Impérios em Guerra (1911-1923) – GERWARH (RTF)

GERWARH, Robert; MANELA, Erez. Impérios em Guerra (1911-1923). Lisboa: Dom Quixote, 2014. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. Colonialismo e conflitos: a Primeira Guerra revisitada. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 10, n. 2, ago.-dez., 2017.

Ao se pensar Primeira Guerra Mundial, em contrapartida acaba-se por lembrar das consequências do conflito na Europa, mas a participação de outros continentes e as áreas coloniais neste conflito é normalmente esquecida. Estas inquietações motivaram a presente obra Impérios em Guerra (1911-1923), na qual buscou-se um panorama da guerra a partir da perspectiva de Impérios em disputas e não de Estados-Nações.

Essa obra é resultado de duas conferências temáticas sobre o assunto ocorrida em Dublin em 2010 e 2012, a sua elaboração contou com auxílio financeiro do Conselho Europeu de Investigação (CEI). A publicação ocorreu no ano do centenário do início da Primeira Guerra Mundial.

Na introdução, os organizadores apresentaram que a guerra será estudada em um quadro temporal e espacial maior do que o convencional, pois a desmobilização das tropas dos exércitos coloniais, na Ásia e da Europa Centro-Leste não se encerraram ao final do Conflito Mundial. Desta forma, é mostrada a Primeira Guerra como um enfretamento de Impérios globais e multiétnicos e não entre Estados-Nações. Os organizadores definem que Império seria uma entidade política cujas populações e territórios estão dispostos e são administrados de forma hierarquizada em relação ao centro imperial. Assim, “a Grande Guerra foi uma guerra de impérios, travada principalmente por impérios e pela sobrevivência ou expansão de impérios” (p. 50).

No primeiro capítulo, O Império Otomano, Mustafa Aksakal afirmou que o processo de declínio deste território vinha muito antes do conflito mundial. Ao longo dos séculos, os otomanos eram uma experiência de sucesso como instituição multiétnica que foi acabada com a Primeira Guerra Mundial.

Em suas análises, é mostrando o anacronismo existente na administração imperial. Pois era um Estado cheio de dívidas e agrediam as populações não muçulmanas, no que causou nestas o desejo de independência. Na construção deste capítulo, o autor baseou-se em relatos diplomáticos europeus, na qual mostram uma má gestão otomana, e fontes otomanas em que o Império é vítima do imperialismo europeu. A Primeira Guerra Mundial foi tratada pela administração otomana como um conflito ideológico e militar. No primeiro caso, o sultão otomano buscou trata-la como uma Guerra Santa, apelou para os súditos muçulmanos e residentes islâmicos fora do império para participarem da causa em favor da Tríplice Aliança. Na segunda questão, tentou a recuperação de territórios perdidos anteriormente com países europeus.

O Estado Otomano tomou medidas preventivas contra populações cuja lealdade desconfiava, como os armênios e os árabes. No caso armênio, aconteceu o episódio conhecido como Holocausto Armênio que é até hoje denunciado internacional e a Turquia atual não o reconhece. No caso árabe, as privações sofridas por esta população causaram a Revolta Árabe de 1917 que enfraqueceu o Império Otomano nessas localidades. Ao final do conflito, diversas regiões do império são ocupadas e fragmentadas entre as potenciais vencedoras, o processo de substituição do Império Otomano pelo Estado-Nação Turco não foi rápido e nem simples como demonstrado pelo autor ao final do capítulo.

No segundo capítulo, O Império Italiano, Richard Bosworth e Giuseppe Finaldi mostraram como a Itália, um país recém unificado, se fez ou tentou se fazer presente na Primeira Guerra Mundial. O Estado Italiano construiu a ideia em sua população de uma Terceira Itália, na qual apropriou-se do tempo e da tradição imperial daquele território, rememorando os grandes feitos do Império Romano e dos Estados Italianos que lideraram a cultural ocidental durante o Renascimento.

A ocupação de áreas do Império Otomano, como a Líbia, foi tratada pela sua administração como uma forma de mandar a população mais pobre para terras férteis e estancar a emigração para o continente americano. A invasão a essa localidade sofreu severas críticas tanto por liberais e socialista na Itália.

Em outras colônias italianas, como a Eritreia não houve nenhum indício de rebelião durante a Primeira Guerra Mundial que questionasse a dominação da Itália.

Essa colônia era para os italianos a porta de entrada para a Etiópia região cobiçada pelo país desde o século XIX. No caso da Somália Italiana, a ocupação era precária e dava margens aos potentados locais a participarem da administração.

No capítulo seguinte, O Império Alemão, Heather Jones declarou que no caso da Alemanha existia uma relação complexa que desafia a compreensão cronológica e espacial tradicional do Imperialismo. A ideia de império se baseou em três componentes imperiais distintos que foram: o formado após a unificação da Alemanha em 1871; o território alemão mais os Estados satélites ocupados por ele ao longo da Primeira Guerra; e o os territórios alemães de além-mar.

O projeto de colonização alemã na África foi algo recente, começou na última década de Oitocentos e as primeiras do século XX. Segundo Heather Jones, a crise do Marrocos (1911) foi um ensaio alemão para a Primeira Guerra Mundial. A Alemanha ansiava por colônias desde a década de 1880 para se transformar em um modelo contemporâneo de Estado-Nação/Império.

A Alemanha expandiu-se na Europa ao longo da disputa. A Primeira Guerra foi usada pelos alemães para defender, expandir e consolidar as fronteiras do Império na Europa. A sua radicalização beligerante ao longo do conflito mundial baseou em suas táticas de repressão aos povos africanos.

Até 1916, todas os seus territórios coloniais foram capturados pelos adversário.

Ao final da guerra, os três componentes imperiais que baseavam seu Império caíram e a Alemanha sofreu consequências graves no período posterior.

No quarto capítulo, A Áustria-Hungria, Peter Haslinger mostrou que o Estado austro-húngaro existia uma solidariedade entre os povos que o compunham, mas era um império debilitado a décadas. A noção de irmandade entre seus povos, sofreu seu primeiro revés no século anterior, em 1867, quando ocorreu o Compromisso Austro- Húngaro despertou o desejo e sentimento de outros povos pela emancipação.

Ao longo da história do império, ele nunca adotou uma política de discriminação para nenhum de seus povos. No entanto, ao longo da Primeira Guerra Mundial, duas medidas causaram efeitos nacionalistas em seu território: Quatorze Pontos de Woodrow Wilson (8 de janeiro de 1918) e a Declaração do Direitos dos Povos da Rússia (15 de novembro de 1917).

Ao final do conflito mundial e com o desmantelamento gradual do Império, aumentasse a responsabilidade das administrações regionais frente a Viena. Entre os dias 8 a 11 de abril de 1918, ocorreu em Roma, o Congresso das Nacionalidades Oprimidas formada pelos diferentes povos que compunham o território que desejavam uma autonomia completa. Em agosto de 1918, a Tchecoslováquia tem reconhecida sua independência, o mesmo passo é seguido por demais áreas do Império entre os meses de outubro e novembro de 1918.

Os meses finais de 1918 confirmaram o fim da monarquia dual existente na Áustria-Hungria. Após a sua dissolução, o problema dos Balcãs, que desencadearam o conflito mundial, continuaram.

No quinto capítulo, O Império Russo, Joshua Sanborn mostrou que ao longo da história do Império Russo ocorreram conquistas modestas e fracassos que ajudaram no desenvolvimento do seu poderio militar. Desde 1881, o império passou por um processo de russificação iniciado pelo czar Alexandre III, após essa medida os movimentos nacionalistas separatistas nunca foram uma ameaça real ao território. Ao iniciar a Primeira Guerra Mundial, os povos que o compunham sofreram tratamento militar diferente conforme a assimilação que as populações haviam passado pela russificação. A administração imperial mudou, o sistema de governança foi substituído por um sistema de governança militar entre os generais que ocuparam territórios no conflito.

Essa transformação desencadeou falhas para o Império, ocorrendo resistências locais, crises econômicas, aumento da inflação e falta de alimentos.

Em 1915, os russos sofreram fortes baixas como parte dos territórios polacos e a Ucrânia. No ano seguinte, ocorreu vitórias irregulares e inconclusivas. O sistema econômico, que já estava debilitado anteriormente, começou a ruir pela escassez de mão de obra. Uma solução encontrada para cobrir essa demanda foi o uso de prisioneiros de guerra em campos de trabalho forçado.

Em junho de 1916, o tratamento militar distinto entre as minorias étnicas foi cancelado, o Conselho de Ministros incorporou populações que eram isentas ao serviço militar para as frentes de conflito. Em finais daquele ano, as fronteiras ocidentais estavam sob ocupação estrangeira ou debaixo de administrações militares incapazes.

Com o início da Revolução Russa, em 1917, o país retirou-se do conflito mundial, para tentar resolver seus problemas internos. A primeira fase da Revolução, iniciada em fevereiro, mostrou uma política liberal fracassada que despertou o nacionalismo em diversas regiões do Império, como a Finlândia, Geórgia e a Ucrânia. Com a passagem do poder para as mãos dos sovietes, em outubro, a possibilidade de independência de outras regiões do império alterou-se, pois a independência de qualquer território transformaria aquela região dependente do Império Alemão.

Ao final da Primeira Guerra, ocorreu o colapso absoluto do Império Russo que adentrava em um conflito civil. Ao final da Guerra Civil Russa, o Kremlin transformouse em um novo centro imperial com novas perspectivas de expansão.

No capítulo seguinte, O Império Francês, Richard S. Fogarty apresentou a visão de uma Grande França que entrou no conflito, essa entidade seria a união da metrópole com as colônias. Nesta perspectiva, os territórios ultramarinos ajudaram a travar uma guerra total, pois foi arrecado 650 milhões de franco de assistência econômica proveniente das áreas do ultramar, 500 mil súditos soldados e 200 mil trabalhadores provindo do além-mar para a indústria da guerra foram mobilizados.

A Primeira Guerra tornou o império rentável para a França, tratando-o como uma entidade única. No decorrer do conflito, o Império era mais importante psicologicamente do que materialmente, pois causava na população que era empregada no conflito um sentimento de unidade para uma causa maior.

Nos últimos dois anos de guerra, ocorreram uma resistência ao recrutamento no ultramar, desta forma empregou-se o trabalho forçado para a indústria de guerra e o convocação obrigatória de soldados. Essa mudança de perspectiva da população deveuse o conflito estar associada a morte ou a perda de capacidade física para os que entraram nela. No período posterior, o significado do Império Francês alterou-se, ganhou importância para a defesa e a vida da nação.

No sétimo capítulo, A África Imperial Britânica, Bill Nasson demonstrou como o Império Britânico se fragmentou em três frentes de conflito: Europa, Ultramar e Oriente Médio e a importância das colônias para defender os interesses da metrópole.

Desta forma, a guerra travada pelo Império Britânico em África era para aumentar seu poderio colonial no continente e legitimar seu domínio do mar.

Para a população colonial em África, ocorreu um atrativo no alistamento militar para a guerra pois era associada a autoridade patriarcal e a identidade guerreira de certas tribos, além da remuneração compensar para os jovens que não tinham nenhum ofício. A Primeira Guerra na África Britânica foi heterogênea em seus territórios: a África do Sul buscou expandir com a incorporação do Sudoeste Alemão; no Sudão houve uma cautela no recrutamento de soldados devido aos chefes locais e medo de insurreições muçulmanas; na Rodésia ocorria interações tensas entre os soldados britânicos e a população local.

No oitavo capítulo, Os domínios, a Irlanda e a Índia, Stephen Garton apresentou as demais entidade políticas que compunham o Império Britânico: a Nova Zelândia, a Austrália, a Índia e a Irlanda. Por ser uma entidade polimórfica, o Império Britânico desenvolveu estratégias distintas para suas diversas regiões que participaram do conflito mundial.

Mesmo sendo uma entidade heterogênea, algumas consequências foram comuns em diversas localidades do império como greve de trabalhadores cansados dos fardos da guerra e medo de rebeliões internas devido minorias alemãs em suas áreas.

Após a Primeira Guerra Mundial, ocorreu maior independência nas entidades políticas que compunham o Império e aconteceu sua expansão, através da incorporação de territórios da Alemanha e do Império Otomano. Desta forma, o conflito mundial não foi apenas da Grã-Bretanha, mas de todo um grupo de entidades soberanas que se consideravam parte de um mesmo ser: o Império Britânico.

No nono capítulo, O Império Português, Filipe Ribeiro Meneses apresentou a importância do peso do colonialismo na história portuguesa diferente dos demais impérios europeus. Desta forma, a República Portuguesa, que foi instaurada em 1910, via necessidade na manutenção do país como uma potência colonial. No entanto, a falta de investimento do Estado e recursos humanos para trabalharem no ultramar causavam um colonialismo fraco comparado com os demais países.

Ao longo da Primeira Guerra Mundial, Portugal mobilizou tropas em suas colônias para garantir a continuidade do seu Império. Ao final do conflito, na Conferência de Paz de Paris as potências europeias tiveram interesses em partes dos territórios lusitanos, mas com um forte apelo diplomático e histórico, Portugal conseguiu manter seus territórios.

Em, O Japão Imperial e a Grande Guerra, Frederick Dickinson evidenciou a importância da Ásia Oriental como local crucial para as disputas imperiais. Até a Primeira Guerra Mundial, ele aumentou seu território imperial através de exploração de áreas do território chinês (1895) e a Guerra contra o Império Russo (1905). Entre os anos de 1914 a 1919, o Japão não aumentou suas áreas, mas manteve uma ação na Sibéria para conter a Revolução Russa.

Após a Primeira Guerra Mundial, os japoneses passaram ao cenário internacional como potência mundial, devido sua atuação no conflito. No entanto, a guerra na Ásia não terminou com o Tratado de Versalhes, lá ela terá sua temporalidade própria diferente da Europa. O estado de beligerância acabou na Ásia após a Conferência de Washington em 1921.

No capítulo, A China e o Império, Xu Guoqi assinalou que durante o conflito libertaram-se os fantasmas da época imperial chinesa. Após a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), os chineses começaram a repensar o papel de sua civilização mundialmente dando início a várias iniciativas nacionalistas em seu território para fortalecimento contra potências rivais. Ao final desse conflito, o Japão tornou-se a potência principal da Ásia Oriental.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o Japão buscou garantir o controle da China e lançou um manifesto conhecido como 21 exigências, na qual o presidente chinês cedeu. Essas medidas tiravam a soberania chinesa em várias localidades de seu território e os concedia aos japoneses. Em 1917, a China entrou oficialmente na Primeira Guerra contra os alemães. Buscou-se uma base constitucional de uma política de guerra antes da entrada no conflito, isso ocasionou disputas governamentais internas.

O país contribuiu fortemente com o envio de trabalhadores para o Ocidente para as indústrias da guerra, baseando em seus novos princípios de internacionalização e renovação nacional.

Ao final da guerra, a China via com grandes expectativa a Sociedade das Nações. No entanto, o Tratado de Versalhes foi visto com desapontamento pela população chinesa, essa angústia com o acordou permitiu que durante as décadas de 1920 e 1930 ocorressem uma aproximação da China com a Alemanha. Esse contato possibilitou o Tratado Sino-Germânico, 1921, o primeiro tratado assinado com um país europeu que os chineses foram considerados como iguais. Após o conflito mundial, a China buscou um novo modelo de construção de sua nação, tal possibilidade foi vista na Revolução Bolchevique.

No penúltimo capítulo, O Império dos Estados Unidos, Christopher Capozzola discorreu sobre o período de 1914 a 1924 de como os EUA administraram forças militares de territórios dependentes e soberanos. Os norte-americanos buscaram reafirmar seu poder na América Latina e seus domínios coloniais foram dados maiores autonomia, como o caso da Filipinas.

Com a criação da Força de Patrulha da Esquadra do Atlântico, em 1917, ocorreu a concretização da Doutrina Monroe, ideologia defendida no século anterior. Após a Primeira Guerra Mundial houve um aumento estratégico dos EUA no mundo, na qual buscou uma reorientação em sua política externa.

No último capítulo, Os Impérios na Conferência de Paz de Paris, o autor Leonard V. Smith defendeu que ela legitimou a normalização do Estado-Nação como instituição que sucedeu os impérios multinacionais ao final da guerra. Além disso, é revisitado o papel dos mandatos concedidos pela Liga das Nações a França e a Inglaterra, o ódio alemão pelas cláusulas do Tratado de Versalhes e o bolchevismo como alternativa a alguns lugares no pós-guerra.

A obra crítica a historiografia tradicional da Primeira Guerra Mundial que deixou de lado o Leste Europeu, a Região do Pacífico, as colônias e a América, tratando-os apenas como atores secundários na beligerância. Muitas vezes é esquecida a participação dos súditos imperiais que serviram nas frentes europeias e seus efeitos no mundo colonial como as dificuldade econômicas, as ocupações e os alistamentos forçados.

O final do conflito mundial foi turbulento tanto para os vitoriosos quanto para os derrotados. Ao mesmo tempo, ocorreu um processo de declínio imperial que conduziu ao fim da ordem global vigente e sua substituição por uma ordem assentada no Estado-Nação.

A obra Impérios em Guerra é uma alternativa ímpar a historiografia padrão do conflito mundial, possibilitando aos leitores refletirem sobre alternativas de análises sobre a Primeira Guerra Mundial. Para aqueles que não sabem muito sobre essa beligerância, é uma ótima leitura para ser realizada nestes anos que se aproximam do centenário do final da Grande Guerra.

Thiago Henrique Sampaio – 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis). Endereço: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP. E-mail: [email protected].

Kalevala. O poema épico finlandês | Elias Lönnrot

A obra e o autor

O Kalevala é a representação poética mais destacada da cultura tradicional dos povos fin – os finlandeses. Tal como outros poemas clássicos “nacionais”, ou étnicos ele é o resultado da composição, em uma obra só, de relatos poéticos variados e dispersos. Mas, ao contrário da maioria desses poemas, cuja composição remonta a épocas arcaicas, a redação do Kalevala é recente, e seu autor é bem conhecido: o médico e etnólogo Elias Lönnrot (1802-1884). Formado em medicina pela Universidade de Turku trabalhou como secretário de saúde em Kainuu, e aproveitou sua profissão, que o levava a percorrer o meio rural, para coletar poesias regionais tradicionais. Com elas compilou diversas obras, entre as quais Kantele (1831) – o título é uma referência ao instrumento de cordas tradicional – a primeira versão do Kalevala (Antigo: 1835), Kanteletar (1840) e Kalevala (o Novo: de 1849, sendo esta a versão aqui traduzida). Lönnroth selecionou narrativas míticas e lendárias, simplificou os relatos, procurou dar-lhes unidade de conjunto, se necessário inventando um ou outro trecho ou traço poético a fim de organizar o poema final; este processo foi semelhante ao que quase na mesma data (1848) Richard Wagner usaria para dar início à composição do Anel do Nibelungo a partir das mitologias nórdicas. A estrutura do poema em sua versão atual é composta de cinquenta cantos, ou capítulos, de dimensões variáveis, num total de 22.795 versos. O conjunto não forma uma narrativa única, mas uma sucessão de relatos cuja unidade é realizada não só pelo estilo e referências contextuais, mas por um grupo de personagens que vão se sucedendo e entrosando ao longo do poema. A ação, ou ações, passa-se em diversos territórios, que em tempos préhistóricos eram ocupados por povos distintos, mas no poema abrangem praticamente todo o território (e apenas ele) atualmente constituído pelo país Finlândia, e unificado também pelo idioma finlandês contemporâneo, o que fez do Kalevala um símbolo e um “tônico” espiritual na luta dos finlandeses (final do século XIX e início do XX) pela sua independência contra as nações vizinhas e particularmente contra a Rússia (1917).

Estrutura do poema

As narrativas passam-se num contexto de “antes do tempo”, quando os seres humanos conviviam com os animais, e neste sentido elas são mitológicas; todos os seres possuíam poderes superiores aos comuns da humanidade e natureza atual. Mas o Kalevala não é uma narrativa mítica no sentido de Jung e Eliade – em que o fato acontecido no “mundo dos deuses” é o protótipo e arquétipo do que acontece no mundo dos humanos – a não ser, como dissemos, como possível arquétipo da cultura e modo de pensar dos finlandeses. Considerando o Kalevala sob o aspecto das narrativas temáticas temos três grupos principais, constituídos pelas narrativas referentes a cada um dos heróis dominantes – Väinämöinen e Lemminkäinen – e o “coadjuvante” que é Ilmarinen, interrompidas, porém, por dois episódios: o referente à noiva de Ilmarinen, com as recomendações à mulher que vai casar (XX – XXV) e o referente a Kulervo, escravo de Ilmarinen (XXXI – XXXVI) que se compõe de uma sucessão de vinganças e tragédias. Outro tema é um objeto especial, que percorre e unifica todo o poema: o Sampo – algo que é indefinido, talvez indefinível, do qual depende, ao menos em parte, a ordem do mundo e a felicidade das pessoas, algo que se pode perder, ou quebrar, mas que pode ser reconstituído, mas que não se sabe, ou não se diz, o que é. Mas o tema da busca do misterioso Sampo começa no canto VII (310) e só termina com a sua destruição nos últimos cantos (XLVIII a L).

Os personagens

Os heróis do Kalevala, tal como os deuses e heróis da mitologia grega e nórdica, não são modelos das virtudes tradicionais, clássicas ou cristãs, mas são modelos de astúcia, como Ulisses, e de uso de poderes mágicos. São heróis “nacionais”, mas não são modelos morais nem arquétipos míticos. São fantasias da vida popular rural, talvez representem aspirações, talvez indiquem traços da mentalidade, ou do subconsciente coletivo. Todos os heróis têm que realizar tarefas difíceis para conseguir a mão das donzelas pretendidas: capturar um alce, derrubar um urso, construir um barco… Os dois personagens mais constantes e significativos – Väinämöinen e Lemminkäinen- são um velho feiticeiro (o primeiro), e um jovem estouvado (o outro). Väinämöinen aparece já no canto I, quando Ukko, o Criador, dá origem ao mundo, e, depois do surgimento do Sol, da Lua e das estrelas, a mãe-d’água Ilmatar dá à luz o herói. As circunstâncias deste nascimento, e o fato de estar colocado no início do poema mostram que Lönnroth destacou Väinämöinen como personagem principal de toda a narrativa; essa importância vem ainda dos poderes do herói semideus, que completa a criação do mundo como um demiurgo prometéico. Ao longo dos 50 cantos ele é citado e atuante em pelo menos trinta; além de demiurgo ele combate adversários, conquista mulheres, realiza prodígios, canta músicas encantadoras, e cura doenças. Lemminkäinen é o resultado da sobreposição de diversos personagens das poesias populares, e por isso aparece ao longo do poema com diversos nomes; mas sempre como o jovem estouvado; é citado na criação do mundo, mas só começa a ser atuante nos cantos XI – XV; vai ao casamento de Ilmarinen sem ser convidado; mata o amo de Pohja, e foge: perseguido, esconde-se numa ilha, conquista todas as mulheres, foge de novo, volta para casa, e vai fazer a guerra contra Pohja (XXVI – XXX); sua atividade “preferida” é conquistar donzelas, que persegue ao longo do poema, acabando por ter uma merecida fama de “garanhão” (Canto XXIX 243-246). Por isso e por ser arrogante e dado a brigas e bravatas, sofre perseguições, é morto, mas ressuscitado por sua mãe. Ilmarinen, o terceiro herói, é o ferreiro com poderes extraordinários, consegue forjar até um novo Sol; ele aparece em diversas passagens, mas só começa a ter papel destacado quando disputa com Väinämöinen, a mesma donzela de Pohja (ou Pohjola), e realiza proezas como lavrar um campo de víboras e capturar um urso (XIX). Finalmente Ilmarinen descobre que em Pohjola se vive bem porque têm o Sampo, e o conta a Väinämöinen (XXXVIII); é então que os três heróis principais se encontram (XXXIX) para juntos irem à procura do Sampo; enfrentam perigos de peixes gigantes, mas, morto o peixe (XL), Väinämöinen fabrica com as espinhas um kantele e com ele toca uma música que encanta o mundo inteiro (XLI) e adormece o povo de Pohja, a quem os heróis roubam o Sampo (XLII). Perseguidos pela dama de Pohjola, o Sampo se quebra e cai ao mar. Com sua música, poderes e unções Väinämöinen traz felicidade ao mundo, e Kalevala vence Pohjola. Numa sucessão de breves episódios finais (quase como adendos) Väinämöinen vence o urso (um ritual arcaico siberiano) e com Ilmarinen vai à procura do Sol, da Lua e do fogo, roubados pela dama de Pohja, conseguindo recuperálos. No final um velho batiza um menino como rei da Carélia; Väinämöinen retira-se deixando para o povo o seu kantele, seus cânticos, e a esperança de reaver o Sampo. Dos personagens haveria que destacar muitos outros elementos masculinos, mas há que referir sobretudo a presença de mulheres, algumas delas com ação importante, sobretudo a dama de Pohjola; dizer que a figura da mulher aparece sempre num papel secundário e submisso ao homem seria bastante óbvio, mas isso nem sempre é assim, e haveria que analisar o poema de maneira mais atenta para perceber que as ideias referentes à mulher não são sempre machistas. Entre os personagens não humanos há os animais, que na maioria dos casos são agentes passivos, e os sobrenaturais, como fadas, e semideuses, que não têm ação preponderante; apenas o criador, Ukko, é chamado algumas vezes para intervir, sabendo-se que tem poder decisivo, que pode modificar a sequencia dos acontecimentos.

Poema étnico

O lugar de origem das narrativas poéticas que compõem o Kalevala, onde Lönnroth os recolheu, é a Carélia, região que se divide entre o Sudeste da atual Finlândia, e a correspondente região fronteiriça da Rússia. Mas ao longo dos diversos cantos faz-se referência não só às outras regiões do atual país, inclusive até à Lapônia, no extremo norte, como a povos vizinhos, particularmente alemães, russos e estonianos. Na pré e proto-história o território da atual Finlândia era habitado por diversos povos, que foram sendo unificados, embora ainda subsistam evidências da diversidade: o país que conhecemos como Terra dos Fin, ou Finlândia, designa-se a si mesmo como Suomi, nome de outro povo. Mas desde antes da Idade Média as influências nórdicas, ou vikings, na maioria suecas e dinamarquesas, estão bem atestadas, por exemplo, pela fundação, no século XII, de Talin (capital da Estônia) com o nome de Tanikka (canto XXV 613) abreviatura provável de Tanimerki (Dinamarca, nota 219). Foi nesse período da Baixa Idade Média que se reforçou e consolidou a influência do cristianismo nos povos da Carélia e seus vizinhos do Báltico. Os especialistas consideram que de fato a mitologia e em geral a cultura da Escandinávia germânica, e a doutrina cristã, deixaram traços no Kalevala, mas só uma análise comparativa atenta pode destacar aquilo que para o leitor comum é sutil e passa despercebido.

A tradução

A linguagem original dos textos que compõem o Kalevala seria certamente o finlandês arcaico, ou mesmo outro idioma dos muitos povos que habitavam a região do Báltico; mas Lönnroth os recolheu em finlandês do século XIX, e deu-lhe ainda algumas características peculiares para reforçar o estilo poético-lendário, como a inclusão de muitas expressões onomatopaicas. A primeira tradução para o inglês é a de John Martin Crawford em 1888: ela acompanha rigorosamente o ritmo original do poema, que já está traduzido em mais de sessenta idiomas. No caso da tradução para português a principal dificuldade a resolver é o fato de o idioma finlandês ser uma língua do grupo uralo-altaico (correspondendo a alguns povos da Sibéria e do Altai, na Ásia Central), aparentada com o húngaro (magiar) e o estoniano, mas muito distinto, em estrutura gramatical, e vocabulário, dos idiomas indo-europeus; os vocábulos finlandeses possuem até dezesseis declinações, e as frases podem ser construídas sem verbo; além disso, a terminologia refere-se constantemente, e de modo particularmente expressivo na sua singularidade musical, a um contexto ambiental (natureza) diferente do português. As tradutoras procuraram resolver esses problemas mantendo o formato poético, a estrutura rítmica, e sempre que possível a rima dos versos; além disso realizaram um trabalho se não exaustivo pelo menos muito completo de apresentação de informações e complementos por meio de notas. O convite a um desenhista – Rogério Ribeiro – bom conhecedor da cultura finlandesa, permitiu, através de ilustrações, ampliar o aspecto figurativo da linguagem, infelizmente, porém, o ilustrador faleceu antes de concluir sua obra, que, em alguns casos, ficou apenas nos esboços.

Os povos eslavos, e, em parte, os bálticos, são aparentados com os celtas e germanos, e suas culturas e, particularmente, as literaturas, têm muito em comum; mas os europeus fino-úgrios, como uralo-altaicos que são, têm afinidades mais afastadas. Porém a história e a vizinhança criaram tantas interferências e intercâmbios que não podemos considerar o Kalevala uma literatura distante: ele nos é próximo, e, se nas semelhanças, podemos com ele recuar a traços comuns meso e neolíticos, nas diferenças podemos destacar os componentes do mosaico cultural que compõe a humanidade.

João Lupi – Departamento de Filosofia – UFSC. E-mail: [email protected]

LÖNNROT, Elias. Kalevala. O poema épico finlandês. Introdução de Seppo Knuuttila. Tradução de Merja de Mattos-Parreira e Ana Isabel Soares. Desenhos de Rogério Ribeiro. Alfragide (Lisboa): Dom Quixote, 2013. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 120-124, 2013. Acessar publicação original [DR]