a minha filosofia deverá, antes de mais nada, remeter-se ao mencionado capítulo.

Desse modo, o cerne de Sobre a vontade na natureza é o problema da passagem (Übergang) pelo profundo abismo existente entre a aparência e a coisa em si, cuja identidade absoluta fora barrada depois de Kant ter revelado com profundidade a completa diversidade entre ambos. Porém, aquilo que conhecemos do mundo, portanto como um produto fisiológico de nosso cérebro (imbuído das formas espaço, tempo e causalidade) e que constitui o conteúdo da aparência – a representação – não pode sequer ser pensado sem que se suponha uma existência em si mesma, e não simplesmente como objeto para um sujeito, sob pena de sucumbirmos ao “egoísmo teórico” de um idealismo absoluto, em que toda realidade do mundo é diluída em um mero “fantasma subjetivo”. Assim, apenas considerando que a diferença nos seja dada na representação é que se torna possível pensar em uma identidade entre ideal e real, vontade e representação, tal qual aquela que se lê em Astronomia física. Uma identidade que, todavia, jamais pode se dar entre o representar enquanto tal e o seu em si, pois o mundo como vontade e o mundo como representação são conhecidos de formas radicalmente distintas.

O conhecimento da identidade entre vontade e suas efetivações nos é dado na consciência de si (Selbstbewusstsein), de forma quase totalmente imediata, mediada apenas pela relação própria de conhecimento (sujeito e objeto) e pela forma do tempo. Ora, se a consciência de si exige que esta se volte para o seu interior, por uma via subterrânea àquela do conhecimento das outras coisas, então é no nosso próprio corpo que encontramos a chave para a compreensão da identidade da vontade, como seu lugar privilegiado. O “milagre por excelência” consiste no reconhecimento da identidade entre sujeito do conhecer e sujeito do querer no corpo; só assim podemos induzir a partir do reconhecimento dessa identidade que, se pudéssemos também conhecer tudo o que nos aparece de fora tão imediata e intimamente, reconheceríamos a identidade entre a nossa vontade e a vontade no restante da natureza; nisso consiste o procedimento analógico, no §18 do Mundo. O corpo é a objetidade da vontade, o seu objeto mais íntimo, disso se explica também por que, na exposição de Sobre a vontade na natureza, Schopenhauer parte do ser humano, em movimento ascendente em direção às leis mais gerais da natureza inorgânica; ou seja, aplica a sua versão do método indutivo de Francis Bacon para o qual “conhecendo as coisas particulares da maneira mais perfeita possível, conheceríamos, por assim dizer, o que é a coisa em geral”.

Aquilo que Ruy de Carvalho Júnior chama de “a tese da inteligibilidade inversa”, apresentada no capítulo Astronomia física, isto é, da relação inversa entre a “explicação” do mundo como representação e da sua “compreensão” como vontade, evidencia um fato importante no contexto de todo este escrito: haverá sempre, por detrás das aparências, algo de inexplicável. E mesmo onde a relação causal for mais evidente, como no choque entre dois corpos, ainda assim permanecerá o mistério da “possibilidade da passagem do movimento”, que é incorpóreo. A incompreensibilidade do sentido mais oculto da natureza, como vontade, não se restringe, portanto, apenas aos fenômenos sobrenaturais; pelo contrário, qualquer tentativa de explicação metafísica configura-se, antes, como uma explicação do sobrenatural, metafísico e sobrenatural são, portanto, sinônimos neste contexto. A atração magnética da gravidade, o choque mecânico e a eletricidade não são mais do que a magia entendida em seu sentido mais básico.

Vale ressaltar, por fim, alguns aspectos relevantes desta tradução para as reflexões futuras, como por exemplo na tradução de “Wille zum Leben” por “vontade para a vida”, no lugar de “vontade de vida” ou “vontade de viver”; bem como na adoção lúcida da distinção entre “aparição”/”aparência” (Erscheinung) e “fenômeno” (Phänomen), este último Schopenhauer reserva o uso em quatro momentos específicos: para “fenômeno da vida” (Phänomen des Lebens), no capítulo Astronomia física (p. 145); e no capítulo Magnetismo animal e magia, referindo-se primeiro aos “fenômenos” do magnetismo animal (p. 157), lê-se em seguida “o magnetismo animal e seus fenômenos são idênticos a uma parte da magia de outrora” (p. 163), e por último para se referir à concordância, de todos os escritores citados, na magia como antecipação da sua metafísica da vontade (p. 192).

Luan Corrêa da Silva – Doutorando em Filosofia pela UFSC. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Philosophie des Leibes. Die Anfänge bei Schopenhauer und Feurbach – JESKE; KOBLER (V-RIF)

JESKE, Michael; KOβLER, Matthias (Org.). Philosophie des Leibes. Die Anfänge bei Schopenhauer und Feurbach. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2012. (Beiträge zur Philosophie Schopenhauers). Resenha de: CIRACÌ, Fabio. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.3, n.1/2, p.348-351, 2012.

Il prezioso volume raccoglie gli interventi tenutisi per la conferenza Schopenhauer e Feuerbach: Beginn einer Philosophie des Leibes, svoltasi il 21 settembre 2010, in occasione del 150° anno dalla morte di Arthur Schopenhauer. Tema centrale, la riflessione filosofica di Schopenhauer e di Feuerbach sul “corpo”, in tedesco Leib, termine che indica esplicitamente la sua appartenenza etimologica e semantica al concetto di Leben, vita, e che si distingue da Körper, corpo in quanto oggetto della fisica. Nelle lingue romanze è possibile distinguere il Leib dal Körper a patto di ricorrere a delle perifrasi: “corpo vivo” per il primo e “corpo fisico” per il secondo. Oppure è possibile evincere il significato puntuale del termine dal contesto in cui si trova. Ma in filosofia le parole sono al contempo le pietre angolari di un sistema concettuale e il campo gravitazionale nel quale sono attratti ed orbitano altri filosofemi fra loro interconnessi. Nella fattispecie, la Leib-Problematik diviene una chiave di lettura significativa per la comprensione del cambiamento paradigmatico e prospettico messo in atto dalla filosofia di Feuerbach, prima, e poi di Schopenhauer (Die Anfänge bei Schopenhauer und Feuerbach come recita il sottotitolo del volume), cui fanno seguito quella filosofica e morale di Nietzsche, e in seguito quella psicoanalitica di Freud: una vera e propria rivoluzione rispetto al processo logico-ontologico dello spirito hegeliano, che propone un’inversione predicativa, ontologica ed epistemologica, fra il mondo della vita e quello dell’astrazione (le idee), privilegiando il primo e ancorando la riflessione filosofica all’esperienza, riportando cioè l’uomo alla sua dimensione naturale, come vuole Feuerbach, senza mai ridurlo ad oggetto fra gli oggetti, a cosa fra le cose, come scrive Schopenhauer. Il Leib, quindi, diviene il passaggio obbligato di una riflessione che voglia confrontarsi con il mondo della natura e con i progressi delle scienze empiriche, che voglia comprendere la dimensione umana e che possa al contempo fungere da principio fondativo di un nuovo sistema filosofico. La modernità della “scoperta del corpo” da parte di Feuerbach e di Schopenhauer, allora, è portatrice di un cambiamento di impostazione che va oltre il proprio sistema e che investe anche la posterità, come dimostra la riflessione che, a partire da Feuerbach e Schopenhauer, svilupperanno filosofi come Merleau-Ponty e Max Scheler.

Riassumendo brevemente il contenuto del volume, esso consta di dodici saggi che sviluppano tutti un aspetto legato al Leib, sia dal punto di vista degli effetti (Wirkungsgeschichte), sia dal punto di vista teoretico-epistemologico.

Il volume si apre con un saggio firmato da Alfred Schmidt, il grande discepolo di Horkheimer ed erede della Franfurter-Schuler recentemente scomparso, e sviluppa in maniera diacronica lo sviluppo del concetto di corpo in diversi autori, Von den philosophischen Ärten des 18. Jahrhundert zu Feuerbach, Schopenhauer und Nietzsche. Per Schmidt «tre pensatori tedeschi del diciannovesimo secolo devono essere considerati come coloro che hanno rivelato il significato specifico e filosofico del concetto della corporeità dell’uomo: Feuerbach (1804-1872), Schopenhauer (1788-1860) e Nietzsche (1844-1900)» (p. 39). Più di chiunque altri, i tre filosofi hanno scandagliato le profondità dell’umano interrogando il corpo sulle questioni della natura, dell’essenza dell’uomo, della sua costituzione fisiologia e psicologica, senza cedere a soluzioni riduzioniste e positivistiche, che pure hanno dominato l’Ottocento, ma tendendo sempre sveglio il senso critico, la questione della soggettività e l’imperscrutabilità della coscienza umana.

Con il suo saggio Leib und Willensbegründung bei Schopenhauer, l’esperto tedesco di indologia e studioso schopenhaueriano Stephan Atztert (University of Queensland) indaga la metafisica della volontà a partire dalle sue basi fisiologiche e psicologiche, in relazione alle fonti scientifiche cui Schopenhauer ricorre, mostrando come avvenga il passaggio dalla sfera della sensibilità (irritabilità dei muscoli) a quella della percezione (affezioni della volontà), ponendo particolare attenzione alle due opere schopenhaueriane Nella volontà della Natura (1836) e alla seconda edizione della Qua [DR] uplice radice del principio di ragion sufficiente, e ipotizzando una fondazione metafisica della volontà che parte dall’analisi empirica del corpo.

Nel suo Zur Bedeutung des menschlichen Leibes und der Sinnesfunktionen in Schopenhauers Metaphysik des Schönen, Brigitte Scheer (Frankfurt am Main) trasferisce invece l’analisi della corporeità nell’ambito dell’estetica, mostrando come il corpo funga da intermediario fra il mondo esterno e l’autocoscienza individuale attraverso le funzioni dell’intelletto, e come la sospensione della coscienza del corpo nell’oggettività della coscienza sia la condizione necessaria per l’intuizione estetica.

Il giovane studioso Daniel Schubbe (Hagen) si concentra sulla Schopenhauers verdeckende Entdeckung des Leibes – Anknüpfungspunkte an phänomenologische Beschreibung der Leib-Körper-Differenz, riportando l’attenzione sulla doppia valenza fenomenologica del concetto di corpo, come oggetto della rappresentazione e soggetto della volontà, e mettendo in risalto la distanza di Schopenhauer dalla definizione positiva di corpo come semplice oggetto della fisica. Distanza che permette alla filosofia di Schopenhauer di inserirsi nel solco della tradizione della Lebensphilosophie e, attraverso l’analisi fenomenologica della vita, di segnare la strada che porta alle cosiddette filosofie dell’esistenza.

Nel suo Schopenhauer und Merleau-Ponty – Eine erste Annäherung, Daniel Schmicking (Mainz) propone un confronto testuale e concettuale fra i testi schopenhaueriani e quelli dell’autore de La filosofia della percezione, mostrando come in entrambi i pensatori, la centralità del corpo sia la chiave interpretativa del mondo e svolga un ruolo centrale per la comprensione dello status fenomenologico dell’uomo. In questa prospettiva Schmicking riprende la tesi di Schopenhauer come “primo esistenzialista” ante litteram, tesi già enunciata in Germania da Alwin Diemer nel 1962 (ma sostenuta in precedenza anche dall’italiano Moretti-Costanzi negli anni Quaranta) e poi accettata, in misura e maniera diversa (e pur con qualche legittimo dubbio), da numerosi, anche autorevoli, studiosi di Schopenhauer, come per esempio da Arthur Hübscher.

Più breve, ma altrettanto interessante l‘intervento di Claus-Artur Scheier (Braunschweig) sul rapporto fra Logik, Leib und Sprache in Schopenhauer e Feuerbach, al quale segue il saggio del francese Jean Salem su Der Materialismus, der Leib.

Christine Weckwert (Berlin) con Die Leib Thematik bei Feuerbach e Francesco Tomasoni (Vercelli) con Sinnlichkeit und Wille in der Ethik Feuerbachs mit Bezug auf Schopenhauer sviluppano invece il tema del corpo alla luce della dialettica feuerbachiana del io-tu, mentre Michael Jeske (Frankfurt a. M./Mainz), in Zur Aktualität von Feuerbachs existenziellem Leibbegriff im Kontext psychoanalytischer Fragestellung, e Bernard Görlich (Wiesbaden), in Freud: die Leiblichkeit des Unbewussten, si concentrano più sugli sviluppi che le filosofie di Feuerbach e di Schopenhauer hanno avuto su Freud e sulla psicoanalisi più in generale. In particolare, riprendendo l’impostazione teorica di Alfred Schmidt, Jeske dedica un’attenta analisi all’ermeneutica del corpo di Feuerbach, sostenendo la tesi di un’evoluzione sociogenetica della teoria della coscienza in Feuerbach, e mostrando il suo collegamento con la psicoanalisi freudiana attraverso un attento confronto testuale ed ponderoso apparato di note.

Di particolare interesse risulta essere il contributo di Günter Gödde (Berlin) e Michael B. Buchholz (Göttingen) dal titolo Das Denken des Körpers – Varationen von Schopenhauers und Nietzsches Leibphilosophie über die Psychoanalyse bis in die gegenwärtige Kognitionsforschung, in cui i due autori ricostruiscono storicamente la concezione di corpo, soprattutto in Schopenhauer e Nietzsche, per rapportarsi alla visione della sessualità nel pensiero freudiano, come radicalizzazione del concetto di corporeità, il quale a sua volta è condizione di quell’enbodiment che condizionerà la riflessione di pensatori contemporanei, fra di loro anche molto diversi, come Hellmuth Plessner, George Lakoff, Mark Johnson. Il problema del corpo o della “corporizzazione” della mente viene infine ripreso e discusso anche alla luce del recente dibattito apertosi intorno al fortunato volume di Damasio, Il problema di Cartesio.

Ma il tema della centralità del corpo nell’attuale riflessione filosofica rimane infondo ancora aperto e problematico, ancora una volta banco di prova di ogni riflessione teorica ed epistemologia seria, ed in ogni caso un’ineludibile pietra di confronto della riflessione filosofica contemporanea.

Fabio Ciracì – Professor na Università degli Studi del Salento (Lecce-Itália). Secretário do “Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola”. E-mail: [email protected]

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Introdução a Schopenhauer – BOSSERT (V-RIF)

BOSSERT, Adolphe. Introdução a Schopenhauer. Tradução de Regina Schöpke e Mauro Baladi. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011. Resenha de: DALCOL, Mônica Saldanha. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.3, n.1/2, p.359-361, 2012.

Adolphe Bossert é um reconhecido especialista em literatura alemã e publicou diversos livros sobre alguns dos maiores nomes que a constituem, como sobre Goethe e Schiller. Com uma linguagem sutil e uma atenção especial a detalhes da vida do homem de gênio que foi Schopenhauer, Bossert elabora sua Introdução a Schopenhauer (traduzida recentemente no Brasil por Regina Schöpke e Mauro Baladi) em vista de uma apresentação geral dos conceitos norteadores dessa filosofia. Contudo, o livro não recai num reducionismo psicológico, isto é, não pretende “justificar” as formulações filosóficas com base em dados da vida particular do grande filósofo alemão. Conforme observa a tradutora da obra, Regina Schöpke, Bossert parte do pressuposto de que não se pode tratar vida e obra de um pensador de forma separada e, ao longo do livro, demonstra-nos como esta inseparabilidade é importante para o caso de Schopenhauer. Assim, por meio dessa obra temos contato com o homem severo que foi Schopenhauer e com os principais aspectos de sua filosofia, de forma clara e objetiva. Bossert apresenta alguns dos principais conceitos presentes na obra magma de Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação, tais como: a primazia da Vontade, o papel desempenhado pela racionalidade, a problemática do caráter, a herança platônica das Ideias; o belo, a afirmação e a negação da Vontade.

O livro possui o total de trinta e dois capítulos e os assuntos de cada um deles obedecem a uma linha cronológica. Neles encontramos transcrições de cartas entre Schopenhauer e algumas pessoas de sua convivência, como as correspondências tumultuosas com a mãe, e, por outro lado, a imensa estima e cumplicidade de sua irmã Adele. As cartas trocadas entre Schopenhauer e sua irmã são vistas por Bossert, por exemplo, como “um verdadeiro capítulo da filosofia pessimista” (p. 279). No que diz respeito aos aspectos do seu pensamento, Schopenhauer é, segundo Bossert, o filósofo que recusa o lugar comum da razão como essência do homem. O ser é caracterizado por um impulso incessante e irracional – a Vontade. Como afirma o autor, “a Vontade é o grande demiurgo; ela é o artesão do universo em sua totalidade e a faculdade primária em cada indivíduo; ela é a criadora do corpo que ela anima” (p. 24). Dessa forma, ao traçar um panorama geral dos principais conceitos schopenhauerianos, Bossert dedica-se a apresentar alguns elementos presentes na metafísica da Vontade, tendo como ponto de partida a proposição de que os fenômenos são as manifestações de uma única Vontade em suas diversas formas.

O autor aborda a Vontade em sua afirmação e em sua negação. De forma resumida, quando a afirmação da vontade de um determinado indivíduo avança sobre a vontade de outro, temos a representação do egoísmo. Pode-se afirmar que esse egoísmo se deve ao fato de que o ser humano está inserido no cenário do princípio de individuação e não reconhece a essência da Vontade nos outros seres. No caminho oposto a esse egoísmo está a doutrina moral desenvolvida por Schopenhauer, reconhecendo que o ser humano também se identifica com os outros seres, sejam eles humanos ou animais. Como afirma Bossert, “uma libertação momentânea, um antegozo da libertação completa por meio da supressão do querer viver, será a derradeira palavra da moral de Schopenhauer” (p. 204). Na contemplação artística também encontramos o estado de negação momentânea da Vontade, o apaziguamento do sofrimento, que é caracterizado por Schopenhauer como o estado de pura contemplação. E, por fim, temos o grau mais elevado de negação da Vontade mediante sua total negação (abnegação), a ascese que possibilita a saída do ciclo incessante da Vontade.

No que concerne aos primeiros passos da recepção da filosofia de Schopenhauer, Bossert nos mostra como o pensamento singular de Schopenhauer não foi acolhido pelo grande público universitário e que todas as tentativas empreendidas pelo filósofo para inserir-se no fervor da época fracassaram. No segundo semestre de 1820, Schopenhauer começa a lecionar na Universidade de Berlim. O curso chamava-se “Filosofia universal” (gesammte Philosophie) e abarcava temas de lógica, cosmologia, teoria das artes e dos costumes (p. 121). Schopenhauer ministrava suas aulas no mesmo horário das lições de seu arqui-inimigo Hegel. O grande público lotava os cursos ministrados por Hegel, e o filósofo da Vontade contava com pouquíssimos alunos, o que o levará a suspender os cursos para o próximo semestre, já que o número de inscritos chegava a ser insuficiente. Bossert percebe o enfrentamento do pensador com os três maiores filósofos da época, Hegel, Fitche e Schelling, como fator que também contribuiu em grande parte para o desprestigio dele em relação a seus contemporâneos. Não obstante o fato de Schopenhauer não ser acolhido pela academia, existiram interessados em sua obra, pessoas que posteriormente se tornariam seus primeiros discípulos. Esses não eram propriamente estudantes de filosofia, mas magistrados, poetas, comerciantes e advogados. Bossert ressalta alguns nomes, como Frie [DR] ich Dorguth, Johann August Becker, Adam von Doss e Julius Frauenstädt.

Schopenhauer obteve um reconhecimento de sua filosofia, embora tardio ou quase póstumo, como afirma o autor. Em termos institucionais, somente em 1857 sua doutrina passou a ser estudada em algumas universidades, como em Iena, em Bonn e em Breslau. Passaram-se quase trinta anos da primeira tentativa de conquistar o público universitário, porém, tal tempo parece pequeno diante de tamanha confiança. Como afirma o próprio filósofo, “o metal do qual meu livro e eu somos feitos é muito raro neste planeta, e terminarão por reconhecer seu valor: vejo isso muito claramente, e é preciso muito tempo ainda até eu crer que esteja me iludindo. Que me ignorem por mais dez anos, nem com isso minha confiança será abalada” (p. 123).

Apesar de Schopenhauer ser conhecido como um filósofo pessimista por excelência, nesse livro somos surpreendidos quando Bossert nos chama atenção para as “sinuosidades” do pensamento do pensador, já que – segundo o autor – encontramos, através de seus fundamentos, “elementos de um otimismo mais nobre, mais generoso, mais verdadeiramente filosófico” (p. 358). Destaquemos a seguinte passagem:

Qual é, para ele, a verdadeira forma de vida moral? É a renuncia ao querer viver individual, a abdicação do egoísmo, a imolação do eu, a morte voluntária no sentido espiritual da palavra. Se essa regra de conduta se tornar lei universal, segundo a expressão de Kant, o que resultará disso? Uma sociedade na qual não haverá mais eu e não eu, em que cada um irá considerar sua sorte como intimamente ligada à de seus semelhantes; uma sociedade onde todos os membros viverão, por assim dizer, apenas uma vida coletiva. Quem poderia desejar um mundo melhor? (p. 358).

Dessa forma, a obra de Bossert, ao mesmo tempo em que nos oferece um cenário geral dos principais conceitos da filosofia de Schopenhauer, bem como alguns dos principais momentos que dizem respeito à vida particular do pensador, não deixa de acenar para problemáticas específicas, o que pode ser tomado como um convite para pesquisas que nelas se detenham. Por um lado, a obra pode exercer um fascínio para aqueles os iniciantes na leitura do pensador alemão, visto que Bossert apresenta de modo sucinto e claro os principais conceitos schopenhauerianos. Por outro lado, o livro pode interessar também àqueles que já estão familiarizados com a filosofia de Schopenhauer e, mesmo se conhecedores de importantes biografias ou se são especialistas, podem desfrutar de uma leitura e de uma versão peculiar sobre o pensamento do filósofo.

Mônica Saldanha Dalcol – Mestranda em Filosofia pela UFSM. E-mail: [email protected]

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A concepção de matéria na obra de Schopenhauer – BRANDÃO (V-RIF)

BRANDÃO, Eduardo. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2009. Resenha de: SOARES, Daniel Quaresma F. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.3, n.1/2, p.352-358, 2012.

Originado a partir da tese de doutoramento defendida por Eduardo Brandão na Universidade de São Paulo, A concepção de matéria na obra de Schopenhauer pode ser apresentado a partir de duas das suas grandes virtudes, que se intercruzam. Em primeiro lugar, surge neste livro uma interpretação robusta e inovadora acerca da noção de matéria no pensamento schopenhaueriano. Já na Introdução, o autor alude à possível reação de um leitor, que perguntaria: diante de questões mais “nobres e abrangentes” (p. 16) da filosofia de Schopenhauer – tais como a negação da Vontade, a estética e a moral –, por que se deter num tema aparentemente tão “pacífico” e localizado como a matéria? A resposta virá durante todo o livro, e não poderia ser mais clara: justamente porque a concepção de matéria nada tem de pacífica na obra de Schopenhauer. Ao contrário, a matéria será demonstrada como um ponto central de cruzamento, a partir do qual é possível tanto constatar influências pouco conhecidas sobre o pensamento schopenhaueriano quanto lançar luz sobre a articulação de temas capitais para o sistema da Vontade, tais como a relação sujeito/objeto, a metafísica e o argumento de analogia entre homem e mundo.

O suposto caráter não-problemático da concepção de matéria ruirá na medida em que Brandão expõe o modo como tal concepção foi gradualmente alterada e revisada por Schopenhauer, geralmente de modo inconfesso, desde as obras de juventude até o segundo volume de O mundo como vontade e representação. Assim, trata-se justamente de levantar uma suspeita sobre esse aparente ponto pacífico da filosofia schopenhaueriana. Desconfiança que nos leva à segunda das grandes virtudes desta obra. Valendo-se da análise específica da noção de matéria, o autor questiona tacitamente um modo cristalizado de abordagem da filosofia de Schopenhauer. Afinal, talvez por excesso de confiança nas palavras do filósofo (que afirma recorrentemente a unidade a-histórica de seu pensamento), em grande parte dos comentários sobre Schopenhauer ainda é rara a investigação de temas a partir da periodização de seus escritos. Segundo Brandão, no caso específico da concepção de matéria (o que não significa que tal periodização caberia à análise de qualquer questão da filosofia schopenhaueriana), não há como efetuar uma abordagem consequente do tema sem recorrer à divisão histórica dos escritos de Schopenhauer em três períodos: o primeiro engloba a Dissertação de 1813 e a primeira edição de Sobre a visão e as cores; o segundo é constituído pela primeira edição de O mundo como vontade e representação; e o terceiro abrange todas as obras publicadas a partir de Sobre a vontade na natureza (texto no qual começaria a ocorrer a mudança decisiva na concepção de matéria em Schopenhauer).

Assim, o enfoque na questão da matéria teria como função tanto esclarecer o importante (e geralmente desconhecido) papel dessa noção na filosofia schopenhaueriana – apresentando também as (muitas vezes insuspeitas) influências que a constituem –, quanto levantar uma suspeita que cabe a todos nós, historiógrafos da filosofia da Vontade: até que ponto devemos aceitar, confiantes naquele “pensamento único” tão apregoado pelo filósofo, que não há grandes modificações de percurso na filosofia de Schopenhauer? No entrecruzamento entre essas duas facetas (uma relativa ao conteúdo da investigação e outra implícita, metodológica), Eduardo Brandão analisa “as transformações do conceito de matéria ao longo da obra de Schopenhauer” (p. 17) em quatro capítulos.

No primeiro, intitulado O lugar da matéria, o autor procura apontar alguns dos problemas que teriam levado Schopenhauer, em determinado momento de sua trajetória intelectual, a reconfigurar toda a teoria da representação. Mostra-se, por exemplo, que, segundo a letra schopenhaueriana, é preciso identificar forças naturais e Ideias. Porém, o conhecimento das Ideias, como sabemos, é reservado sobretudo ao gênio. Em contrapartida, o terceiro livro d´O mundo demarca nitidamente a separação entre conhecimento estético e conhecimento científico. Sendo assim, como se daria um conhecimento específico de tais forças naturais, conteúdo da metafísica da natureza, que não recaísse num conhecimento estético? Ou seja, nessa configuração “não poderia haver um modus operandi do conhecimento específico da metafísica da natureza” (p. 27). Se, conforme explicitado em Sobre a Vontade na natureza, Schopenhauer almejará uma confirmação de sua metafísica por meio da ciência, como seria possível (dada a separação radical entre ciência e estética) operar essa relação? Assim, seria preciso “encontrar uma relação entre as ciências e a Vontade que não seja de exclusão, […] mas de cooperação” (p. 39).

A tentativa de solucionar tais problemas, entre outros, exigiria uma revisão da teoria da representação, na qual uma renovada concepção de matéria encontrará seu lugar. Segundo Brandão, Schopenhauer perceberá que a Ideia não pode ser estabelecida como o único elo da corrente entre a Vontade e seus fenômenos; afinal, se a função da Ideia é precisa no domínio da estética e da moral, o mesmo não se pode dizer da metafísica da natureza. Com efeito, a matéria poderia ocupar a função de elo entre Ideia e fenômeno, já que é, por um lado, causalidade, e por outro, a instância na qual a Ideia se manifesta. Para conceber essa função, o filósofo precisará ampliar a noção de matéria, conferindo-lhe um estatuto metafísico que ainda não aparecia nos textos de juventude e na primeira edição d´O mundo. À matéria deverá ser conferido um “duplo registro no terreno da objetividade” (p. 63).

Na última seção do primeiro capítulo e no decorrer do segundo, intitulado Os dois lados da matéria, o duplo registro da matéria na filosofia schopenhaueriana será explicitado. Segundo Eduardo Brandão, a partir de 1836 o filósofo de Danzig começa a estabelecer uma distinção entre Materie e Stoff. Ambos os termos deveriam ser igualmente traduzidos por matéria, pois referem-se à mesma noção; porém, tal diferenciação tem a função de ressaltar o duplo ponto de vista schopenhaueriano acerca da matéria. O autor demonstra como a diferença entre Materie e Stoff há muito está presente nos comentários (sobretudo entre os alemães) sobre a filosofia de Schopenhauer. Porém, o papel dessa distinção ainda não teria sido suficientemente utilizado para elucidar as influências recebidas e os debates travados pelo filósofo quando da elaboração do “arcabouço conceitual em que se move a metafísica da natureza” (p. 68). Essa é a tarefa à qual o livro se consagra, e com êxito.

A partir de passagens nas quais Schopenhauer aproxima explicitamente a Ideia, tal como aparece na metafísica da natureza (os graus de objetivação da Vontade), e a noção de forma substantialis, oriunda da tradição aristotélica, Brandão aponta a insuspeita presença de uma vertente aristotélica no interior da noção (supostamente platônica) de Ideia em Schopenhauer. Retomando, à sua maneira, a oposição entre nominalismo e realismo, o filósofo alemão teria procurado esclarecer o estatuto da Ideia (unitas ante rem) e do conceito (unitas post rem). Assim como alguns autores medievais buscaram pacificar a querela entre realismo e nominalismo, Schopenhauer buscaria pacificar conceito e Ideia em sua teoria da representação, a fim de legitimar o modus operandi da metafísica da natureza, que será conduzido pela noção de Materie. Desse modo, mostra-se como, no interior da noção de Ideia schopenhaueriana, sempre dita platônica, esconde-se (após a revisão da teoria da representação) um registro aristotélico. Porém, Brandão alerta que “não se trata de preferir o estagirita a Platão, mas de, no fundo, tentar estabelecer uma coexistência (devidamente camuflada por Schopenhauer) entre ambos” (p. 80). Mostra-se inclusive como a revisão da teoria da representação é também influenciada por Giordano Bruno e Plotino (autores que tentaram, cada um a seu modo, efetuar uma aproximação entre Platão e Aristóteles).

Concomitantemente, o autor de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer ressalta que essa remissão a Aristóteles deve ser tomada com cautela. Afinal, Schopenhauer não faria uso das noções aristotélicas de modo fiel, mas as adaptaria às finalidades de seu próprio pensamento. Assim, tais aproximações deveriam ser sempre consideradas de modo analógico. Além disso, a referência a Aristóteles nunca seria direta, mas intermediada pela escolástica, sobretudo por Suárez.

Ressalvas feitas, Eduardo Brandão demonstra com acuidade as diversas aproximações possíveis entre a concepção schopenhaueriana de matéria e noções oriundas da tradição aristotélica. A Materie poderia ser compreendida de maneira análoga à noção medieval de materia prima, ao passo que Stoff poderia ser aproximada da concepção tomista de materia signata. A Materie seria concebida como análoga à substância (embora retraduzindo a noção aristotélico-escolástica para o interior do idealismo schopenhaueriano), o que permanece na mudança; Stoff, por sua vez, seria concebida como análoga ao acidente, referindo-se aos estados da matéria. Em suma, a Materie seria matéria sem forma e qualidade: uma abstração, um conceito resultante de uma operação da razão, que não é dado na experiência, mas apenas pensado. Ela seria uma atividade permanente in abstracto, um agir em geral. Já Stoff seria matéria formada e qualificada, dada na experiência. Ou seja, matéria intuída, agir em concreto, resultado de uma operação do entendimento. Ainda no horizonte de um referencial aristotélico (sempre permeado pela escolástica), a relação entre Materie e Stoff poderia também ser vista analogamente como uma relação entre potência e ato.

Com efeito, a dupla significação conferida à matéria surgiria para tentar dirimir algumas aporias suscitadas pela primeira edição d´O mundo. Por exemplo: “como uma matéria que é causalidade (portanto, essencialmente mudança) pode, ao mesmo tempo, permanecer numa mudança?” (p. 100). Esse duplo registro permitiria ao filósofo enfim elucidar como a matéria pode ser concebida como o elo de ligação entre a Ideia e o principium individuationis (noção também retirada da tradição aristotélica medieval). Com o par Materie e Stoff, Schopenhauer seria capaz de esclarecer aquela passagem entre Ideia e fenômeno. Afinal, a Materie é a arena da luta dos graus de objetivação da Vontade. Ela cumprirá a função de receptáculo, permitindo essa passagem na medida em que é concebida pelo filósofo de Danzig como aquilo que permanece: “não sendo dada em nenhuma experiência, é pressuposta em todas elas como o sujeito (portador) dos predicados (ou qualidades) que justamente as formas (idéias) ocasionam ao se manifestar nos fenômenos (que são, por sua vez, Stoff)” (p. 143-144). Sem se confundir com um substrato real, a noção de Materie surgiria para articular aquela dificuldade encontrada no cerne da metafísica da natureza.

No terceiro capítulo, intitulado As metafísicas e a matéria, Brandão inicia problematizando a afirmação schopenhaueriana que designa a tábua dos Praedicabilia a priori (apresentada no capítulo 4 dos Complementos) como uma propedêutica aos Princípios metafísicos da ciência da natureza de Kant, demonstrando como é preciso constatar a influência de uma ontologia pré-crítica (de tradição aristotélica) a atravessar o pretenso kantismo alegado por Schopenhauer.

Mas a principal tarefa deste capítulo talvez seja esclarecer o deslocamento fundamental na teoria da representação schopenhaueriana, rematado pelo segundo volume d´O mundo, no qual sujeito e Materie passam a ser apresentados como polos do mundo como representação. Nele, a correlação entre sujeito e objeto seria, de certo modo, transformada na correlação entre sujeito e matéria: polos subjetivo e objetivo da representação, respectivamente. Segundo o autor de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, tal deslocamento traria fortes consequências à metafísica schopenhaueriana, já que a Materie passaria também a ser concebida como a objetivação da Vontade tomada in abstracto. Ou seja, assim como o sujeito (por meio do corpo, objeto imediato) era, desde a primeira edição da obra magna schopenhaueriana, a visibilidade subjetiva da Vontade, a matéria tornar-se-ia – no período final da trajetória intelectual do filósofo – a visibilidade objetiva da Vontade.

Por meio dessa dimensão metafísica da Materie, Schopenhauer teria introduzido no plano da representação o vínculo com a Vontade, viabilizando, assim, como se uma passagem do fenômeno ao em si. Com isso, aproximar-se-ia a possibilidade de uma fundamentação metafísica da natureza. Afinal, “a metafísica da natureza, ao analisar a Vontade do ponto de vista objetivo (na matéria, portanto) tem de ser justamente metafísica” (p. 205). Com efeito, apenas esse novo estatuto da matéria tornaria possível realizar uma confirmação da metafísica pelas ciências, exigência exposta em Sobre a vontade na natureza.

Segundo o autor, esse deslocamento ajudaria também a lançar luz sobre um dos pilares do “pensamento único” schopenhaueriano: a atribuição de um sentido moral ao mundo, estabelecendo a correspondência entre moral e metafísica da natureza. Afinal, se já se afirmava que a mesma Vontade age tanto na ética quanto na natureza, a partir da revisão da teoria da representação seria possível explicar conceitualmente a relação entre elas. Aquilo que para o homem é designado como caráter equivale, na natureza, à noção de força. Tal força, por sua vez, concebida como grau de objetivação da Vontade ou Ideia, manifesta-se na matéria. Neste sentido, um papel fundamental teria sido desempenhado já quando o filósofo instalara a lei de motivação não apenas na quarta classe de representações, como acontecia na Dissertação de 1813, mas como uma das três modalidades da primeira classe (ao lado da causalidade em sentido estrito e da excitação). Essa passagem da quarta classe à primeira teria possibilitado a Schopenhauer estabelecer o solo inicial para vincular moral e natureza, tornando análogas necessidade física e moral.

A partir desse solo, a revisão da teoria da representação efetuaria finalmente uma operação fundamental no interior do sistema da Vontade: conceitualizar o argumento de analogia, que teria sido apresentado de maneira apenas parcial no segundo livro d´O mundo. A formalização conceitual do argumento de analogia encontra suas raízes em Sobre a Vontade na natureza. Nessa obra percorre-se aquele argumento em sentido inverso: ou seja, parte-se das manifestações objetivas da Vontade na matéria e conclui-se por sua manifestação subjetiva. Assim, ao mesmo tempo em que corrigiria a parcialidade da formulação apresentada no segundo livro d´O mundo, o texto de 1836 abriria caminho para o estabelecimento da correlação entre sujeito e matéria, posteriormente explicitada nos Complementos: “além do ponto de vista subjetivo sobre a Vontade deve haver, como correspondente, um ponto de vista objetivo” (p. 230). Na medida em que a matéria aparece como polo objetivo da representação, o argumento de analogia poderia ser finalmente conceitualizado: “e a ideia de analogia se transforma neste reconhecimento de que, assim como se manifesta subjetivamente no sujeito do querer, a Vontade manifesta-se objetivamente na matéria” (p. 236).

No último capítulo, Idealidade e Realidade, trata-se de retirar algumas consequências dos capítulos anteriores. Um resultado importante da formalização da analogia entre natureza e moral refere-se à questão da liberdade: se, do ponto de vista subjetivo, a filosofia schopenhaueriana reconhece a liberdade do fazer, seria preciso (após a revisão da teoria da representação) reconhecer algo análogo do ponto de vista objetivo. Ou seja, assim como o homem possui caráter empírico e inteligível, “cada objeto tem de conciliar liberdade e necessidade” (p. 261). A dupla significação da matéria seria capaz de responder a essa exigência. Afinal, se ser livre é não estar submetido a uma razão suficiente, a Materie – assim como seu correlato, o sujeito – poderia ser considerada livre. Desse modo, “na noção de matéria conciliam-se liberdade (ou seja, indeterminação, idealidade transcendental, através da noção de Materie) e necessidade (determinação, necessidade, realidade empírica, através da noção de Stoff)” (p. 263).

Consciente da meta schopenhaueriana de conjugar idealidade transcendental e realidade empírica, outro ponto crucial deste capítulo é o esclarecimento da posição de Schopenhauer acerca do materialismo. Segundo Brandão, mesmo após as críticas (já presentes na primeira edição d´O mundo) à “petição de princípio” em que recai o materialismo, o filósofo de Danzig poderia reconhecer as pretensões dessa doutrina (que concebe o conhecimento como modificação da matéria) desde que fossem reconhecidas igualmente as pretensões do idealismo (que, por sua vez, concebe a matéria apenas como modificação do conhecimento do sujeito). Diante da questão do materialismo, Schopenhauer apenas seria consequente com sua teoria da representação, que sempre sustentara não haver objeto sem sujeito nem sujeito sem objeto. Com isso, Eduardo Brandão rechaça as interpretações que pretendem apontar um materialismo insidioso que dominaria a teoria do conhecimento de Schopenhauer. Segundo o autor, a revisão da teoria da representação permitiria explicar como a matéria possui tanto realidade empírica quanto idealidade transcendental.

Desse modo, a concepção de matéria na filosofia de Schopenhauer encerraria um ideal-materialismo. E se o materialismo poderia ter suas pretensões reconhecidas desde que reconhecesse a contrapartida idealista, o mesmo ocorreria com o idealismo: por isso, a partir da dupla significação da matéria Schopenhauer procuraria defender o idealismo transcendental kantiano contra o idealismo absoluto de Fichte, Schelling e Hegel. Neste sentido, o autor demonstra como a descoberta da primeira edição da Crítica da razão pura propiciou uma reaproximação de Schopenhauer em relação a Kant. Segundo o filósofo da Vontade, apenas nessa edição Kant professaria um idealismo genuíno, não recaindo em dogmatismo (numa leitura em que Schopenhauer sofreria influência do cético Schulze) e assumindo resolutamente a máxima “não há objeto sem sujeito”. O idealismo que transparece nos Paralogismos da alma, na primeira edição da Crítica da razão pura, teria sido influência decisiva para a revisão da teoria da representação schopenhaueriana, permitindo o estabelecimento da correlação entre sujeito e matéria.

Na Conclusão, Brandão frisa como a noção de matéria é um ponto privilegiado para vislumbrarmos as diversas “tendências” que atuam sobre a filosofia de Schopenhauer. Afinal, a compreensão do ideal-materialismo schopenhaueriano permitiria constatar como o sistema da Vontade incorpora elementos kantianos, pré-críticos e pós-kantianos (em seu combate contra o idealismo alemão). Por último, o autor apresenta ainda um excurso denominado Algumas observações sobre Schopenhauer, Heidegger e Nietzsche, cujo objetivo principal é apontar algumas possíveis consequências de sua obra para a interpretação do pensamento nietzschiano.

Portanto, procuramos apresentar, de modo apenas rudimentar, algumas das principais articulações de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer. A exposição de Eduardo Brandão é repleta de minúcias esclarecedoras (tanto sobre a noção de matéria quanto sobre outros aspectos do pensamento schopenhaueriano) e amiúde surpreende pela erudição (sobretudo em relação à filosofia medieval).

A partir de uma tese original e audaciosa, que não teme extrapolar as leituras habituais da filosofia de Schopenhauer, o livro tem a grande virtude de introduzir uma desconfiança sobre a interpretação daquele “pensamento único” como ausência de modificações relevantes no percurso da filosofia schopenhaueriana. A postura de Schopenhauer, que raramente admite mudanças significativas no interior de seu pensamento, acaba por gerar aporias entre diferentes períodos da obra. Por meio da análise da noção de matéria, Eduardo Brandão não se exime de apontar tais aporias, demonstrando como uma leitura cuidadosa é capaz de, se não as dissolver, ao menos compreender sua função.

Daniel Quaresma F. Soares – Doutorando em Filosofia pela USP e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

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Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve (Org.). Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. João Pessoa: Ideia, 2010. Resenha de: DEBONA, Vilmar. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.2, n.2, p.216-221, 2011.

Diferentemente do que se sucedeu até o final dos anos 80 do século passado, temos percebido que as pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre o pensamento de Schopenhauer vêm se tornando mais profícuas durante as duas últimas décadas. Atestam esta constatação (i) as cinco edições bianuais do Colóquio Internacional Schopenhauer do Brasil, iniciadas em 2001, na cidade de Curitiba (PR), e promovidas pela Sociedade Schopenhauer do Brasil1 em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Filosofia das Universidades anfitriãs, (ii) as cinco edições anuais do Encontro Para saber mais Schopenhauer, iniciadas também em Curitiba, em 2007, (iii) o fortalecimento do GT-Schopenhauer, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), (iv) a fundação, no primeiro semestre de 2010, da Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, (v) as três edições do Encontro Nietzsche-Schopenhauer organizado pelo Grupo de Estudos APOENA, da Universidade Federal do Ceará, (vi) as publicações de traduções de parte significativa da obra do pensador que se somam àquelas que ainda estão sendo preparadas, (vii) além da produção de artigos, resenhas, capítulos de livros e livros de reconhecida qualidade.

O livro Arthur Schopenhauer no Brasil, cuja valiosa iniciativa devemos ao professor Deyve Redyson, da Universidade Federal da Paraíba, além de ser motivado pelo contexto da memória dos 150 anos da morte do filósofo, rememoradas em 2010, soma-se de forma especial às atividades listadas acima e ao espectro da produção acadêmica levada a cabo pela Schopenhauer-Forschung brasileira. A obra foi lançada durante a reunião do GT-Schopenhauer no XIV Encontro da ANPOF, na cidade de Águas de Lindóia (SP), em outubro de 2010. Nela estão reunidos dezenove textos de alguns dos mais importantes pesquisadores brasileiros da opera schopenhaueriana, dentre os quais podemos citar: Jair Barboza, Jarlee O. Salviano, Flamarion C. Ramos, Lean [DR] o Chevitarese, Kleverton Bacelar etc, assim como um importante texto da professora Pilar López de Santa María, da Universidad de Sevilla, pesquisadora que verteu a quase totalidade da obra do pensador para a língua espanhola.

No primeiro capítulo do livro, intitulado Três prefácios e alguns retratos: Schopenhauer e suas fisionomias, o professor Jair Barboza (UFSC) apresenta-nos uma reflexão sobre alguns dos elementos distintivos da filosofia do pensador a partir dos três prefácios de sua obra magna e de três conhecidas imagens do filósofo: o óleo sobre tela de Sigismund Ruhl (1815-18), que apresenta um Schopenhauer jovem, seguro, confiante, sereno e radiante, nas palavras de Cosima Wagner (Cf. Hübscher); a imagem de Johannes Schaefer (1855) que, no contexto da severa crítica à filosofia universitária e à “hegeliaria”, revela a fisionomia de um Schopenhauer mau humorado; e o óleo sobre tela de Jules Lunteschuetz (1859) que, na visão de Barboza, apresenta um Schopenhauer rejuvenescido, algo atestado no curto prefácio à terceira edição de O mundo devido à concretização da tão esperada fama e do, naquele momento, triunfante sistema.

No segundo capítulo, La crítica de Schopenhauer a la ética kantiana, lemos uma detalhada análise da professora Pillar López (Univ. de Sevilla) sobre em que medida o fato de, em geral, a etiqueta identificadora do pensamento kantiano consistir em elementos concernentes à sua crítica do conhecimento, e, no caso de Schopenhauer, na metafísica da vontade e no pessimismo, isso não impede o reconhecimento da importância histórica que têm as discussões sobre a ética em ambos os pensamentos. Ao partir do pressuposto de que a discrepância entre esses dois autores seja máxima no que respeita à ética, a autora propõe-se a contemplar cada um desses pensamentos, assim como o confronto de Schopenhauer em relação a Kant, como corretivo frente aos excessos de cada um deles (cf. p. 23).

Já no terceiro capítulo, sob o título de Fazer da natureza uma morada: a Sinnlichkeit de Feuerbach e a Vorstellung de Schopenhauer, Deyve Redyson (UFPB) analisa alguns pontos de contato entre esses dois pensadores que, segundo o autor, estão envolvidos nas mesmas questões filosóficas de sua época, como a filosofia da religião e o idealismo transcendental kantiano. Apesar de reconhecer como difícil a tarefa de pensar essas duas filosofias em conjunto, Redyson argumenta que a forma e a estrutura a partir das quais estão arquitetados tais pensamentos podem “nos auxiliar na compreensão de diversas categorias da filosofia especulativa e de suas incursões na noção de deus e de natureza, além de estarem na circunferência histórica como os representantes da nova filosofia ou filosofia do futuro” (p. 50).

Os capítulos 4 e 5 apresentam duas diferentes interpretações sobre uma mesma temática, o Estoicismo no pensamento de Schopenhauer. Em Sobre o cuidado de si: Schopenhauer e a tradição estoica, Luizir de Oliveira (UFPI) defende que, em grande medida, os pensamentos de Sêneca e do filósofo alemão convergem, embora não se trate de uma mera justaposição de ideias, para um mesmo ponto: “as estruturas de representação mental e seu papel na construção de uma “vida feliz” pensada não apenas como um ideal a ser atingido, mas como uma possibilidade efetiva hic et nunc” (p. 74); identificação esta que, segundo o autor, pode ser operada pela noção de “cuidado de si”. Por sua vez, Jarlee Salviano (UFRB), no capítulo intitulado O estoicismo pro tempore de Schopenhauer, apresenta uma análise que se diferencia daquela de Luizir principalmente por estar mais próxima, nas palavras do próprio autor, “da visão tradicional de Schopenhauer como o pai do pessimismo” (cf. p. 93). Nesta linha de argumentação – que ao reconhecer a presença da filosofia da Stoa no pensamento schopenhaueriano, não chega a afirmar que se tratam de pensamentos similares ou das mesmas preocupações – Salviano pontua um diálogo com seu colega brasileiro Jair Barboza, este um defensor da tese de que há, no pensamento schopenhaueriano, um determinante movimento entre o pessimismo teórico e o otimismo prático. Um dos argumentos de Jarlee Salviano é o de que, antes de se qualificar Schopenhauer como um estoico (para ele, o estoicismo schopenhaueriano é apenas mais uma faceta deste pensamento), às expensas de uma leitura pouco detida do Estoicismo, o leitor atento teria de percorrer atentamente até o fim do último livro de O mundo, justamente onde encontramos a ênfase na negação total da vontade. De acordo com Salviano, o quarto Livro da obra principal não sugere uma anestesia da afirmação consciente da vontade, ao contrário do que se teria no âmbito das reflexões sugeridas pelos Aforismos para a sabedoria de vida, como, por exemplo, mediante a própria noção de sabedoria de vida e outros elementos que supostamente angariariam uma filosofia do consolo, espécie de alívio para a existência prenhe de sofrimentos. Jarlee, ao indicar alguns limites da “leitura reconfortante” elaborada por Barboza, pretende, no fundo, indicar que este consolo de Schopenhauer “não consola” e que, menos ainda, este jamais poderia representar o ponto final do seu pensamento. Importante aqui é frisar que a natureza destas problemáticas está sendo investigada por outros intérpretes brasileiros da obra do pensador alemão, o que, de alguma forma, revela o estado da arte de tais pesquisas em nosso país.

Na sequência, no capítulo 6, temos uma reflexão de Flamarion Caldeira Ramos (UFABC) sobre A religião e a crítica da religião na filosofia de Schopenhauer, onde o autor apresenta algumas das principais incursões do pensador sobre a religião, paralelamente à sua metafísica. Ramos analisa, por exemplo, a afirmação presente nos Parerga em que o filósofo considera que os resultados morais do cristianismo, quando fundamentados apenas no cristianismo, permanecem sob fábulas, ao passo que da sua filosofia podem receber fundamentos racionais. Segundo Flamarion, isso não garante uma mera adesão do filósofo ao discurso religioso: “Mesmo com todas as limitações do discurso racional, da ciência e da filosofia, Schopenhauer mantém-se afastado de uma queda na religião…” (p. 124-25). No capítulo 7, Lean [DR] o Chevitarese (UFRRJ) considera o emblemático tema do lugar ocupado pela eudemonologia nos escritos de Schopenhauer. Em vista de problematizar como, não obstante o eminente ponto de vista metafísico deste pensamento, ainda restaria ao indivíduo uma “liberdade para a prática de vida”. Pelo reconhecimento de que o filósofo apresenta a possibilidade de uma orientação eudemonológica para se enfrentar o “mal de viver”, Chevitarese vai buscar – numa análise sobremaneira contrastante com aquela apresentada por Jarlee Salviano, já mencionada acima – um posicionamento diante da presença de uma postura positiva frente à existência, com o fito de compreender a proposta dessa “orientação de conduta” em face da recusa do pensador ao livre-arbítrio.

Com este nível de reflexão e problematização, a obra Arthur Schopenhauer no Brasil segue dispondo de várias outras análises não menos importantes que as mencionadas até aqui. Podemos resumir da seguinte forma os temas elegidos pelos demais autores: o professor Eduardo de Siqueira (UFRRJ), tendo por base a sempre indicada, mas quase constantemente evitada influência de Schopenhauer no pensamento de Wittgenstein, intenta circunscrever a ampla questão da influência do primeiro sobre certos rumos da filosofia contemporânea, assim como indicar alguns pontos sobre os quais ele incide. Por sua vez, o professor Kleverton Bacelar (UFBA) apresenta uma importante reflexão sobre a quarta motivação na psicologia do filósofo germânico, a saber, a motivação ascética, da “dor própria”, como última mola propulsora da ação humana, tema que dá muito que pensar enquanto consequência sistemática dessa filosofia, já que se somaria às três conhecidas motivações (egoísmo, maldade e compaixão) apresentadas em Sobre o fundamento da moral. O professor Jorge Miranda de Almeida (UESB), no capítulo intitulado A existência e as situações limites em Kierkegaard e Schopenhauer, objetiva demonstrar como os dois pensadores tecem suas críticas aos idealistas a partir de uma convicção em comum, a de que “o homem não pode ser reduzido a uma compreensão conceitual de si mesmo, mas o lançar-se, o debruçar-se sobre si mesmo para que a existência não seja apenas folhas mortas (…)” (p. 199).

Além disso, o livro apresenta também vários textos de pós-graduandos (a maioria deles doutorandos e alguns docentes em respeitadas Universidades do país), que desenvolvem suas pesquisas a partir do pensamento schopenhaueriano no Brasil, os quais elencamos aqui, seguindo a ordem disposta pela obra. Vilmar Debona (USP/PUCPR), em A noção de caráter adquirido: uma “liberdade” pela sabedoria de vida, problematiza a possibilidade de uma “liberdade” no âmbito da sabedoria de vida devido à “margem de manobra” que o indivíduo ainda pode obter mediante a noção de caráter adquirido. Dax Moraes (UERN), em A afirmação da vontade-de-viver no suicídio: a vida como representação, analisa em que medida o ato do suicídio, no pensamento schopenhaueriano, não se confunde com a negação da vontade-de-viver, sendo aquele um “não” negativo à vida, contrariamente ao “não” positivo da negação da vontade, esta independente da influência dos motivos exteriores. Daniel Quaresma Soares (USP), em seu capítulo intitulado O indivíduo como sofrimento, a arte como libertação, tece considerações pontuais sobre a metafísica schopenhaueriana do belo. Katia Santos (USP), em A liberdade no pensamento de Schopenhauer, considera, com olhar minucioso, como a liberdade é tema incisivo em diversos âmbitos dessa filosofia. Catarina Rochamonte (UFRN), em A vontade como atividade, investiga como a noção fundamental de Vontade presentifica-se de forma multifacetada em outras noções, como a autoconsciência, a causalidade e o caráter. Marcelo Santos (UFPB), no capítulo O tao da vontade: breve estudo comparativo entre a negação da vontade e a não-ação, analisa “alguns elementos dos escritos taoístas que apresentam forte parentesco ou eco com conceitos importantes da filosofia (…) schopenhaueriana” (p. 329). Marcio Quirino (UFPB), em O aspecto místico da metafísica do belo, apresenta uma investigação sobre alguns aspectos do estatuto do “místico” em Schopenhauer, detendo-se na argumentação sobre como a metafísica do belo angaria um desses aspectos. Mariana Poyares (USP), em O mundo no espelho: Schopenhauer, Borges e o idealismo, aponta “como o idealismo construído por Borges sobre tantos alicerces (…) compartilha com o idealismo schopenhaueriano características fundamentais”. Por fim, Carlos Hugo da Silva (UFPB), em A crítica de Schopenhauer à obscura filosofia dos idealistas, analisa em que medida Schopenhauer, ao tecer suas críticas contra os idealistas alemães, empreende-as mediante a estratégia de apontar problemas nas questões clássicas da filosofia, tanto no que respeita à teoria do conhecimento, à filosofia da natureza, quanto à ética e ao método de transmissão de argumentos filosóficos.

Ao rememorar os 150 anos da morte de Arthur Schopenhauer, a obra aqui resenhada acaba por espelhar parte significativa das pesquisas em torno desse pensamento no Brasil. Agradecendo a iniciativa e o trabalho do professor Redyson frente à organização deste livro, desejamos a todos os pesquisadores, leitores e admiradores do pensamento schopenhaueriano uma profícua leitura.

Notas

1 É importante notar que a Sociedade Schopenhauer do Brasil, atualmente presidida pela introdutora dos estudos sobre o pensador alemão nas universidades brasileiras, a professora Maria Lúcia Cacciola (USP), mantém constantes cooperações com a Schopenhauer-Gesellschaft da Alemanha (esta que completou seu primeiro centenário de existência em 2011 e cujo fundador foi o amigo de Frie [DR] ich Nietzsche, Paul Deussen). Assim, a exemplo das seções italiana e japonesa desta renomada organização alemã, a seção brasileira da mencionada Sociedade está incorporando cada vez mais professores pesquisadores de modo a num âmbito tão duramente criticado pelo filósofo, o acadêmico – fazer ecoar, enquanto debate filosófico, o tratamento dos grandes temas com os quais o pensador se ocupou. De forma geral, podemos afirmar que, antes dessa crescente recepção universitária em terras tupiniquins, a filosofia schopenhaueriana parecia se resumir às investidas da literatura machadiana. Hoje, porém, as Memórias póstumas de Brás Cubas estão longe de serem referência necessária quando queremos notar a presença e a influência de Schopenhauer em nosso país.

Vilmar Debona – Doutorando em Filosofia pela USP. Professor na PUC-PR. Bolsista CAPES na Università degli Studi del Salento (Lecce, Itália). E-mail: [email protected]

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A ideia de justiça em Schopenhauer – CARDOSO (V-RIF)

CARDOSO, Renato César. A ideia de justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. Resenha de: ALMEIDA, Juliana Fischer de. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.2, n.1, p.129-133, 2011.

No rol das preocupações centrais de Arthur Schopenhauer não se encontra a filosofia do direito; o pensador sempre tratou do tema de maneira periférica em seus escritos. Contudo, é possível se pensar num sistema jusfilosófico no interior desse pensamento. O livro A ideia de justiça em Schopenhauer, de autoria do professor do Programa de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, Renato César Cardoso, tem como principal intuito buscar especificar justamente tal sistema em Schopenhauer, a partir da seguinte problemática: “como compreende Schopenhauer os conceitos de justiça e de direito, quais as relações que se estabelecem entre ambos, bem como entre esses e o restante de sua doutrina? Como se estruturaria uma filosofia do direito de matiz schopenhaueriana” (p.23)?

O fio condutor do pensamento do autor em vista da problemática acima perpassa, primeiramente, os conceitos de representação e de vontade. Em seguida, define a questão da justiça/injustiça, abordando os questionamentos morais; e, por fim, aborda temas como o direito de propriedade, a finalidade do Estado e o direito de punir do mesmo, contemplando novamente os aspectos morais da discussão.

Na primeira parte do livro, intitulada O mundo como representação, Cardoso analisa um dos conceitos centrais do pensador alemão, a representação:

Todo o mundo conforme o conhecemos, no tempo, no espaço, submetido inapelavelmente ao princípio da causalidade, tudo isso é representação para o sujeito que conhece, e nada mais. Tudo o que conhecemos empiricamente, tudo nos é dado apreender pela sensibilidade, nos é dado de forma condicionada, sob o princípio da razão e submetido àquelas suas formas às quais já nos referimos – tempo, espaço e causalidade (p. 51).

A representação tem como pressupostos as formas a priori (tempo, espaço e causalidade), um sujeito que conhece, mas é incognoscível, e o objeto que é conhecido. O mundo é revelado como uma representação individual, pessoal, é conhecido por nós, não existe por si só. Assim, é a própria representação que pressupõe o sujeito e o objeto. Como fechamento da abordagem sobre a representação, o autor aduz à questão do princípio de razão suficiente proposta por Schopenhauer, que consiste, resumidamente, em quatro raízes de ligações entre as representações: “a causalidade física, as relações matemáticas, o enlace lógico e a lei da motivação, relativa aos seres vivos” (p.67). Somente a partir desses critérios é possível supor um indivíduo e o distinguir dos demais seres.

Na segunda parte da obra, O mundo como vontade, o autor se detém ao exame da ampla noção da vontade em Schopenhauer. Para se ter acesso à autêntica realidade do mundo enquanto coisa-em–si, não se pode seguir pelo fio dos componentes da representação, mas considerar um outro “como” (als), independente das limitações representacionais, a saber, a vontade, o princípio impulsionador do mundo. Esta não se submete às leis da razão, não é passível de ser detalhadamente conceituada, está em todas as partes, é atemporal, una, imutável, não está condicionada por uma causalidade, é livre e tem por finalidade exclusiva o querer incessante. Portanto, a vontade se determina pela via negativa. Ao final da análise sobre a vontade, Cardoso aventa algumas indagações que se ligam à temática proposta no livro: como a vontade, definida por este conceito, afeta o homem, seu modo de agir e de ver o mundo? Como compreender a moral, o direito e a justiça partindo-se de semelhante formulação?

Para responder a essas questões, o autor parte da abordagem da liberdade da vontade em Schopenhauer. Há três tipos de liberdade: física, intelectual e moral. No âmbito da primeira, pode-se entender a liberdade como a ausência de impedimento de ordem material, obedecendo somente à vontade. Neste tipo de liberdade o que está em jogo é a ação, em que o homem é livre quando capaz de agir pela sua própria vontade. Segundo o autor, o problema da questão não reside, contudo, na ação, mas na liberdade da vontade, fazendo o seguinte questionamento: “podemos obviamente fazer o que queremos, mas será possível também, por sua vez, querer o que queremos” (p.85)?

O autor frisa que na liberdade da vontade não se aplica o princípio de razão, logo no mundo da representação inexiste liberdade, pois há causalidade que determina a conduta. Assim, somente no campo da vontade é que a liberdade se faz presente. De acordo com Cardoso, Schopenhauer rompe com a tradição racionalista, a qual fundamentava a liberdade como uma condição racional, visto que o intelecto – representação – é subjugado pela vontade – essência. Para finalizar, “o indivíduo faz o que quer, sempre, porque é já objetivação de sua vontade, é a própria expressão do seu querer, dessa vontade” (p.89). Assim, respondendo à pergunta sobre se é possível querer o que queremos, a resposta é afirmativa, pois, uma vez que a liberdade reside na própria vontade e o ser humano é a manifestação fenomenal desta, a “vontade não determina o ato do homem, ela é o seu ato” (p.89).

Antes de abordar especificamente a temática proposta no livro, sobre a justiça, Cardoso investiga alguns aspectos da questão moral para, a partir disso, poder determinar o que é justiça/injustiça, o direito de propriedade, a fundamentação do Estado e seu direito de punir em Schopenhauer. No que tange à moral, Schopenhauer critica Kant e desenvolve sua própria teoria, refutando o aspecto racional como fundamentação para a ação moral. Segundo o autor,

O que caracteriza o ato moral, virtuoso, ensina Schopenhauer, é exatamente o contrário do que propunha Kant, é o amor, a compaixão, o compadecer-se […]. Não é na aridez e na frieza da racionalidade que se encontra o fundamento da moralidade, mas sim, ensina Schopenhauer, no tomar para si, como seu, o sofrimento do outro (p. 101).

Assim, Cardoso frisa a proposição ética schopenhaueriana do “não faças mal a ninguém, mas antes ajuda a todos o quanto puderes” (p.107), sendo que existem dois graus para identificá-la: no primeiro deles se dá na medida em que a motivação moral é sobreposta aos interesses egoísticos (sentido negativo); no segundo, a moral leva o homem a agir em prol de outrem (sentido positivo). Desta feita, o autor destaca que no primeiro grau encontra-se a justiça e no segundo a caridade, tendo ambas por base a compaixão, na qual se assenta a natureza humana.

Abordada a questão da moral e como ela é o alicerce da justiça, passa-se a tema central da obra de Cardoso, qual seja, a justiça. Neste capítulo, a autor inicia destacando o que seria a ideia de justiça eterna em Schopenhauer, sendo entendida como aquela em que a realidade não necessita garantir os direitos individuais, como comumente a tradição a entende, pois tal espécie de justiça – metafísica- não se aplica ao mundo fenomenal regido pelo princípio de individuação. Um segundo desdobramento que o autor enfatiza a partir da justiça schopenhaueriana, é justamente a questão da injustiça.

A doutrina do direito de Schopenhauer, como ressalta o autor, se diferencia da kantiana, pois vincula o direito à ética, sendo esse o ponto de partida para se entender a noção de injustiça. Quando a vontade individual se sobrepõe ilegitimamente sobre a vontade de outrem, Schopenhauer a conceitua como um ato de injustiça. Cardoso apresenta as duas formas de manifestação da injustiça schopenhaueriana: a violência e a astúcia. A primeira ocorre sempre quando se afirma uma vontade sobre a outra, já a segunda forma se dá quando a injustiça é caracterizada pela anulação da vontade do outro e o reconhecimento somente da “minha” vontade, por meio da dissimulação, enganando o outro sobre sua vontade. Assim, a ideia de injustiça está intimamente ligada com a moral. Em seguida, o autor passa à análise da justiça e do direito.

A justiça, segundo elucida Cardoso, “é toda a ação que não transpassa a vontade na qual se manifesta, não negando a vontade em outro” (p.125). O autor afirma que em Schopenhauer existe a figura da legítima defesa, pois quando, mediante força impede-se que a vontade do agressor se imponha, não se comete um ato de injustiça, sendo, portanto, um ato justo. Desta feita, a justiça é a negação da injustiça. Por sua vez, o direito em Schopenhauer é o direito natural e não o positivo, anterior à constituição do Estado e atrelado à moral, sendo indissociáveis. No capítulo intitulado Do direito de propriedade e dos contratos, o autor encerra a questão da justiça/injustiça e se detém ao exame da propriedade e dos contratos. No que tange ao direito de propriedade em Schopenhauer, Cardoso afirma que este é um direito natural e deve ser protegido, mas ressalva que não é qualquer tipo de propriedade que deva ser protegida, mas somente aquela que é fruto do trabalho. A mera ocupação ou o direito ao primeiro ocupante não possuem fundamentação moral, portanto não são protegidas pelo direito.

Sobre os contratos, Cardoso sustenta que, em Schopenhauer, o descumprimento dos contratos é uma injustiça, pois engana a vontade, levando minha ação a ser diferente de minha vontade. A fundamentação dos contratos se aplica também ao contrato social, pactuado entre os governantes e governados. Dessa forma, chega-se ao último tópico da temática proposta pelo autor, a saber: a finalidade do Estado e o direito de punir do mesmo. No capítulo O Estado, Cardoso afirma:

O Estado, visto sob o prisma de Schopenhauer, é a decorrência natural da soma dos egoísmos racionalizados. Sua função primordial, o motivo pelo qual foi criado, é a prevenção da injustiça. Sua razão de ser principal é esta: o Estado não existe para punir a injustiça cometida, mas para prevenir que elas ocorram (p.137).

A teoria schopenhaueriana sobre a finalidade do Estado é inspirada em Hobbes, ambos descrentes da raça humana e partidários de governos “autoritários”. Assim, de acordo com autor, a função do Estado é negativa, pois evita os ataques externos – estrangeiros; internos – entre os cidadãos contra outros concidadãos; e protege contra os governantes – instauração do direito público e da separação dos poderes. No que se relaciona ao direito de punir do Estado, Cardoso ressalva que a responsabilidade não acontece por aquilo que se faz, mas por aquilo que se é, devido à questão da vontade livre, na medida em que, conforme já fora dito, a liberdade reside na vontade e não na razão. O direito em Schopenhauer, segundo Cardoso, atua sobre os motivos que agem sobre a vontade e não sobre a racionalidade. Por fim, destaca-se que a finalidade da punição é a prevenção e não a vingança, haja vista que a função do Estado é prevenir as injustiças.

O autor, na conclusão de seu livro, sublinha a importância do pensamento de Schopenhauer para se pensar um direito mais compassivo e menos racionalizado. Desse modo, o professor Renato César Cardoso propõe ao leitor uma importante reflexão do pensamento jurídico sob um autêntico viés filosófico. Rompendo, assim, com a tradição, instiga-nos a uma leitura mais pormenorizada de um tema pouco explorado do pensamento schopenhaueriano.

Juliana Fischer de Almeida – Mestranda em Filosofia pela PUC-PR.

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Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico – DEBONA (V-RIF)

DEBONA, Vilmar. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico. Prefácio de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: KLEIN, Glauber Cesar; SANTOS, Élcio José dos. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n 1, p, 151-159, 2010.

Podemos medir a excelência e a pertinência de um comentário filosófico, ou mesmo de uma obra filosófica, a partir de dois critérios essenciais: (i) a dificuldade do problema elegido para a investigação e (ii) a acuidade na execução do exame e da solução, contando aqui as categorias de clareza e elegância de exposição, rigor conceitual na análise e poder explicativo da análise do tema para o pensamento completo do autor. O livro de estreia de Vilmar Debona, Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, a nosso ver, contempla esses dois critérios de excelência e de pertinência. Vejamos de que modo.

I O jovem especialista em Schopenhauer, Vilmar Debona, atualmente doutorando do Departamento de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, autor, entre resenhas e artigos, de diversos trabalhos sobre Schopenhauer, lança agora o seu livro de estreia, Schopenhauer e as formas da razão, O teórico, o prático e o ético-místico. Resultado de sua pesquisa de mestrado pela PUCPR, defendida como dissertação em 2008, o livro apresenta uma versão retocada da Dissertação. A pertinência da publicação pode medir-se já pelo seu título, que anuncia um tema ao mesmo tempo sóbrio e provocativo. Sóbrio, pois indica um estudo temático preciso e técnico, sendo já por isso promissor à leitura dos estudiosos em Schopenhauer.

Provocativo, por destacar a pretensão de uma leitura reformadora da compreensão da crítica de Schopenhauer, esse celebrizado pensador irracionalista (seja como pessimista inveterado, seja como crítico visceral dos projetos racionalistas da tradição, abandonados, justamente, também pela influência do pensador da Vontade, do Corpo e do Sexo), ao conceito de razão.

Neste sentido, o de se engajar em uma interpretação do autor de O Mundo como vontade e como representação que reconsidera e revaloriza o papel da razão na filosofia de Schopenhauer, o autor coloca, por um lado, que “justificar a razão como secundária em relação ao entendimento e à Vontade, (…) eis um dos grandes propósitos da visão de mundo de Schopenhauer”, que, assim, traria à primeira página de sua agenda filosófica a tarefa de realizar “uma inversão na ordem das prioridades”, mostrando que “antes de um homem que pensa, o ser humano é um animal que quer” – e, nisto, estamos no ponto pacífico das interpretações schopenhauerianas –, e, por outro lado, anuncia o tema problemático de sua investigação, o de saber “como se comporta a razão no processo de sua própria descentralização”. Vejamos em detalhe a posição do problema.

A par da novitas schopenhaueriana, o primado da Vontade metafísica enquanto blosser blinder Drang, segundo a qual “a razão é deslocada para uma instância periférica em relação à centralidade que a história da filosofia lhe havia outorgado”, abrindo-se assim um espaço vazio a ser preenchido pela tese fundamental do pensamento de Schopenhauer, a saber, a identificação de uma Vontade cósmica com a coisa-em-si, portanto, com a consideração do significado metafísico do mundo, a questão posta pelo autor visa analisar em que medida e por quais caminhos a razão reaparece como faculdade fundamental para a negação continuada da Vontade: A alavanca impulsionadora desse estudo é, sobretudo, a afirmação de Schopenhauer de que na medida em que o santo ou o asceta alcança, de maneira excepcional, a total negação da Vontade, desabrocha com ela uma espécie de conhecimento do todo da vida, por sua vez detentor de uma índole intuitiva a ponto de se chegar a um conhecimento místico (p. 78).

II Para responder a questão que se coloca – reformulemo-la: Se, por um lado, a filosofia de Schopenhauer nos apresenta uma crítica radical e explícita ao conceito de razão, dimensionando-o inauditamente como secundário em relação a um princípio mais fundamental, o da Vontade, por outro lado, ela não parece desembocar em um irracionalismo completo, pois igualmente compreende a capacidade racional como essencial no registro ético-místico da viragem da Vontade como negação de si mesma –, Debona destrincha, do primeiro ao terceiro capítulos de seu comentário, a crítica negativa de Schopenhauer ao conceito de razão.

O primeiro capítulo, O entendimento e as representações intuitivas, detém-se no que podemos entender como o primeiro passo da crítica schopenhaueriana da razão: distinção entre razão e entendimento. Este é responsável por nossas representações intuitivas; aquela, pelas abstratas. Se o primeiro capítulo desce aos pormenores do tratamento schopenhaueriano das representações intuitivas, não sem destacar a importância para a compreensão do pensamento do filósofo do estatuto “intuitivista” das representações empíricas em particular, o segundo, Representações abstratas: a razão teórica, já trata diretamente da faculdade racional, em concreto da consideração da razão enquanto faculdade abstrata independente das intuições e do entendimento, ou, para usarmos o vocabulário preciso e claro de Debona, a razão em sua forma teórica. O segundo capítulo é importante, então, por iniciar propriamente a análise da crítica da razão em Schopenhauer.

O capítulo seguinte, intitulado A razão prática, avança na análise e no esclarecimento da segunda forma da razão no pensamento de Arthur Schopenhauer, a saber, a sua forma prática. Qual o limite e o alcance válido da razão em seu uso prático? Eis a questão. E aqui novamente encontramos uma leitura rigorosa, elegante e fina do comentador. Debona não se limita às análises dos textos pertinentes à razão prática presentes n’O mundo como vontade e como representação, na Crítica da filosofia kantiana e no Sobre o fundamento da moral; também esmiúça os caros (embora pouco lidos profundamente, e, por isso, menos frequentados) Aforismos para a sabedoria de vida. A lente minuciosa de Debona nos expõe, em primeiro lugar, “que a razão prática recebe um tratamento ‘diferenciado’ nos Aforismos para a sabedoria de vida”, pois nos outros três textos mencionados, ela aparecia “como algo que simplesmente advém da razão teórica como um distintivo dos homens com relação aos demais animais”, enquanto que nos Aforismos a faculdade racional em sua forma prática é, segundo o comentador, reavaliada, recebendo uma significação mais positiva: Conforme podemos identificar em textos da obra de maturidade do filósofo, especificamente no texto dos Aforismos, a razão prática permite compreender, por exemplo, a noção de “caráter adquirido” que pode ser tomada como a própria razão teórica associada à experiência do entendimento. Assim, a razão prática retém em máximas conceituais a experiência variegada de vida e, através da menção do caráter adquirido, passa-se a tomar essa forma da razão enquanto proporcionadora de uma sabedoria de vida, semelhante ao que indicavam os estóicos e epicuristas com as noções de eudaimonia e de justa medida (p. 26).

Isso dá muito que pensar – a razão, a princípio tangenciada para a periferia da explicação do mundo, seja em relação a seu papel na hierarquia das faculdades, a saber, como mero reflexo das representações do entendimento e da intuição, seja em relação ao papel que cumpre na explicação do significado do mundo, subalterna à Vontade, surge agora, nos Aforismos, portanto após 30 anos da primeira edição de O mundo como vontade e como representação, como “proporcionadora de uma sabedoria de vida”. Das sombras à “vida de modo mais agradável e feliz possível” 1.

III A investigação sobre o conceito de razão, e de suas formas dispostas de modo tripartite, avança para a consideração do papel da razão do ponto-de-vista estético. Neste sentido, o quarto capítulo do livro de Debona, Da possibilidade de uma razão ético mística, começa a tocar, pela análise da Objektität des Willes e da negação da vontade via intuição estética, na tópica mais preciosa de sua leitura, a terceira forma possível da razão, intitulada de modo feliz por forma ético-mística.

Retrilhando pontualmente a ordem argumentativa da exposição do pensamento de Schopenhauer disposta n’O mundo como vontade e como representação, Debona debruça-se agora na intuição estética “como a idéia de negação da Vontade em seu estágio mais primário” (p. 26). A arte nos oferece, diz Schopenhauer, reafirma Debona, o degrau necessário para se alcançar o que será, no quarto livro, o sentimento de compaixão e o “conhecimento do todo da vida, no âmbito da mística e da ascese”.

Cumpre aqui, portanto, mostrar em que medida a arte representa, para Schopenhauer, a experiência inicial de um ato ético e místico de desprendimento das vivências volitivas, primeiro deslocamento do puro sujeito do conhecimento das amarras do indivíduo concreto no mundo, que é em parte puro sujeito que conhece, em parte um corpo que quer e deseja. Ora, o que liga o tema próprio do livro de Debona – as três formas da razão no pensamento de Schopenhauer – à análise da estética schopenhaueriana só pode ser a explanação de qual forma (o que ela é e como se dá seu uso) da razão aparece como condição de explicação da experiência estética enquanto primeiro grau de negação da Vontade. Por isso, o autor é atento em iniciar aqui uma topografia da forma ético-mística da razão.

Em primeiro lugar, aprendemos que a terceira forma da razão é denominada ético-mística por comportar três características distintas, mas unificadas: A terceira forma da razão é ética porque se funda “em primeira instância, no próprio sentimento de compaixão”; mística, porque por ela chega-se ao “conhecimento do todo da vida, este tido como o grau máximo de (re)conhecimento de que a essência de todo ser é a mesma”; racional, porque ela é também, e só essa forma o é, Besonnenheit der Vernunft. A terceira forma da razão, a ético-mística, é ainda e talvez plenamente racional por mostrar-se necessária à permanência, “consciente e intencional” do estado ascético de negação da Vontade, e à “reconquista do conhecimento livre do principium individuatonis, atingido, em sua primeira vez, sem qualquer intenção, unmitellbar, imediatamente” (p. 27). Em outras palavras, salvo engano, a razão em sua terceira forma é ético-mística e só pode ser compreendida dessa forma porque atua no regime das condições de possibilidade da experiência ética (sentimento de compaixão, que, assim, só é possível por meio de uma viragem no sujeito, não mais ligado à sua individualidade, mas tão-somente ao seu distintivo estado de contemplação estética) e da experiência mística (lendo-se aqui ascese, negação da Vontade, que, por sua vez, só pode ser prolongada e definitivamente alcançada pela clarividência da razão). Se a estética, a ética e a mística, neste sentido, são desde o início devedoras da razão, mesmo em suas experiências imediatas, agora na última e mais profunda retomada da razão, como clarividência, a ascese em particular mostra-se indissociável, em sua demanda de totalidade e permanência, da capacidade racional. A razão em Schopenhauer passa assim, de acordo com a lição de Debona, da vacuidade de sua primeira forma, enquanto faculdade das representações abstratas, à plenitude de visão em sua terceira forma, enquanto faculdade da clarividência. Imperioso, então, é que detemo-nos agora na centralidade, para os propósitos da interpretação de Debona, do conceito de Besonnenheit der Vernunft.

IV Vilmar Debona, no último capítulo de seu livro, Resquícios da razão na negação total da vontade: a razão ético-mística, adentra “um terreno escorregadio e passível de interpretações diversas” (p. 27). Não obstante este comunicado de prudência, dado o piso traiçoeiro sobre o qual avança, o comentador segue firme em seu prumo interpretativo, mantendo a ousadia sem nunca patinar.

A introdução do conceito de clarividência da razão é o momento mais importante e instigante do livro de Debona, pois com ele funda-se definitivamente a viabilidade de uma forma ético-mística da razão em Schopenhauer. Isto porque a experiência da negação da vontade comporta, sem dúvida, um caráter intuitivo, imediato e singular, “que é estranha ao racional”. Se parássemos aqui, compraríamos a leitura tradicional de Schopenhauer, que Debona quer nos convencer, não dá conta da explicação da negação total da Vontade. Dito de outro modo: os intérpretes schopenhauerianos que não admitirem o papel da razão, em sua terceira forma, no coração do quarto livro de O mundo com vontade e como representação, devem se satisfazer com a explicação da ascese apenas em seu primeiro momento, fundado certamente na imediaticidade da intuição e do sentimento; mas, assim, negligenciar-se-ão e tornar-se-ão incapazes de explicar as passagens de Schopenhauer que apontam para a viabilidade de uma negação completa e acabada da negação da Vontade, pois esta só é possível pela admissão de uma terceira forma da razão, que comporta uma re-significação da faculdade racional, a saber, como capacidade humana de clarividência.

A razão, em sua primeira forma, limita-se a ser uma faculdade de ter representações abstratas, representações de representações; em sua segunda forma, como razão prática, conquista novo significado, nos Aforismos, o de ser um uso necessário para se alcançar a sabedoria de vida, verdadeira coleção de regras práticas que proporcionam uma vida menos insuportável, “algo preferível à não-existência” 2; por fim, em sua terceira forma, a ético-mística, eleva-se a razão à função de clarividência, necessária à “viragem completa da Vontade” 3, à “mortificação contínua da Vontade” 4. Movimento ascensional da faculdade racional na crítica schopenhaueriana da razão, ascensão do sujeito do estado de indivíduo volitivo, para o de contemplador desinteressado do mundo na estética, soerguendo-se ao sujeito fortuito negador da Vontade, para enfim realizar-se plenamente como negador total da Vontade na ascese. Ascensão do significado da razão através das passagens da primeira à segunda e, enfim, à terceira forma da razão, paralela à ascensão da negação da Vontade, nas passagens da estética para a ética e, por fim, à mística, ascensão igualmente do sujeito, nas passagens do sujeito enquanto indivíduo para o puro sujeito do conhecimento para, enfim, reencontrar-se e conhecer-se de modo completo como sujeito renunciante da vida. Com isto Debona amarra a crítica das formas da razão à exposição gradual das mudanças do sujeito e das formas de negação do querer, movimentos interligados que, assim considerados, dão acabamento à filosofia de Schopenhauer. O pensamento schopenhaueriano ganha assim clareza em relação à sua estrutura ascensional, sendo imperativo que passemos a ler a sua filosofia, em sua significação total, como a filosofia da ascese, em seu conteúdo e em sua forma.

Mas, afinal, o que é a Besonnenheit der Vernunft, esse conceito essencial à interpretação empreendida por Debona? Trata-se aqui de uma interpretação incontroversa? Os argumentos do comentador acerca da natureza de tal noção são irreprocháveis? Devemos comprá-la, tal como ela é explicada por Debona sem restrição? Segundo o autor, o conceito de clarividência da razão é condição da liberdade, uma vez que esta é entendida por Schopenhauer como um ato “possível somente no homem devido ao seu alcance de uma visão panorâmica da vida, do conhecimento do todo da vida”, e, assim, condição da própria negação consciente da Vontade: Dito de outro modo, o asceta, sujeito desse conhecimento, além de portador da liberdade em seu próprio corpo, é detentor de uma clarividência, ou seja, mediante o uso da razão ele tem claro o estado de sua rejeição, sabe que chegou a um estado significativo de negação de uma maneira intencional, insistindo contra seus próprios desejos, embora não tenha tomado isso como uma finalidade e um interesse predeterminados. Nota-se, a partir disso, o elemento que até aqui não havia sido indicado para a afirmação da razão ético-mística, ou seja, se até então se sabia do lado ético (a partir da noção de compaixão) e do lado místico (sobretudo pelos exemplos de ascetas e santos) agora se pode completar com o lado racional a partir da constatação dada pelo filósofo de que mesmo no processo de negação há um papel atuante da razão (p. 119).

Assim, a clarividência da razão é entendida como condição da liberdade, e, nesta medida, condição da negação consciente da Vontade e, por essas razões, tem de fazer parte da explicação do processo de negação, e mais, como condição essencial da consideração completa das formas da razão no pensamento de Schopenhauer. O caráter racional dessa clarividência é, ademais, facilmente defendido por se tratar de um saber necessário por parte daquele que alcança a significação última da existência, isto é, a negação completa e consciente deste mundo. Inseparáveis são, portanto, o aspecto ético, místico e racional dessa clarividência.

Mas como entender a fundo o caráter racional da clarividência, basta indicar a necessidade, para a “mortificação contínua da Vontade”, de um saber que é uma “visão panorâmica da vida”? E o que significa aqui, propriamente, uma “visão”? O termo clarividência, como tradução de Besonnenheit, não pode trair a significação largamente racional do conceito? Dito ainda de outro modo, não seria aconselhável depurar o campo semântico da palavra Besonnenheit, a fim de assim trazer ainda mais à luz o significado racional da clarividência? Os resenhadores entendem que sim, que o comentário de Debona teria ganhado muito se tivesse adentrado mais profundamente na problematização deste conceito fundamental. Neste sentido, cumpriria questionar o acento demasiado enfático do caráter místico na tradução do termo Besonnenheit por clarividência. Onde está, afinal, a indicação de um sentido místico na palavra Besonnenheit? Não é muito mais forte nela a idéia de clareza? Não está dada em sua origem etimológica, assim como em seu campo semântico, uma união mais estreita com os conceitos, schopenhauerianos, de Bewusstsein, besseres Bewusstsein, Bewusstseinlos, Selbstbewusstsein, Einsicht, Sichtbarkeit, Spiegel e Gewissen? 5 A falta de um tratamento mais demorado acerca do conceito de Besonnenheit, com o objetivo de tornar mais claras as suas ligações com os demais conceitos schopenhauerianos próximos do seu sentido enquanto forma da razão responsável por uma maior claridade, consciência, reflexão e compreensão, em nada desmerece, todavia, o belo e rigoroso trabalho de Vilmar Debona, preocupado e bem-sucedido sobretudo na tarefa de trazer à luz a presença e a importância fundamental de uma terceira forma da razão no pensamento de Arthur Schopenhauer, a razão ético-mística. Esperamos, sim, a continuidade da investigação, de modo a esclarecer ainda mais o conceito de Besonnenheit der Vernunft; mas, enquanto ela não se realiza, aproveitamos a lição dada até aqui.

V Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, o livro de estreia do jovem especialista Vilmar Debona, tem o poder de tornar a nossa leitura do quarto livro de O mundo como vontade e como representação mais clara, profunda e instigante. Leitores, eis o convite para um Schopenhauer mais complexo e atual.

Notas

1 SCHOPENHAUER, aforismos para a sabedoria de vida, p. 1, apud DEBONA, v. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, p. 58.

2 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 1, apud DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão, O teórico, o prático e o ético-místico, p. 58.

3 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 121.

4 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como representação, p. 484, apud DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, p. 116.

5 Neste sentido de problematizar a ênfase interpretativa na tradução do termo Besonnenheit, cabe lembrar que o termo aparece traduzido, em português, também por reflexão, cf. Cacciola, M. L. M. e O Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 27.

Referências

SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Ed. Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, 5 vols.

________________. O mundo como Vontade e como representação. Trad. J. Barboza. São Paulo: Unesp, 2005. ________________. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. J. Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (Coleção Clássicos). ________________. Sobre o fundamento da moral. Trad. M. L. Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Coleção Clássicos). BARBOZA, J. Modo de conhecimento estético e mundo em Schopenhauer. In: TRANS/FORM/AÇÃO: Revista de Filosofia / Universidade Estadual Paulista. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, pp. 33-42, 2006. ________________. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. CACCIOLA, M. L. M. e O. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

Glauber Cesar Klein – Mestrando em Filosofia – UFPR.

Élcio José dos Santos – Mestrando em Filosofia – UFPR. Acessar publicação original

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Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve. Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista. João Pessoa: Editora Idéia, 2009. Resenha de: SANTOS, Marcelo. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n.1, p.160-162, 2010.

Tratar de um modo de pensar pessimista é tarefa que exige, além de ampla  erudição, um peculiar entusiasmo. O pessimismo metafísico esmiuçado pelo professor  doutor Deyve Redyson, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade  Federal da Paraíba, nas páginas de seu livro Metafísica do sofrimento do mundo: o  pensamento filosófico pessimista, evoca um filosofar livre de ranços tradicionalistas e  ‘manualescos’. Nesse sentido, pensar o aspecto péssimo da existência humana no  mundo é encarar o desafio do transcendental e do ôntico, olhando pelo prisma de uma  categoria filosófica que vem se mostrando extremamente poderosa, principalmente após  a contraproposta de Schopenhauer ao parecer otimista de Leibniz acerca de nossas  vivências e de nosso mundo. Contudo, o livro em questão buscou expressões  pessimistas já na sua gênese grega e perpassou as épocas da filosofia de uma maneira  crítica e direta, isto é, não se deteve, senão naquilo que era indispensável e digno de  nota. De Lichtenberg e Leopardi, a Unamuno e Cioran, nenhum grande vulto do  pensamento foi deixado de fora, no que tange à temática do presente discurso que aspira  decifrar o enigma do mundo a partir do sofrimento universal, examinando o sentido  trágico da existência e a filosofia debruçada sobre a dor. De fato também este livro  surge como o primeiro texto sobre os autores pessimistas em conjunto, antes os que  pretendiam estudar o pessimismo filosófico teriam que vasculhar as obras dos referidos  autores e neste livro podemos visualizar um conjunto de textos que dão uma boa  introdução ao tema, além de apresentar uma bibliografia ampla sobre o assunto em  língua alemã, inglesa e espanhola.

Mas, porque o mundo sofre e o quê é sofrer? Como conceituar a dor, esta  suprema positividade num mundo que tenta inutilmente negá-la? São questões que se  apresentam no livro.

Como se pode notar, o leitor terá pela frente exposição clara de uma  problemática fulcral da filosofia de todas as épocas. Contudo, não deverá olvidar-se de  que, a clareza, neste caso, não implicará em mero utilitarismo prático, uma vez que o  assunto pode ser um tanto paradoxal, estratosférico, impalpável e indigesto para muitos.

Talvez, sobre isto, dispararia Nietzsche: filosofia é para espíritos ruminantes. No  melhor sentido deste ruminar, somos incitados aqui a nos informar melhor sobre o  assunto e a refletir sobre o sentido do sofrer que salta do texto e que pode nos atingir de  cheio, que sai do meramente literal, formal e acadêmico e pode nos inquietar.

Felicidade, salvação, liberdade, deixar de sofrer! Mas como, sem recorrer a  vivências estritamente ritualísticas, religiosas e espiritualistas? O modo pessimista de  filosofar pode parecer cruento, duro, insípido, desértico e os filósofos evocados nesta  obra podem, igualmente, parecerem monstros aterradores da maldade, escritores sem  prazer e sem coração. Isto, numa primeira abordagem, caso se trate de leitor ainda pouco  acostumado ao estilo desafiador dos vários pensadores chamados ao debate aqui, alguns  ainda “marginais” ou pouco famosos. Contudo, o mais importante jamais deixará de  estar em evidência ao longo do texto, isto é, a matéria central, a “massa crítica”: uma  ciência de primeiros princípios, neste caso, ciência do sofrimento universal, ciência que  independe de cálculos e de aparelhos para auferir graus, repetições do mesmo fenômeno  e/ou coisas afins.

Não será exagero constatar que o livro supera a proposta inicial de fazer um  apanhado histórico-filosófico representante das inúmeras significâncias do pessimismo,  pois o texto se conecta a outras áreas de especulação que consideram a dolorosa  condição humana na existência, a saber: psicologia, antropologia teológico-filosófica e  de aspectos sociológicos daquela condição.

Em um pano de fundo tão péssimo, o desespero surge ameaçador e como que  inevitável. Com ele assomam o sentimento de angústia e a iminência do niilismo. A  moral tradicional é afrontada e os fundamentos éticos de uma visão de mundo ótimo e  iluminado pela razão são ridicularizados em várias vozes, em diversos estilos de  escrever filosofia trágica, pensamentos que denunciam a decadência do homem em seu  mundo ilusório de opiniões e perspectivas turvadas pelo engodo de Maia.

Por fim, a morte desponta como o grande prêmio ao fim de uma existência sob  o sol, mas, paradoxalmente sombria. Como se o filosofar in toto, fosse incapaz de  superar sua natureza de nada saber e nada ser além de preparação para o fim dessa vida  de andanças do pó sobre o pó, nessa infinitude sempre amparada pela finitude de todo e  de cada homem doente.

Resenhar uma obra que já foi muito bem introduzida de forma sumária por seu  autor pode soar como um correr atrás do vento. Por isto, estas palavras pretendem tão  somente destacar alguns nuances mais atrativos, pinçar alguns aspectos do rico material  constituinte da Metafísica do Sofrimento do Mundo de modo a, sem ser repetitivo e sem  antecipar grosseiramente as inúmeras passagens surpreendentes e reveladoras, dar o tom  específico e uma prova do teor filosófico atual e relevante que o pessimismo metafísico  vem propondo crescentemente ao pensamento e ao mundo contemporâneos, isto é, uma  proposta de como enfrentar a vida de forma desperta e amadurecida, rejeitando  “filosofias” infantilizadas e fórmulas ilusórias de viver e de morrer imerso na eterna  consciência de rebanho.    Quem encara intermitentemente o pior estado de coisas, com naturalidade  saberá como ninguém fruir, ainda que fugazmente, qualquer melhoria fortuita. Portanto,  filosofia pessimista, pessimismo bíblico, pessimismo metafísico, pessimismo prático,  pessimismo absoluto e melancolia, são exemplos de categorias filosóficas que devem  ser examinadas com cautela ao logo do texto do professor Deyve Redyson, de modo a  não incorrer o leitor em pré-conceituações sempre desfavoráveis à salutar e prudente  reflexão filosófica que este livro propõe.

Marcelo Santos – Mestre em Filosofia – UFPB.

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Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico – DEBONA (V-RIF)

DEBONA, Vilmar. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico. Prefácio de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: KLEIN, Glauber Cesar; SANTOS, Élcio José dos. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n.1, p.151-159, 2010.

Podemos medir a excelência e a pertinência de um comentário filosófico, ou  mesmo de uma obra filosófica, a partir de dois critérios essenciais: (i) a dificuldade do  problema elegido para a investigação e (ii) a acuidade na execução do exame e da  solução, contando aqui as categorias de clareza e elegância de exposição, rigor  conceitual na análise e poder explicativo da análise do tema para o pensamento  completo do autor. O livro de estreia de Vilmar Debona, Schopenhauer e as formas da  razão: o teórico, o prático e o ético-místico, a nosso ver, contempla esses dois critérios  de excelência e de pertinência. Vejamos de que modo.

I O jovem especialista em Schopenhauer, Vilmar Debona, atualmente doutorando  do Departamento de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo e professor do  Departamento de Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do  Paraná, autor, entre resenhas e artigos, de diversos trabalhos sobre Schopenhauer, lança  agora o seu livro de estreia, Schopenhauer e as formas da razão, O teórico, o prático e  o ético-místico. Resultado de sua pesquisa de mestrado pela PUCPR, defendida como  dissertação em 2008, o livro apresenta uma versão retocada da Dissertação.    A pertinência da publicação pode medir-se já pelo seu título, que anuncia um  tema ao mesmo tempo sóbrio e provocativo. Sóbrio, pois indica um estudo temático  preciso e técnico, sendo já por isso promissor à leitura dos estudiosos em Schopenhauer.

Provocativo, por destacar a pretensão de uma leitura reformadora da compreensão da  crítica de Schopenhauer, esse celebrizado pensador irracionalista (seja como pessimista  inveterado, seja como crítico visceral dos projetos racionalistas da tradição,  abandonados, justamente, também pela influência do pensador da Vontade, do Corpo e  do Sexo), ao conceito de razão.

Neste sentido, o de se engajar em uma interpretação do autor de O Mundo como  vontade e como representação que reconsidera e revaloriza o papel da razão na filosofia  de Schopenhauer, o autor coloca, por um lado, que “justificar a razão como secundária  em relação ao entendimento e à Vontade, (…) eis um dos grandes propósitos da visão de  mundo de Schopenhauer”, que, assim, traria à primeira página de sua agenda filosófica a  tarefa de realizar “uma inversão na ordem das prioridades”, mostrando que “antes de um  homem que pensa, o ser humano é um animal que quer” – e, nisto, estamos no ponto  pacífico das interpretações schopenhauerianas –, e, por outro lado, anuncia o tema  problemático de sua investigação, o de saber “como se comporta a razão no processo de  sua própria descentralização”. Vejamos em detalhe a posição do problema.

A par da novitas schopenhaueriana, o primado da Vontade metafísica enquanto  blosser blinder Drang, segundo a qual “a razão é deslocada para uma instância  periférica em relação à centralidade que a história da filosofia lhe havia outorgado”,  abrindo-se assim um espaço vazio a ser preenchido pela tese fundamental do  pensamento de Schopenhauer, a saber, a identificação de uma Vontade cósmica com a  coisa-em-si, portanto, com a consideração do significado metafísico do mundo, a  questão posta pelo autor visa analisar em que medida e por quais caminhos a razão  reaparece como faculdade fundamental para a negação continuada da Vontade:    A alavanca impulsionadora desse estudo é, sobretudo, a afirmação de Schopenhauer de que na medida em que o santo ou o asceta alcança, de maneira excepcional, a total negação da Vontade, desabrocha com ela uma espécie de conhecimento do todo da vida, por sua vez detentor de uma índole intuitiva a ponto de se chegar a um conhecimento místico (p. 78).

II   Para responder a questão que se coloca – reformulemo-la: Se, por um lado, a  filosofia de Schopenhauer nos apresenta uma crítica radical e explícita ao conceito de  razão, dimensionando-o inauditamente como secundário em relação a um princípio mais  fundamental, o da Vontade, por outro lado, ela não parece desembocar em um  irracionalismo completo, pois igualmente compreende a capacidade racional como  essencial no registro ético-místico da viragem da Vontade como negação de si mesma –,  Debona destrincha, do primeiro ao terceiro capítulos de seu comentário, a crítica  negativa de Schopenhauer ao conceito de razão.

O primeiro capítulo, O entendimento e as representações intuitivas, detém-se no  que podemos entender como o primeiro passo da crítica schopenhaueriana da razão:  distinção entre razão e entendimento. Este é responsável por nossas representações  intuitivas; aquela, pelas abstratas. Se o primeiro capítulo desce aos pormenores do  tratamento schopenhaueriano das representações intuitivas, não sem destacar a  importância para a compreensão do pensamento do filósofo do estatuto “intuitivista” das  representações empíricas em particular, o segundo, Representações abstratas: a razão  teórica, já trata diretamente da faculdade racional, em concreto da consideração da  razão enquanto faculdade abstrata independente das intuições e do entendimento, ou,  para usarmos o vocabulário preciso e claro de Debona, a razão em sua forma teórica. O  segundo capítulo é importante, então, por iniciar propriamente a análise da crítica da  razão em Schopenhauer.

O capítulo seguinte, intitulado A razão prática, avança na análise e no  esclarecimento da segunda forma da razão no pensamento de Arthur Schopenhauer, a  saber, a sua forma prática. Qual o limite e o alcance válido da razão em seu uso prático?  Eis a questão. E aqui novamente encontramos uma leitura rigorosa, elegante e fina do  comentador. Debona não se limita às análises dos textos pertinentes à razão prática  presentes n’O mundo como vontade e como representação, na Crítica da filosofia  kantiana e no Sobre o fundamento da moral; também esmiúça os caros (embora pouco  lidos profundamente, e, por isso, menos frequentados) Aforismos para a sabedoria de  vida. A lente minuciosa de Debona nos expõe, em primeiro lugar, “que a razão prática  recebe um tratamento ‘diferenciado’ nos Aforismos para a sabedoria de vida”, pois nos  outros três textos mencionados, ela aparecia “como algo que simplesmente advém da  razão teórica como um distintivo dos homens com relação aos demais animais”,  enquanto que nos Aforismos a faculdade racional em sua forma prática é, segundo o  comentador, reavaliada, recebendo uma significação mais positiva:    Conforme podemos identificar em textos da obra de maturidade do filósofo, especificamente no texto dos Aforismos, a razão prática permite compreender, por exemplo, a noção de “caráter adquirido” que pode ser tomada como a própria razão teórica associada à experiência do entendimento. Assim, a razão prática retém em máximas conceituais a experiência variegada de vida e, através da menção do caráter adquirido, passa-se a tomar essa forma da razão enquanto proporcionadora de uma sabedoria de vida, semelhante ao que indicavam os estóicos e epicuristas com as noções de eudaimonia e de justa medida (p. 26).

Isso dá muito que pensar – a razão, a princípio tangenciada para a periferia da  explicação do mundo, seja em relação a seu papel na hierarquia das faculdades, a saber,  como mero reflexo das representações do entendimento e da intuição, seja em relação ao  papel que cumpre na explicação do significado do mundo, subalterna à Vontade, surge  agora, nos Aforismos, portanto após 30 anos da primeira edição de O mundo como  vontade e como representação, como “proporcionadora de uma sabedoria de vida”. Das sombras à “vida de modo mais agradável e feliz possível” 1.

III   A investigação sobre o conceito de razão, e de suas formas dispostas de modo  tripartite, avança para a consideração do papel da razão do ponto-de-vista estético. Neste  sentido, o quarto capítulo do livro de Debona, Da possibilidade de uma razão ético mística, começa a tocar, pela análise da Objektität des Willes e da negação da vontade  via intuição estética, na tópica mais preciosa de sua leitura, a terceira forma possível da  razão, intitulada de modo feliz por forma ético-mística.

Retrilhando pontualmente a ordem argumentativa da exposição do pensamento  de Schopenhauer disposta n’O mundo como vontade e como representação, Debona  debruça-se agora na intuição estética “como a idéia de negação da Vontade em seu  estágio mais primário” (p. 26). A arte nos oferece, diz Schopenhauer, reafirma Debona,  o degrau necessário para se alcançar o que será, no quarto livro, o sentimento de  compaixão e o “conhecimento do todo da vida, no âmbito da mística e da ascese”.

Cumpre aqui, portanto, mostrar em que medida a arte representa, para  Schopenhauer, a experiência inicial de um ato ético e místico de desprendimento das  vivências volitivas, primeiro deslocamento do puro sujeito do conhecimento das  amarras do indivíduo concreto no mundo, que é em parte puro sujeito que conhece, em  parte um corpo que quer e deseja. Ora, o que liga o tema próprio do livro de Debona –  as três formas da razão no pensamento de Schopenhauer – à análise da estética  schopenhaueriana só pode ser a explanação de qual forma (o que ela é e como se dá seu  uso) da razão aparece como condição de explicação da experiência estética enquanto  primeiro grau de negação da Vontade. Por isso, o autor é atento em iniciar aqui uma  topografia da forma ético-mística da razão.

Em primeiro lugar, aprendemos que a terceira forma da razão é denominada  ético-mística por comportar três características distintas, mas unificadas: A terceira  forma da razão é ética porque se funda “em primeira instância, no próprio sentimento de  compaixão”; mística, porque por ela chega-se ao “conhecimento do todo da vida, este  tido como o grau máximo de (re)conhecimento de que a essência de todo ser é a  mesma”; racional, porque ela é também, e só essa forma o é, Besonnenheit der  Vernunft. A terceira forma da razão, a ético-mística, é ainda e talvez plenamente  racional por mostrar-se necessária à permanência, “consciente e intencional” do estado  ascético de negação da Vontade, e à “reconquista do conhecimento livre do principium  individuatonis, atingido, em sua primeira vez, sem qualquer intenção, unmitellbar,  imediatamente” (p. 27). Em outras palavras, salvo engano, a razão em sua terceira forma  é ético-mística e só pode ser compreendida dessa forma porque atua no regime das  condições de possibilidade da experiência ética (sentimento de compaixão, que, assim,  só é possível por meio de uma viragem no sujeito, não mais ligado à sua  individualidade, mas tão-somente ao seu distintivo estado de contemplação estética) e  da experiência mística (lendo-se aqui ascese, negação da Vontade, que, por sua vez, só  pode ser prolongada e definitivamente alcançada pela clarividência da razão). Se a  estética, a ética e a mística, neste sentido, são desde o início devedoras da razão, mesmo  em suas experiências imediatas, agora na última e mais profunda retomada da razão,  como clarividência, a ascese em particular mostra-se indissociável, em sua demanda de  totalidade e permanência, da capacidade racional. A razão em Schopenhauer passa  assim, de acordo com a lição de Debona, da vacuidade de sua primeira forma, enquanto  faculdade das representações abstratas, à plenitude de visão em sua terceira forma,  enquanto faculdade da clarividência. Imperioso, então, é que detemo-nos agora na  centralidade, para os propósitos da interpretação de Debona, do conceito de  Besonnenheit der Vernunft.

IV   Vilmar Debona, no último capítulo de seu livro, Resquícios da razão na negação  total da vontade: a razão ético-mística, adentra “um terreno escorregadio e passível de  interpretações diversas” (p. 27). Não obstante este comunicado de prudência, dado o  piso traiçoeiro sobre o qual avança, o comentador segue firme em seu prumo  interpretativo, mantendo a ousadia sem nunca patinar.

A introdução do conceito de clarividência da razão é o momento mais  importante e instigante do livro de Debona, pois com ele funda-se definitivamente a  viabilidade de uma forma ético-mística da razão em Schopenhauer. Isto porque a  experiência da negação da vontade comporta, sem dúvida, um caráter intuitivo, imediato  e singular, “que é estranha ao racional”. Se parássemos aqui, compraríamos a leitura  tradicional de Schopenhauer, que Debona quer nos convencer, não dá conta da  explicação da negação total da Vontade. Dito de outro modo: os intérpretes  schopenhauerianos que não admitirem o papel da razão, em sua terceira forma, no  coração do quarto livro de O mundo com vontade e como representação, devem se  satisfazer com a explicação da ascese apenas em seu primeiro momento, fundado  certamente na imediaticidade da intuição e do sentimento; mas, assim, negligenciar-se-ão e tornar-se-ão incapazes de explicar as passagens de Schopenhauer que apontam para  a viabilidade de uma negação completa e acabada da negação da Vontade, pois esta só é  possível pela admissão de uma terceira forma da razão, que comporta uma re-significação da faculdade racional, a saber, como capacidade humana de clarividência.

A razão, em sua primeira forma, limita-se a ser uma faculdade de ter  representações abstratas, representações de representações; em sua segunda forma,  como razão prática, conquista novo significado, nos Aforismos, o de ser um uso  necessário para se alcançar a sabedoria de vida, verdadeira coleção de regras práticas que proporcionam uma vida menos insuportável, “algo preferível à não-existência” 2;  por fim, em sua terceira forma, a ético-mística, eleva-se a razão à função de clarividência, necessária à “viragem completa da Vontade” 3, à “mortificação contínua da Vontade” 4. Movimento ascensional da faculdade racional na crítica schopenhaueriana da razão, ascensão do sujeito do estado de indivíduo volitivo, para o de contemplador desinteressado do mundo na estética, soerguendo-se ao sujeito fortuito negador da Vontade, para enfim realizar-se plenamente como negador total da Vontade na ascese. Ascensão do significado da razão através das passagens da primeira à segunda e, enfim, à terceira forma da razão, paralela à ascensão da negação da Vontade, nas passagens da estética para a ética e, por fim, à mística, ascensão igualmente do sujeito, nas passagens do sujeito enquanto indivíduo para o puro sujeito do conhecimento para, enfim, reencontrar-se e conhecer-se de modo completo como sujeito renunciante da vida. Com isto Debona amarra a crítica das formas da razão à exposição  gradual das mudanças do sujeito e das formas de negação do querer, movimentos  interligados que, assim considerados, dão acabamento à filosofia de Schopenhauer. O  pensamento schopenhaueriano ganha assim clareza em relação à sua estrutura  ascensional, sendo imperativo que passemos a ler a sua filosofia, em sua significação  total, como a filosofia da ascese, em seu conteúdo e em sua forma.

Mas, afinal, o que é a Besonnenheit der Vernunft, esse conceito essencial à  interpretação empreendida por Debona? Trata-se aqui de uma interpretação  incontroversa? Os argumentos do comentador acerca da natureza de tal noção são  irreprocháveis? Devemos comprá-la, tal como ela é explicada por Debona sem  restrição?   Segundo o autor, o conceito de clarividência da razão é condição da liberdade,  uma vez que esta é entendida por Schopenhauer como um ato “possível somente no  homem devido ao seu alcance de uma visão panorâmica da vida, do conhecimento do  todo da vida”, e, assim, condição da própria negação consciente da Vontade:    Dito de outro modo, o asceta, sujeito desse conhecimento, além de portador da liberdade em seu próprio corpo, é detentor de uma clarividência, ou seja, mediante o uso da razão ele tem claro o estado de sua rejeição, sabe que chegou a um estado significativo de negação de uma maneira intencional, insistindo contra seus próprios desejos, embora não tenha tomado isso como uma finalidade e um interesse predeterminados. Nota-se, a partir disso, o elemento que até aqui não havia sido indicado para a afirmação da razão ético-mística, ou seja, se até então se sabia do lado ético (a partir da noção de compaixão) e do lado místico (sobretudo pelos exemplos de ascetas e santos) agora se pode completar com o lado racional a partir da constatação dada pelo filósofo de que mesmo no processo de negação há um papel atuante da razão (p. 119).

Assim, a clarividência da razão é entendida como condição da liberdade, e, nesta  medida, condição da negação consciente da Vontade e, por essas razões, tem de fazer  parte da explicação do processo de negação, e mais, como condição essencial da  consideração completa das formas da razão no pensamento de Schopenhauer. O caráter  racional dessa clarividência é, ademais, facilmente defendido por se tratar de um saber  necessário por parte daquele que alcança a significação última da existência, isto é, a  negação completa e consciente deste mundo. Inseparáveis são, portanto, o aspecto ético,  místico e racional dessa clarividência.

Mas como entender a fundo o caráter racional da clarividência, basta indicar a  necessidade, para a “mortificação contínua da Vontade”, de um saber que é uma “visão  panorâmica da vida”? E o que significa aqui, propriamente, uma “visão”? O termo  clarividência, como tradução de Besonnenheit, não pode trair a significação largamente  racional do conceito? Dito ainda de outro modo, não seria aconselhável depurar o  campo semântico da palavra Besonnenheit, a fim de assim trazer ainda mais à luz o  significado racional da clarividência? Os resenhadores entendem que sim, que o  comentário de Debona teria ganhado muito se tivesse adentrado mais profundamente na  problematização deste conceito fundamental. Neste sentido, cumpriria questionar o  acento demasiado enfático do caráter místico na tradução do termo Besonnenheit por  clarividência. Onde está, afinal, a indicação de um sentido místico na palavra  Besonnenheit? Não é muito mais forte nela a idéia de clareza? Não está dada em sua  origem etimológica, assim como em seu campo semântico, uma união mais estreita com  os conceitos, schopenhauerianos, de Bewusstsein, besseres Bewusstsein, Bewusstseinlos, Selbstbewusstsein, Einsicht, Sichtbarkeit, Spiegel e Gewissen? 5   A falta de um tratamento mais demorado acerca do conceito de Besonnenheit,  com o objetivo de tornar mais claras as suas ligações com os demais conceitos  schopenhauerianos próximos do seu sentido enquanto forma da razão responsável por  uma maior claridade, consciência, reflexão e compreensão, em nada desmerece, todavia,  o belo e rigoroso trabalho de Vilmar Debona, preocupado e bem-sucedido sobretudo na  tarefa de trazer à luz a presença e a importância fundamental de uma terceira forma da  razão no pensamento de Arthur Schopenhauer, a razão ético-mística. Esperamos, sim, a  continuidade da investigação, de modo a esclarecer ainda mais o conceito de  Besonnenheit der Vernunft; mas, enquanto ela não se realiza, aproveitamos a lição dada  até aqui.

V   Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, o  livro de estreia do jovem especialista Vilmar Debona, tem o poder de tornar a nossa  leitura do quarto livro de O mundo como vontade e como representação mais clara,  profunda e instigante. Leitores, eis o convite para um Schopenhauer mais complexo e  atual.

Notas

1 SCHOPENHAUER, aforismos para a sabedoria de vida, p. 1, apud DEBONA, v. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, p. 58.

2 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 1, apud DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão, O teórico, o prático e o ético-místico, p. 58.

3 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 121.

4 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como representação, p. 484, apud DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, p. 116.

5 Neste sentido de problematizar a ênfase interpretativa na tradução do termo Besonnenheit, cabe lembrar que o termo aparece traduzido, em português, também por reflexão, cf. Cacciola, M. L. M. e O Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 27.

Referências  

SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Ed. Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, 5 vols.

________________. O mundo como Vontade e como representação. Trad. J. Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.   ________________. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. J. Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (Coleção Clássicos).   ________________. Sobre o fundamento da moral. Trad. M. L. Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Coleção Clássicos).   BARBOZA, J. Modo de conhecimento estético e mundo em Schopenhauer. In: TRANS/FORM/AÇÃO: Revista de Filosofia / Universidade Estadual Paulista. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, pp. 33-42, 2006.   ________________. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.   CACCIOLA, M. L. M. e O. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

Glauber Cesar Klein – Mestrando em Filosofia – UFPR.

[DR]

Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve. Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista. João Pessoa: Editora Idéia, 2009. Resenha de: SANTOS, Marcelo. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n.1, p.160-162, 2010.

Tratar de um modo de pensar pessimista é tarefa que exige, além de ampla erudição, um peculiar entusiasmo. O pessimismo metafísico esmiuçado pelo professor doutor Deyve Redyson, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, nas páginas de seu livro Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista, evoca um filosofar livre de ranços tradicionalistas e ‘manualescos’. Nesse sentido, pensar o aspecto péssimo da existência humana no mundo é encarar o desafio do transcendental e do ôntico, olhando pelo prisma de uma categoria filosófica que vem se mostrando extremamente poderosa, principalmente após a contraproposta de Schopenhauer ao parecer otimista de Leibniz acerca de nossas vivências e de nosso mundo. Contudo, o livro em questão buscou expressões pessimistas já na sua gênese grega e perpassou as épocas da filosofia de uma maneira crítica e direta, isto é, não se deteve, senão naquilo que era indispensável e digno de nota. De Lichtenberg e Leopardi, a Unamuno e Cioran, nenhum grande vulto do pensamento foi deixado de fora, no que tange à temática do presente discurso que aspira decifrar o enigma do mundo a partir do sofrimento universal, examinando o sentido trágico da existência e a filosofia debruçada sobre a dor. De fato também este livro surge como o primeiro texto sobre os autores pessimistas em conjunto, antes os que pretendiam estudar o pessimismo filosófico teriam que vasculhar as obras dos referidos autores e neste livro podemos visualizar um conjunto de textos que dão uma boa introdução ao tema, além de apresentar uma bibliografia ampla sobre o assunto em língua alemã, inglesa e espanhola.

Mas, porque o mundo sofre e o quê é sofrer? Como conceituar a dor, esta suprema positividade num mundo que tenta inutilmente negá-la? São questões que se apresentam no livro.

Como se pode notar, o leitor terá pela frente exposição clara de uma problemática fulcral da filosofia de todas as épocas. Contudo, não deverá olvidar-se de que, a clareza, neste caso, não implicará em mero utilitarismo prático, uma vez que o assunto pode ser um tanto paradoxal, estratosférico, impalpável e indigesto para muitos.

Talvez, sobre isto, dispararia Nietzsche: filosofia é para espíritos ruminantes. No melhor sentido deste ruminar, somos incitados aqui a nos informar melhor sobre o assunto e a refletir sobre o sentido do sofrer que salta do texto e que pode nos atingir de cheio, que sai do meramente literal, formal e acadêmico e pode nos inquietar.

Felicidade, salvação, liberdade, deixar de sofrer! Mas como, sem recorrer a vivências estritamente ritualísticas, religiosas e espiritualistas? O modo pessimista de filosofar pode parecer cruento, duro, insípido, desértico e os filósofos evocados nesta obra podem, igualmente, parecerem monstros aterradores da maldade, escritores sem prazer e sem coração. Isto, numa primeira abordagem, caso se trate de leitor ainda pouco acostumado ao estilo desafiador dos vários pensadores chamados ao debate aqui, alguns ainda “marginais” ou pouco famosos. Contudo, o mais importante jamais deixará de estar em evidência ao longo do texto, isto é, a matéria central, a “massa crítica”: uma ciência de primeiros princípios, neste caso, ciência do sofrimento universal, ciência que independe de cálculos e de aparelhos para auferir graus, repetições do mesmo fenômeno e/ou coisas afins.

Não será exagero constatar que o livro supera a proposta inicial de fazer um apanhado histórico-filosófico representante das inúmeras significâncias do pessimismo, pois o texto se conecta a outras áreas de especulação que consideram a dolorosa condição humana na existência, a saber: psicologia, antropologia teológico-filosófica e de aspectos sociológicos daquela condição.

Em um pano de fundo tão péssimo, o desespero surge ameaçador e como que inevitável. Com ele assomam o sentimento de angústia e a iminência do niilismo. A moral tradicional é afrontada e os fundamentos éticos de uma visão de mundo ótimo e iluminado pela razão são ridicularizados em várias vozes, em diversos estilos de escrever filosofia trágica, pensamentos que denunciam a decadência do homem em seu mundo ilusório de opiniões e perspectivas turvadas pelo engodo de Maia.

Por fim, a morte desponta como o grande prêmio ao fim de uma existência sob o sol, mas, paradoxalmente sombria. Como se o filosofar in toto, fosse incapaz de superar sua natureza de nada saber e nada ser além de preparação para o fim dessa vida de andanças do pó sobre o pó, nessa infinitude sempre amparada pela finitude de todo e de cada homem doente.

Resenhar uma obra que já foi muito bem introduzida de forma sumária por seu autor pode soar como um correr atrás do vento. Por isto, estas palavras pretendem tão somente destacar alguns nuances mais atrativos, pinçar alguns aspectos do rico material constituinte da Metafísica do Sofrimento do Mundo de modo a, sem ser repetitivo e sem antecipar grosseiramente as inúmeras passagens surpreendentes e reveladoras, dar o tom específico e uma prova do teor filosófico atual e relevante que o pessimismo metafísico vem propondo crescentemente ao pensamento e ao mundo contemporâneos, isto é, uma proposta de como enfrentar a vida de forma desperta e amadurecida, rejeitando “filosofias” infantilizadas e fórmulas ilusórias de viver e de morrer imerso na eterna consciência de rebanho. Quem encara intermitentemente o pior estado de coisas, com naturalidade saberá como ninguém fruir, ainda que fugazmente, qualquer melhoria fortuita. Portanto, filosofia pessimista, pessimismo bíblico, pessimismo metafísico, pessimismo prático, pessimismo absoluto e melancolia, são exemplos de categorias filosóficas que devem ser examinadas com cautela ao logo do texto do professor Deyve Redyson, de modo a não incorrer o leitor em pré-conceituações sempre desfavoráveis à salutar e prudente reflexão filosófica que este livro propõe.

Marcelo Santos – Mestre em Filosofia – UFPB.

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