A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento – MUDIMBE (AN)

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde (Portugal), Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 563-568, dez. 2014.

“O mito é um texto que se pode dividir em partes e revelar a experiência humana e a ordem social” (MUDIMBE, 2013, p. 180).

A obra A invenção da África: Gnose, Filosofia e a Ordem do conhecimento1, de Valentin Yves Mudimbe2, caracteriza-se por abranger uma perspectiva historicista que problematiza os conceitos e discursos do que conhecemos como uma África mitificada. As verdades veiculadas por filósofos, antropólogos, missionários religiosos e ideólogos, bem como imagens ocidentalizadas e/ou eurocêntricas, inerentes aos processos de transformações dos vários tipos de conhecimentos, são desconstruídas por Mudimbe pari passu aos padrões imperiais ou coloniais. Para tal empreitada, vale ressaltar as inúmeras referências que compõem um sólido corpus documental utilizado pelo autor em sua investigação, ou seja, estas transitam da filosofia romana ao romantismo alemão. Ou ainda, o questionar e investigar através do termo gnose, cunhado com o intuito de erguer uma arqueologia do(s) sentido(s) do Pensamento Africano.

Para o autor, o sentido, assim como os usos de um conhecimento “africanizado” e a forma como foi orquestrado, ou seja, um sistema de pensamento que emergiu estritamente de questões filosóficas, pode ser observado através dos conteúdos veiculados pelos pensadores que o forjam, ou ainda, através dos sistemas de pensamento que são rotulados como tradicionais e as possíveis relações destes com o conhecimento normativo sobre África. Logo, uma sucessão de epistemes, assim como os procedimentos e as disciplinas possibilitados por elas são responsáveis por atividades históricas que legitimam uma “evolução social” no qual o conhecimento funciona como uma forma de poder. As africanidades seriam um fait, um acontecimento e a sua (re)interpretação crítica abrange uma desmistificação que se calca na argumentação de uma história africana inventada a partir de sua exterioridade.

Essa exterioridade que veste a África de roupagens exóticas é problematizada com as inúmeras missões e alianças que arranjavam um forte compromisso com os interesses religiosos e a política imperial. No entanto, o cerne da problematização presente no texto de Mudimbe concentra-se na análise da experiência colonial, um período ainda contestado e controverso, visto que propiciou novas configurações históricas e possibilidades de novos ícones discursivos acerca das tradições e culturas africanas. Sobre a estruturação colonizadora, o autor a coloca como um sistema dicotômico, com um grande número de oposições paradigmáticas significadas. São elas: as políticas para domesticar nativos; os procedimentos de aquisição, distribuição e exploração de terras nas colônias; e a forma como organizações e os modos de produção foram geridos.

Assim, emergem hipóteses e ações complementares, como o domínio do espaço físico, a reforma das mentes nativas e a integração de histórias econômicas locais segundo uma perspectiva ocidental.

Os conceitos de tradicional versus moderno, oral versus escrito e impresso, ou os sistemas de comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada, economias de subsistências versus economias altamente produtivas, podem ser citados para que exemplifiquemos o modo como o discurso colonizador pregava um salto de uma extremidade considerada subdesenvolvida para outra, considerada desenvolvida. Queremos com isso dizer que houve um lugar epistemológico de invenção de uma África. O colonialismo torna-se um projeto e pode ser pensado como uma duplicação dos discursos ocidentais sobre verdades humanas.

Para que seja possível obter a história de discursos africanos, é importante observar que alterações no interior dos símbolos dominantes não modificaram substancialmente o sentido de conversão da África, mas apenas as políticas para sua expressão ideológica e etnocêntrica. É como se houvesse uma negritude, uma personalidade negra inerente à “civilização africana” que possui símbolos próprios, como a experiência da escravidão e da colonização como sinais dos sofrimentos dos escolhidos por Deus.3 Contudo, à medida que compreendemos o percurso dos discursos e rompemos epistemologicamente com posições essencializadas, podemos questionar, como sugere Mudimbe, quem fala nestes discursos? A partir de que contexto e em que sentido são questões pertinentes? Talvez consigamos responder essas questões com uma reescrita das relações entre etnografia africana e as políticas de conversão.

Desse modo, o texto de A invenção da África traz com pertinência o refletir sobre alguns autores como E. W. Blyden,4 que rejeitava opiniões racistas ou conclusões “científicas” como os estudos de frenologia populares nos oitocentos. Frequentemente cognominado como fundador do nacionalismo africano e do pan-africanismo, Blyden em alguma medida comporta esse papel, visto que descreveu o peso e os inconvenientes das dependências e explorações, apresentando “teses” para a libertação e ressaltando a importância da indigenização do cristianismo e apoio ao Islã. Para Mudimbe, essas propostas políticas, apesar de algum romantismo e inconsistências, fazem parte dos primeiros movimentos esboçados por um homem negro, que aprofundava vantagens de uma estrutura política independente e moderna para o continente.

A obra segue com reflexões que esboçam embates a respeito da legitimação da filosofia africana enquanto um sistema de conhecimento, visto que algumas críticas expõem esse pensée como incapaz de produzir algo que sensatamente seja considerado como filosofia.

A história do conhecimento na África é por vezes desfigurada e dispersa em virtude da sua composição, ou seja, o acessar de documentações para sua constituição por vezes não apenas oferece as respostas, mas as ditam. Além disso, o próprio conjunto do que se considera por conhecimento advém de modelos gregos e romanos, que mesmo ricos paradoxalmente são como todo e qualquer modelo, incompletos. Muitos dos discursos que testemunham o conhecimento sobre a África ainda são aqueles que colocam estas sociedades enquanto incompetentes e não produtoras de seus próprios textos, pois estes não necessariamente se ocupam de uma lógica do escrito (DIAGNE, 2014).

A gnose africana testemunha o valor de um conhecimento que é africano em virtude dos seus promotores, mas que se estende a um território epistemológico ocidental. O que a gnose confirma é uma questão dramática, mas comum, que reflete a sua própria existência ou, como uma questão pode permanecer pertinente? É interessante lembrar que o conhecimento dito africano, na sua variedade e multiplicidade, comporta modalidades africanas expressas em línguas não africanas, ou ainda categorias filosóficas e antropológicas usadas por especialistas europeus veiculadas em línguas africanas. Isso quer dizer que as formas protagonizadas pela antropologia ou pelo estruturalismo marxista onde havia uma lógica original do pensamento trans-histórico inexistem.

As ciências, ou a filosofia, história e antropologia são discursos de conhecimento, logo, discursos de poder e possuem o “[…] projeto de conduzir a consciência do homem à sua condição real, de restituí-la aos conteúdos e formas que lhe conferiram a existência e que nos iludiram nela” (FOUCAULT, 1973, p. 364). Sucintamente, a obra de Mudimbe comporta a análise de algumas teorias e problematizações, como a escrita africana na literatura e na política, propositora de novos horizontes que salientam a alteridade do sujeito e a importância do lugar arqueológico. Ou ainda podemos salientar a negritude, a personalidade negra, e os movimentos pan-africanistas como conhecidas estratégias que postulam lugares.

Contribuições de escolas antropológicas, o nascimento da etnofilosofia, a preocupação com a hermenêutica, ou o repensar do primitivo e da teologia cristã, dividem as ortodoxias que podem ser visibilizadas, por exemplo, com a discussão sobre a Filosofia Bantu, de Tempels ou ainda com as revelações de Marcel Griaule acerca da cosmologia Dogon. A antropologia que descreve “organizações primitivas”, e também programas de controle advindos das estratégias colonialistas, produziu um conhecimento que demandava aprofundamento nas sincronias dessas dinâmicas. Com isso, é plausível considerarmos que os discursos históricos que interpretam uma África mítica são apenas um momento, porém significativo, de uma fase que se caracteriza por uma reinvenção do passado africano, uma necessidade que advém desde a década de 1920.

Notas

1 Editada recentemente no ano de 2013 pelas edições Pedago em parceria com as Edições Mulemba, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, o volume é uma tradução do original em inglês publicado em 1988 pela Indiana University Press.

2 Nascido em Jadotville no ano de 1941, antigo Congo Belga e atualmente República Democrática do Congo, Valentim Yves Mudimbe posicionou seus interesses de pesquisa no campo da fenomenologia e do estruturalismo, com foco nas práticas de linguagens cotidianas. O autor doutorou-se em filosofia pela Catholic University of Louvain em 1970, tornando-se um notável pensador, seja através de suas obras que problematizam o que se conhece como história e cultura africana, ou ainda pela oportunidade de trabalhar em instituições de Paris-Nanterre, Zaire, Stanford, e ainda no Havard College. Mudimbe ocupou cargos como a coordenação do Board of African Philosophy (EUA) e do International African Institute na University of London (Inglaterra), e atualmente é professor da Duke University (EUA). Disponível em: <https://literature.duke.edu/people?Gurl=& Uil=1464&subpage=profile>. Acesso em: 16 jun. 2014 3 “A negritude é o entusiasmo de ser, viver e participar de uma harmonia natural, social e espiritual. Também implica assumir algumas posições políticas básicas: que o colonialismo desprezou os africanos e que, portanto, o fim do colonialismo devia promover a auto-realização dos africanos. (MUDIMBE, 2013, p. 123). “A negritude destaca-se como resultado de múltiplas influências: a Bíblia, livros de antropólogos e escolas intelectuais francesas (simbolismos, romantismo, surrealismo, etc.) legados literários e modelos literários (Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Claudel, St. John Perse, Apolinaire, etc.). Hauser apresenta várias provas das fontes ocidentais da negritude e duvida seriamente da sua autenticidade africana. HAUSER, M. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982, p. 533.” (MUDIMBE, 2013, p. 116) 4 Para informações mais precisas sobre Edward Wilmot Blyden, sugere-se A Virtual Museum of the Life and Work of Blyden. Disponível em: <http://www.columbia.edu/~hcb8/EWB_Museum/Dedication.html>. Acesso em: 30 jun. 2014.

Referências

DIAGNE, Mamoussé. Lógica do Escrito, lógica do Oral: conflicto no centro do arquivo. In: HOUNTONDJI, Paulin J. (Org.). O antigo e o moderno: a produção do saber na África contemporânea. Mangualde; Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2014.

FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1973.

HAUSER, Michel. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982.

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.

Priscila Maria Weber – Doutoranda em História PUCRS – Bolsista CAPES. E-mail: priscilamariaweber @yahoo.com.br.

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna – WILLER (Ph)

WILLER, Cláudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.15, n. 2, p.161-167, jul./dez., 2010.

É sem dúvida o caráter místico-esotérico, um seu lado meio mágico meio tolo, que nos faz torcer o nariz para os termos Gnose e Gnosticismo e, certamente, tal não é sem razão. Pierre Hadot, em seu livro sobre Plotino, Plotin ou la simplicité du regard, afirma a certa altura que “o gnóstico não sabe olhar o mundo” (HADOT, p., p.48), afirmação que é sem dúvida baseada na filosofia plotiniana que combateu com vigor o gnosticismo. O livro do tradutor, poeta e ensaísta Cláudio Willer retoma o debate acerca da Gnose e do Gnosticismo pelo viés da crítica literária que, abrindo mão do aspecto propriamente filosófico e das questões inerentes a uma história das religiões, pretende suprir uma carência da qual, em sua opinião, padecem os estudantes de Letras quando se deparam com autores tais que Blake, Baudelaire, Nerval, Rimbaud e outros (p. 31).

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2010) é resultado da tese de doutoramento defendida pelo autor em 2008 na Universidade de São Paulo e suas mais de quatrocentas páginas estão divididas em duas partes. Na primeira, intitulada “Gnose e Gnosticismo”, temos uma exposição dos aspectos mais centrais da doutrina gnóstica para o que, além da bibliografia gnóstica básica (Pagels, Dorese, Layton, Puech e outros), o autor se vale principalmente dos trabalhos de Mircea Eliade e Hans Jonas, o que indica um parti pris que tem a virtude de ser conscientemente assumido. A pouca atenção dispensada à obra de Eric Voegelin, que não aparece na bibliografia, embora mencionada de passagem, assim como ao ácido ataque do “respeitado poeta” Bruno Tolentino (ver p. 40) ao gnosticismo moderno, revela que o autor de Anotações para um Apocalipse, A volta, Dias circulares e Jardins da provocação adere à doutrina.  O que, entretanto, precisa ser notado, é que o estudo não é panfletário nem tampouco tenta se aproveitar deste irritante “gnosticismo midiático” atual. O estudo de C. Wil-ler, com efeito, está bem longe das “apropriações incorretas e superficiais” (p. 22-3) denunciadas – um tanto desnecessariamente, pois já de saída deixa ver a que veio – por ele próprio. Na companhia de nomes como Octavio Paz e Harold Bloom, a aposta de Willer é na importância da gnose e do gnosticismo para a crítica ou, se quisermos, para a compreensão da poesia moderna. Entenda-se por poesia moderna, a produzida a partir do século XIX até nossos dias. É o que mostra a segunda parte de Um obscuro encanto, intitulada “Poetas gnósticos”, composta na verdade de pequenos ensaios sobre estes poetas dentre os quais, além dos já mencionados, figuram Novalis, Goethe, Victor Hugo, Lautréamont, Pessoa, e ainda os brasileiros Dario Veloso, Sousândrade, Hilda Hilst, entre outros aos quais é dedicado o último capítulo do livro, “Gnósticos brasileiros, do simbolismo até hoje”.  A partir da tese de Willer, podemos afirmar que toda poesia é em maior ou menor medida gnóstica, mas isso, naturalmente, se se admitir que a poesia – e a literatura de modo geral – é algo recente, um fenômeno da linguagem que só tem lugar neste espaço epistemológico preciso: data precisamente do século XIX, uma idéia de modernidade assumida bem claramente pelo autor. E o que marca o nascimento da literatura? Bem se vê, colocamo-nos aqui na trilha de Michel Foucault que, em seu As palavras e as coisas, afirma:

A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela ainda aparecia no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura. (FOUCAULT, M., 1995, p.60)

É, portanto, este novo sistema dos signos, dos símbolos e do significado, enfim, um novo regime na ordem do dizer o que se vê – ou sente – e, em última instância, um novo regime do pensamento, que determina aquilo que Foucault chama de experiência moderna da linguagem, a literatura moderna, à qual se ligam o Surrealismo, Kafka, Blanchot, Bataille, Artaud: “experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude)”. (Idem, p.401) Encontra-se aí tudo aquilo que Willer pretende mostrar ao longo de seu ensaio e demonstrar através das análises que faz dos autores escolhidos por ele. Várias passagens o demonstram. Vejamos esta, do capítulo 19, intitulado “O Surrealismo e suas imediações”, quando está em questão precisamente a obra de Artaud e sua associação ao gnosticismo que, como destaca o autor, já havia sido vista por Susan Sontag, em seu Sob o signo de Saturno:

Não só pelo dualismo, pela expressão do contraste radical com o mundo e o corpo; mas pela idéia de uma gnose, acesso a um conhecimento superior. Podem-se apontar dois caminhos para a gnose em Artaud. Um deles, do xamanismo, da iniciação através do ritual tribal e da experiência alucinógena: é aquele relatado em Viagem ao país dos taraumaras, efetivamente vivido, incluindo o culto ao peiote. Outro, o do teatro: como deixou claro em O teatro e seu duplo, seria equivalente a uma cerimônia mágica, através de uma linguagem poética que pudesse ―exprimir objetivamente verdades secretas, fazer vir à luz, por gestos ativos, essa porção de verdade oculta sob as formas que se confrontam com o Devir‖. Mas a leitura do que escreveria depois sobre os taraumaras (em suas cartas, em “Para acabar com o julgamento de Deus” e outros textos) sugere que seu ―rito do sol negro‖ foi, para ele, a realização autêntica do Teatro da Crueldade. (p. 381)

Como se vê, embora a tese de Willer diga fundamentalmente respeito à crítica literária e esteja, assim, mais preocupada com a discussão dos autores e suas obras do que com a escansão ou produção de conceitos, sobressai de seu trabalho um importante elemento banido do austero ambiente acadêmico no qual sobrevive a crítica, preocupada em preservar a todo custo as honras científicas de sua profissão e a racionalidade supostamente necessária ao trato com o objeto que escolheu, a literatura: o fato de que ela é, não menos do que a ciência, a moral e a filosofia, conhecimento. Ao ressaltar a importância da gnose para a poesia moderna, o que está em jogo é o conhecimento mesmo que se alcança através da poesia. De modo que não se trata de defender que o gnosticismo, aquela primitiva mistura de um platonismo recém vulgarizado com o cristianismo nascente – “cristianismo e gnosticismo nasceram juntos”, afirma Willer (p. 61) –, que a alquimia e o hermetismo, determinantes do espaço epistemológico daquela época, devam ser recuperados para nossa visão de mundo. Não nos parece, assim, apesar de sua reserva com relação a ele, que o estudo de Cláudio Willer ou, talvez possamos dizê-lo, seu gnosticismo, se enquadre neste gnosticismo moderno que B. Tolentino enxerga como “transformação de mero sistema de magias numa sofisticada auto-hipnose coletiva, daí em cultura-de-massas e mais adiante (por que não?) em mass murder”. (TOLENTINO, B. 2002, p.47) Trata-se, de fato, da poesia moderna e de nela reconhecer, como indica a palavra, conhecimento.1Neste sentido, “ao gnosticismo dos poetas não poderia faltar a gnose: é a própria poesia, identificada com o conhecimento”. (p. 444)

Diríamos, pois, que o interesse dos poetas pelo conhecimento é o que faz deles gnósticos e a consciência de que só é possível levar adiante esse interesse pela poesia, pela linguagem literária, o que faz deles modernos. Certamente a forma, determinada pelo conteúdo, atua sobre ele, e é neste sentido que, por exemplo, W. Blake ―interpretou o Novo Testamento de modo afim a um gnóstico marcionita, um adepto da separação total entre a doutrina cristã e a lei mosaica. E de heréticos que viriam a encabeçar a reforma protestante […] em nome do que proclamavam como o verdadeiro ensinamento de Cristo‖. E é assim que, segundo Willer, devem-se passagens como esta, da obra O casamento do céu e do inferno: ―Não existe virtude possível que não possa romper as leis desses dez mandamentos. Jesus Cristo era totalmente virtuoso, mas agia por impulso e não por regras‖ (p. 202). Orgulho, sem dúvida, mas orgulho estudioso; o sapere aude característico da poesia moderna.  Deste modo, ninguém pode acusar num Baudelaire, num Lautréamont ou num Rimbaud, desleixo de análise ou ligeireza no trato de tais questões; a ninguém será dado duvidar do rigor metódico nem do trabalho árduo destes poetas, o que seria desconhecer completamente suas obras. O problema é que, mais do que preocupado com o conhecimento, o poeta é atormentado por ele e, nisso, vive integralmente a angústia de tal experiência, o que Georges Bataille chamou de ―experiência interior‖. Com isto, aquela enfermidade de orgulho do homem moderno, no âmbito mesmo da literatura, parece dever ser compreendido como experiência do impensável do pensamento. “A experiência é o encarar a questão (o fardo), na febre e na angústia, do que um homem sabe do fato de ser”. (BATAILLE, G. 2004, p.16) Esta parece ser a sabedoria (a sophia) que buscam os poetas, sabedoria rebelde, transgressora.

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna é um livro, sem dúvida, muito útil para os estudantes aspirantes a críticos, mas é também um livro que deve ser lido com cuidado. É útil na medida em que reivindica para a crítica o estatuto que é o dela, ou seja, a exigência de reconhecer na literatura, na poesia, pensamento; reconhecer que se está diante de reflexão, talvez a mais difícil, acerca de questões fundamentais. Willer tem razão ao afirmar que tão eclética e variada quanto o gnosticismo, é a própria poesia! De modo que, assim como o gnosticismo, a literatura não cabe numa ciência. Mas é também perigoso, pois, de certa maneira, expõe a poesia à insanidade midiática deste nosso gnosticismo moderno ou, antes, adolescente. Não que a poesia seja, ela mesma, susceptível à ignorância; mas como nada grassa mais facilmente que a estultícia, o gnosticismo pode ser tomado como arma para que ela amplie seus domínios e torne ainda mais perene seu reinado. Com este tema controverso, Cláudio Willer nos apresenta uma outra face sua: a de teórico acadêmico, ainda que malgré lui. Só podemos nos alegrar com esta obra instigante ao encarar este registro luminoso e encantador do conhecimento, que é o da poesia moderna.

Nota

1 Penso que é, assim, num outro registro que Tolentino, próximo em seu catolicismo do neoplatônico Plotino, afirma que “gnosis, apesar do termo grego original significar ‘conhecimento‘, é hoje o que em realidade sempre foi: a revolta, a sanha do arcanjo caído, o furto, tão inútil quanto impossível, do fogo do Céu por um Prometeu. Sob a roupagem ilustre de algumas das mais sofisticadas construções da mente humana, não em seu amor ao saber (philo-sophia), mas em seu ódio a este saber (phobo-sophia), que a ultrapassa de fato e de natura, em certas colocações esconde-se, hoje como antes, sempre a mesma antiguíssima modalidade do absurdo: a absurda vontade do homem enfermo de orgulho, a sede de um ‘saber‘ que desminta ou, melhor ainda, substitua a divina sabedoria”. (Op. Cit., p.45).

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. L´expérience intérieure. Paris: Galli-mard/Tel, 2004.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. bras.: Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HADOT, Pierre. Plotin ou la simplicité du regard. Paris: Gal-limard/Folio, 2008.TOLENTINO, Bruno. O mundo como idéia. São Paulo: Globo, 2002.

Fábio Ferreira de Almeida – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG)., Goiânia, Goiás.   E-mail:  [email protected]

Acessar publicação original