A política da fé e a política do ceticismo | Michael Oakeshott

Em meio ao turbulento cenário político que o Brasil tem vivido nos últimos anos, com a polarização do debate entre grupos de “direita” e de “esquerda”, é visível em muitos lugares o empobrecimento do repertório político e a baixa qualidade das discussões. Nesse sentido, a obra póstuma do historiador britânico Michael Oakeshott (1901-1990), produzida na década de 19502 e publicada pela primeira vez em 1996 pela editora Yale University Press, intitulada The Politics of Faith and The Politics of Scepticism, e publicada no Brasil, no ano de 2018 pela editora É Realizações, vem em boa hora para auxiliar na reflexão de acadêmicos e pesquisadores que discutem temas políticos e sociais.

Sobre Michael Oakeshott, ele nasceu no ano de 1901 na Inglaterra e estudou História na Universidade de Cambridge. Tendo sido professor por um curto período de tempo na Universidade de Oxford, Oakeshott se tornou professor catedrático de Ciência Política na London School of Economics e foi o responsável pela criação do curso de mestrado em História do Pensamento Político na instituição. Como pensador e escritor, podemos localizar as ideias e as obras do autor na chamada “tradição conservadora britânica”, que tem como principal herança ideias e conceitos provenientes da tradição filosófica “cética” e “empírica”. Leia Mais

Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia – FLUSSER (AF)

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. São Paulo: É Realizações, 2018. Resenha de: PEREIRA, Juliana Santos. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.

A primeira edição de “Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma filosofia da fotografia” do filósofo e escritor tcheco-brasileiro Vilém Flusser foi inicialmente publicada em alemão – “Füreinephilosophie der fotografie” – e recriada e publicada em português pelo próprio autor no mesmo ano de publicação da edição alemã, 1983. O livro é resultado de aulas e conferências que aconteceram na Alemanha e na França, sendo pioneiro na discussão sobre a filosofia da fotografia, a qual se tornou o fio condutor de toda a produção de Flusser até o fim de sua vida. A reedição do livro pela editora É Realizações é fruto da pesquisa de doutorado de Rodrigo Maltez Novaes, durante o seu período de imersão no Arquivo de Berlim. Com o objetivo de enriquecer a edição, foram incluídos um texto de apresentação e posfácios de professores e intelectuais conhecidos por seus trabalhos com a obra do filósofo.

A obra “Filosofia da Caixa Preta” é apresentada para o leitor de capa como um livro de filosofia. Entretanto, localizá-lo em uma única disciplina é tarefa desafiadora, já que a hipótese de Flusser pode ser aplicada em diferentes áreas, como antropologia, sociologia, arqueologia e, por último e mais presente, em futurologia (ciência do futuro). Logo, é necessário começar pelo o que essa obra não é. Além de não ser apenas uma abordagem filosófica, ela também não é uma discussão sobre a arte da fotografia. O tema fotografia é utilizado como pretexto para uma discussão sobre como os aparelhos têm papel fundamental na modelação do pensamento humano. A palavra urgência é vista em vários momentos do livro como alerta à necessidade de uma filosofia dos aparelhos para que possamos manter a liberdade de pensamento. Para Flusser, a filosofia da fotografia é caminho para a liberdade e “liberdade é jogar contra o aparelho” (p. 100). Assim, tratar da intenção deste último é caminho para que possamos decifrá-lo.

Os aparelhos inauguraram o momento pós-industrial onde o homem, antes cercado por máquinas, passa a pensar, viver, conhecer, valorar e agir em função deles. O início desse momento é marcado pelo surgimento da fotografia. O filósofo defende que o aparelho fotográfico é o patriarca dos aparelhos, é o ponto de partida de uma nova existência humana que abandona a escrita linear em troca de um pensar imagético. “No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade.” (p. 98) Além do aparelho, os conceitos de imagem, imagem técnica, programa e informação são base para o desenvolvimento da hipótese flusseriana. Com o intuito de “criar atmosfera de abertura para campo virgem” (p. 10), Flusser nos apresenta um glossário com novos significados para as palavras, inserindo o leitor no universo pós-histórico das imagens técnicas, que inauguram “um modo de ser ainda dificilmente definível” (p. 9). O autor faz uso de elementos do universo fotográfico para conceituar a formação do pensamento por meio das imagens técnicas.

Ao abordar o conceito de imagem, o autor afirma que elas “são superfícies sobre as quais circula o olhar” (p. 96), são mediações entre o homem e o mundo. Para que esta mediação não seja percebida como a realidade, é necessário decifrar os elementos que são apresentados em sua superfície, que é dotada de múltiplos significados. O receptor, ao tentar decifrar a imagem, circula pela mesma voltando o olhar para elementos preferenciais de significado. O ato de circular pela imagem é definido por Flusser como “tempo de magia” (p. 16), tempo em que o olhar estabelece relações significantes.

Diferentemente da escrita linear, que possui plano contínuo e que “estabelece relações causais entre eventos” (p. 16). O autor afirma que as imagens não eternizam eventos; “elas substituem eventos por cenas” (p.

17). E é o que define o caráter mágico das mesmas. Se inicialmente as imagens tinham o propósito de “serem mapas do mundo” (p. 17), elas passaram a esconder o mundo para o seu receptor. A humanidade passa a viver em função delas e o mundo torna-se um conjunto de cenas. Sua superfície é a realidade. Assim, caracteriza-se a idolatria, o homem que vive magicamente. Diante desse homem, a humanidade, que não decifra mais imagens, passa a desfiá-las de modo que os elementos planos são postos em linhas. Surge a escrita linear e com ela a consciência histórica, “consciência dirigida contra as imagens” (p. 18). Antes da escrita linear, não havia história, e sim acontecimentos. Contudo, o homem novamente cria o instrumento para se servir dele e acaba servindo a ele. Como nova mediação, entre o homem e a imagem, o texto tapa a imagem para o homem, e o mesmo não é capaz de reconstituir as imagens explicadas pelos textos, ou seja, decifrá-los. A ciência é exemplo de como os textos explicam um universo inimaginável. Surge então a textolatria. Ambas as alienações tratadas pelo autor – idolatria e textolatria – acontecem pois há uma dialética interna inerente às mediações entre o homem e o mundo. Tanto a imagem quanto o texto representam o mundo, mas também o encobrem. Serve m para orientar a humanidade, mas também formam biombos, alienando-a e desalienando-a. O homem esquece da razão pela qual criou o instrumento e passa a agir em função dele.

E, diante de um universo inimaginável e dominado por textos, surgem as imagens técnicas. A fotografia é criada. Para seu deciframento, é importante entender seu posicionamento ontológico: “as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo” (p. 21). E é preciso considerar que essa imagem do mundo passou por intenções que incluem a “cabeça” do agente humano e um aparelho com conceitos definidos. O aparelho é incógnita no processo de codificação dos símbolos, é caixa preta, “dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las” (p. 24). Devido a isso, as imagens técnicas tornam-se barreiras entre o homem e o mundo.

Historicamente, as imagens tradicionais (pinturas) definem a pré-história e o surgimento da escrita linear (texto) define o conceito de história. O surgimento das imagens técnicas define o fim de uma narrativa linear e, portanto, o início da pós-história. As imagens técnicas são, segundo o filósofo, a segunda tentativa da humanidade de resolver os desdobramentos gerados por revoluções fundamentais na estrutura cultural.

“As imagens técnicas são produzidas por aparelhos” (p. 29). Para apresentar o conceito de aparelho, Flusser, por meio de uma perspectiva histórica, aponta três momentos importantes da relação da humanidade com os objetos culturais. No período pré-industrial, o homem era cercado por instrumentos, que “são prolongações de órgãos do corpo” (p. 31). A enxada é o dente; o martelo é o punho. Com a revolução industrial, os instrumentos são aperfeiçoados por teorias científicas e temos então as máquinas. O autor afirma que os instrumentos funcionavam em função do homem até então e, no período industrial, o homem passa a funcionar em função das máquinas. Com a criação da fotografia, ou seja, do aparelho fotográfico, o filósofo aponta para uma dificuldade em definir este novo objeto cultural, uma vez que é pós-industrial. O período industrial é marcado pelo trabalho, e aparelhos não trabalham, são brinquedos. A intenção deles, segundo o autor, não é modificar o mundo, e sim modificar a vida do homem. O homem que os opera não trabalha, ele joga – é “ homo ludens” (p. 35).

O funcionário que o manipula está concentrado em explorar as suas potencialidades, é a “pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele” (p. 9). O aparelho emancipa o homem do trabalho e o libera para o jogo.

Por meio do aparelho fotográfico, o conceito de programa é apresentado. As imagens geradas pelo aparelho contêm em sua superfície o resultado do que foi programado e pré-inscrito no mesmo. Inscrição feita com conceitos definidos por outro programa, a indústria fotográfica. Os conceitos definidos, de acordo com os interesses da indústria, permutam no aparelho de maneira automática e aleatória. As intenções do fotógrafo precisam passar por esses conceitos, para que se chegue à fotografia. Por estar amalgamado, imerso, o fotógrafo tem suas intenções limitadas pelas possibilidades dispostas no programa. Não se escolhe dentro de limitações, “o fotógrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no a parelho” (p. 49).

Portanto, cabe questionar: há liberdade no ato de fotografar? Para o filósofo, ser livre é conseguir driblar o programa que foi criado por outro programa, a indústria fotográfica, que responde a outro acima dele e assim consecutivamente.

“Todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas está aberta para cima” (p. 38).

E é nesse ponto que o autor levanta o problema da crítica à fotografia e de como os críticos já estão inseridos no aparelho. Para Flusser, no embate entre o homem e o aparelho, a vitória humana só é possível se ele conseguir contornar os limites do programa. Logo, “as fotografias ‘melhores’ seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho” (p. 58).

Flusser também aponta problemas ligados aos canais de distribuição da fotografia que imprimem o significado final da imagem por meio de linhas editoriais. Para uma crítica adequada da fotografia, é necessário considerar os canais de distribuição no momento do seu deciframento. Além das intenções primárias a serem analisadas, a do fotógrafo e a do aparelho, é preciso analisar as intenções do canal de distribuição. Flusser afirma que os canais de distribuição são silenciados pela maior parte da crítica e o resultado dessa crítica funcional é que “o receptor da fotografia vai recebê-la de modo não crítico” (p. 70).

O filósofo também trata dos conceitos de propriedade e informação, que têm seus valores redefinidos no universo da fotografia. O caráter multiplicável do objeto fotográfico tem como resultado a perda de valor da mesma. O valor da fotografia não está no papel no qual foi impressa, mas sim na informação contida em sua superfície. Portanto, a informação passa a ter mais valor que o objeto em si – a “folha” (p. 70). Ser proprietário de uma folha fotográfica não tem mais o peso de propriedade da era industrial. Ser proprietário do programa que distribui a informação é o que de fato tem valor. “Pós-indústria é precisamente isto: desejar informação e não mais objetos” (p. 64). O poder não está mais em quem possui os aparelhos, mas em quem é dono dos programas. E também em quem produz os programas.

Para além da sua desvalorização como objeto, as fotografias contribuem para uma ausência de consciência histórica. Fotografias de fatos históricos pedem análise de suas causas e efeitos para seu deciframento, o que implica ir além dos significados postos n a superfície da imagem. O receptor, programado magicamente, não vai além da imagem, uma vez que essa é a realidade e nada mais precisa ser explicado, lido, contextualizado. Os olhos programados já se encarregaram de entender os fatos. “Esse ‘saber melhor’ deve ser reprimido quando se trata de agir segundo o programa” (p. 78). A repressão da consciência histórica contribui para uma existência robotizada, pois somente ela é capaz de tornar transparente o jogo dos aparelhos.

No fim do livro, Flusser dirige a questão da liberdade aos fotógrafos experimentais, pois sua práxis é realizada contra o aparelho. Ele trata da estupidez do aparelho, enfatizando que os programas podem ser alterados, as informações produzidas podem ser desviadas e, portanto, são passíveis de serem driblados. E essas ações só serão possíveis quando a humanidade encarar o jogo dos aparelhos, quando a intenção dos donos do programa for revelada. Somente assim retomaremos a liberdade de pensamento.

“Filosofia da caixa preta” é uma obra atual e impactante. Tratar do universo fotográfico desta obra é tratar do universo dos aparelhos: administrativo, político, publicitário. A urgência de Flusser é sobre como exercer a liberdade em um contexto em que a humanidade já está integralmente programada – se é que ainda há tempo para se libertar na atualidade, uma vez que “a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos” (p. 98). Em “ Filosofia da caixa preta ”, Flusser pede para refletirmos sobre um pensa r imagético, um pensar no “modo pelo qual ‘pensam’ computadores” (p. 97).

Juliana Santos Pereira-Bacharela em Comunicação Social (UAM). Pós-graduanda em Artes Plásticas e Contemporaneidade (UEMG). E-mail: [email protected]

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Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: sobre os seminários de 1933-1935 – FAYE (RFA)

FAYE, Emanuel. Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: sobre os seminários de 1933-1935. Trad. Luis Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2015. Resenha de: PELBART, Peter Pál. Heidegger nazista? Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.28, n.44, p.719-727, maio/ago., 2016.

Não foi o primeiro nem terá sido o último terremoto a abalar o perímetro “heideggeriano” na publicação de Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: Sobre os seminários de 1933-1935, de Emanuel Faye1 . Filho de Jean Pierre Faye, conhecido estudioso da linguagem totalitária e cáustico adversário da recepção acrítica da obra de Heidegger na França, o autor se debruça sobre os seminários ministrados pelo filósofo nos dois primeiros anos subsequentes à ascensão de Hitler ao poder, bem como sobre documentos, discursos e cartas inéditas do período, liberados pela família apenas em 2001. Com essa pesquisa farta em documentação, citações e testemunhos, o quadro já desenhado por Hugo Ott e Victor Farias ganha cores mais sinistras. Então, vejamos. Em agosto de 1933, na qualidade de reitor da Universidade de Freiburg, Martin Heidegger pronuncia as seguintes palavras diante do Instituto de Anatomia Patológica da cidade: “O povo alemão está em vias de reencontrar agora sua essência própria e de tornar-se digno de seu próprio destino. Adolf Hitler, nosso grande Führer e chanceler, através da revolução nacional-socialista, criou um Estado novo […] Para todo povo, a primeira garantia de autenticidade e grandeza está no seu sangue, no seu solo e no seu crescimento corporal”. No ano seguinte, poucos dias antes de renunciar à função de reitor, ele escreve ao ministério de Karlsruhe, insistindo na criação de uma “cátedra de professor ordinário de doutrina racial e de biologia hereditária”, para ensinar aos estudantes “a visão do mundo nacional-socialista e o pensamento da raça”. Eugen Fischer, teórico do eugenismo e um dos primeiros defensores do genocídio dos povos ditos “inferiores”, próximo de Heidegger, nomeia um protegido seu para o cargo. Num seminário do período, Heidegger assim define uma raça, em total sintonia com o que circulava na época: “O que nós chamamos de ‘raça’ entretém uma relação com o que liga entre si os membros de um povo — conforme sua origem — pelo corpo e pelo sangue.” No entanto, a biologia não bastaria para o filósofo da Floresta Negra como critério decisivo. Assim, os não-arianos — entenda-se, os judeus — devem ser definidos antes de tudo pela sua natureza desenraizada, já que são desprovidos de solo (um povo sem-terra não é um povo) e desprovidos de mundo (como os animais, aliás), e por conseguinte, simplesmente não pertencem à história do Ser. Aliás, o desenraizamento que caracteriza o mundo ocidental não poderia ter outra proveniência — a judeidade predominante. Se tal metafísica da raça justifica uma separação absoluta entre arianos e judeus, ela ganha, nas palavras de Heidegger, a conotação de uma guerra, com todas as consequências que esse termo pode carregar no período em que é enunciado. Ao traduzir polemos por guerra (Krieg), combate (Kampf) e confrontação (Auseinandersetzung), o filósofo acrescenta em seu seminário de 1933-1934 essa nota, da qual não está ausente a marca de seu amigo e interlocutor Carl Schmitt: “O inimigo é aquele, qualquer um, que faz pairar uma ameaça essencial contra a existência do povo e de seus membros. O inimigo não é necessariamente um inimigo exterior, e o inimigo exterior não é necessariamente o mais perigoso. Pode até parecer que não haja inimigo nenhum. A exigência radical consiste então em encontrar o inimigo, em trazê-lo à luz ou talvez até mesmo em criá-lo, a fim de que se dê esse surgimento contra o inimigo e que a existência não seja bestificada. O inimigo pode ter se entificado sobre a raiz a mais interior da existência de um povo, e contrapor-se à essência própria deste, agir contra ele. Tanto mais acerbo e duro e difícil é então o combate, pois só uma parte ínfima deste consiste em ataque recíproco; com frequência é ainda bem mais difícil e laborioso detectar o inimigo enquanto tal, levá-lo a desmascarar-se, não iludir-se a seu respeito, estar pronto para o ataque, cultivar e aumentar a disponibilidade constante e iniciar o ataque no longo prazo, tendo em vista a aniquilação total (völligen Vernichtung)”2 . Como se vê, a ontologização do anti-semitismo promovida por Heidegger não é capaz de ocultar o fundo racista, apenas lhe fornece, com seu pathos heróico, um verniz pretensamente filosófico. Com razão, Faye se pergunta se não teríamos aí a antecipação teórica, difundida em seu seminário, da “solução final”, assim como o “crescimento corporal” mencionado mais acima, seria a justificação prévia para a expansão territorial do III Reich.

A doutrinação a que Heidegger submeteu seus alunos nesse período não terá constituído um episódio circunstancial, um desvio de rota, uma incompreensão política momentânea. Foi, ao contrário, a expressão fidedigna e assumida de uma visão de mundo coerente, que precedeu a ascensão do nazismo e se prolongou para além do período do reitorado, e até mesmo da própria queda de Hitler. Claro, sempre se pode alegar que o discurso anti-semita era corrente por toda parte na Alemanha da época, o que escusaria Heidegger da expressão usada em carta escrita a sua futura esposa Elfride já em 1916: “A judaização (Verjudung) de nossa cultura e das universidades é assustadora e penso que a raça alemã deveria encontrar força interior suficiente para atingir o topo”3 . Mas o que entender por judaização, termo retomado por Heidegger na década seguinte, em um contexto onde tal palavra ganharia um alcance funesto, e sobretudo na pena de um autor que, alega-se, foi atento como poucos neste século ao sentido, alcance e responsabilidade das palavras? Será tal judaização o domínio exercido por judeus em várias esferas da cultura? Ou da economia, finanças, ciências? Algo próximo, então, do sinistro documento produzido pela polícia política do czar, Os protocolos dos sábios de Sião, demonstrando o complô mundial dos judeus? Ou algo mais profundo e vasto, mais abrangente e perigoso?

Não se trata apenas de evocar os episódios pessoais ou medidas administrativas, documentos oficiais ou relações comprometedoras, mostrando como desde o início de seu reitorado Heidegger se ajusta com afinco às instruções antissemitas do Ministério (perfilamento, Gleichschaltung), introduzindo o princípio de chefia vertical em todas as instâncias da universidade (Führung), abolindo as eleições e pregando uma concepção de liberdade universitária dirigida apenas para o “engajamento espiritual e comum no destino alemão”. Isso sem contar a defesa dos campos de trabalho e educação, de saúde da raça, as conexões diretas com as associações de estudantes e seu franco ativismo nazista, com placas antissemitas disseminadas no campus e autos-da- -fé que o filósofo jamais interditou — muito ao contrário. Faye trata de adentrar no âmago do ensinamento de Heidegger no período, e o que vem à tona é nada menos do que uma filosofia penetrada de nazismo de cabo a rabo, onde se desdobra uma apologia da superioridade alemã do ponto de vista historial, e por conseguinte o lugar exclusivo da Alemanha na possibilidade de encetar um “novo começo” que pudesse ressoar com o começo grego — e que o movimento nacional-socialista estaria em vias de encarnar. Para tanto, os termos de Combate (Kampf), Sacrifício (Opfer), Destino (Schicksal), Comunidade do povo (Volkgemeinschaft), Sangue e Solo (Blut und Boden), Adestramento (Zucht), Raça (Rasse, Stamm, Geschlecht), Dirigente (Führer), Popular-nacional (volkisch), também presentes em Mein Kampf ou nos discursos diários de Hitler, são abundantemente utilizados pelo filósofo, empacotados em aura metafísica ou onto-historial. Seja no seminário Sobre a essência e os conceitos de natureza, de história e de Estado, seja no Hegel, sobre o Estado, ministrados em 1933 e 1934, aparece a relação primordial entre o Povo, entendido como a Comunidade de raça, e o Führer, que é identificado com o Estado.

O que não pode deixar um filósofo indiferente é a equivalência que se explicita entre Povo e ente, Estado e Ser: “O povo, o ente, entretém uma relação muito precisa com seu ser, com o Estado” (Das Volk, das Seiende hat ein ganz bestimmtes Verhältnis zu seinem Sein, zum Staat)4 . Assim, a diferença ontológica aparece à luz de seu substrato político nazista. É esse o sentido mesmo do livro de Faye — mostrar que essa filosofia veicula uma ideologia nazista, o que levanta a questão de saber se ainda pode ser considerada uma filosofia. Sendo o objetivo último dessa ideologia a afirmação de si de um povo específico ou a exclusividade de uma única raça com direito a habitar e dominar a Terra, ela é acompanhada de um cortejo de noções: a Técnica como manifestação da potência natural de um povo — ponto de vista esse revirado após a derrota nazista — assim como o Trabalho enquanto tarefa suprema em favor do Estado: “Só existe um ‘estado de vida’ alemão. É o estado do trabalho, enraizado no fundo portador do povo e livremente ordenado na vontade histórica do Estado, cuja marca (Prägung) é pré-configurada no movimento do Partido Nacional-Socialista dos trabalhadores alemães.”5 Com o pathos da grandeza, da veneração, da formação de uma elite à altura da missão, tudo indica que a questão “O que é o homem?” se converte em “Quem é o homem?”, de modo que a pergunta esquecida sobre o sentido do Ser aparece aí como a pergunta perfilada sobre o Destino do povo alemão, num contexto em que o eros do povo em relação ao Estado desenharia uma nova possibilidade, um novo começo. “Quando hoje o Führer fala continuamente da reeducação em direção à visão de mundo nacional-socialista, isto não significa: inculcar um slogan qualquer, mas produzir uma transformação total, um projeto mundial, com base no qual ele educa o povo como um todo. O nacional-socialismo não é uma doutrina qualquer, mas a transformação do mundo alemão e, como acreditamos, do mundo europeu”6 . A visão de mundo deve estar na base de uma filosofia, e não dela derivar. A hipótese de Faye é que a posição de Heidegger a respeito não mudou depois do reitorado, apenas se intensificou e se radicalizou. Assim, na obra escrita entre 1936 e 1938, e publicada apenas em 1989, Beiträge zur Philosophie, aparece a equivalência já prenunciada entre cristianismo, bolchevismo, racionalismo, ocidentalismo e […] judaismo. Ao apontar o fundamento judaico desse conjunto, Heidegger o explicita como “maquinação” (Machenschaft), termo que recobre um leque de sentidos, todos atribuíveis à figura do judeu, desde a manipulação, o engodo, o complô, até o próprio cálculo, rendimento, tecnicismo, predomínio da vontade de poder. Curiosamente, mas este é apenas um parêntese anedótico, Deleuze é talvez o primeiro no mesmo século a assumir alegremente o caráter “desenraizado” (“desterritorializado” e “desterritorializante”) da filosofia, bem como sua dimensão “maquínica” (veja-se O anti-Édipo) — não seria o “esquizo”, o judeu de Heidegger, porém positivado?

Fechado o parêntese, chegamos assim, num crescendo, à mais terrível das questões. Segundo os textos da época, para Heidegger morrem apenas aqueles que “podem” morrer, isto é, que trazem em si a “possibilidade” da morte. E só pode morrer, estritamente falando, aquele cujo ser lhe dá tal “poder, aquele que está no ‘abrigo’ da ‘essência’ do Ser”. Os exterminados nos campos de concentração não trazem essa “possibilidade”, já que estão forcluídos da história do Ser; eles não são “mortais”. Portanto, no sentido rigoroso, não morreram. O negacionismo aí presente só pode contar como “mortos” os próprios alemães — não os ciganos, russos, poloneses, populações inteiras gazificadas, etc. Eis o comentário de Faye: “O conteúdo do texto de Heidegger supera em abjeção o racismo nacional-socialista e a aniquilação física, moral e espiritual que ele visava”.

Com razão o leitor desse livro há de se perguntar como tudo aquilo que colheu em Heidegger sobre o “Ser-aí”, a Angústia, a Solidão, o Cuidado, a Abertura, todo o domínio do existencial, podem coadunar-se com o que acaba de ser evocado. Infelizmente, no contexto descrito mesmo tais noções vão aparecendo em sua coloração volkisch. Eis, por exemplo, a conclusão da sétima sessão do seminário de inverno de 1933-1934: “É somente ali onde o Führer e aqueles que ele conduz se ligam em um único destino e combatem pela realização de uma ideia que pode crescer essa ordem verdadeira. Então, a superioridade espiritual e a liberdade implementam-se enquanto dom profundo de todas as forças do povo, ao Estado, enquanto treinamento mais severo, jogo, resistência, solidão e amor. Então, a existência e a superioridade do Führer arraigaram-se no ser, na alma do povo para ligá-la original e passionalmente à tarefa”. Os filosofemas, os clichês, a pseudo-profundidade, a poesia (Lacoue-Labarthe já declarou que toda a segunda fase da obra de Heidegger em torno do poético é inteiramente kitsch!) — é essa mistura que fascinou mais de uma geração de filósofos, que Faye revira do avesso para mostrar seu fundo abjeto.

Isso tudo, diga-se de passagem, dez anos antes da publicação na Alemanha do que se poderia traduzir como Cadernos Negros, espécie de diário escrito por Heidegger entre 1930 e 1970, onde o filósofo como que abre sua caixa preta, e explicita como em nenhum outro lugar seu anti-semitismo (metafísico! exclamarão seus defensores) e sua relação de fé nos princípios do movimento nacional-socialista — confirmando tudo o que ainda poderia parecer uma interpretação maledicente. Na esteira dessa publicação recente, coordenada por Peter Trawny, e do terremoto filosófico daí advindo, a Bibliothèque Nationale em Paris acolheu um colóquio intitulado Heidegger et les“Juifs”, disponível na íntegra no Youtube7 . Se o livro de Faye produziu um impacto menor na ocasião de sua publicação há dez anos atrás, não é porque o seu teor e as informações ali coletadas fossem pouco bombásticas, mas talvez porque sua postura tão categórica e combativa foi imediatamente estigmatizada como “anti-heideggeriana” e, portanto, desqualificada. Outro foi o caso de Trawny, menos suspeito não só por ter sido o responsável pela edição dos Cadernos Negros, mas por ter assumido uma posição mais nuançada do que Faye em seu livro Heidegger et l´antisémitisme: Sur les “Cahiers noirs”. Isso não evitou que fosse virulentamente criticado por Michèle Cohen-Halimi e Francis Cohen em Le cas Trawny, acusado de ter tentado edulcorar o anti-semitismo do filósofo através de sua enunciação onto-historial — como em Poe da carta roubada, onde mostrar tudo é a melhor maneira de ocultar do que se trata.

Para além das querelas e dos estigmas, e mesmo que se discorde de inúmeras apreciações mais gerais de Faye, e repetitivas à exaustão, sobretudo aquelas em que ele põe em dúvida a estatura da filosofia de Heidegger, na contramão de uma reverência que várias gerações de pensadores lhe asseguraram, de Sartre a Badiou, passando por Jean Luc Nancy e Barbara Cassin, é inegável o trabalho de pesquisa minucioso e o farto material inédito trazido pelo livro.

Talvez a hipótese lateral que Faye deixa entrever seja pertinente, na esteira dos documentos a que teve acesso: Heidegger ansiou por ser uma espécie de profeta do nacional-socialismo, em paralelo ao Führer e para além dele. Hoje, aliás, fica difícil de entender de outra maneira por que razão ele teria programado em detalhe a publicação de seus Cadernos Negros para o final da edição dita integral de suas obras — como que no lugar de seu coroamento. Certamente não para retratar-se — ele o teria feito em vida, se assim o desejasse. Para reiterar a validade da aposta, que apenas os séculos vindouros poderiam confirmar? A provocação de uma ouvinte no Colóquio da Bibliothèque Nationale não pode deixar de ressoar, depois da leitura desse livro de Faye, tão sulfuroso quanto doloroso: deveríamos colocar Heidegger ao lado de Kant e Hegel, na estante dos maiores filósofos da História, ou, ao invés disso, ao lado dos ideólogos oficiais do nacional-socialismo, tais como Rosenberg e Baeumler, ou mesmo Carl Schmitt e Ernst Jünger? O fato de que tal pergunta pôde ser formulada é um indício, entre outros, de que a querela em torno de Heidegger está longe de chegar ao seu fim8

Notas

1 Emanuel Faye, Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: sobre os seminários de 1933-1935, trad. Luis Paulo Rouanet, São Paulo, É Realizações, 2015 [Heidegger, l´introduction du nazisme dans la philosophie: autour des séminaires inédits de 193301935, Paris, Albin Michel, 2005]

2 Martin Heidegger, Gesamtausgabe, 36/37, Frankfurt-am-Main, Vittorio Klostermann, 2001.

3 Carta de 18 de outubro de 1916, “Mein liebes Seelchen!”, Briefe Martin Heideggers an seine Frau Elfride 1915-1970, editadas e comentadas por Gertrude Heidegger, Munique, 2005, p.51.

4 M. Heidegger, Über Wesen und Begriff von Natur, Geschichte und Staat, sétima sessão, fragmento da § 5; ver Theodor Kisiel, “Heidegger als politischer Erzieher: der NS-Arbeiterstaat als Erziehungsstaat, 1933-34”, Norbert Lesniewski (ed), Frankfurt, Berlim, Lang, 2002, p.87 (anexo), cit por E. Faye.

5 M. Heidegger, Der Ruf zum Arbeitsdienst, Gesamtausgabe 16, Frankfurt, Vittorio Klostermann, p.239, cit por E. Faye.

6 M. Heidegger, GA 36/37, op. cit., p 225, cit por E. Faye.

7 PETER TRAWNY. Colloque. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Aiem3GNkeu8>.

8 Uma das mais lúcidas análises do teor regressivo e conservador da “radicalidade” atribuída a Heidegger foi feita por Leo Strauss ainda em 1941, ao mostrar como a geração do entre-guerras na Alemanha nutria um “niilismo” difuso, composto por um ódio pela civilização ocidental, desprezo pela democracia liberal, ojeriza pela utopia comunista, veneração por uma cultura (Kultur) de elevação seletiva, sacrifício, combate e belicismo. Strauss deplora que os intelectuais da época tenham aberto as portas para que essa “emoção” desembocasse na adesão a Hitler. A conferência “Sobre o niilismo alemão” foi proferida em 26 de fevereiro de 1941 no seminário As experiências da Segunda Guerra Mundial, promovido pela Graduate Faculty of Political and Social Scienceda New School for Social Research, em Nova York. O texto de referência, datilografado pelo autor, e posteriormente revisto por ele, só foi publicado postumamente (Strauss faleceu em 1973), em 1999, simultaneamente na revista Commentaire, nº 86, em francês, e em inglês na revista Interpretation, Queen’s College, Nova York, v.26, nº 3.

Peter Pál Pelbart – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Filosofia. E- mail: [email protected]

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Casa-Grande & Senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições – LIMA (AN)

LIMA, Mario Helio Gomes de. Casa-Grande & Senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições. São Paulo: É Realizações, 2013. 198 p. Resenha de: OLIVEIRA, Amurabi. Do pretexto ao subtexto de Casa-Grande & Senzala. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, p. 449-457, dez. 2015.

O historiador e antropólogo Mario Helio Gomes de Lima (2000, 2010) já havia dedicado dois livros à obra de Gilberto Freyre, entretanto, seu mais recente trabalho, Casa-Grande & Senzala: o livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições, não se volta a um exame mais amplo do legado intelectual do pensador pernambucano, mas sim à sua obra mais célebre: Casa-Grande & Senzala. Esse livro, publicado originalmente em 1933, formou o primeiro volume de uma tetralogia inacabada intitulada Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil, da qual fazem parte Sobrados e Mucambos, de 1936, e Ordem e Progresso, de 19571.

Sendo Casa-Grande uma obra clássica, que se constitui como um referencial para diversos campos disciplinares, em especial para os da Sociologia, Antropologia e História, ela já foi bastante debatida e examinada. Todavia, como indica Lehmann (2008), houve, nos últimos anos, um crescimento evidente do interesse pela obra desse autor, o que tem mobilizado pesquisadores, tanto brasileiros quanto estrangeiros, a buscar novos ângulos de análise de seu trabalho. O livro de Helio não se propõe a ser um exame detalhado aos moldes de Guerra e Paz, que almejou lançar novas teses interpretativas (ARAÚJO, 1994), mas sim, um trabalho cujo valor encontra-se no seu caráter esclarecedor, e mesmo didático, a respeito de Casa Grande & Senzala e de seu autor, sanando algumas dúvidas que surgem durante a leitura e desvelando alguns dos mistérios da escrita desse que é considerado um dos livros que inventou o Brasil (CARDOSO, 2013). Esse trabalho hercúleo é realizado não apenas através de um exercício de interpretação da própria obra, mas também por meio do diálogo com outros livros de Freyre, além de seu “diário”, publicado com o título de Tempo Morto e Outros Tempos (2006b), e de cartas trocadas entre o pensador e alguns de seus contemporâneos, que revelam as contradições, anseios e angústias do autor durante o processo de construção dessa obra monumental.

O livro encontra-se subdividido em seis partes: 1) o pretexto, 2) o intertexto, 3) o contexto, 4) o texto, 5) os entretextos, 6) o subtexto. Essa organização não visa apenas a didatizar a apresentação do tema central do livro, mas a apresentá-lo de tal modo que ele consiga ser tanto uma valiosa introdução aos neófitos no legado de Freyre, quanto um trabalho de síntese útil aos leitores mais familiarizados com a obra do intelectual de Apipucos2.

Na primeira parte, apesar de a apresentação de Gilberto Freyre não se resumir à simples descrição da biografia pessoal ou da formação intelectual do autor, o que não é olvidado completamente, Helio chama a atenção para a forma como Freyre grafava seu sobrenome, com “Y” e não com “I”, bem como “Mello” e não “Melo”, o que já apontara para o seu interesse pelo passado, pela origem dos nomes e suas raízes. Desse modo, destaca-se que, para Freyre, o passado nunca é totalmente esquecido, mas sim, vivo e pulsante, projetando-se no presente e no futuro. Afinal, para ele, o tempo era “tríbio”, ou seja, passado, presente e futuro se interpenetravam continuamente. Sua formação intelectual inicial e a vivência nos Estados Unidos tiveram um peso significativo na elaboração de seu modo de entender o Brasil, especialmente no que diz respeito às relações raciais. Nesse sentido, também pesa a complexa posição política que adotou, com sua aproximação a Estácio Coimbra (1872-1937) e seu subsequente exílio com a ascensão do governo de Vargas, em 1930, período no qual escreveu seu livro mais conhecido.

Em O Intertexto, o foco volta-se para a própria escrita de Freyre, afinal, ele afirmava que, antes de ser sociólogo, antropólogo ou historiador, ele seria escritor (FREYRE, 1968). Como já havia notado Motta (2009), Freyre tinha algo mais de artista do que de cientista. Porém, sua marca não se restringia à escrita cambaleante entre o fazer científico e o fazer literário, entre os quais ele não percebia haver barreiras estanques, ela também estava presente no exercício contínuo de reescrita de seus próprios trabalhos, o que inclui seu diário de juventude, em grande medida, uma “autoficção”.

Como é bem demonstrado, nos momentos em que Freyre buscou ser historiador sempre o foi com hífen: “historiador-sociólogo”, “historiador-antropólogo”, todos unidos pelo “historiador-escritor”, pois, “O Gilberto Freyre historiador é o que não separa – como muitos antigos, da sua tradição clássica muito remota, mas sempre viva e presente – o escritor da escrita, nem a narração do narrado ou do narrador” (p. 58). Não podemos esquecer que, para Freyre, a saudade é uma ferramenta heurística que lhe possibilita revivenciar empaticamente o passado (VILLAS BOAS, 2006), para assim compreender melhor o presente; metodologicamente, essa indissociabilidade também é fundamental. De forma bastante sintética nos são apresentadas aquelas que seriam as principais influências do autor de Casa-Grande & Senzala: A escrita de Freyre plasma-se em duas influências fundamentais: os textos de autores portugueses (tanto os ortodoxos quanto os heterodoxos) e da literatura moderna dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Espanha, que frequentou na década de 1920. Duas influências individuais poderosas na sua formação: Oliveira Lima e Franz Boas, na época de sua formação nos Estado Unidos. (p. 62) A respeito da influência de Franz Boas, é relevante considerarmos os questionamentos realizados por Motta e Fernandes (2013), que apontam para o seu peso relativo na formação de Freyre, considerando que ele fez seus estudos de pós-graduação em História Social e não em Antropologia, ainda que tenha cursado disciplinas nesse departamento (PALLARES-BURKE, 2005). Assim, Boas nunca foi seu orientador no sentido formal do termo. Ademais, ainda que ele reivindique a influência decisiva de Boas em sua obra desde o prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2005), os autores apontam outras influências intelectuais que teriam pesado de forma mais significativa na formação intelectual de Freyre, como Charles Maurras (1868-1952).

Nesse capítulo, Helio ainda realiza um exercício bastante didático de classificação dos trabalhos de Freyre, organizando-os em grandes blocos em termos de temáticas, finalidades, relevância e, principalmente, de conexão entre eles; afinal, o autor busca demonstrar que, apesar da diversidade, haveria uma unidade de propósitos, métodos e realização na obra de Freyre, de modo que: “Encontrar esses pontos são os primeiros passos para uma leitura empática do que fez” (p. 74).

Já em O Contexto, o livro trata do cenário de fundo do período de publicação de Casa-Grande & Senzala, tanto em termos de dados mais objetivos, considerando, por exemplo, o caráter rural e analfabeto do país naquele período, quanto em termos do debate intelectual colocado ao fundo. Nessa direção, sua análise conflui com a de Bastos (2006) ao indicar que a questão racial era central para as discussões políticas e intelectuais dos anos de 1920, sem desconsiderar as condições às quais Freyre estava exposto de forma mais sui generis, como no que diz respeito a suas restrições orçamentárias. Esse capítulo também é interessante por desvelar algumas lendas que Freyre criou em torno de si próprio, comparando alguns dados que são citados em livros e a forma com que aparecerem nas cartas pessoais.

A contextualização realizada compreende ainda as condições dadas para a produção desse clássico do pensamento social brasileiro, bem como a cena cultural de fundo. Por exemplo, apesar de soar anedótico, Helio traz à tona o dado de que, em 1932, a música mais bem-sucedida no carnaval foi O Teu Cabelo não Nega, que era acompanhada de outras músicas cujo tema era a questão da mestiçagem, especialmente por meio da figura da mulata. Sendo assim, Casa-Grande & Senzala seria o estudo mais abrangente naquele contexto sobre um tema que estava posto no cotidiano dos brasileiros, o que explica, em parte, o forte impacto que sua publicação teve nos meios intelectuais. Esse livro teria realizado uma nova leitura do Brasil, elaborando uma visão que o país tinha de si mesmo quanto à mestiçagem. Para Cardoso (2013), a ressonância de Casa-Grande & Senzala até o atual período se deve ao fato de que Freyre cria um mito sobre o Brasil, no qual nós nos reconhecemos e gostamos de acreditar. Não me parece que Helio discorde totalmente dessa leitura, mas ele destaca que houve uma série de ações paralelas no plano cultural que confluíram com algumas das questões postas por Freyre, ao menos no sentido de tentar construir uma nova interpretação do país.

Outro detalhe interessante diz respeito à ambiguidade do ano de lançamento do livro, já que, como fora publicado no final do ano, na folha de rosto a data é 1933 e, na capa, 1934. É assim que esse capítulo é iniciado, discutindo ainda como: O título é quase uma metáfora das relações de raça e de classe no Brasil. Parte de uma simplificação do complexo arquitetônico-político-econômico da colonização portuguesa.

Não que casa-grande ou casa grande fosse o termo corrente ao longo dos séculos para designar a residência dos senhores – o termo usado era casa de vivenda ou casa de morada –, mas funciona bem para designar uma sociedade de extremos, contrastes e contradições em que a cordialidade pode abraçar a violência. (p. 103-104) Helio retoma a dificuldade de classificação do livro, que pode ser compreendido tanto como um livro autônomo quanto como parte de um projeto maior, de uma tetralogia que finalizaria com o livro Jazigos e Covas Rasas. Porém, esse último projeto não chegou a ser realizado. Sem embargo, Helio chama a atenção para o fato de que a sequência dos livros, especialmente os da trilogia publicada, passa, em alguma medida, uma falsa impressão, já que o autor não observaria os períodos históricos dentro de uma visão convencional. Haveria sim “[…] algo de anárquico no seu modo de trabalhar o tempo, resultante não só do corte sincrônico da antropologia, mas de sua paixão pela literatura, domínio por excelência do mito (ou vice-versa). Não é anacronismo o que reivindica, e sim a interpenetração do tempo” (p. 111). Esse exercício é realizado tomando como chave analítica o oikos, a história íntima da sociedade patriarcal.

O autor ainda se volta para o debate entre Freyre e seus críticos, sejam aqueles que questionam seu rigor científico sobre alguns temas, como é o caso de Josué de Castro, ou os que problematizam a validade de suas ideias para todo o Brasil.

A respeito disso, destacaria os inúmeros prefácios escritos pelo autor, pois situam bem esse debate. Em Casa-Grande & Senzala isso fica mais claro, na medida em que os inúmeros prefácios podem ser lidos e interpretados à luz das reacomodações vivenciadas por Freyre no campo científico brasileiro (SORÁ, 1998). Entretanto, o prefácio para Ordem e Progresso também é bastante interessante por apresentar uma nota metodológica que esclarece alguns pontos de suas escolhas (FREYRE, 2004), bem como o prefácio da segunda edição de Sobrados e Mucambos, no qual ele reafirma que suas teses não se aplicariam apenas para o Nordeste, mas sim para todo o Brasil, de modo que aqueles que o criticaram por tal universalização, especialmente através da categoria de patriarcado, estariam confundindo forma e conteúdo, pois, embora houvesse uma variação de conteúdo etnográfico, a forma permaneceria a mesma: a família patriarcal (FREYRE, 2006a).

É problematizado ainda como a ideia de mestiçagem de Freyre se opõe ao racismo presente na obra de Oliveira Viana (1883-1951), o que vale também para os portugueses. Gilberto Freyre desenvolve um raciocínio distinto do presente em Populações Meridionais do Brasil, publicado em 1920, ao compreender os portugueses como europeus e africanos, e, ao chegar até mesmo a afirmar posteriormente que os portugueses representam o povo menos europeu da Europa (FREYRE, 2011). Helio resume que as principais divergências entre Freyre e Oliveira Viana se dava por meio dos resultados aos quais ambos chegaram em relação à miscigenação, pois, para Viana, esse fenômeno seria algo negativo, e, para Freyre, algo positivo.

Muito rapidamente, Helio aborda a polêmica em torno do chamado “mito da democracia racial”, reafirmando, o que já fora feito por muitos, que a expressão “democracia racial” não fora utilizada por Freyre, sendo mais recorrente, em sua obra, o termo “confraternização das raças”. No entanto, a questão não é aprofundada por Helio, talvez porque ele compreenda que esse ponto vem sendo exaustivamente revisitado por diferentes ângulos e prefira, então, indicar como o livro inovou não apenas em sua interpretação do país, como também na linguagem.

O capítulo Os entretextos se volta ainda mais fortemente para o propósito didático que o autor leva a cabo ao propor uma pequena antologia de fragmentos de Casa-Grande & Senzala. Já em O subtexto, o autor nos apresenta uma divisão da recepção do livro em três momentos: o primeiro iria de sua publicação até a metade dos anos de 1960, quando haveria mais avaliações positivas do que negativas sobre o livro, ainda que houvesse ataques por parte dos conservadores no que diz respeito ao uso da linguagem coloquial, à crítica aos jesuítas e à apologia à cultura afro-brasileira; o segundo iria da metade dos anos de 1960 até os anos de 1980, período em que o trabalho é combatido por sua suposta falta de cientificidade e pela interpretação assumida sobre a sociedade brasileira, porém Helio ressalta que muitas críticas eram realizadas sem que o trabalho fosse lido; e, por fim, terceiro momento se inicia nos anos de 1990 e se acelera com as comemorações do centenário de seu nascimento nos anos 2000, quando surgem novos trabalhos que visam a aprofundar a análise de sua obra. Nesse ponto, Helio nos traz uma seleção de alguns trabalhos produzidos nesse período que ele considera emblemáticos, indicando ainda outras fontes complementares para uma melhor compreensão de Casa-Grande & Senzala.

O livro de Helio se apresenta como parte desse novo conjunto de trabalhos que passam a revisitar a obra de Freyre. Talvez lhe falte uma crítica mais incisiva, porém, claramente, sua meta é mais esclarecer do que criticar, desmistificando não apenas o próprio Freyre, como também alguns argumentos contrários à Casa-Grande & Senzala que não se sustentam ante uma análise mais minuciosa.

Creio esse seja um livro fundamental para sociólogos, antropólogos e historiadores que almejem adentrar de forma mais profunda na interpretação do Brasil elaborada por Freyre.

Notas

1 Na “Nota Metodológica” de Ordem e Progresso, o autor afirma que: “Este estudo – Ordem e progresso – é o terceiro da série que, iniciada com o ensaio Casa-grande & senzala, teve sua continuação em Sobrados e Mucambos e será concluída – como já se disse no prefácio – com o ensaio Jazigos e covas rasas, atualmente em rascunho e a ser publicado em breve” (FREYRE, 2004, p. 39). Nesse sentido, podemos falar em uma tetralogia inacabada.

2 Nome do bairro na cidade do Recife no qual Freyre passou boa parte de sua vida adulta. Atualmente, localizam-se nele tanto a Fundação Joaquim Nabuco, instituto de pesquisas sociais fundado por Freyre, quanto a Fundação Gilberto Freyre.

Referências

ARAUJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34, 1994.

BASTOS, Elide Rugai. As Criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.

CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que Inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob regime de economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005.

_____. Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: Editora UnB, 1968.

_____. Novo Mundo nos Trópicos. São Paulo: Global, 2011.

_____. Ordem & Progresso. São Paulo: Global, 2004.

_____. Sobrados & Mucambos: decadência do patriarcado rural no Brasil. Global: São Paulo, 2006a.

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LEHMANN, David. Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue. Horizontes antropológicos, v. 14, n. 29, p. 369-385, jan./jun. 2008.

LIMA, Mario Helio Gomes de. Gilberto Freyre. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010.

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MOTTA, Roberto. Élide, Gilberto, Imagismo e Língua de Universidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 185-206, fev. 2009.

MOTTA, Roberto; FERNANDES, Marcionila. Gilberto Freyre, um Enigma Genealógico. In: MOTTA, Roberto; FERNANDES, Marcionila (Org.). Gilberto Freyre: região, tradição, trópico e outras aproximações. Rio de Janeiro: Instituto Miguel de Cervantes, 2013. p. 11-36.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: UNESP, 2005.

SORÁ, Gustavo. A construção sociológica de uma posição regionalista: reflexões sobre a edição e recepção de Casa-grande e Senzala de Gilberto Freyre. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 36, p. 121-139, fev. 1998.

VILLAS BOAS, Glaucia. Mudança Provocada: passado e futuro no pensamento sociológico brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Amurabi Oliveira – Doutor em Sociologia (UFPE), professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. E-mail: [email protected].

A ética da autenticidade – TAYLOR (C)

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. Trad. de Talyta Carvalho São Paulo: É Realizações, 2011.Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 230-233, jan/abr, 2012.

Charles Taylor é um autor contemporâneo, nascido em 5 de novembro de 1931, na cidade de Montreal, no Canadá. É professor de Filosofia e Ciência Política na Universidade McGill, na cidade de Montreal. O livro A ética da autenticidade, no original The ethics of authenticity (1992), lançado no Brasil pela editora É Realizações, no ano de 2011, com 128 páginas e tradução realizada por Talyta Carvalho, está estruturado em dez capítulos, nos quais Taylor busca uma compreensão acerca das relações atuais dos indivíduos e como os mesmos tendem a se comportar atualmente, focando seu estudo em questões relativas à autenticidade.

No que tange à autenticidade, Taylor percorre uma trajetória histórica sobre as fontes da mesma, citando Rousseau e o contato íntimo do ser humano consigo mesmo, bem como Herder, com a ideia de que cada ser humano tem um jeito original de ser humano e a necessidade de um contato consigo mesmo, com sua natureza interior, com o ser humano que é o modo particular de cada um ser humano. Para Taylor a autenticidade está baseada na ideia de que, independentemente de mim, existe algo nobre, valioso e, portanto, significativo na configuração da minha própria vida. A partir desse pressuposto, Taylor propõe um estudo sobre questões referentes à autenticidade e propõe uma alternativa focada nela, sustentando a possibilidade de defesa de um ideal de autenticidade. Leia Mais