Educação pela higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886) – MARIANO (S-RH)

MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, 305 p. Resenha de: XAVIER, Wilson José Félix. Por gerações sãs e fortes: nos rastros de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [33] jul./dez. 2015.

Como preâmbulo a esta resenha, apresentamos um livro de leitura prazerosa, resultado da tese de doutoramento da autora, defendida em fevereiro de 2015, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. O texto, que mantém a estrutura original da tese, é enriquecedor pelas informações reunidas na interpretação da autora, bem como por sua amarração com as perspectivas de outros autores, neste caso, sobretudo, Michel Foucault e o professor José Gonçalves Gondra. A obra, organizada em quatro capítulos, trata basicamente da análise instigante (e até certo ponto corajosa) da construção de um modelo hígido de educação escolar durante o século XIX na Parahyba do Norte, a partir das prescrições higiênicas do e no espaço escolar.

Sendo assim, no primeiro capítulo, “Breve História de uma Pesquisa”, são apresentadas as escolhas teórico-metodológicas que viabilizaram a realização da pesquisa, tomando-se como fio condutor da narrativa a vida do professor primário e político Graciliano Fontino Lordão (1844-1906) e as epidemias do cólera-morbo na Parahyba do Norte (momentos em que o discurso médico aparecia com mais evidência). Neste capítulo, a autora relata como partiu da análise, principalmente, de regulamentos gerais da instrução pública parahybana do período imperial – os de 1849, 1860, 1884 e 18862 –, mas também de relatórios de Presidentes de Província, Códigos de Postura, revistas, jornais, manuais, compêndios e livros de leitura escolar; para desvelar as profundas relações entre medicina e educação, e dessa forma, tecer uma convincente trama histórica que leva o leitor ou a leitora a perceber como os preceitos de ordem médica foram adentrando o universo escolar para a invenção do referido modelo – invenção essa apresentada não como algo ficcional, mas no sentido de designar uma fabricação, uma construção de concepção de educação escolar. Assim, o sentido de tal pretensão, i.e., de tal construção, ganha contornos teóricos mais precisos a partir da categoria “biopolítica”, pensada por Foucault como procedimento institucional de administração da coletividade3.

Sob esse aparato teórico, a autora aponta como no Oitocentos, a medicina se posicionou como detentora de conhecimentos vitais, que, por meio de uma elite dirigente, se infiltra no incipiente mundo escolar das “casas de escola”, local de funcionamento da maioria das cadeiras isoladas.

No segundo capítulo, “Saberes da Medicina; Higienismo e Educação Escolar”, a autora detém-se nos aspectos relativos à arte de curar e às relações entre higienismo e educação. Dentre várias das reflexões feitas pela autora, talvez o grande leitmotiv que perpassa todos os subitens é o insight foucaultiano que leva o “olhar” da autora para o horizonte do que é “menor, marginal, periférico”4, conduzindo-a a questões relacionadas com a medicina, o corpo, e a sexualidade, permitindo que a categoria “biopolítica” jogue luz sobre certos aspectos do saber médico como parte constitutiva do processo de escolarização da Parahyba do Norte. É nesse sentido que a autora transita por caminhos ainda pouco trilhados no que tange a questão da escolarização, tais como os saberes e práticas sociais das parteiras, barbeiros, benzedeiras e boticários, bem como a atuação de médicos de formação acadêmica ou práticos (sem formação acadêmica) na Parahyba do Norte na segunda metade do século XIX. Não menos importante são as incursões da autora, analisando as habitações do século XIX e as Posturas Municipais, destacando a influência do ideário higienista na reorganização dos espaços urbanos.

Segundo a autora, tanto a disseminação da instrução pública quanto o avanço dos saberes médico-higienistas na ordenação do cotidiano fazem parte de um projeto maior de construção do Estado moderno brasileiro – formar as novas gerações passou a ser a tarefa fundamental no amplo projeto de construção e consolidação da nação. Os conhecimentos advindos da educação e da medicina propiciariam condições de governabilidade, e, para a autora, acompanhando Gondra, a Higiene foi a área da medicina que mais ajudou na organização da educação escolar. É, portanto, no final deste segundo capítulo que a autora defende o pioneirismo do Regulamento Geral de Instrução Pública de 1849, a partir do qual se começa a pensar e a debater na Parahyba do Norte, um modelo hígido de educação escolar, ou seja, esse documento foi precursor nas prescrições de natureza médica, abrindo caminhos para a invenção de uma educação escolar higiênica e higienizadora.

Dando continuidade à tentativa de mostrar como se deu a constituição dos dispositivos regulamentadores e disciplinares que foram criados para ordenar o mundo urbano e a educação de sua população, no capítulo três, “A Construção do Modelo Hígido de Educação Escolar na Parahyba do Norte”, a autora destaca como as escolas começam a ser pensadas como um lugar limpo e sadio. A partir da norma médica, tentava-se produzir um espaço interno escolar calmo, confortável, iluminado e mobiliado, enfim, higiênico, que cada vez mais se distanciava do “desordenado”, “conturbado” e “promíscuo” ambiente doméstico. Nesse sentido, sob a influência do higienismo, educadores, engenheiros, médicos e políticos defendiam a separação entre as residências dos professores e as “casas de escolas”, ganhando força entre certos grupos sociais, a ideia da necessidade de espaços próprios para o funcionamento das escolas. Sua análise é significativa, pois compreende desde a abordagem minuciosa dos Regulamentos Gerais de Instrução dos anos de 1849, 1860 e 1886, passando pelas reproduções imagéticas da educação ocorrida em ambientes domésticos (como foi muito comum nas escolas isoladas no Brasil imperial), e pelas imagens de mobílias escolares consideradas higiênicas. Eis mais um dos tantos méritos do livro: saber utilizar as imagens visuais para a investigação histórica e suas possibilidades de uso para a compreensão da construção de uma sociedade de normalização e, consequentemente, da elaboração de um espaço escolar diferente de outros espaços sociais como a igreja e a família.

Destaque também neste capítulo, para a boa discussão acerca da ordenação do espaço público e privado na província da Parahyba do Norte e das “casas de escola”. Não menos interessante são as incursões pelos preceitos higiênicos contidos no compêndio Livro do Povo (1865)5 e nos motivos que levaram à ausência da Parahyba do Norte na Exposição Internacional de Higiene e Educação em Londres, ocorrida em 1884. Todas essas circunstâncias são habilmente utilizadas para fortalecer o argumento central do livro.

No quarto e último capítulo, intitulado “O Gerenciamento da Vida pela Medicina:

O Colégio de Educandos Artífices”, a autora trata de vários aspectos desse tipo de instituição profissionalizante que, mesmo tendo vida efêmera, no caso da Parahyba do Norte – acolhendo, educando e instruindo crianças das chamadas “classes perigosas” entre os anos de 1865 a 18746 –, aponta em seu regulamento prescrições originárias do saber médico. Essas normatizações, que estavam de acordo com o Regulamento Geral da Instrução de 1849, indicavam a constante preocupação com as doenças e práticas sexuais dos educandos artífices, trazendo à tona a busca por um ambiente espaçoso, arejado e limpo, com alunos asseados e bem vestidos. Ao que parece, para a autora a normatização médica presente no Colégio de Educandos Artífices da Parahyba do Norte é a representação mais cabal na província, do modelo hígido que se inaugura com o Regimento Geral da Instrução de 1849 com o intuito de promover o progresso da província diante das transformações sociais, culturais e políticas da segunda metade do século XIX.

A tônica da composição do livro, que merece destaque, é o constante esforço em dialogar com o que se produzia naquele momento na Corte e em outras províncias, sem perder de vista a pertinente perspectiva de que o projeto higienista parahybano oitocentista guardou as suas peculiaridades diante de outros projetos desenvolvidos em outras províncias brasileiras no século XIX. Um bom exemplo do que se diz é a eficiente articulação tecida entre o Regulamento Geral da Instrução de 1860 com o Decreto n. 1.331-A de 1854, conhecido como Reforma Couto Ferraz, que aprovava uma reformulação para o ensino primário e secundário dirigido ao Município da Corte.

De forma igualmente perspicaz, ao tratar do “corpo educado”, a autora ressalta, amparada nos estudos de José Gondra, algumas das principais representações ou concepções de Educação Física, lembrando as marcas próprias das ações médicas: disciplinar, higienizar, medicalizar, fortalecer, biologizar e regenerar.

Quanto a medicina do Oitocentos, há um alerta para o fato do corpo não ser visto de forma isolada, sendo acompanhado das dimensões moral e intelectual.

Cabe lembrar que, muitas das questões levantadas pela autora acerca da Educação Física reaparecerão entre os intelectuais da chamada “Geração de 1870”, que se empenharam numa construção teórica, política e ideológica pautada no ideário de modernização do país7.

As questões da vacinação, do não padecimento de moléstias contagiosas por parte de alunos, da escolha do ambiente limpo asseado e de casas apropriadas e bem colocadas para a instrução, ressurgem frequentemente nos Regulamentos citados anteriormente. Nesse processo, indica a autora, todas as reformas abordadas objetivavam garantir o gerenciamento da população, dentro de um projeto que buscava produzir sujeitos docilizados, úteis, instruídos, hígidos, dentro de um programa civilizador, “já que a instrução era vista como instrumento propagador de transformações e progresso”8.

Entretanto, a questão mais polêmica do livro é justamente o seu argumento central: a propositura da constituição de um modelo hígido na Parahyba do Norte ainda no século XIX. Se a obra tem o mérito de desconstruir o “mito” de que na província nada foi feito ou aconteceu em torno das discussões e práticas higienistas nesse período, há sempre os riscos assumidos em se apontar a formação de um modelo. Esse tipo de representação advindo da Matemática – o modelo – é sempre problemático quando apropriado pelos campos da História e da História da Educação, principalmente, quando proposto a partir da limitada documentação disponível sobre o Oitocentos na Parahyba do Norte. Não obstante, a autora defende bem o seu ponto de vista com uma boa delimitação de seu objeto, um adequado tratamento das fontes e a rigorosidade (sem rigidez) metodológica característica que perpassa todo o trabalho, que a leva a construir um modelo “local” que, dialogando com um processo mais abrangente de formação da nação consegue ganhar força de sustentação. O modelo mais restrito, referente à Província da Parahyba do Norte, se perde em alcance para a compreensão/ explicação de outras realidades, ganha em poder heurístico com relação à história educacional paraibana. Pode-se dizer que esta estratégia metodológica de perdas e ganhos calculados é bastante acertada para o estudo em questão. Mas, certamente, não é este um assunto esgotado.

Trata-se, portanto, de uma obra que deve ser lida, apreendida e, sobretudo, discutida por todos os pesquisadores, notadamente por aqueles que estão vinculados às pesquisas em História da Educação, e/ ou aos que se dedicam aos estudos históricos das doenças e da medicina na Paraíba. Em conclusão, é uma obra imprescindível à comunidade acadêmica pela abrangência, profundidade e ousadia com que são tratadas as questões, e que contribui, sobremaneira, para o debate sobre os sentidos do projeto modernizador de edificação de uma escola considerada moderna, num momento em que a Higiene ganhava espaço no universo escolar, entrelaçando instrução, educação e saber médico.

Notas

2 Segundo a própria autora, a Província da Parahyba do Norte possui sete Regulamentos Gerais da Instrução, datados de 1849, 1852, 1860, 1879, 1881, 1884 e 1886. Contudo, os regulamentos de 1852, 1879 e 1881 não foram encontrados por pesquisadores em nenhum acervo documental até o momento.

3 MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela Higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, p. 52- 53.

4 MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 55.

5 Compêndio de autoria do bacharel em Direito maranhense Antonio Marques Rodrigues, publicado pela primeira vez em 1865 e adotado nas escolas primárias da Parahyba do Norte.

6 A instituição foi criada em 1859, porém, somente em 1865 é que começou a ser organizada. A razão de tal demora deve-se à ausência de recursos do governo provincial.

7 Um dos intelectuais mais importantes dessa “Geração”, José Veríssimo, dedica o capítulo IV da obra “A Educação Nacional” (publicada pela primeira vez em 1890, e republicada no Rio de Janeiro em 1906), à importância da Educação Física como proposta para a regeneração física, moral e intelectual do povo.

8 MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 261.

Wilson José Félix XavierDoutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Professor Adjunto do Centro de Ciências Agrárias da mesma instituição, Campus de Areia. E-Mail: <[email protected]>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

Populares na cidade: vivência de trabalho e de lazer – SOUZA (CTP)

SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa de (org). Populares na cidade: vivência de trabalho e de lazer. João Pessoa: Ideia, 2011. Resenha de: CRUZ, Débora Souza. Cidades: Experiências e Relatos sob a Ótica dos Populares. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2011.

A obra denominada Populares na cidade: vivência de trabalho e de lazer reúne sete textos de diferentes autores que convidam o leitor para uma viagem que tem como pontos de paradas algumas cidades brasileiras. Ao passar por cada cidade, algumas experiências são relatadas e resgatadas por personagens que até então eram anônimos e marginalizados na historiografia.

São seis cidades que foram escolhidas para o roteiro de viagem: Belém, Teresina, Fortaleza, Paraíba, Aracaju e Belo Horizonte. Ao abordar cada uma delas, percebemos a variedade de fontes e abordagens teórico metodológicas que foram escolhidas por cada um dos seus autores. As fontes utilizadas vão desde os relatos orais de memória, até as jornalísticas, literárias e policiais.

A primeira parada se dá em Belém, mais especificadamente no Asilo Pão de Santo Antônio. É neste local que diversas experiências de vida, principalmente no que se refere ao mundo do trabalho, são relembradas por seus moradores, reconstruindo uma Belém ainda nos meados do século XX. Neste período, a modernização estava em voga e a cidade buscava a todo custo o seu embelezamento. Diante deste quadro e da tentativa de buscar a ordem e a civilização, alguns trabalhadores ambulantes como quitandeiras, garapeiros e aguadeiros, incomodavam aos “homens civilizados” que viam tais trabalhos como anti-higiênicos. Era o caso, por exemplo, da utilização de fontes e chafarizes públicos pelas lavadeiras. Tais profissionais pobres, se viram intimidados de continuarem desenvolvendo seu exercício devido ao rigoroso Código de Posturas que foi imposto pelo governo, no qual tais trabalhadores chegavam a ser considerados como “vagabundos”.

Entretanto, mais importante do que percebermos o motivo que estava por trás para o estabelecimento do código, devemos nos atentar para a importância de tais trabalhadores. A presença de aguadeiros e lavadeiras nos revela a escassez da cidade de Belém no serviço de distribuição de água. As quitandeiras e outros vendedores ambulantes nos mostra a falta de estabelecimentos comerciais. Além disso, a permanência da atuação de tais personagens não só eram relevantes para os belenenses, mas também representaram uma resistência ao projeto modernizador.

Ainda escolhendo a oralidade como principal suporte e o recorte temporal na segunda metade da década de 1980, a próxima parada é a cidade de Teresina, agora sendo apresentada segundo os relatos de Antonio Sales, vulgo Pintinho. Este trabalhou em construções civis, organizou cordões, bailes, blocos carnavalescos e até times. Desta forma, Pintinho chegou a ocupar um lugar relevante em sua cidade, neste caso, Teresina. Além de suas funções desempenhadas, que nos atenta também para as mudanças urbanas e arquitetônicas que estavam passando a cidade, algumas passagens de sua vida como a dificuldade de frequentar os cinemas devido ao pouco poder aquisitivo e o tempo em que trabalhou como carregador de água, nos mostra muito além de uma experiência individual, mas como funcionava toda a urbe que estava ao seu redor.

Deixando o nosso narrador Antonio Sales, partimos de Teresina e nos direcionamos à Fortaleza. Agora, iremos identificar como tal cidade era colocada na imprensa e literatura. Ao escolher, principalmente a literatura como fonte, neste caso em destaque os romances Mississipi e Aldeota, temos a chance de nos deparar com detalhes ricos sobre o cotidiano dos fortalezenses. Entre eles podemos destacar os momentos de divertimento como os banhos de mar, a precariedade não só no sistema de iluminação, mas também na raridade de uma água de boa qualidade e entre outros aspectos que foram observados graças a união entre fonte tradicional, como o jornal e a literatura.

A quarta parada ocorre em Campina Grande nos anos de 1970, guiada pelas histórias de homens e mulheres considerados infames pelos relatos jornalísticos e policiais. Eram as prostitutas, bêbados, pequenos larápios, loucos, enfim, pessoas simples e desafortunadas que acabavam sendo alvos da discriminação, rejeição e controle social. É com base em uma investigação dos pequenos fatos e das experiências destes populares vistas por uma outra ótica, que tais personagens serão valorizados. Entretanto, além da observação sobre algumas caracterizações negativas, o autor destaca que assim como as lavadeiras se fizeram presentes em Belém, na cidade de Campina Grande, a permanência destes populares também foi uma forma de burlar algumas normas como o policiamento dos mesmos e a luta “por uma vida menos infame” (SOUZA, 2011, p. 106).

Saindo de Campina Grande chegamos em Aracaju do século XX e também observamos algumas transformações e traços da modernidade, tendo como indícios os primeiros cinemas e automóveis que apareceram na capital sergipana. Entretanto, mesmo com a presença de tais elementos considerados modernos , os aracajuanos não tiveram seu cotidiano bruscamente modificado. Enquanto os automóveis transformavam o ritmo da cidade, estes eram obrigados a conviver com os bondes a tração animal. Não diferente ocorria nas salas de cinemas, onde nem sempre o ambiente que representava o moderno, acolhia frequentadores com “bons modos”. Tal atitude é compreendida como uma reação do relacionamento dos aracajuanos com os novos hábitos.

Entretanto, a preocupação não se restringia apenas aos hábitos existentes na época, mas aos novos padrões de beleza que tanto eram difundidos não só pelo comércio, mas por intelectuais, políticos e higienistas. Nas décadas de 1930 e 1940, houve o forte incentivo ao aperfeiçoamento racial. Entre tais estímulos destacamos o futebol, alguns eventos como os Jogos de Verão e as Olimpíadas Sergipanas. Ao passear por Aracaju do século XX, observamos os primeiros passos de uma cidade que queria a todo custo deixar de lado suas características provincianas, além das interferências desempenhadas pelo governo nos espaços de lazer pela busca de um “corpo ideal”.

A última cidade visitada é Belo Horizonte, que assim como as anteriores relatadas, também almejava deixar pra trás os traços coloniais e investir no embelezamento da urbe. Entre algumas medidas está o levantamento de obras públicas, ganhando destaque a Praça 7 de Setembro. Através desta praça, percebemos que os espaços construídos não eram direcionados ao “populacho. Na cidade mineira observamos claramente a delimitação do público, mas que nunca deixou de ser uma extensão do espaço privado, seja das classes baixas ou altas.

Referência

Débora Souza Cruz – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Programa de Educação Tutorial (PET/História /UFS). E-mail: [email protected].

Consultar publicação original

Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve (Org.). Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. João Pessoa: Ideia, 2010. Resenha de: DEBONA, Vilmar. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.2, n.2, p.216-221, 2011.

Diferentemente do que se sucedeu até o final dos anos 80 do século passado, temos percebido que as pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre o pensamento de Schopenhauer vêm se tornando mais profícuas durante as duas últimas décadas. Atestam esta constatação (i) as cinco edições bianuais do Colóquio Internacional Schopenhauer do Brasil, iniciadas em 2001, na cidade de Curitiba (PR), e promovidas pela Sociedade Schopenhauer do Brasil1 em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Filosofia das Universidades anfitriãs, (ii) as cinco edições anuais do Encontro Para saber mais Schopenhauer, iniciadas também em Curitiba, em 2007, (iii) o fortalecimento do GT-Schopenhauer, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), (iv) a fundação, no primeiro semestre de 2010, da Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, (v) as três edições do Encontro Nietzsche-Schopenhauer organizado pelo Grupo de Estudos APOENA, da Universidade Federal do Ceará, (vi) as publicações de traduções de parte significativa da obra do pensador que se somam àquelas que ainda estão sendo preparadas, (vii) além da produção de artigos, resenhas, capítulos de livros e livros de reconhecida qualidade.

O livro Arthur Schopenhauer no Brasil, cuja valiosa iniciativa devemos ao professor Deyve Redyson, da Universidade Federal da Paraíba, além de ser motivado pelo contexto da memória dos 150 anos da morte do filósofo, rememoradas em 2010, soma-se de forma especial às atividades listadas acima e ao espectro da produção acadêmica levada a cabo pela Schopenhauer-Forschung brasileira. A obra foi lançada durante a reunião do GT-Schopenhauer no XIV Encontro da ANPOF, na cidade de Águas de Lindóia (SP), em outubro de 2010. Nela estão reunidos dezenove textos de alguns dos mais importantes pesquisadores brasileiros da opera schopenhaueriana, dentre os quais podemos citar: Jair Barboza, Jarlee O. Salviano, Flamarion C. Ramos, Lean [DR] o Chevitarese, Kleverton Bacelar etc, assim como um importante texto da professora Pilar López de Santa María, da Universidad de Sevilla, pesquisadora que verteu a quase totalidade da obra do pensador para a língua espanhola.

No primeiro capítulo do livro, intitulado Três prefácios e alguns retratos: Schopenhauer e suas fisionomias, o professor Jair Barboza (UFSC) apresenta-nos uma reflexão sobre alguns dos elementos distintivos da filosofia do pensador a partir dos três prefácios de sua obra magna e de três conhecidas imagens do filósofo: o óleo sobre tela de Sigismund Ruhl (1815-18), que apresenta um Schopenhauer jovem, seguro, confiante, sereno e radiante, nas palavras de Cosima Wagner (Cf. Hübscher); a imagem de Johannes Schaefer (1855) que, no contexto da severa crítica à filosofia universitária e à “hegeliaria”, revela a fisionomia de um Schopenhauer mau humorado; e o óleo sobre tela de Jules Lunteschuetz (1859) que, na visão de Barboza, apresenta um Schopenhauer rejuvenescido, algo atestado no curto prefácio à terceira edição de O mundo devido à concretização da tão esperada fama e do, naquele momento, triunfante sistema.

No segundo capítulo, La crítica de Schopenhauer a la ética kantiana, lemos uma detalhada análise da professora Pillar López (Univ. de Sevilla) sobre em que medida o fato de, em geral, a etiqueta identificadora do pensamento kantiano consistir em elementos concernentes à sua crítica do conhecimento, e, no caso de Schopenhauer, na metafísica da vontade e no pessimismo, isso não impede o reconhecimento da importância histórica que têm as discussões sobre a ética em ambos os pensamentos. Ao partir do pressuposto de que a discrepância entre esses dois autores seja máxima no que respeita à ética, a autora propõe-se a contemplar cada um desses pensamentos, assim como o confronto de Schopenhauer em relação a Kant, como corretivo frente aos excessos de cada um deles (cf. p. 23).

Já no terceiro capítulo, sob o título de Fazer da natureza uma morada: a Sinnlichkeit de Feuerbach e a Vorstellung de Schopenhauer, Deyve Redyson (UFPB) analisa alguns pontos de contato entre esses dois pensadores que, segundo o autor, estão envolvidos nas mesmas questões filosóficas de sua época, como a filosofia da religião e o idealismo transcendental kantiano. Apesar de reconhecer como difícil a tarefa de pensar essas duas filosofias em conjunto, Redyson argumenta que a forma e a estrutura a partir das quais estão arquitetados tais pensamentos podem “nos auxiliar na compreensão de diversas categorias da filosofia especulativa e de suas incursões na noção de deus e de natureza, além de estarem na circunferência histórica como os representantes da nova filosofia ou filosofia do futuro” (p. 50).

Os capítulos 4 e 5 apresentam duas diferentes interpretações sobre uma mesma temática, o Estoicismo no pensamento de Schopenhauer. Em Sobre o cuidado de si: Schopenhauer e a tradição estoica, Luizir de Oliveira (UFPI) defende que, em grande medida, os pensamentos de Sêneca e do filósofo alemão convergem, embora não se trate de uma mera justaposição de ideias, para um mesmo ponto: “as estruturas de representação mental e seu papel na construção de uma “vida feliz” pensada não apenas como um ideal a ser atingido, mas como uma possibilidade efetiva hic et nunc” (p. 74); identificação esta que, segundo o autor, pode ser operada pela noção de “cuidado de si”. Por sua vez, Jarlee Salviano (UFRB), no capítulo intitulado O estoicismo pro tempore de Schopenhauer, apresenta uma análise que se diferencia daquela de Luizir principalmente por estar mais próxima, nas palavras do próprio autor, “da visão tradicional de Schopenhauer como o pai do pessimismo” (cf. p. 93). Nesta linha de argumentação – que ao reconhecer a presença da filosofia da Stoa no pensamento schopenhaueriano, não chega a afirmar que se tratam de pensamentos similares ou das mesmas preocupações – Salviano pontua um diálogo com seu colega brasileiro Jair Barboza, este um defensor da tese de que há, no pensamento schopenhaueriano, um determinante movimento entre o pessimismo teórico e o otimismo prático. Um dos argumentos de Jarlee Salviano é o de que, antes de se qualificar Schopenhauer como um estoico (para ele, o estoicismo schopenhaueriano é apenas mais uma faceta deste pensamento), às expensas de uma leitura pouco detida do Estoicismo, o leitor atento teria de percorrer atentamente até o fim do último livro de O mundo, justamente onde encontramos a ênfase na negação total da vontade. De acordo com Salviano, o quarto Livro da obra principal não sugere uma anestesia da afirmação consciente da vontade, ao contrário do que se teria no âmbito das reflexões sugeridas pelos Aforismos para a sabedoria de vida, como, por exemplo, mediante a própria noção de sabedoria de vida e outros elementos que supostamente angariariam uma filosofia do consolo, espécie de alívio para a existência prenhe de sofrimentos. Jarlee, ao indicar alguns limites da “leitura reconfortante” elaborada por Barboza, pretende, no fundo, indicar que este consolo de Schopenhauer “não consola” e que, menos ainda, este jamais poderia representar o ponto final do seu pensamento. Importante aqui é frisar que a natureza destas problemáticas está sendo investigada por outros intérpretes brasileiros da obra do pensador alemão, o que, de alguma forma, revela o estado da arte de tais pesquisas em nosso país.

Na sequência, no capítulo 6, temos uma reflexão de Flamarion Caldeira Ramos (UFABC) sobre A religião e a crítica da religião na filosofia de Schopenhauer, onde o autor apresenta algumas das principais incursões do pensador sobre a religião, paralelamente à sua metafísica. Ramos analisa, por exemplo, a afirmação presente nos Parerga em que o filósofo considera que os resultados morais do cristianismo, quando fundamentados apenas no cristianismo, permanecem sob fábulas, ao passo que da sua filosofia podem receber fundamentos racionais. Segundo Flamarion, isso não garante uma mera adesão do filósofo ao discurso religioso: “Mesmo com todas as limitações do discurso racional, da ciência e da filosofia, Schopenhauer mantém-se afastado de uma queda na religião…” (p. 124-25). No capítulo 7, Lean [DR] o Chevitarese (UFRRJ) considera o emblemático tema do lugar ocupado pela eudemonologia nos escritos de Schopenhauer. Em vista de problematizar como, não obstante o eminente ponto de vista metafísico deste pensamento, ainda restaria ao indivíduo uma “liberdade para a prática de vida”. Pelo reconhecimento de que o filósofo apresenta a possibilidade de uma orientação eudemonológica para se enfrentar o “mal de viver”, Chevitarese vai buscar – numa análise sobremaneira contrastante com aquela apresentada por Jarlee Salviano, já mencionada acima – um posicionamento diante da presença de uma postura positiva frente à existência, com o fito de compreender a proposta dessa “orientação de conduta” em face da recusa do pensador ao livre-arbítrio.

Com este nível de reflexão e problematização, a obra Arthur Schopenhauer no Brasil segue dispondo de várias outras análises não menos importantes que as mencionadas até aqui. Podemos resumir da seguinte forma os temas elegidos pelos demais autores: o professor Eduardo de Siqueira (UFRRJ), tendo por base a sempre indicada, mas quase constantemente evitada influência de Schopenhauer no pensamento de Wittgenstein, intenta circunscrever a ampla questão da influência do primeiro sobre certos rumos da filosofia contemporânea, assim como indicar alguns pontos sobre os quais ele incide. Por sua vez, o professor Kleverton Bacelar (UFBA) apresenta uma importante reflexão sobre a quarta motivação na psicologia do filósofo germânico, a saber, a motivação ascética, da “dor própria”, como última mola propulsora da ação humana, tema que dá muito que pensar enquanto consequência sistemática dessa filosofia, já que se somaria às três conhecidas motivações (egoísmo, maldade e compaixão) apresentadas em Sobre o fundamento da moral. O professor Jorge Miranda de Almeida (UESB), no capítulo intitulado A existência e as situações limites em Kierkegaard e Schopenhauer, objetiva demonstrar como os dois pensadores tecem suas críticas aos idealistas a partir de uma convicção em comum, a de que “o homem não pode ser reduzido a uma compreensão conceitual de si mesmo, mas o lançar-se, o debruçar-se sobre si mesmo para que a existência não seja apenas folhas mortas (…)” (p. 199).

Além disso, o livro apresenta também vários textos de pós-graduandos (a maioria deles doutorandos e alguns docentes em respeitadas Universidades do país), que desenvolvem suas pesquisas a partir do pensamento schopenhaueriano no Brasil, os quais elencamos aqui, seguindo a ordem disposta pela obra. Vilmar Debona (USP/PUCPR), em A noção de caráter adquirido: uma “liberdade” pela sabedoria de vida, problematiza a possibilidade de uma “liberdade” no âmbito da sabedoria de vida devido à “margem de manobra” que o indivíduo ainda pode obter mediante a noção de caráter adquirido. Dax Moraes (UERN), em A afirmação da vontade-de-viver no suicídio: a vida como representação, analisa em que medida o ato do suicídio, no pensamento schopenhaueriano, não se confunde com a negação da vontade-de-viver, sendo aquele um “não” negativo à vida, contrariamente ao “não” positivo da negação da vontade, esta independente da influência dos motivos exteriores. Daniel Quaresma Soares (USP), em seu capítulo intitulado O indivíduo como sofrimento, a arte como libertação, tece considerações pontuais sobre a metafísica schopenhaueriana do belo. Katia Santos (USP), em A liberdade no pensamento de Schopenhauer, considera, com olhar minucioso, como a liberdade é tema incisivo em diversos âmbitos dessa filosofia. Catarina Rochamonte (UFRN), em A vontade como atividade, investiga como a noção fundamental de Vontade presentifica-se de forma multifacetada em outras noções, como a autoconsciência, a causalidade e o caráter. Marcelo Santos (UFPB), no capítulo O tao da vontade: breve estudo comparativo entre a negação da vontade e a não-ação, analisa “alguns elementos dos escritos taoístas que apresentam forte parentesco ou eco com conceitos importantes da filosofia (…) schopenhaueriana” (p. 329). Marcio Quirino (UFPB), em O aspecto místico da metafísica do belo, apresenta uma investigação sobre alguns aspectos do estatuto do “místico” em Schopenhauer, detendo-se na argumentação sobre como a metafísica do belo angaria um desses aspectos. Mariana Poyares (USP), em O mundo no espelho: Schopenhauer, Borges e o idealismo, aponta “como o idealismo construído por Borges sobre tantos alicerces (…) compartilha com o idealismo schopenhaueriano características fundamentais”. Por fim, Carlos Hugo da Silva (UFPB), em A crítica de Schopenhauer à obscura filosofia dos idealistas, analisa em que medida Schopenhauer, ao tecer suas críticas contra os idealistas alemães, empreende-as mediante a estratégia de apontar problemas nas questões clássicas da filosofia, tanto no que respeita à teoria do conhecimento, à filosofia da natureza, quanto à ética e ao método de transmissão de argumentos filosóficos.

Ao rememorar os 150 anos da morte de Arthur Schopenhauer, a obra aqui resenhada acaba por espelhar parte significativa das pesquisas em torno desse pensamento no Brasil. Agradecendo a iniciativa e o trabalho do professor Redyson frente à organização deste livro, desejamos a todos os pesquisadores, leitores e admiradores do pensamento schopenhaueriano uma profícua leitura.

Notas

1 É importante notar que a Sociedade Schopenhauer do Brasil, atualmente presidida pela introdutora dos estudos sobre o pensador alemão nas universidades brasileiras, a professora Maria Lúcia Cacciola (USP), mantém constantes cooperações com a Schopenhauer-Gesellschaft da Alemanha (esta que completou seu primeiro centenário de existência em 2011 e cujo fundador foi o amigo de Frie [DR] ich Nietzsche, Paul Deussen). Assim, a exemplo das seções italiana e japonesa desta renomada organização alemã, a seção brasileira da mencionada Sociedade está incorporando cada vez mais professores pesquisadores de modo a num âmbito tão duramente criticado pelo filósofo, o acadêmico – fazer ecoar, enquanto debate filosófico, o tratamento dos grandes temas com os quais o pensador se ocupou. De forma geral, podemos afirmar que, antes dessa crescente recepção universitária em terras tupiniquins, a filosofia schopenhaueriana parecia se resumir às investidas da literatura machadiana. Hoje, porém, as Memórias póstumas de Brás Cubas estão longe de serem referência necessária quando queremos notar a presença e a influência de Schopenhauer em nosso país.

Vilmar Debona – Doutorando em Filosofia pela USP. Professor na PUC-PR. Bolsista CAPES na Università degli Studi del Salento (Lecce, Itália). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]