Por que os ricos não fazem greve? Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1962 | Álvaro Vieira Pinto

Álvaro Borges Vieira Pinto foi um filósofo brasileiro pouco (re) conhecido no Brasil. Nascido em Campos dos Goytacazes – RJ, no dia 11 de novembro de 1909, e falecido no dia 11 de junho de 1987, de infarto, na cidade do Rio de Janeiro, antes de seguir carreira como filósofo, catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia e diretor do Iseb2, formou-se, em 1932, no curso de medicina da Faculdade Nacional de Medicina (RJ). Durante o exílio no Chile, decorrência do golpe militar de 1964, o filósofo produziu, a princípio como conteúdo para um curso de verão, um dos maiores sucessos editorais da educação brasileira, a saber: “Sete Lições sobre a educação de jovens e adultos (1982)3”. Nesse ínterim, dedicou-se também à leitura e “correção” dos originais da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e à escrita de outros três livros. Após seu retorno ao Brasil, em dezembro de 1968, isolou-se, até o dia da sua morte, em seu apartamento em Copacabana, dedicando seu tempo para escrever obras (algumas ainda inéditas e desaparecidas) e fazer traduções de textos clássicos para o português – sendo a última atividade uma forma de conseguir dinheiro à manutenção de sua existência.

Isso posto, cabe apontar que a pergunta que confere título a este escrito é, na verdade, distinta do título do texto de Álvaro Vieira Pinto, apresentado no volume 4 da Coleção Cadernos do Povo Brasileiro, apenas na aparência, pois, em essência, tende ao mesmo objetivo, a saber: apontar que somente os “pobres” podem fazer greve, porque somente os “pobres”, na concepção sócio-filosófica alvariana, trabalham. Ou seja, “no país capitalista, especialmente no de economia subdesenvolvida, o trabalho compete, por definição às massas assalariadas que, por seu modo de existência, são chamadas de ‘pobres’ ” (VIEIRA PINTO, 1962, p. 101). Leia Mais

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna – WILLER (Ph)

WILLER, Cláudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.15, n. 2, p.161-167, jul./dez., 2010.

É sem dúvida o caráter místico-esotérico, um seu lado meio mágico meio tolo, que nos faz torcer o nariz para os termos Gnose e Gnosticismo e, certamente, tal não é sem razão. Pierre Hadot, em seu livro sobre Plotino, Plotin ou la simplicité du regard, afirma a certa altura que “o gnóstico não sabe olhar o mundo” (HADOT, p., p.48), afirmação que é sem dúvida baseada na filosofia plotiniana que combateu com vigor o gnosticismo. O livro do tradutor, poeta e ensaísta Cláudio Willer retoma o debate acerca da Gnose e do Gnosticismo pelo viés da crítica literária que, abrindo mão do aspecto propriamente filosófico e das questões inerentes a uma história das religiões, pretende suprir uma carência da qual, em sua opinião, padecem os estudantes de Letras quando se deparam com autores tais que Blake, Baudelaire, Nerval, Rimbaud e outros (p. 31).

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2010) é resultado da tese de doutoramento defendida pelo autor em 2008 na Universidade de São Paulo e suas mais de quatrocentas páginas estão divididas em duas partes. Na primeira, intitulada “Gnose e Gnosticismo”, temos uma exposição dos aspectos mais centrais da doutrina gnóstica para o que, além da bibliografia gnóstica básica (Pagels, Dorese, Layton, Puech e outros), o autor se vale principalmente dos trabalhos de Mircea Eliade e Hans Jonas, o que indica um parti pris que tem a virtude de ser conscientemente assumido. A pouca atenção dispensada à obra de Eric Voegelin, que não aparece na bibliografia, embora mencionada de passagem, assim como ao ácido ataque do “respeitado poeta” Bruno Tolentino (ver p. 40) ao gnosticismo moderno, revela que o autor de Anotações para um Apocalipse, A volta, Dias circulares e Jardins da provocação adere à doutrina.  O que, entretanto, precisa ser notado, é que o estudo não é panfletário nem tampouco tenta se aproveitar deste irritante “gnosticismo midiático” atual. O estudo de C. Wil-ler, com efeito, está bem longe das “apropriações incorretas e superficiais” (p. 22-3) denunciadas – um tanto desnecessariamente, pois já de saída deixa ver a que veio – por ele próprio. Na companhia de nomes como Octavio Paz e Harold Bloom, a aposta de Willer é na importância da gnose e do gnosticismo para a crítica ou, se quisermos, para a compreensão da poesia moderna. Entenda-se por poesia moderna, a produzida a partir do século XIX até nossos dias. É o que mostra a segunda parte de Um obscuro encanto, intitulada “Poetas gnósticos”, composta na verdade de pequenos ensaios sobre estes poetas dentre os quais, além dos já mencionados, figuram Novalis, Goethe, Victor Hugo, Lautréamont, Pessoa, e ainda os brasileiros Dario Veloso, Sousândrade, Hilda Hilst, entre outros aos quais é dedicado o último capítulo do livro, “Gnósticos brasileiros, do simbolismo até hoje”.  A partir da tese de Willer, podemos afirmar que toda poesia é em maior ou menor medida gnóstica, mas isso, naturalmente, se se admitir que a poesia – e a literatura de modo geral – é algo recente, um fenômeno da linguagem que só tem lugar neste espaço epistemológico preciso: data precisamente do século XIX, uma idéia de modernidade assumida bem claramente pelo autor. E o que marca o nascimento da literatura? Bem se vê, colocamo-nos aqui na trilha de Michel Foucault que, em seu As palavras e as coisas, afirma:

A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela ainda aparecia no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura. (FOUCAULT, M., 1995, p.60)

É, portanto, este novo sistema dos signos, dos símbolos e do significado, enfim, um novo regime na ordem do dizer o que se vê – ou sente – e, em última instância, um novo regime do pensamento, que determina aquilo que Foucault chama de experiência moderna da linguagem, a literatura moderna, à qual se ligam o Surrealismo, Kafka, Blanchot, Bataille, Artaud: “experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude)”. (Idem, p.401) Encontra-se aí tudo aquilo que Willer pretende mostrar ao longo de seu ensaio e demonstrar através das análises que faz dos autores escolhidos por ele. Várias passagens o demonstram. Vejamos esta, do capítulo 19, intitulado “O Surrealismo e suas imediações”, quando está em questão precisamente a obra de Artaud e sua associação ao gnosticismo que, como destaca o autor, já havia sido vista por Susan Sontag, em seu Sob o signo de Saturno:

Não só pelo dualismo, pela expressão do contraste radical com o mundo e o corpo; mas pela idéia de uma gnose, acesso a um conhecimento superior. Podem-se apontar dois caminhos para a gnose em Artaud. Um deles, do xamanismo, da iniciação através do ritual tribal e da experiência alucinógena: é aquele relatado em Viagem ao país dos taraumaras, efetivamente vivido, incluindo o culto ao peiote. Outro, o do teatro: como deixou claro em O teatro e seu duplo, seria equivalente a uma cerimônia mágica, através de uma linguagem poética que pudesse ―exprimir objetivamente verdades secretas, fazer vir à luz, por gestos ativos, essa porção de verdade oculta sob as formas que se confrontam com o Devir‖. Mas a leitura do que escreveria depois sobre os taraumaras (em suas cartas, em “Para acabar com o julgamento de Deus” e outros textos) sugere que seu ―rito do sol negro‖ foi, para ele, a realização autêntica do Teatro da Crueldade. (p. 381)

Como se vê, embora a tese de Willer diga fundamentalmente respeito à crítica literária e esteja, assim, mais preocupada com a discussão dos autores e suas obras do que com a escansão ou produção de conceitos, sobressai de seu trabalho um importante elemento banido do austero ambiente acadêmico no qual sobrevive a crítica, preocupada em preservar a todo custo as honras científicas de sua profissão e a racionalidade supostamente necessária ao trato com o objeto que escolheu, a literatura: o fato de que ela é, não menos do que a ciência, a moral e a filosofia, conhecimento. Ao ressaltar a importância da gnose para a poesia moderna, o que está em jogo é o conhecimento mesmo que se alcança através da poesia. De modo que não se trata de defender que o gnosticismo, aquela primitiva mistura de um platonismo recém vulgarizado com o cristianismo nascente – “cristianismo e gnosticismo nasceram juntos”, afirma Willer (p. 61) –, que a alquimia e o hermetismo, determinantes do espaço epistemológico daquela época, devam ser recuperados para nossa visão de mundo. Não nos parece, assim, apesar de sua reserva com relação a ele, que o estudo de Cláudio Willer ou, talvez possamos dizê-lo, seu gnosticismo, se enquadre neste gnosticismo moderno que B. Tolentino enxerga como “transformação de mero sistema de magias numa sofisticada auto-hipnose coletiva, daí em cultura-de-massas e mais adiante (por que não?) em mass murder”. (TOLENTINO, B. 2002, p.47) Trata-se, de fato, da poesia moderna e de nela reconhecer, como indica a palavra, conhecimento.1Neste sentido, “ao gnosticismo dos poetas não poderia faltar a gnose: é a própria poesia, identificada com o conhecimento”. (p. 444)

Diríamos, pois, que o interesse dos poetas pelo conhecimento é o que faz deles gnósticos e a consciência de que só é possível levar adiante esse interesse pela poesia, pela linguagem literária, o que faz deles modernos. Certamente a forma, determinada pelo conteúdo, atua sobre ele, e é neste sentido que, por exemplo, W. Blake ―interpretou o Novo Testamento de modo afim a um gnóstico marcionita, um adepto da separação total entre a doutrina cristã e a lei mosaica. E de heréticos que viriam a encabeçar a reforma protestante […] em nome do que proclamavam como o verdadeiro ensinamento de Cristo‖. E é assim que, segundo Willer, devem-se passagens como esta, da obra O casamento do céu e do inferno: ―Não existe virtude possível que não possa romper as leis desses dez mandamentos. Jesus Cristo era totalmente virtuoso, mas agia por impulso e não por regras‖ (p. 202). Orgulho, sem dúvida, mas orgulho estudioso; o sapere aude característico da poesia moderna.  Deste modo, ninguém pode acusar num Baudelaire, num Lautréamont ou num Rimbaud, desleixo de análise ou ligeireza no trato de tais questões; a ninguém será dado duvidar do rigor metódico nem do trabalho árduo destes poetas, o que seria desconhecer completamente suas obras. O problema é que, mais do que preocupado com o conhecimento, o poeta é atormentado por ele e, nisso, vive integralmente a angústia de tal experiência, o que Georges Bataille chamou de ―experiência interior‖. Com isto, aquela enfermidade de orgulho do homem moderno, no âmbito mesmo da literatura, parece dever ser compreendido como experiência do impensável do pensamento. “A experiência é o encarar a questão (o fardo), na febre e na angústia, do que um homem sabe do fato de ser”. (BATAILLE, G. 2004, p.16) Esta parece ser a sabedoria (a sophia) que buscam os poetas, sabedoria rebelde, transgressora.

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna é um livro, sem dúvida, muito útil para os estudantes aspirantes a críticos, mas é também um livro que deve ser lido com cuidado. É útil na medida em que reivindica para a crítica o estatuto que é o dela, ou seja, a exigência de reconhecer na literatura, na poesia, pensamento; reconhecer que se está diante de reflexão, talvez a mais difícil, acerca de questões fundamentais. Willer tem razão ao afirmar que tão eclética e variada quanto o gnosticismo, é a própria poesia! De modo que, assim como o gnosticismo, a literatura não cabe numa ciência. Mas é também perigoso, pois, de certa maneira, expõe a poesia à insanidade midiática deste nosso gnosticismo moderno ou, antes, adolescente. Não que a poesia seja, ela mesma, susceptível à ignorância; mas como nada grassa mais facilmente que a estultícia, o gnosticismo pode ser tomado como arma para que ela amplie seus domínios e torne ainda mais perene seu reinado. Com este tema controverso, Cláudio Willer nos apresenta uma outra face sua: a de teórico acadêmico, ainda que malgré lui. Só podemos nos alegrar com esta obra instigante ao encarar este registro luminoso e encantador do conhecimento, que é o da poesia moderna.

Nota

1 Penso que é, assim, num outro registro que Tolentino, próximo em seu catolicismo do neoplatônico Plotino, afirma que “gnosis, apesar do termo grego original significar ‘conhecimento‘, é hoje o que em realidade sempre foi: a revolta, a sanha do arcanjo caído, o furto, tão inútil quanto impossível, do fogo do Céu por um Prometeu. Sob a roupagem ilustre de algumas das mais sofisticadas construções da mente humana, não em seu amor ao saber (philo-sophia), mas em seu ódio a este saber (phobo-sophia), que a ultrapassa de fato e de natura, em certas colocações esconde-se, hoje como antes, sempre a mesma antiguíssima modalidade do absurdo: a absurda vontade do homem enfermo de orgulho, a sede de um ‘saber‘ que desminta ou, melhor ainda, substitua a divina sabedoria”. (Op. Cit., p.45).

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. L´expérience intérieure. Paris: Galli-mard/Tel, 2004.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. bras.: Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HADOT, Pierre. Plotin ou la simplicité du regard. Paris: Gal-limard/Folio, 2008.TOLENTINO, Bruno. O mundo como idéia. São Paulo: Globo, 2002.

Fábio Ferreira de Almeida – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG)., Goiânia, Goiás.   E-mail:  [email protected]

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Uma história do corpo na Idade Média – LE GOFF; TRUONG (CP)

LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2006, 207p. Tradução: Marcos Flamínio Pires; revisão técnica: Marcos de Castro. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. A história do corpo feminino e masculino no ocidente medieval. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica (Perrot, 2005:447).

Deste modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre “gênero” na Europa. Embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na civilização do ocidente medieval.

Não faz muito tempo, os estudos históricos se abriram para um conjunto de temas e objetos mais amplos. A ampliação das abordagens na pesquisa histórica tornou mais nítida a constatação de que as “grandes” mudanças teóricas e metodológicas da história são provenientes da renovação e da ampliação dos temas investigados.

No entanto, o problema, muitas vezes, está em operacionalizar adequadamente um procedimento de pesquisa à análise de certos objetos. Cada vez mais tem se demonstrado que certos problemas e certas abordagens são pertinentes para alguns temas, mas não para outros. Como tornar o assunto passível de ser inquirido e estudado pelo pesquisador é, neste caso, o problema fundamental. A partir dessas questões, os autores indicam a necessidade e justificam o propósito de estudarem o “corpo” na Idade Média européia.

Desde o início, os autores estavam preocupados em demonstrar que o corpo, enquanto objeto de pesquisa, constitui uma das grandes lacunas da história,

um grande esquecimento do historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem corpo (9). [Seria] preciso (…) dar corpo à história. E dar uma história ao corpo [por que] o corpo tem uma história [e a] concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas (10).

Por isso mesmo, a “história do corpo na Idade Média é (…) uma parte essencial de sua história global” (11), inevitável e indispensável para se compreender adequadamente a sociedade contemporânea, na qual o corpo tem, progressivamente, ganhado cada vez mais destaque na mídia.

Mas, tratando-se de um tema pouco estudado, embora justificável, como deve ser estudado o corpo na história das sociedades? Como o corpo foi pensado e visualizado na Idade Média? O que foi, portanto, o “corpo” para a sociedade do ocidente medieval?

Para os autores, primeiro, o corpo foi o resultado de uma das várias tensões vividas no período, porque a “dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta[va] de tensões” (11). E uma das principais tensões no período “é aquela entre o corpo e a alma”. De um lado, é fruto da benção e da glorificação, principalmente religiosa (quando se trata do corpo de Cristo), de outro, é “desprezado, condenado, humilhado”. Isso porque “O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração” (13). Segundo, e como conseqüência, as representações dos homens sobre as mulheres e sobre eles mesmos no período (que tinha na visão sua principal medida de sentido da realidade), acabavam sendo mediadas por “tensões” entre o material e o espiritual. Terceiro, para melhor compreender o período, os autores pensaram a Idade Média na sua divisão clássica – séculos V ao XV e XV ao XVIII -, e acreditam que suas principais características ainda estejam incidindo.

Portanto, o mais difícil para os autores foi como estudar o corpo, objeto praticamente “esquecido pela história e pelos historiadores”, segundo apontam ao longo da justificativa do trabalho. Para eles, autores como Norbert Elias, Marc Bloch, Lucien Febvre, Michel Foucault e mesmo Jules Michelet, no século XIX, foram exceções à regra, abrindo caminhos, posteriormente trilhados por Ernest H. Kantorowicz (1895-1968), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Michel de Certeau (1925-1986), Georges Duby (1919-1996), Paul Veyne, Peter Brown e Jean-Claude Schmitt. Os autores indicam ainda a importância dos estudos sociológicos (desde os produzidos por Émile Durkheim) e antropológicos (desde os pioneiros do século XIX). Ao demonstrarem sua dívida intelectual para com estes autores pioneiros, eles apontam que, ainda assim, o corpo continuou um objeto pouco estudado. Desse modo, ser investigado na Idade Média era também oportuno, não apenas por ser escassamente estudado, mas por que naquele período se concebeu muitos de nossos comportamentos. Com o “Cristianismo” houve uma reestruturação nos conceitos e nas práticas corporais e comportamentais daquela sociedade. Foi o momento de formação do “Estado” e das “cidades modernas”, “de que o corpo será uma das mais prolíficas metáforas e cujas instituições o irão moldar”. No plano cultural houve uma completa alteração no espaço urbano, que acabou redefinindo as próprias práticas religiosas, ao redimensionar o centro de poder do “campo” para as “cidades”. Na Idade Média, “o corpo é o lugar crucial de uma das tensões geradoras da dinâmica do Ocidente” (31), porque, até então, era uma novidade. Por outro lado, pensar o corpo e a sua história é pertinente também para inquirir a sociedade contemporânea e sua revolução comportamental, sexual, gestual e corporal, acelerada a partir dos anos de 1960.

Para delimitarem melhor a pesquisa, os autores dividiram o trabalho em quatro capítulos. Os dois primeiros, mais densos e consistentes, discutem as conseqüências do carnaval e da quaresma, e de viver e morrer na Idade Média. Os dois últimos discutem como o corpo passou a ser sistematicamente “civilizado” e utilizado como uma “metáfora” para pensar outras questões e lugares. Para eles:

A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado original – quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão (35).

A “tensão” entre um corpo feminino “diabolizado” e um corpo masculino “endeusado” ficaria latente no período, porque, de início, o corpo na Idade Média foi renunciado. Controlar a sexualidade feminina, seus gestos, suas práticas, sua conduta na sociedade passaria a ser uma questão mediada pela Igreja e aceita pela sociedade. Mesmo assim, o próprio corpo feminino, não deixou de também ter “tensões” entre o bem – procriação, virgindade de “Maria”, castidade e cuidado com a família – e o mal – sexualidade, prostituição, luxuria e perversão da alma -, porque “o culto do corpo da Antiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida social” (37). Igualmente importante, foram os “tabus” construídos pela instituição religiosa sobre os fluidos corporais, como o esperma e o sangue. E

é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos (41) [principalmente, no discurso institucionalizado da Igreja].

(…) a religião cristã institucionalizada introduz uma grande novidade no Ocidente: a transformação do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalência, assim como nenhum termo dessa equação figura no Antigo Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho (49).

No entanto,

A transformação do pecado original em pecado sexual é tornada possível por meio de um sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e deformações de todos os gêneros. A interpretação tradicional afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhecimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se sem grandes dificuldades (51).

Assim, não é por acaso que “a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas também corporal”. Sendo ela “fraca”, conforme lhe verá a Igreja, a primeira versão da Criação presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais desfavorável a mulher. [Com isso, da] “criação dos corpos nasce, portanto, a desigualdade original da mulhe [e ela] irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sexual. [Por outro lado] ela é subtraída até mesmo em sua natureza biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação apenas ao sexo masculino (54).

Não foi sem razão que Georges Duby disse que essa Idade Média é “masculina”, pois os discursos, além de serem escritos por homens, estavam convictos de sua superioridade, lembram os autores.

De acordo com os autores, a revanche do “corpo” martirizado pela Quaresma, que visava contornar o “paganismo” e sistematizar regras de conduta para homens e, principalmente, para as mulheres, estava nas práticas do Carnaval. A tensão entre a Quaresma e o Carnaval será também uma tensão entre vontade e liberação, regra e discórdia, bem e mal, homem e mulher, numa sociedade fundamentalmente rural (já que em torno de 90% da população vivia nos campos nesse período). As cidades só passaram a ter maior representatividade entre os séculos XII e XIV. Tensão semelhante aparece no “trabalho”, entre o castigo e a criação. Os autores apontam que:

O corpo é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo). Ele dispõe de filtros que podem servir para distinguir o bem do mal: olhos, orelhas e boca.

A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne. Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do corpo [não sendo por isso, visto com bons olhos pelos teólogos e, consequentemente, pela sociedade] (76).

Assim, o

Carnaval do coração se manifesta[va] sob a Quaresma do corpo. (…) O que não quer dizer que os homens e as mulheres da Idade Média não conheçam os arroubos do coração ou as folias do corpo, que ignorem o prazer carnal e a afeição pelo ser amado, mas o amor, sentimento moderno, não era um fundamento da sociedade medieval (97).

O desinteresse pela mulher na Idade Média aparece também no período de gestação, no qual a mulher grávida “não é objeto de nenhuma atenção particular”. Essa desatenção perpassa todas as camadas da sociedade. Na velhice, a mulher também não será bem quista, em muitas ocasiões, por ser vista como “bruxa”. De modo geral, a velhice feminina terá uma desatenção semelhante a da mulher grávida.

As doenças e o estado mental das pessoas durante esse período também sofrerá altos e baixos, vindo a ser ora motivo de aversão, ora de cuidados e de arrependimento:

(…) os homens da Idade Média podem recorrer a um outro médico além de Cristo. Pouco a pouco, os médicos da alma – os padres – se distinguem daqueles do corpo – os médicos -, que vão se tornar ao mesmo tempo sábios e profissionais, assim como uma corporação, um corpo de ofício. Surgem escolas de medicina, assim como universidades em que homens se formam em uma ciência que é considerada, sem dúvida, um dom de Deus, mas, igualmente, um ofício. Os médicos trabalham, pois, como profissionais pagos… (113).

Nesse sentido, as “tensões” da Idade Média não se limitavam apenas as questões corporais, mas estavam inevitavelmente ligadas a questões espirituais. O trato dos vivos com os mortos é um exemplo singular:

Desde a Antiguidade, com efeito, os vivos se ocupavam dos corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em particular, eram encarregadas de lavá-los, de prepará-los para juntarem-se ao reino dos mortos que, segundo a crença, retornavam às vezes para atormentar a alma dos vivos. Com o cristianismo, estabelece-se uma hierarquia entre os defuntos, sem colocar em questão as práticas herdadas do paganismo. Somente as sepulturas dos santos, danificadas e manipuladas de diferentes maneiras, podiam ser objeto de celebração e veneração. Reza-se para os mortos, é certo, mas com a intercessão de novos heróis, os santos (122).

É a conduta dos “vivos” que mediará seus destinos após a “morte”. Aos que se comportaram adequadamente, o “Paraíso”, aqueles que não, o “Inferno”. Esse tipo de “horizonte” invadia o pensamento dos homens e das mulheres da Idade Média.

A dieta alimentar, o respeito às regras, o cultivo do espírito e a submissão à Igreja marcavam, assim, as expectativas dos homens e das mulheres. Desse modo, os cuidados com o nu, os excessos de alimentos, a “gula”, as práticas corporais (particularmente, o sexo) e esportivas (a exibição do corpo em público) igualmente marcavam o tipo de conduta a ser respeitada. Durante a Idade Média, as normas quanto às condutas corporais não se limitavam apenas aos membros da sociedade, mas também faziam parte da própria organização das metáforas usadas para definir o espaço de convivência social, em especial, o das cidades.

As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais que utilizam ao mesmo tempo partes do corpo e o funcionamento do corpo humano ou animal em seu conjunto remontam à alta Antiguidade.

(…) O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo no binômio cabeça/coração. O que dá toda força a essas metáforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comunidade de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça. Essa concepção dos fiéis como semelhantes a membros múltiplos, levados por Cristo à unidade de um só corpo, foi estabelecida por São Paulo (162).

Nessa medida, a metáfora corporal também será igualmente importante na definição da organização das cidades e da realeza, das funções do rei e de sua mediação entre a matéria e o espírito. Portanto:

A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado em história uma vantagem, um interesse suplementar. O corpo ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta, que é, em profundidade, a das idéias, das mentalidades, das instituições e mesmo a das técnicas e das economias, esse interesse dá um corpo, o corpo (173).

Nesse sentido, o “corpo tem, portanto, uma história”, o corpo foi o tema desta história escrita pelos autores. Resumido o enredo principal do livro, convém analisar alguns pontos. Primeiro, embora partam do suposto de que a abordagem cubra o período do século V ao XVIII, a interpretação privilegia os séculos X ao XIV. Segundo, por ser uma obra de caráter de síntese, e não monográfico, nem por isso deixa de ser oportuna a observação sobre as generalizações dos comportamentos femininos e masculinos para o período, sobre a maneira de controlar as vontades humanas por intermédio de um sistema de regras de conduta (elaborado e organizado pela Igreja) e das formas de representação dos corpos para toda a sociedade européia na Idade Média. Destaque-se ainda que, mesmo pouco explorado pela historiografia ocidental, a história do corpo mostra-se um tema rico e mais complexo do que supuseram os próprios autores, mesmo no que concerne ao período da Idade Média (Schmitt, 2007; Corbin, 2008). Deixando de lado as reservas, não há como negar os méritos e as contribuições desta obra, principalmente, por destacar as “metamorfoses”, positivas e negativas, sobre as representações do corpo feminino e masculino, e suas tensões entre o material e o espiritual, na Civilização do Ocidente Medieval.

Referências

CORBIN, A.; VIGARELLO, G.; COURTINE, J-J. (orgs.) História do corpo. Petrópolis-RJ, Vozes, 2008.         [ Links ]

PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, Edusc, 2005 [tradução: Viviane Ribeiro]         [ Links ].

SCHMITT, J-C. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru-SP, Edusc, 2007.         [ Links ]

Diogo da Silva Roiz– Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambaí (em afastamento integral para estudos); doutorando em História pela UFPR (bolsa CNPq). E-mail: [email protected].

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