Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann – GAY (C)

GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 157-162, maio/ago, 2013.

Literatura e história: aproximações teóricas e divergências metodológicas

A narração não podia ter uma condição própria, pois, conforme os casos, estava submetida às disposições e às figuras da arte retórica, ou seja, era considerada como o lugar onde se revelava o sentido dos próprios fatos ou era percebida como um obstáculo importante para o conhecimento verdadeiro. […] Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação, entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre a história, entendida como uma escritura sempre construída a partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da ficção. (CHARTIER, 2009, p. 12).

Assim, Roger Chartier, em seu livro A história ou a leitura do tempo, resumia as contendas entre historiadores, críticos literários e filósofos nos anos 1960 e 1970, e que se desdobraria na “crise da história” dos anos 1980 e 1990. Na década de 1970, o historiador Peter Gay não deixou de lado essas questões, mas seu caminho seguiu um rumo também peculiar. Em suas obras: O estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt (de 1974), Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976) e Freud para historiadores (de 1985), além de “pagar seu tributo à historiografia”, com uma trilogia não planejada, o autor também revisou o campo dos estudos históricos, ao propor articular novamente arte e ciência na escrita da história, em uma abordagem inovadora sobre o estudo da história social das ideias, utilizando-se das contribuições da Psicologia (em especial, da Psicanálise), para entender os homens e as sociedades do passado.

Ao publicar, em 1974, O estilo na história, ele não destacava especial apreço, ou atenção, sobre as discussões a respeito da “virada linguística”, proporcionada pela recepção do estruturalismo e do pós-estruturalismo francês nos Estados Unidos. Como ele próprio indica no livro, destinava maior consideração aos trabalhos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ferdinand de Saussure (1857-1913), Claude Lévi-Strauss (1908-2008) e Erich Auerbach (1892-1957). Principalmente o último, que o marcou profundamente, ao ler seu livro: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de 1946. Ao tratar da composição do estilo na obra de cinco historiadores: Edward Gibbon (1737-1794), Leopold von Ranke (1795-1886), Thomas Macaulay (1800-1859), Jacob Burckhardt (1818- 1897) e Theodor Mommsen (1817-1903), discutido na conclusão do livro, acentuaria de modo sutil sua crítica a Roland Barthes (1915-1980). Primeiro, porque o estilo não se encontrava apenas no campo da escrita, mas na sua interação com o escritor, sua época e seu meio. Segundo, porque as metáforas que lhe seriam inerentes não inviabilizavam a representação do princípio da realidade, antes a destacaria com maior sensibilidade e profundidade. Isso porque, ao ser o próprio homem, como o definiu Georges-Louis Leclerc (1707-1778), (mais conhecido como) conde de Buffon, o estilo demarcaria a matéria, a retórica, a maneira e as estratégias da escrita, mas ao ser também mais do que ele, como destacou Peter Gay, o estilo “nem sempre é o homem, decerto não o homem por inteiro”, mostraria sua relação com o “contexto de produção”, com o “lugar social ocupado pelo autor”, suas “leituras” e sua “formação”. Com isso, o estilo “por vezes, é menos do que o homem; com frequência é mais que ele”. (1990, p. 193).

Por isso, também, o estilo “é a arte da ciência do historiador”. Não foi por acaso, nesse sentido, que a continuidade de seus estudos, nesse campo, o levasse a analisar a “causalidade na história”, e a maneira como se apresentava na escrita, mas tendo em vista seus contornos em “artistas”, e não, nesse caso, em “historiadores”, como mostrou em seu livro: Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976). No início dos anos de 1980, o autor prolonga tal esforço metodológico, apresentando sua proposta de aproximar a escrita da história, com a análise do “inconsciente”, exposta pela Psicanálise – tendo em vista a obra de Sigmund Freud (1856-1939), de seus seguidores e intérpretes (GAY, 1989b).

Assim, a sua “justificativa para a história como uma ciência elegante, razoavelmente rigorosa, apoiava-se fortemente […] no [s]eu comprometimento com a psicologia, em particular com a psicanálise”. Para o autor, a maior contribuição a ser encontrada nessa aproximação, outrora iniciada pelas descobertas de Marc Bloch (1886-1944) e de Lucien Febvre (1878-1956), com o movimento que geraram a partir da revista Annales, é que a “história psicanalítica pode entrar para expandir a nossa definição de história total decisivamente ao incluir o inconsciente, e o incessante tráfico entre a mente e o mundo, no território legítimo da pesquisa do historiador”.

(1989a, p. 165). Apesar de não dialogar diretamente, até este momento, com os filósofos franceses dos anos 60, que contribuíram para desencadear “a virada lingüística”, que nos Estados Unidos trouxe um grande impacto, ao questionarem a maneira pela qual os estudos históricos eram apresentados em suas formas narrativas, a obra de Peter Gay, nem por isso, deixou de reiterar a incontornável ligação entre a arte e a ciência, sobre os estilos da escrita da história apreendidos pelo historiador.

Quase duas décadas depois de concluir sua trilogia, sobre o estilo e suas relações com a história e sua escrita, o autor volta-se agora com maior atenção para o que até então havia deixado um pouco de lado, o romance e sua representação da realidade. Por que não só de divergências são constituídos os discursos histórico e literário. E seu livro Represálias selvagens (originalmente publicado em 2002), neste caso, não é apenas uma reconciliação do autor com o campo da produção literária, mas também um avanço quanto as suas análises sobre o estilo e a maneira pela qual caracteriza autor e obra, ao abordar o “princípio de realidade” contido na escrita – tanto da narrativa histórica, quanto na do romance. Contudo, o estudo da produção literária exige certa cautela, porque o romance encontra-se na “intersecção estratégica entre a cultura e o indivíduo, o macro e o micro, apresentando ideias e práticas políticas, sociais, religiosas, desenvolvimentos portentosos e conflitos memoráveis, num cenário íntimo”.

(GAY, 2010, p. 16). Apesar de os leitores quererem confiar “nos escritores de ficção tanto quanto acham que querem confiar nos historiadores”, ambos constroem representações peculiares sobre a realidade. Ainda que as aproximações teóricas, sobre os espaços de análise do romancista e do historiador sejam evidentes, há divergências metodológicas significativas na maneira como cada um procede com as fontes e reconstrói o vivido.

Para realizar seu estudo, o autor pautou-se na trajetória de três romancistas representativos do século XIX e início do XX: Charles Dickens (1812-1870), Gustave Flaubert (1821-1880) e Thomas Mann (1875-1955), dando destaque, respectivamente, aos seus romances: Casa sombria (de 1852- 1853), Madame Bovary (de 1857), e Os Buddenbrook (de 1900). Poderíamos resumir seus objetivos, neste livro, em três questionamentos principais, a saber: 1 – De que maneira a Literatura (e a História) (re)constrói uma representação peculiar da realidade?; 2 – Como uma visão de mundo molda uma linguagem e forja uma prática discursiva?; 3 – E de que modo a linguagem é perpassada por ideologias (ou por componentes ideológicos)? Para ele, Dickens teria sido um anarquista zangado (ao criticar e satirizar a sociedade inglesa da Era Vitoriana), Flaubert um anatomista fóbico (por ver os pormenores das relações sexuais e ironizar a maneira pela qual a sociedade francesa da Belle Époque viam-nas como um tabu) e Mann um aristocrata rebelde (ao viver silenciosamente sua homossexualidade e expor o cotidiano da aristocracia alemã oitocentista), em suas formas específicas de apreenderem o princípio de realidade nos seus romances históricos.

Apesar das evidentes contribuições que esses romances, e seus autores, possam trazer para a pesquisa histórica, o historiador deve ter claro que seu uso “é severamente limitado”, ainda que o “mundo que o romancista realista cria [seja] o mesmo do historiador, apenas alcançado por seus próprios caminhos” (p. 141), e que ambos tenham também em comum “o estudo das mentes individuais e das mentalidades coletivas”. (p. 144).

Dito isso, o autor passa a verificar por que a crítica pós-moderna, ao delinear o espaço de produção da história e do romance, estabelece uma fronteira tênue quanto ao significado da verdade, e seu alcance entre esses diferentes discursos narrativos. Se Jacques Derrida (1930-2004) foi o guru do movimento, Hayden White foi, sem dúvida, “o mais influente entre os historiadores pós-modernistas”, e “levou a perspectiva relativista a seus limites” (p. 145-46), ao ver indistintamente o discurso histórico e o discurso literário: “Ele converte a história num tipo de romance (geralmente não reconhecido) sobre o passado.” (p. 176). Para dar maior consistência aos seus argumentos, Peter Gay demonstra por que foi importante para Hayden White alinhar sua trajetória com os apontamentos centrais da virada linguística, estabelecendo uma relação direta com as obras de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche. O que, em suas palavras, se constituiria como o mestre desse autor, “como de outros pós-modernistas, é (além de Friedrich Nietzsche, o favorito de todo mundo nesta escola de pensamento) Michel Foucault. Mas, o “principal problema com as excursões pós-modernistas de Foucault na história é que sua psicologia é irremediavelmente reducionista: para ele, é tudo uma questão de poder, de uma conspiração meio involuntária dos que têm contra os que não têm [o poder em suas mãos]”. (p. 176-77).

Para ele, as mesmas ressalvas seriam válidas para outros pós-modernistas (como: Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard). De acordo com ele: Para os pós-modernistas, os fatos não são descobertos, mas criados; seus ancestrais intelectuais, remontando ao menos até Goethe, insistiram por muito tempo que todo fato já é uma interpretação.

Como uma interpretação social, é inerentemente modelado pelos mitos dominantes que mantêm o historiador (bem como o romancista) preso em sua garra de ferro. Vieses, antolhos, estreiteza de visão, pontos cegos, toda espécie de impedimentos à objetividade são essenciais na própria natureza de todos os esforços humanos para conhecer; o estudioso do passado é o prisioneiro de sua própria história pessoal. Nessa visão, escrever história é apenas outra maneira de escrever ficção. (p. 146, grifo nosso).

Postura frágil, o pós-modernismo, para o autor estabeleceria sutilmente: À parte seu absurdo inerente, a tentativa pós-modernista de reduzir à irrelevância a busca da verdade empreendida pelo historiador tem conseqüências práticas. Forçaria os escritores de fatos e os escritores de ficção a um casamento indesejado sob a mira de uma arma. […] O que significa que os historiadores não precisam dos pós-modernistas para lhes dizer que o ponto de vista de profissionais individuais, em parte inconsciente, pode impedir um tratamento objetivo do passado. Eles assim afirmariam ao desmascarar alegremente a parcialidade dos outros. Mas tratariam essas armadilhas no caminho para a verdade antes como obstáculos a ser superados do que como leis da natureza humana a ser humildemente seguidas. (p. 146-148).

O que significa que os “debates dos historiadores (sem os quais a profissão seria reduzida a um tedioso relato de fatos universalmente aceitos) fazem parte de um interminável empreendimento coletivo que tenta se aproximar do exato ideal de lorde Acton: um acordo inteiramente bem informado sobre o passado”. Além disso, nenhuma “das objeções propostas contra esse ideal é válida”, por que para “falar sem rodeios: pode haver história na ficção, mas não haver ficção na história”. (p. 150).

Após resumirmos os principais pontos da discussão do autor nos anos 1970 e 1980, e o modo como avança sobre eles neste livro (ainda que nos aspectos fundamentais não tenha mudado sua perspectiva de análise), podemos passar a algumas constatações: a) mesmo não considerando todos os argumentos provenientes da virada linguística nos anos 1970 e 1980, o autor não deixou de lado tal questão, e ao voltar sobre ela, além de resumir as principais fragilidades dessa postura, e do empreendimento pós-moderno (que lhe deu continuidade), também demonstrou a importância dos romances para a pesquisa histórica; b) ao indicar as especificidades metodológicas do discurso histórico e do discurso literário, o autor também mostrou que os caminhos como cada um chega à, ou pensa, a verdade são diversos; c) como diversos são ainda os recursos que ambos têm à disposição para, a partir do princípio de realidade, construir suas narrativas.

Referências

CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

GAY, P. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

____. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Resenha recebida em 21 de setembro de 2012 e aprovada em 5 de outubro de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela Unesp. Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campo Grande – MS – Brasil. E-mail:[email protected]

Acessar publicação original

Um metódico à brasileira: a história da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939) | Karina Anhezini

Apesar da importância da obra de Afonso de Taunay, durante muito tempo sua obra permaneceu pouco pesquisada. Nos últimos anos esse quadro foi alterado, como nos informa o sugestivo estudo de Ana Claudia Fonseca Brefe, O museu paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional (2005), no qual se dedica a analisar parte da obra deste autor, especialmente, conjecturando sua contribuição na remodelação do Museu Paulista, quando foi seu diretor.

O trabalho de Karina Anhezini (2011) – fruto de sua tese de doutorado, defendida em 2006, e agora publicada – avança ainda mais nessas questões, ao propor analisar a história da historiografia de Afonso de Taunay, tendo em vista os locais que passou, e em que medida contribuíram com sua produção histórica. Assim, contrariando, de certa forma, aos cânones instituídos pela história do pensamento social e político brasileiro, o seu estudo procurou justamente inquirir a história da historiografia construída na obra de Afonso de Taunay, entre 1911 e 1939, e nos oferece uma bela contribuição para o estudo da temática. Leia Mais

Ensino de História – ABUD et al (HE)

ABUD, K. M.; SILVA, A. C. M.; ALVES, R. C. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2010, 178p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. A história, sua escrita e seu ensino. História & Ensino, Londrina, v. 18, n. 2, p. 305-308, jul./dez. 2012.

O ensino de História tem voltado a estar em discussão. Por certo, suas discussões não se encerram, mas, de tempos em tempos, há maior envergadura dos debates. E, neste caso, entre 1996 e 2006, da discussão e aprovação da última LDB até as recentes deliberações sobre história e cultura africana e afro-brasileira, indígena e dos povos orientais, tais questões deram novo fôlego as discussões e questionamentos sobre a aplicação, ensino e reflexão sobre a História e sua escrita em sala de aula.

A publicação do interessante livro de Kátia Maria Abud, André Chaves de Melo Silva e Ronaldo Cardoso Alves, Ensino de História, além de estar inserido neste contexto, também demonstra como o tema em questão é promissor e tem gerado uma série de debates nos últimos anos. A proposta da obra é viabilizar um conjunto de técnicas e procedimentos, que sejam operacionais e adequados para o trabalho docente em sala de aula. Ao buscarem demonstrar a importância dos documentos escritos para o ensino de história, e por meio deles inserir o trabalho com jornais, obras literárias, letras de música, mapas, fotografias, cinema, cultura material e os espaços da história nos museus, além de ser indicada a necessidade do estudo do meio, a obra nos oferece uma série de mecanismos para tornarem mais dinâmico o trabalho em sala de aula.

Sendo a Didática da História uma metodologia, uma prática e meios de favorecerem melhor oferecimento e apreensão do ensino de história, ela também “constitui-se em torno de um objeto diverso do objeto da História”, por que se “esta investiga o passado e constrói um conhecimento próprio, a versão escolar ultrapassa a simples transmissão de saberes, para se tornar um campo de conhecimento no qual se imbricam a História ciência e a História escolar, cada uma com elementos próprios” (p. IX). Nesse aspecto, o “saber escolar seria constituído sobre a base do conhecimento histórico em conjunção com outros conhecimentos e nas relações com os saberes dos quais os alunos são portadores” (p. X).

Se o “conceito de História como campo de conhecimento é fundamentalmente relacionado ao conceito de fontes históricas”, para “proporcionar o desenvolvimento do pensamento histórico do aluno e fazê-lo distanciar-se do senso comum, a Didática da História propõe procedimentos críticos em relação às fontes, analisadas como recursos para a aprendizagem do aluno”, quer dizer, “promove a utilização do raciocínio comparativo, da periodização do tempo histórico, distinto de um tempo subjetivo, da maestria do grau de generalização dos conceitos, distinguindo completamente a História de seus usos”, e, para isso ser feito adequadamente, “mobiliza metodologias clássicas das ciências humanas e sociais: questionamento e observação, coleta de dados, exame e descrição e coloca em perspectiva os desdobramentos entre noções comuns e conceitos históricos” (p. XIII).

Por essa razão fazem um rápido panorama dos desenvolvimentos da escrita da história e da prática de seu ensino, conformada numa didática especial, entre o século XIX e o XX. De imediato, questionam-se sobre a importância das fontes para a pesquisa e para o ensino de história, demonstrando a diferença nos usos, leituras e interpretações, e o papel fundamental que tem para o ensino de História. Desse modo, em cada capítulo elaboram um rápido esboço da fonte e como foi tratada pela historiografia, como deve ser trabalhada em sala de aula, com sugestões de atividades e questões que podem ser feitas. O livro traz ainda quadros didáticos sobre tipologia de fontes, fragmentos de documentos e roteiros de análise de fontes, com as respectivas bibliografias especializadas, tratadas no capítulo, ao final de cada um, com rápidos comentários sobre cada uma das indicações.

Assim, o fazem quando tratam dos jornais e das publicações periódicas; quando discutem a literatura (tomando como exemplo o conto O homem na multidão de Edgar Allan Poe); ao discutirem a função das letras de música para a aprendizagem da História; ao passarem para o estudo do meio (e mostrarem como a literatura e as letras de música podem contribuir para o seu aprendizado em sala de aula); ao o articularem com o estudo dos mapas, para que seja vislumbrada mudanças e permanências no território analisado; ao ser enfocada a cultura material, pois, sua utilização como “meio de construir conhecimento histórico não se esgota na análise dos artefatos [do passado], mas impõe aos historiadores a mesma abordagem em relação às suas etapas de confecção” (p. 112), e, em sala de aula, o “trabalho pedagógico [permite] desmistifica[r] a idéia de que os objetos só são importantes historicamente se pertencerem às classes dominantes no passado (visto que a maioria dos museus conserva apenas os objetos pertencentes à elite político-econômica das sociedade)” (p. 115); ao articularem esta análise com o estudo dos espaços da história fornecidos pelos museus, que “é fruto de uma série de forças e interesses que operaram na sua construção, instituição e manutenção” (p. 138); deles passarem para o estudo das fotografias, que “é uma rica fonte de informações para a reconstituição do passado, ainda que sua utilização também possa comportar a constituição de ficções” (p. 147); e, por fim, ao demonstrarem a importância do cinema em sala de aula, tendo em vista que “à semelhança do que ocorre com o conhecimento histórico, são produzidos com base em processos de pluralização de sentidos ou verdades”, e, por isso, “as obras cinematográficas são construções carregadas de significados, construídos a partir da seleção de elementos que irão compor as imagens e o som que as acompanham e, depois, na articulação entre os diferentes conjuntos de imagens a partir da edição e montagem dos filmes” (p. 165).

Em todos os casos, de aplicação e usos de fontes em sala de aula, o livro fornece instrumentais seguros para que o professor de história possa alçar novos voos sobre o ensino de História e no trabalho com seus alunos. Donde ser uma referência para o tratamento de questões, que seguramente com as mudanças recentes da sociedade e operacionalizadas pelas políticas públicas no ensino de História, ainda se mantém em aberto, e sujeitas as mais variadas formas de tratamento e resolução. Por tudo isso, a obra chega em boa hora, ainda mais por se tratar de uma base de consulta extremamente atual.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor dos cursos de História e de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), na Unidade de Amambai.

Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt – CASTELO BRANCO (C)

CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 187-190, maio/ago, 2012.

A obra de Carl Schmitt foi, durante muito tempo, lida em função das ligações de seu autor com o Terceiro Reich na Alemanha nazista. Entre essa e outras razões permaneceu silenciada na França, como nos indica o estudo de Jean-François Kervégan (2006), ao analisar as dimensões da ideia de político e da ação política nas obras de Hegel e Schmitt. Além disso, prossegue o autor, “o fato de Schmitt ter se alinhado ao nacional-socialismo, cuja vitória foi descrita por ele mesmo como ‘a morte de Hegel’, parece ser a confissão de um xeque especulativo: o decisionismo professado durante os anos 1920″. (2006, p. XIV). Isso, por acaso, não redundou somente na França, mas também na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, na elaboração de estudos polêmicos, cujo norte era justamente o de alinhar a obra de Schmitt ao antissemitismo e ao nazismo.

Ainda que não parta de avaliação semelhante, a obra de Castelo Branco procura justamente destacar em que medida as tentativas de secularização da política e do direito permaneceram inacabadas na obra de Schmitt.

Versão revista de sua Tese de Doutorado, seu texto nos apresenta de que maneira Schmitt construiu seu projeto político e intelectual. Para Gabriel Cohn, que faz o prefácio da obra, secularização “é mais do que trânsito de ideias no éter dos significados”, pois é “literalmente trazê-las para o século, torná-las efetivas aqui e agora, manchá-las com a marca da empiria e da existência concreta”. (2011, p. 15). Para efetuar tal análise, Castelo Branco efetua um estudo minucioso da obra de Carl Schmitt, detalhando como  apreendia a questão da lei e da decisão, qual era a representatividade do Estado e qual era a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo. Nesse aspecto, sua hipótese é de que “o conceito de secularização é um pressuposto imprescindível para compreender alguns dos principais temas abordados por Schmitt nos seus estudos, como é o caso da decisão, do significado do Estado e do indivíduo e dos critérios do político”; assim, por “desempenhar um papel epistemológico no pensamento de Schmitt, entender seu conceito de secularização é uma condição essencial para tornar acessível o modo como o autor desenvolve outros conceitos, como decisionismo, exceção, mediação e soberania”. (2001, p. 20).

Desse modo, antes de aprofundar como Schmitt entende a secularização, o autor nos demonstra seu itinerário, tendo em vista que o progresso da razão universal e autônoma da época das Luzes do século XVIII teria eliminado os laços tradicionais e realizado a independência de uma esfera temporal. Sob este ponto de vista, os conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno encontrariam seu fundamento racional no aperfeiçoamento moral e no progresso de um desenvolvimento histórico. O uso do conceito de secularização é objeto de disputa, por ser utilizado para legitimar a descontinuidade da modernidade e, consequentemente, do fundamento dos conceitos jurídicos que surgem com o Estado moderno. (p. 21).

E que, aliás, estaria na obra de Schmitt, apesar de suas preocupações, numa forma inacabada. Mas entender como tal questão se processa em sua obra não é uma tarefa nada fácil, e Castelo Branco conduz com desenvoltura seus argumentos para nos demonstrar que, ainda que esteja em estado inacabado, a ideia de secularização construída na obra de Schmitt é fundamental para entender todos os nexos de sua interpretação do político e do Estado, da lei e da decisão. Apesar de se aproximar da concepção de secularização de Löwith, que “não reconhece uma modernidade autônoma”, Schmitt percebe que a “transformação da religião em assunto privado não elimina a existência de um núcleo metafísico ou a crença de que o privado ocupe o lugar de algo sagrado”, entre outras razões, porque a “cultura da satisfação individual, do consumo ou da possibilidade de subjetivação de toda sorte de experiência, remete ao tema da secularização e, consequentemente, ao problema do esvaziamento de referências supraindividuais de orientação da conduta”. (p. 22). Por isso, o autor indica que “sob o ponto de vista político, mais importante do que a privatização dos bens da Igreja seria examinar a privatização do meio ambiente que fornece a medida ou diretriz às ações humanas” (p. 23), e é esse o caminho que segue para compreender a obra de Schmitt.

Ao centrar seu olhar sobre a obra de Schmitt, a partir da maneira que ele constrói seu conceito de secularização, o autor entende que sem ela esse não teria chegado a seu conceito de decisão. Daí a importância de inquirir a lei e a decisão, como se articulam e como são produzidas e empreendidas.

Com isso, passa a inquirir como a secularização constitui um dos alicerces fundamentais, para dar solidez à formação do Estado moderno, significado às suas instituições e bases às suas regulamentações. Por fim, demonstra como o conceito de secularização atua sobre o conceito de político.

Depois de efetuar tal análise, observa que “o sentido principal do conceito de secularização de Schmitt revela que a negação dos conflitos eleva o grau de contingência, aumentando o risco dos antagonismos”, pois a “omissão ou o encobrimento do conflito impede a sua restrição”, e o “reconhecimento da impossibilidade de se extinguir os antagonismos da vida humana abre a possibilidade para a sua contenção” (p. 291), ao se efetuar uma distinção clara entre amigo e inimigo. Além disso, o “conceito de secularização de Schmitt intenta recuperar as distinções nítidas alcançadas pelo Estado moderno europeu com a neutralização das guerras religiosas, a fim de postular o monopólio do político pelo Estado e evitar sua subordinação a categorias econômicas e princípios universalizantes”.

(p. 292). Por outro lado, após definir amigo e inimigo, e revelar o caráter inevitável dos antagonismos, o autor nos indica que secularizar, para Schmitt, “consiste em romper a generalidade e a regularidade de ordenamento de normas e expor a realidade concreta do sentido político do agir e decidir humanos”, tendo em vista que “não está mais em jogo o enfrentamento do poder espiritual de representantes da Igreja que buscam intervir na esfera secular de um domínio público, mas combater o encobrimento do político por parte do liberalismo e do positivismo”. (p. 295).

Portanto, ao descortinar os nexos e os significados do conceito de secularização na obra de Carl Schmitt, Castelo Branco, além de nos oferecer caminhos instigantes para rever a obra desse autor, a oportunidade de verificar que, apesar de aparecer de modo inacabado, a secularização constituía verdadeiramente um dos núcleos pelos quais Schmitt pensou a política, definiu a ideia de amigo e inimigo, como os antagonismos poderiam ser arrefecidos, mas não anulados completamente, e de que forma lei e decisão estavam articuladas em sua obra para perfazer a compreensão do conceito de político.

Referências

KERVÉGAN, J-F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Manole, 2006. Recebido em 26 de abril de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1734 | M. Santos

O bandeirantismo e a história das bandeiras paulistas já foi um tema nobre na pesquisa histórica brasileira, do século XVIII, quando surgiriam as primeiras descrições circunstanciadas sobre o assunto, até as primeiras décadas do século XX (ABUD, 1985). Mas, com a afirmação e consolidação dos estudos históricos nas universidades, tais estudos foram, aos poucos, sendo deixados em segundo plano, em função da diversificação das abordagens, das variações dos temas pesquisados e do maior volume de estudos sobre outras regiões do país. Entretanto, nos últimos vinte anos, novamente o tema tem despertado a atenção dos pesquisadores, mas com o fim, não de vislumbrar a importância da capitania, depois, província, e atualmente estado de São Paulo, junto a Federação, e sim com o propósito de inquirir quais as marcas que aquele empreendimento deixou em outras regiões, como os letrados do passado fizeram uso de certas estratégias para abordar o passado e o visualizar como opção a ser reproduzida no presente, quais as relações entre o local, o regional e o nacional, de que maneira se constituíram as fronteiras territoriais e como o bandeirantismo serviu de base para a construção de uma identidade regional, na qual São Paulo se veria distintamente do resto do país. Leia Mais

Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (C)

SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Trad. de Modesto Florenzano. São Paulo: Edunesp, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A história intelectual tem buscado forjar padrões de análise que a convertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros já consagrados, a exemplo da história política, da econômica, da social e da cultural. Por suas íntimas aproximações com a história filosófica e com a história das ideias, definir seguramente suas fronteiras teórico-metodológicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seu corpus documental, torna-se, além de um problema tenso e contraditório, um desafio para o estudioso da temática. Se mesmo entre os lugares principais de produção, a história intelectual é ao mesmo tempo ambígua, sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, como se observa nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália, como então se deveria proceder ao seu estudo e à sua apropriação? A obra de Skinner está entre aquelas que, desde os anos 60 (séc.XX), tem se debruçado com afinco sobre a questão. Agrupando-se ao que ficou definido como contextualismo linguístico inglês, ele se esforçou para a criação de procedimentos adequados para que a história intelectual fosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo do pensamento e da ação política no tempo. Estudioso da história moderna, preocupou-se com a investigação do pensamento renascentista, reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneira como estabeleceriam relações com seu contexto. Para ele, somente ao se agrupar o contexto de produção das obras é que se torna possível visualizar os jogos linguísticos usados pelos letrados e políticos do período e reconstituir como agem e se movimentam no campo de produção das obras e da ação política, estabelecer os nexos de ação do grupo e do indivíduo, analisar os discursos e as estratégias de ação, além de permitir definir quais são as intenções dos agentes sociais em sua escrita, por já formar nela uma ação política, com desdobramentos sociais profundos, ao ser apropriada pela sociedade.

Evidentemente, a proposta analítica do autor é consistente e articulada, o que não quer dizer que seja isenta de fragilidades. O ponto, talvez, mais criticado em sua proposta é justamente a de agrupar e definir as intenções dos agentes sociais, por meio do estudo de seus escritos. Leia Mais

A era do inconcebível: por que a atual desordem no mundo não deixa de nos surpreender e o que podemos fazer | J. C. Ramo

Em 1994, Georges Balandier lançou um livro intitulado: O Dédalo. Nele o autor argumentava a eficácia da metáfora sobre o labirinto, o minotauro e o fio de Ariadne para compreendermos nossa própria contemporaneidade, e podermos sair adequadamente do século XX, para entrarmos no XXI.

Do labirinto de que nos fala o mito (em que Teseu recebe de Ariadne um fio que o orienta pelo labirinto, onde encontrou e matou o minotauro) aos labirintos da realidade, que nos conduz a História e a sua escrita (em função da condição sempre fragmentária dos documentos e dos relatos), as distâncias (a)parecem, até certo ponto, intransponíveis para se determinar o ‘princípio de realidade’ que deu base e originou cada uma daquelas diferentes narrativas (míticas e históricas). Mas essa condição de distanciamento entre o mito e a história talvez seja apenas aparente. É o que indicou o próprio Balandier, ao avaliar o processo de elaboração e manutenção de um mito no tempo, e interpretar as mudanças drásticas, rápidas e sutis das sociedades (em especial, as contemporâneas), que lhe foi ensejada por meio da análise do mito do labirinto, não deixando de demonstrar as relações e as trocas complexas que se estabeleceriam entre o mito e a história ao longo do tempo. Leia Mais

Jörn Rüsen e o ensino de história – SCHMIDT et al. (RBHE)

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende Martins. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Consciência histórica, mudança social e ensino de história. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 2 (26), p. 191-197, maio/ago. 2011.

A obra de Jörn Rüsen começa a ser traduzida com maior regularidade no Brasil. Isso se deve a vários fatores, dentre os quais, a formação de grupos que se preocupam com a introdução da teoria da história e da história da historiografia de cunho alemão no país, ao amadurecimento da pesquisa histórica, a maior preocupação com questões de método, ao fortalecimento de um diálogo interdisciplinar, e, no interior dessas questões, a própria contribuição que traz a obra desse autor.

Até agora o leitor brasileiro tinha acesso a um pequeno conjunto de artigos traduzidos e publicados em revistas especializadas do país, a partir do final dos anos de 1980, e a sua trilogia sobre teoria da história (2001, 2007a, 2007b). Com a publicação desse livro, o leitor tem a oportunidade de verificar que as contribuições desse autor se estendem para além do campo da teoria, metodologia e história da historiografia, e conjugam também o campo da didática e do ensino de história. Para os menos próximos do conjunto dos textos e da trajetória de Rüsen, isso talvez possa parecer um tanto quanto estranho. No entanto, nada mais articulado do que também tratar da didática e do ensino de história. Como Estevão Martins nos informa, sua bibliografia articula história, filosofia, antropologia e historiografia “de modo comparativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo comtemporâneo – em seus contatos e em seus estranhamentos” (p. 7). Além disso, a própria condição docente nas universidades alemãs vinculava a cadeira que ocupou, entre os anos de 1970 e 1990 – de 1974 a 1989 na Universidade de Bochum e de 1989 a 1997 na de Bielefeld –, na conjugação de parâmetros reguladores, para o de teoria, metodologia, historiografia e didática da história. Em virtude disto, para Martins, sua proposta de reflexão quanto aos critérios de orientação do agir humano no tempo, de modo que se viabilize suprir as carências existenciais, que constata serem corriqueiras entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à expressão narrativa nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do quotidiano, a da historiografia e a da linguagem do ensino (p. 9). Leia Mais

O controle do imaginário e a afirmação do romance: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders, Tristram Shandy – COSTA LIMA (HH)

COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário e a afirmação do romance: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders, Tristram Shandy. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 398 p. Resenha de: ROIZ, Diogo. A ascensão do romance na história europeia. História da historiografia. Ouro Preto, n.6, p.234-239, março 2011.

Pareceu-me […] que uma maneira de avançar na indagação proposta haveria de consistir no destaque da relação entre os modos diferenciais de controle, presentes entre o Renascimento e o realce do pensamento científico (Bacon e Descartes), e o gênero romanesco, cuja afirmação fora adiada e continuaria a ser prejudicada mesmo depois de sua aparição auspiciosa com o Quijote. Não se pretende dizer com isso que o romance estivesse contido na ordem das coisas, como um fruto cuja semente apenas demorasse a brotar, senão que, como gênero implica uma linguagem […] que contrariava tanto o controle ético-retórico, de fundo religioso, quanto o estimulado pela justificação da ciência. Tínhamos assim ocasião de precisar a incidência direta do controle do imaginário sobre a ficcionalidade do romance (COSTA LIMA 2009, pp. 324-325. Grifos do autor).

Assim, Luiz Costa Lima resume, habilmente, seu novo livro, lançado em março de 2009. Após publicar em 2007, em uma versão totalmente revista, de sua Trilogia do controle, em que reunia os livros O controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos (de 1984), Sociedade e discurso ficcional (de 1986) e O fingidor e o censor (de 1988), observava que, mesmo com os cortes e os ajustes, ainda estava insatisfeito com a teorização que propunha sobre o “controle do imaginário” diante da criação literária europeia moderna e contemporânea. Embora indique que a trilogia foi continuada e aprofundada por O controle do imaginário & a afirmação do romance, que constituiria seu último livro, encerrando uma longa pesquisa (de quase três décadas), sendo um fato, facilmente, verificável no decorrer da obra, pareceunos também que o novo livro dá ainda uma continuidade mais direta ao seu livro História. Ficção. Literatura, lançado em 2006, também pela editora Companhia das Letras, no qual dimensiona o aparecimento de cada um daqueles campos do saber, as discussões que suscitaram no tempo e as aproximações e os distanciamentos entre a escrita da história e o romance.

Diferentemente daqueles casos, neste novo livro, contudo, o autor aborda de que maneira houve o aparecimento do romance moderno, ao transcender, concomitantemente, tanto o controle do imaginário forjado pela ética religiosa quanto por aquele construído pelo discurso científico, dando ênfase aos casos de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), As relações perigosas, de Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos (1741-1803), Moll Flanders, de Daniel Defoe (c.1660-1731), e Tristram Shandy, de Laurence Sterne (1713- 1768).

De imediato, vale destacar, que, evidentemente, as pressões desse controle do imaginário, circunstanciado na criação artística da pena dos literatos, não se esvaiu, imediata ou completamente, de uma vez, mas foi um processo lento e gradual. O autor indica que o ápice desse processo ocorreu entre o final do século XVIII e o início do XIX, período no qual o romance produziu um discurso autônomo, frente àquelas antigas amarras do imaginário – o que, ao mesmo tempo, não queria representar a possibilidade de criação de outras barreiras (censuras políticas, novos controles, alteração de movimentos literários em hegemonia, etc.). Para Costa Lima, foi, a partir do século XVIII, que “o romance torna-se o gênero ficcional por excelência da modernidade” (Ibidem, p. 19). Neste período, no entanto, o controle do imaginário se apresentaria em duas situações: Em princípio, está sempre implícito, pois não há sociedade sem regras, e onde há regras há controle. Mas ele não assume um aspecto visível e marcante se a instituição ou a sociedade que o ativa não está em crise, ou sob sua iminente ameaça. Se o controle será exercido sobre o romance, tanto se pode dizer que a crise afetara a Igreja católica, enquanto matriz dos valores institucionalizados, como atingira o poder configurado nas cidades-Estado italianas. (Ibidem, p. 21).

Em circunstâncias a priori adversas, agrupar-se-ia a este tipo de controle de cunho moral, de aspecto religioso, outro tipo de controle produzido pelo discurso científico, com a revolução científica do século XVII, que criaria também um tipo peculiar de visão sobre o mundo e a natureza, o que faria com que o próprio imaginário social fosse refeito em meio a essas novas descobertas.

Nesse contexto, a produção romanesca estaria permeada por essas duas construções discursivas, que forjaram, igualmente, formas de controle sobre o imaginário e sobre a sociedade, cujas raízes, de início, não teriam como também não estar presentes sobre a escrita literária dos romances produzidos nessa época.

Para demonstrar suas hipóteses, o autor analisa, primeiro, o contexto teórico em que foram produzidos aqueles tipos de controles, indo do Renascimento à Contrarreforma e desta até o Iluminismo, apresentando, pormenorizadamente, os principais traços desses movimentos e a maneira através da qual incidiram sobre a produção literária. Após expor seu programa teórico para o estudo do controle do imaginário imposto aos romances procurou aplicar, de modo mais específico e detalhado, seus procedimentos em alguns romances paradigmáticos do período, que foram citados acima. Foi diante dessas circunstâncias específicas que: A dissimulação, que implicava esconder-se o esforço imposto para seu cumprimento, ‘imitava’ exatamente a regra da arte, da qual manifestamente se distanciava. A ficção possível era controlada pela ficção externa (falsidade, mentira, embromação). Dito de maneira mais explícita: os mecanismos de controle se exerciam por uma medicina homeopática, isto é, o controle era o ‘veneno’ com o qual tanto se reduzia a ficção interna, permitindo-se que circulasse desde que não irrealizasse normas substantivas, quanto se privilegiava o diálogo do faz de conta. (Ibidem, p.54. Grifos do autor).

O exercício imposto às técnicas de construção literária por tal mecanismo estabelecer-se-ia de modo implícito. No entanto, à medida em que passavam das pequenas cortes italianas do começo do século XVI para a Espanha da primeira metade do XVII e, daí, para a França absolutista da segunda metade, os mecanismos de controle do ficcional, por um lado, mostravam-se em um palco internacional e, por outro, ofereciam condições de verificar-se, ao menos em parte, o que haviam procurado esconder. (Ibidem, p. 57).

Todavia: O fenômeno do controle do imaginário só pode ser intuído a partir do instante, das décadas finais do século XVIII, em que a arte se autonomiza das instituições de que estivera a serviço. Mas, paradoxalmente, a arte, no processo de sua autonomização, não esteve motivada para repensar o processo do controle. Seu horizonte concentrava-se na visão da liberdade a conquistar (Ibidem, p. 60. Grifos do autor).

Em função disso, o controle é um instrumento político cujos efeitos são de ordem estética […]; ele tanto interfere na construção das obras em circulação como provoca o retardo no aparecimento do romance dos tempos modernos e, depois, de sua legitimação institucional. (Ibidem, p. 78).

A eficiência com que tais mecanismos envolviam-se com o processo de produção dos romances se devia também ao fato de que a “experiência da arte […] não nos dá acesso a puras imagens, mas a objetos tematizados e recebidos como imaginários” (Ibidem, p. 154. Grifos do autor). E essas questões, quando não controladas, poderiam expor as próprias fragilidades com que os mecanismos de controle aspiravam camuflar, silenciosamente, para manter, em outra extremidade, a posse dos meios de controle da esfera sociocultural.

Digno de nota sobre essa questão é o tratamento oferecido pelo autor, no capítulo O imaginário e a imaginação (Ibidem, pp. 110-155). Nesse capítulo, além de circunstanciar, historicamente, a criação desses conceitos, também procurou indicar de que maneira os mecanismos de controle e a produção literária apoiavam-se neles para mediar seus diálogos com a sociedade, assim como, manter ou alterar suas expectativas (temporais, políticas, culturais, etc.).

Afinal, como os “mecanismos de controle, por definição, mudam de acordo com os valores que os configuram”, (Ibidem, p. 195) o “fato de que o romance se tenha tornado o gênero dominante na ficção da modernidade não significa, de imediato, senão que certa configuração do controle metamorfoseou-se noutra” (Ibidem, 2009, p. 177), cujas funções, entretanto, não deixariam de corresponder as suas formas anteriores.

Nesses termos, devemos notar ainda que “o controle científico não substitui o antigo [de cunho religioso], senão que se acrescenta a seu conteúdo” (Ibidem, 2009, p. 201), pois, é certo “que a mudança de eixo do controle afeta a importância que antes tinham os gêneros e as técnicas predeterminados como modelos pela retórica, prática substituída pela atenção ao factual”. Contudo, “em situações de cunho moral, permanec[ia]m as normas do antigo controle” (Ibidem, p. 195). Por isso, não é sem sentido que o romance trate de questões morais dando-lhes novos contornos, em função de suas críticas implícitas ou explícitas à operacionalidade do sistema, de modo a tentar transpô-lo. Ao ultrapassar o sistema, o romance busca apoiar-se no acontecido – nos fatos “reais” e dignos de nota, mas também naqueles de menor significado social – como medida de representação plausível à temática desenvolvida no enredo da narrativa, assim como para se privar de formas mais incisivas de controle sobre sua elaboração, sua publicação e sua distribuição. Isso porque a “presença do controle científico limitava-se à exaltação do fato, que aglutinava agora os instrumentos que haviam sustentado o controle de orientação religiosa” (Ibidem, p. 201).

É desnecessário acrescentar que, nesta resenha, seria impossível conceder, ainda que de forma muito sucinta, o tratamento adequado à análise feita pelo autor sobre os romances paradigmáticos do período, a saber: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders e Tristram Shandy. Para o autor, tais obras cobririam os principais momentos e questões circunstanciadas tanto pelo controle do imaginário de cunho religioso, depois científicos. Ao mesmo tempo, neste ínterim, deram-se as bases para a autonomização do discurso literário, que configuraria o amadurecimento e a afirmação do romance moderno.

Evidentemente, a escolha daqueles romances não excluiria a possibilidade de análise de outros, cuja importância o autor não deixa de indicar, mas, em função também de predisposições pessoais, deliberadamente, selecionou aqueles e não outros.

Ora, justamente, por ser um acerto de contas com sua produção anterior, cuja insatisfação o predispôs a mais esta empreitada, buscando um avanço sobre suas interpretações anteriores ao articular os mecanismos de controle do imaginário (religioso e científico) às circunstâncias que forjaram o aparecimento e a afirmação, entre os séculos XVI e XVIII, do romance moderno, este livro constitui uma importante referência deste campo temático, sendo, merecidamente, laureado com o segundo lugar no prêmio Jabuti de 2010, cujo primeiro lugar, na categoria Teoria/Crítica Literária, ficou com a obra A clave do poético de Benedito Nunes.

Por fim, destacamos que este livro ganha em substância ao ser lido na sequência de Trilogia do controle e de História. Ficção. Literatura, pois, o leitor pode acompanhar, passo a passo, os principais momentos em que se desenvolveram suas hipóteses, suas teorias e suas interpretações sobre os mecanismos de controle do imaginário e as ressonâncias desses mecanismos sobre a produção literária do período moderno e contemporâneo, em que ocorreu a afirmação do romance moderno no Ocidente. O leitor pode também evidenciar outros exemplos de controle já que, em sua Trilogia do controle, Costa Lima dá destaque à análise de outros romances e de outros autores.

Nesse sentido, valendo tanto pelo conjunto, quanto pela qualidade analítica presente neste livro, a obra de Luiz Costa Lima apresenta-se como a de poucas no país, cuja forma de interpretação segue uma constância e uma coerência teórica e metodológica, representando um significativo acréscimo sobre o entendimento de questões fundamentais a respeito da relação complexa e mutável entre formas de sociedade, formas de saberes e formas de ficção, além de aproximar os eixos da teoria literária, da filosofia e da história em uma abordagem interdisciplinar profícua para todas as áreas.

Referências

COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

____. Trilogia do controle. O controle do imaginário. Sociedade e discurso ficcional. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.

Diogo Roiz – Doutorando Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. Rua Tibagi, 404/100 – Centro 80060-110 – Curitiba – PR Brasil.

O historiador e seu tempo: encontros com a história | Antônio Celso Ferreira, Holien Gonçalves Bezerra, Tania Regina de Luca

O livro em pauta dá continuidade à série de encontros com a história, organizada pela Anpuh nas universidades do estado de São Paulo, em que já foram publicadas: Encontros com a História (1999) e Encontros com a História n. 2 (2001). A obra é resultado do XVIII Encontro Regional de História, realizado entre os dias 24 e28 de julho de 2006, na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis. Ela reúne parte das conferências e mesas-redondas ali apresentadas, totalizando 13 textos.

No texto de abertura, Antonio Celso Ferreira discute por que os historiadores estariam às voltas com um período, no qual ficariam sem tempo ‘de fazer’ pesquisa e escrever, tanto quanto ‘sem tempo’ para ser apreendido na pesquisa histórica, pois, as categorias: passado, presente e futuro estariam cada vez mais voláteis. Para demonstrar esse problema, detém-se nos modos de produção, nos sujeitos e práticas e nos produtos, mercado, valor. No primeiro item, demonstra como os estudos históricos, do século XIX para o XX, teriam passado da arte (por estar intimamente ligados a um processo artesanal de produção) para uma indústria cultural; de um vínculo duradouro no trabalho universitário para um contrato provisório; de um conjunto de horas vagas para um tempo exíguo de produção e descanso; e da erudição à versatilidade (dada a cobrança atual de produção em larga escala). Leia Mais

Arte e beleza na estética medieval | Umberto Eco

A Idade Média foi um momento de constante tensão entre opostos, de contradições entre as escrituras sagradas e suas interpretações, entre a teoria e a prática da instituição e dos fiéis. Por certo, o ordenamento do mundo levava a certo controle das contradições. A escolástica chegou a propor um método para o entendimento do mundo, ocultando suas contradições. Mas, as contradições não eram totalmente ocultadas, nem tão pouco controladas; porque ao pensar o tudo e o nada, o belo e o feio, o céu e o inferno, o homem e a mulher, a estética medieval, em especial, a exposta nas Catedrais não deixava de indicar as contradições, visto que o belo além de ser compreendido como algo dinâmico, também não deixava de ser múltiplo, diverso, fugaz, assim como suas formas de representação já o eram. Assim sendo, como devemos entender a arte medieval? De que maneira a beleza foi representada? Qual sua função na sociedade? Esses foram alguns dos questionamentos que Umberto Eco2 se propôs, ao pensar a arte e a beleza na estética medieval.

Publicado nos anos de 1960, e revisto na década de 1980, o livro só recentemente traduzido para o português (por Mario Sabino3 e publicado pela Editora Record em 2010), pretendia fornecer um painel do período, na forma de um manual acadêmico, detalhando a sensibilidade na estética medieval, como foi pensada a proporção, a luz, o símbolo e a alegoria, a forma e a substância, as teorias da arte, o lugar do artista na sociedade, e as relações, aproximações e distanciamentos entre a Escolástica e o Renascimento dos séculos XV e XVI. Para isso, toma como base a “história das teorias estéticas, elaboradas pela cultura da Idade Média latina” (2010, p. 9), e de que maneira foram sistematizadas por autores como Tomás de Aquino. Leia Mais

Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX | João José Reis

Estudos biográficos de indivíduos que experimentaram a escravidão – e mais ainda daqueles que conseguiram superá-la – representam um gênero narrativo de crescente interesse. Esses estudos se referem, sobretudo, ao complexo escravista do Atlântico Norte. As biografias de africanos e de seus descendentes permitiram perceber sob um novo ângulo, e de maneira mais humana, o movimento amplo da história, seja do tráfico de escravos, da ascensão e queda da escravidão no Novo mundo, da reconfiguração do Velho mundo pela colonização e pelo escravismo, enfim da formação de sociedades, economias e culturas atlânticas. É possível fazer dessas histórias pessoais uma estratégia para entender o processo histórico que constitui o mundo moderno e, em particular, as sociedades plantadas na escravidão que dele brotaram. Prospera, também no Brasil, o interesse por estudos biográficos desse tipo […] do sujeito que viveu na sombra do anonimato, de quem não se tem memória constituída, ou cuja memória pertence mais ao mito do que à história […]. (REIS, 2008, p. 315-6).

Com essas palavras, João José Reis justificou, no início do epílogo de seu novo livro Domingos Sodré, um sacerdote africano, o estudo que empreendeu para analisar a trajetória deste na Bahia escravista dos 800. Leia Mais

A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

A História pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX – MARTINS (PH)

MARTINS, Estevão de Rezende (org.) A História pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Escrita da história no século XIX. Projeto História n. 41. 662 Dezembro de 2010.

A escrita da história no século XIX, já foi tema de diversas interpretações. Mas, no Brasil ainda carecemos de traduções de textos fundamentais sobre teoria, metodologia e história da historiografia. A iniciativa de Estevão de Rezende Martins, junto a outros historiadores (preocupados com essas questões), apenas por essa razão já deve ser saudada. Contudo, o livro não se limita a tradução de textos de Thomas Carlyle (1795-1881), Johann Gustav Droysen (1808-1884), Ernst Bernheim (1850-1942), Wilhelm von Humboldt (1767-1835), Theodor Mommsen (1817-1903), Karl Lamprecht (1856-1915), George Macaulay Trevelyan (1876-1962), Jacob Burckhardt (1818-1897), Leopold von Ranke (1795- 886) e de Henry Thomas Buckle (1822-1862), agrupados, respectivamente, em três partes: a História faz sentido (os três primeiros), o sentido produzido pela História (os outros quatro), e a História e seus campos (os últimos três).

Há também apresentações didáticas sobre o pensamento e a escolha do texto traduzido, que auxiliam na compreensão. E numa sugestiva introdução ao conjunto, Estevão Martins discorre ainda sobre o renascimento da história como ciência, nas últimas décadas, o que teria favorecido mais o empreendimento, visto que o século XIX foi o momento crucial para sua institucionalização, definição metodológica, organização de fronteiras, corpus documentais, funções na sociedade e, em resumo, o que fez da história também uma ciência, ainda que peculiar.

A perscrutar essas questões, nota que a polissemia do termo ‘história’ permitiria pelo menos quatro usos correntes naquele período: a) “o conjunto (mesmo desconhecido) da existência humana no tempo, ainda que não se saiba quando começou ou quando há de terminar (…) [pois] recobre qualquer ação humana e é nesse contexto que se fala, mais comumente, do ‘curso da história’”; b) “diz respeito à memória consciente daqueles agentes e daquelas ações que qualificam a identidade pessoal e social dos integrantes de uma dada comunidade (…) essa história continua sendo, contudo, um registro amplo do agir no tempo, restrito dessa feita a uma sociedade particular”; c) “enquanto conhecimento controlável e demonstrável, chamada de científica, ou ciência da história”; d) e “para designar as narrativas (de todos os tipos) com que se relata o agir passado dos homens no tempo” (p. 8-9). Nesse sentido, igualmente ao renascimento, senão da ‘história ciência’ tal como pensada no XIX, ao menos nas reflexões recentes sobre História e Literatura, numa redemarcação de fronteiras, funções e procedimentos, pois: A História cujo renascimento se organiza e estrutura na passagem do Iluminismo para o Renascimento e se consolida ao longo do século XIX nos cenários do positivismo, do historicismo, das escolas metódicas – e que orienta a organização deste livro –, é a História como ciência. História como ciência, cujos resultados historiográficos são expressos em narrativas que encerram argumentos demonstrativos articuladores da base empírica da pesquisa e da interpretação do historiador em seu contexto. A historiografia, assim, encerra em si as História, Historiadores, Historiografia. 663 características de ser empiricamente pertinente, argumentativamente plausível e demonstrativamente convincente (p. 10).

Assim, eles procedem a uma reflexão instigante sobre como os letrados do XIX pensaram a História como ciência, e os historiadores contemporâneos, organizadores da coletânea, a interpretam, utilizam e pensam-na nos anos iniciais do século XXI. De início, abordam questões que circunscrevem o questionamento/afirmação de se a História faz sentido. Para isso, Renato Lopes apresenta as principais ideias e o contexto em que surgiria a obra de Carlyle, para dar ensejo a seus textos: ‘Sobre a História’, de 1830, no qual argumentaria que “toda ação é estendida em três direções, e a soma geral da ação humana é todo um universo, com todos os seus limites desconhecidos, somente assim a História se mantém seguindo caminho após caminho, através do instransponível, em diversas direções e intersecções, para nos assegurar uma visão parcial do todo” (p. 25); e ‘Sobre a História, outra vez’, de 1833, em que indica que a “História (…) antes de tornar-se a História universal, necessita primeiramente ser comprimida”, pois, se “não houvesse a glorificação da História, ninguém conseguiria lembrar-se de fatos ocorridos após uma semana” (p. 28).

No mesmo caminho estará à apresentação de Arthur Assis a obra de Droysen, e o texto ‘Arte e método’, de 1868, expressaria um momento singular do debate na Alemanha, onde “enquanto alguns dos grandes poetas e pensadores de nossa nação mergulhavam nas questões teóricas do conhecimento histórico, desenvolvia-se no escopo dos trabalhos históricos a precisão e a solidez da crítica que, qualquer que fosse a área da História em que se a aplicasse, trazia resultados inteiramente novos e surpreendentes” (p.

39), donde sintetizá-los “em pensamentos comuns, desenvolver seu sistema e sua teoria e assim determinar as leis da pesquisa histórica, e não as leis da história: essa é de fato a tarefa da teoria da história” (p. 46), a que Droysen se propunha elaborar, e que este texto demarcaria um de seus esboços.

Igualmente fará ao apresentar Ernst Bernheim, e seu texto ‘Metodologia da ciência histórica’, de 1908, onde entenderá que o método “é o procedimento utilizado por uma ciência para obter resultados cognitivos de um dado material empírico”, mas o “material com que trabalham os historiadores é peculiar”, por isso, o método histórico encontraria dificuldades para agrupar e proceder à análise dos dados sobre o passado, de modo a lhes dar sistematicidade expositiva e lhes tornar confiáveis, uma vez que na “pesquisa histórica, designamos ‘prováveis’ aqueles fatos que consideramos como tendo acontecido porque dispomos de relatos e razões que são mais fiáveis ou plausíveis do que os relatos e razões em contrário, ainda que reconheçamos a possibilidade de que estejamos errados” (p. 66).

Num segundo momento, são apresentados textos que discorrem sobre o sentido produzido pela História. Abre a seção o texto de Humboldt, ‘Sobre a tarefa do historiador’, de 1821, apresentado por Pedro Caldas, no qual discorre que “o historiador será passivo caso se limite a reproduzir os fatos, e, o que seria ainda pior, acredite que nisso consiste sua tarefa”, tendo em vista que o “sentido não está previamente dado, mas é uma construção do historiador” e “tal construção (…) também está longe de se restringir a um arroubo romântico vulgar” (p. 71-2), como notará Caldas. Para Humboldt a “tarefa do historiador consiste na exposição do acontecimento”, mas para fazê-lo adequadamente “o historiador não pode largar o seu domínio sobre a sua exposição ao se limitar a procurar tudo na matéria objetiva; ele precisa, ao menos, deixar espaço para a ação da ideia; mais adiante, ele precisa, com o tempo, deixar a alma receptiva para a ideia e mantê-la viva, intuí-la e reconhecê-la; precisa, acima de tudo, se precaver em não atribuir à realidade suas próprias ideias, ou ainda, em não sacrificar ao longo da pesquisa a riqueza viva das individualidades em prol do contexto totalizante” (p. 100).

Na sequência, o texto de Mommsen, ‘O ofício do historiador’, que foi seu discurso de posse na reitoria da universidade de Berlim, em 15 de outubro de 1874, com apresentação de Estevão Martins, e onde o autor indica que a “História nada mais é do que o conhecimento nítido de acontecimentos efetivos, estabelecidos parte pela descoberta e análise dos testemunhos sobre eles disponíveis, parte pela conexão entre eles, a partir do conhecimento das personalidades atuantes e das circunstâncias existentes, numa narrativa que articule causa e efeito” (p. 117). Por sua vez, Luiz Sérgio Duarte nos História, Historiadores, Historiografia. 665 apresenta Lamprecht, e seu texto ‘História da cultura e História’, de 1910, em que argumenta que para “nós, historiadores, o que resta é o conjunto dos eventos históricos, e se nós queremos compreendê-los e organizá-los procedemos cronologicamente” (p. 129). Encerrando a seção, Estevão Martins apresenta Trevelyan, e seu texto ‘Viés na História’, de 1947, no qual aborda as circunstâncias que definem as escolhas que fazem os historiadores ao elegerem seus objetos de pesquisa, assim como a dos agentes envolvidos nos acontecimentos narrados, visto que a “História não seja uma ciência exata, mas uma interpretação de circunstâncias humanas, a opinião e variedades de opiniões se imiscuem como fatores inevitáveis”, da mesma forma como o “viés interpretativo de um homem sobre um problema histórico pode coincidir com a verdade, mas é bem mais provável que esteja parcialmente correto e parcialmente errado” (p. 138-39).

Na última seção, são reunidos textos que discorrem a História e seus campos. Nos dois primeiros de Burckhardt, ‘História da cultura grega: Introdução’, de 1872, e ‘Sobre a história da arte como objeto de uma cátedra acadêmica’, de 1874, como também sugere a apresentação de Cássio da Silva Fernandes, ele se preocuparia em apresentar um programa de pesquisa, para se proceder ao estudo da história da cultura, com ênfase na história da arte. Mas não apenas isso, também elenca certas vantagens da história da cultura, como a de “proceder por reagrupamentos, e pode dar relevo aos fatos segundo a sua importância proporcional, e não é obrigada a desprezar todo sentido de proporção, como costuma ocorrer nos tratamentos antiquários e histórico-críticos [das abordagens tradicionais da pesquisa histórica]” (p. 170). E demonstra ainda como a história da arte seria promissora para estudar vanguardas, movimentos, transformações socioculturais, e ainda permitir ao pesquisador “não se abandonar cegamente ao mundo das intenções, mas permanecer aberto ao conhecimento objetivo das coisas, quer dizer, não ser um sujeito comum” (p. 184). Já Sérgio da Mata nos apresenta Ranke, e seu texto ‘O conceito de história universal’, de 1831, que de certo modo anteciparia certas constatações de Burckhardt, apesar das diferenças óbvias entre ambos, ao ressaltar que a “História se diferencia das demais ciências porque ela é, simultaneamente, uma arte”, ou seja, ela é “ciência na medida em que recolhe, descobre, analisa em profundidade; e arte na medida em que representa e torna a dar forma ao que é descoberto, ao que é apreendido” (p. 202). Por fim, Valdei Araujo nos apresenta Buckle, e seu texto ‘Introdução geral à História da Civilização na Inglaterra’, de 1857, no qual abordaria outros campos propícios a pesquisa histórica, apesar de uma “grande atenção te[r] sido aplicada à história da legislação, bem como a da religião”, também haveria um “considerável trabalho, embora inferior, [que] tem sido empregado em traçar o progresso da ciência, das literaturas e belas artes, das invenções úteis e, ultimamente, dos costumes e comodidades dos povos” (p. 226).

Vistos em conjunto, portanto, os textos aqui agrupados, traduzidos e apresentados nos revelam um rico painel sobre as várias formas de se escrever a História no século XIX. Ao contrário do que comumente é pensado, os textos nos revelam autores mais complexos, com debates que não se limitaram a circunstanciar a história como ‘ciência’, mas em apresentar também as peculiaridades que a tornam tão híbrida, a ponto de ser um canteiro aberto tanto para a ‘ciência’, quanto para a ‘arte’, e coexistindo entre ambas, não deixar de informar, apresentar e interpretar o processo histórico e o agir humano no tempo.

Diogo da Silva Roiz – Doutor em História. E-mail: [email protected].

Escrituras da história: da história mestra da vida à história moderna em movimento (um guia) – ANHEZINI (HH)

ANHEZINI, K. Escrituras da história: da história mestra da vida à história moderna em movimento (um guia). Guarapuava: Unicentro, 2009, 80 p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. As metamorfoses da “escrita da história”.  História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.223-227 setembro, 2010.

A história mestra da vida possui certidão de nascimento grega [com a obra de Tucídides], o nome cunhado em latim [por Cícero], os primeiros exemplos que a compunham eram profanos. […] Todavia, no século XVIII, essa forma de conceber a história se dissolveu.

Um novo espaço de experiência criou um novo horizonte de expectativas e, nesse processo, a concepção de tempo foi transformada. (ANHEZINI 2009, p. 76).

Nesses termos, Karina Anhezini (professora de teoria da história na UNESP, campus de Assis) sintetiza as mudanças da “escritura da história”, entre os séculos IV antes de Cristo e o século XVIII, como uma passagem da história mestra da vida (e fornecedora de exemplos) para a história enquanto processo contínuo, empreendida originalmente pelas “filosofias da história”, produzidas pelo “movimento iluminista” na Europa. Sua obra é voltada para o aluno que está ingressando no curso de história – estando inserida no projeto de ensino semipresencial da Universidade Estadual do Centro-Oeste (a Unicentro/PR), de oferecimento do curso de licenciatura plena em história à distância –, mas por suas qualidades pode facilmente ser útil ao especialista e a todo interessado em temas de história. Por outro lado, o livro chega também em boa hora, pois, se acrescenta a uma bibliografia ainda escassa em nosso meio, de obras introdutórias ao campo da teoria da história, da historiografia e da introdução aos estudos históricos, durante muito tempo limitados aos manuais acadêmicos de Jean Glénisson, José van den Basselaar, José Honório Rodrigues, José Roberto do Amaral Lapa, Francisco Iglésias, e, mais recentemente, por obras como História e teoria (2003) de José Carlos Reis e Teorias da história (2004) de Astor Antônio Diehl.

Seu principal objetivo foi, tomando de empréstimo a ideia de “operação historiográfica” de Michel de Certeau (1925-1986), mostrar que o “fazer história” inevitavelmente carrega as marcas de um “lugar” (um recrutamento, um meio, uma profissão), de “procedimentos de análise” (uma disciplina) e de uma “escrita”, que é a construção de um “texto” (uma literatura), que fazem com que o exercício de “escritura da história”, seja uma “prática” efetuada pelo historiador. Com esse intento, a autora procurou mostrar a importância do contexto para o indivíduo, e como ele age na produção da obra, na formação e nas experiências do autor (que limitado à sua época, carrega as suas marcas), como e por que ele escreve a sua obra e a quem ele a direciona, quais as estratégias narrativas que foram utilizadas e como o autor forma o seu estilo, de que modo a obra foi publicada e qual a herança crítica que ela deixou.

Mas que não se engane o leitor mais apressado, imaginando que pelo texto ter esse perfil didático, não deixe de carregar erudição. A própria simplicidade com que o leitor é conduzido pelo livro, fruto de um estilo de exposição dos dados, lhe deixará com a impressão de superficialidade.

Entretanto, esse não é o caso, e vejam-se tão somente alguns pontos para se demonstrar o argumento.

O primeiro ponto importante diz respeito à forma como a autora demonstra que embora a história mestra da vida constituísse um modelo de escrita da história, houve muitas variações no modo sutil com que cada autor, grego ou romano da Antiguidade (e mesmo depois no período medieval e moderno), apropriou-se dele na sua apresentação dos dados, por meio de uma narrativa.

Ela inicia essa demarcação fornecendo subsídios para que o leitor possa perceber como a História, antes de se distinguir como gênero específico, utilizou-se da epopeia, porque a “narrativa heroica de ações grandiosas, a construção da memória do aedo e a descoberta de um regime de historicidade são, nas palavras de Hartog, as condições que possibilitaram o que, alguns séculos mais tarde, será nomeado por Heródoto, história” (p. 16). Nesse processo, demonstra que questões como: verdade, testemunho, diferenças entre realidade e imaginação, real e ficção, e “o fato de ver paralelamente os dois lados abre a possibilidade de pensar […] [qual o] papel para o historiador” (p. 17). Por isso, também ressalta o que caracterizou a epopeia, com os exemplos da Ilíada e da Odisseia, e quais as diferenças e aproximações entre ela e a (escrita da) História, por que: A organização do texto épico se pautava na narrativa dos feitos dos homens e dos deuses. Com Heródoto, a história não pretendeu romper completamente com essa característica central da palavra épica, mas, sem dúvida, provocou algumas fraturas. […] a preocupação com a memória; a renúncia às certezas do aedo; a narrativa dos feitos dos homens, pois os feitos dos deuses escapam às possibilidades do historiador investigar; diferente do aedo o historiador viaja com os próprios pés e pelos relatos de outros e não mais por inspiração divina (p. 21).

Com Tucídides (455-404 a.C.), a escrita da história agrupa o valor de “prova”, seja com a participação direta do historiador quanto aos eventos narrados, seja por demarcar uma abordagem adequada ao espaço do observador no presente (que, evidentemente, será depois criticada por visualizar a “história política”, com esta exclusividade). Ao eleger a Guerra do Peloponeso, um fato marcante em sua época, Tucídides começou a dar ênfase à história baseada em “exemplos”. Ainda que ambos considerassem “a tradição oral superior à tradição escrita” e confiassem “em primeiro lugar em seus olhos e ouvidos e depois nos olhos e ouvidos de testemunhas confiáveis”, diferenciavam-se na medida em que “Tucídides nunca se contentava em registrar algo sem assumir a responsabilidade pelo que registrava” e também “raramente indicava as fontes porque queria ser digno de confiança” (p. 25-26). Outro aspecto importante, ao comentar tais autores, foi o destaque que a autora deu ao informar os diferentes usos (e abusos) que tanto a obra como os autores tiveram ao longo do tempo, em função das características políticas e culturais de cada momento, que fará com que em cada período histórico “os textos” tenham “significados diferentes e que, por isso, precisamos ficar atentos para questionarmos os cânones literários, filosóficos e, sobretudo, historiográficos” (p. 29).

Com Aristóteles (384-322 a.C.) e Políbio (210-130, aprox.) houve uma preocupação especial em se diferenciar os papéis de cada campo do saber, que, para o primeiro, a História seria incumbida do “particular”, enquanto a Poesia (épica) do “geral” (fato marcante durante séculos, por excluir a capacidade de reflexão filosófica nos estudos históricos), e o segundo lhe responde ao pretender escrever a “primeira história universal”. Com Cícero (106-43 a.C.), a escrita da história passará a dar importância sobre alguns temas, como: “exemplos, imparcialidade, biografia, história dos grandes homens e imitação”. Para ele, “a história, para ser verdadeiramente escrita, para deixar de ser apenas o registro nos anais, deve ser escrita para o orador e ninguém melhor que ele, o próprio orador, para escrever tal história, pois domina a arte da palavra, a eloqüência”.

Não será sem razão que a história passara a ser mestra da vida, ao fornecer os exemplos descritos pelo orador. E: Para escrever a história são necessários fatos e palavras. O historiador pode ordenar esses fatos, apresentá-los por meio das palavras, mas nunca poderá instaurá-los, criá-los, instituí-los. Os fatos são verdadeiros, eles existem, seu aproveitamento e composição pertencem à competência do orador (p. 37).

Por outro lado, as críticas levantadas por Luciano de Samósata (125- 181) são descritas pela autora como um momento de reflexão teórica pouco usual na Antiguidade, e de profundo interesse para se entender os caminhos da escrita da história, e os usos políticos a que foi submetida. Ao demonstrar como Flávio Josefo se utilizou das características desse modelo de “escritura da história”, com vistas a criticar tanto gregos como romanos que foram seus criadores, por a praticarem de forma inconsistente e inadequada, este acreditará que “sua história é verdadeira não somente pelos procedimentos da autópsia aprendidos com Tucídides, mas porque uma instituição [a Igreja] atesta a veracidade dos fatos narrados” (p. 47). O aparecimento de uma instituição, neste caso a Igreja, para demarcar a autenticidade e veracidade dos fatos narrados pelo historiador, constitui o início da fundação do “lugar”. Com Eusébio de Cesareia (265-340) e Santo Agostinho (354-430) essa questão será ainda mais marcante nos contornos que tomaram a escrita da história, tendo em vista a importância que terá a instituição na demarcação dos temas e objetos a serem escolhidos, analisados e descritos pelo historiador.

Depois de descrever as variações e a durabilidade da história mestra da vida na “escritura da história”, a autora, tendo por base a obra de Reinhart Koselleck (Futuro passado), passará a demonstrar a sua dissolução no século XVIII. Para isso foi necessária a formação de “novas” expectativas sobre o passado, o presente e o futuro. E que se deram em função de uma mudança na compreensão da História (enquanto processo contínuo), não mais como fornecedora de exemplos sobre o passado, mas como indicação da maneira que se dará o processo histórico (no presente e no futuro), apreendendo o “conceito de coletivo singular”, ao destacar que “acima das histórias” está a História. Nesse aspecto, o surgimento, nesse momento, das “filosofias seculares da história” fará com que a história adquira “um caráter processual cujo fim é imprevisível” (p. 72) e, com isso, favorecerá a inauguração de um novo futuro, por meio da reelaboração do passado. Além disso, a modernidade marcará o aparecimento de uma experiência conjunta de aceleração e de retardamento, com as revoluções e suas contraofensivas. Para ela, Koselleck explicará como a “aceleração causada pela Revolução Francesa modifica a forma de compreensão do tempo e, portanto, altera o próprio tempo” (p. 74).

Nesse sentido, além de fornecer subsídios para que o ingressante ao ofício de historiador possa compreender o que é a teoria da história, e de que modo a escrita da história muda com o tempo, a autora também dá base para que este perceba que qualquer modelo de “escritura da história” não é homogêneo, que sua elaboração é mediada por questões políticas e culturais, que este traz as marcas de seu tempo, que seus fundamentos visam atingir a um fim e este fim pode também direcionar a maneira com que os dados são apresentados (seja numa forma narrativa ou outra). Contudo, mesmo considerando seus objetivos didáticos, não há como negar que em alguns pontos os argumentos poderiam ter ficado mais consistentes, com o aporte de outros autores, como: Carlos Ginzburg (de Relações de força, e de O fio e os rastros), Luiz Costa Lima (de História.Ficção.Literatura, e de O controle do imaginário & a afirmação do romance), François Cadiou (de Como se faz a história) e Maria das Graças de Souza (de Ilustração e história) – para ficar apenas em alguns. Muito embora essa questão e alguns pequenos erros tipográficos da edição, que em nada interferem nos méritos da obra, esta deve ser muito elogiada pelo seu caráter didático. A lamentar apenas a política editorial da Universidade Estadual do Centro- Oeste (a Unicentro/PR), que, com pequenas tiragens (como a deste livro de 400 exemplares, ainda que reconheçamos a especificidade do projeto em questão), não comercializa suas obras, que seriam fundamentais para um intercâmbio entre outros cursos de história e de ciências sociais, além de disponibilizar as obras para um público mais amplo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando Universidade Federal do Paraná (UFPR) [email protected] Rua Tibagi, 404/100 – Centro Curitiba – PR 80060-110 Brasil.

Geografia histórica do Brasil – MORAES (EH)

MORAES, Antônio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil: cinco ensaios, uma proposta e uma crítica. São Paulo: Annablume, 2009. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Entre o global e o local: por uma nova geografia dos “espaços nacionais”. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.

A densidade geográfica de nossa formação e de nossa atualidade impõe um forte conteúdo de particularidades nacionais a serem levantadas e interpretadas pelos geógrafos, cuja explicação adequada aparece como condição para se propor um projeto viável de nação para o Brasil. Explicitar posicionamentos metodológicos, adestrar o instrumental analítico com que se opera, clarificar os conceitos e teorias utilizadas, são fundamentos prévios ao propósito de gerar uma geografia que oriente a instalação da modernidade que queremos para o país. Para tanto temos que abandonar o ideal de buscar de imediato uma utopia celeste (o céu na Terra) e superar a desesperança do inferno presente. É o que anima o caminho na trilha do purgatório… (MORAES, 2009, p. 150).

Com o impacto dos processos de conexão das economias nacionais – chamados convencionalmente de “globalização”, por terem difusão simultânea, entre diferentes lugares, em função da revolução dos meios e técnicas de comunicação em massa na segunda metade do século XX –, os estudos geográficos acabaram por se centralizar ora no “global”, ora no “local”. Para Antônio Carlos Robert Moraes, a consequência disso para a pesquisa e para o conhecimento geográfico é que a questão “nacional” ficou em segundo plano. Uma vez que se dá atenção aos “processos globais”, ou às suas “consequências locais”, outras escalas de análise, como o “espaço nacional”, são deixadas de lado, ou são, no mínimo, pouco estudadas. Pensar uma geografia histórica para o Brasil requer, portanto, que nos voltemos para as questões nacionais, de modo a inquiri-las tanto no passado quanto no presente.

Nessa perspectiva, o subtítulo deste novo livro de Moraes é mais significativo do que o título, porque demarca sua proposta, desenvolvida ao longo de cinco ensaios (para se pesquisar a questão nacional no país), concluindo com a exposição de uma crítica, até certo ponto severa, à centralização dos estudos geográficos no global ou no local, sem dar a atenção devida a outras escalas de análise. Para o autor, tal opção constitui uma despolitização do trabalho, da função e da pesquisa do geógrafo, ao mesmo tempo em que impõe uma miscelânea de opções teóricas e metodológicas, selecionadas mais em função de modas e ondas, do que pela sua maior ou menor operacionalidade na análise de determinados temas, fontes e objetos.

De início, parte da constatação de que discutir “a história da geografia no Brasil, nos marcos metodológicos dos estudos pós-coloniais, revela-se um exercício bastante interessante, em virtude da particularidade da formação do país e da construção da idéia de nacionalidade nesse processo” (p. 11). Ao fazer essa escolha, ele deixa de lado os pressupostos dos estudos dos séculos XIX e XX, nos quais historiar a formação da nação, de seu território e de seu Estado, dependia de uma inevitável homogeneização do espaço, de sua cultura, de seus grupos étnicos, de sua língua, história e tradições.

Por essa razão, Moraes considera Edward Said “um autor fundamental para guiar tal equacionamento”, visto que estabelece “uma relação direta entre as ciências ocidentais e a administração colonial”. Afinal, foi “o contato hierarquizado com sociedades bastante diversas, dotadas de características díspares, que permitiu ao pensamento europeu elaborar teorias gerais da história e desenvolver abordagens totalizantes acerca da vida social, cunhando conceitos que por meio de um aparato planetário de socialização e ensino tornaram-se de fato universais” (p. 15). Desse modo, durante muito tempo deu-se atenção aos processos de formação do Estado-nação, tendo em vista apenas o papel desempenhado pelos colonizadores (europeus), não sendo averiguada a contribuição dos colonizados (povos nativos). Tendo por base a obra de Said, Moraes vê justamente nesta tensão entre colonizadores e colonizados, entre metrópoles e colônias, o início da formação de um novo território, de uma nova nação e de um novo espaço de sociabilidade, que formariam, a partir do século XIX, os novos Estados-nacionais da América Latina.

Seguindo esse itinerário de pesquisa é possível, para o autor, destrinchar melhor a geopolítica da instalação dos portugueses no Brasil, pormenorizando as diferentes formas de tomada do espaço, de organização do território habitado e de disputas e negociações entre os colonizadores e os povos nativos. “Isso porque a colonização é – em essência – um processo de expansão territorial, constituindo uma modalidade particular de relação sociedade-espaço, marcada pela conquista, domínio e exploração de novas terras” (p. 59). Cabe assinalar, porém,

[…] que é a subordinação a um domínio político externo e a inserção subordinada nos circuitos imperiais que qualificam tais espaços como “coloniais”. As regiões coloniais são, antes de tudo, partes de um império. Mas, são também partes de territórios coloniais diferenciados (p. 63).

[…] Nesse sentido, a geografia joga um importante papel na interpretação da particularidade histórica dos países latino-americanos (p. 59).

Essa particularidade é adensada ao se averiguar os processos de independência destes diferentes espaços, até virem a ser tornar Estados nacionais. Nessa perspectiva, o autor entende a “Geografia Histórica como caminho de reconstituição (em várias escalas) do processo de formação dos atuais territórios, postura que – inapelavelmente – repõe uma ótica de história nacional (mesmo no âmbito de uma perspectiva crítica)” (p. 61). Por esse motivo, seja dando destaque à organização da territorialidade estatal, seja demonstrando a importância do sertão e de suas peculiaridades, seja ainda primando pela análise da formação dos diferentes espaços habitados (e não-habitados) no país, a geografia histórica tem um importante papel a cumprir, ao pesquisar e expor esses diferentes roteiros. Para Moraes,

No tocante à produção simbólica do espaço, as décadas de 1930 e 1940 conheceram uma grande revisão teórica do pensamento sobre o país, tendo sido publicadas nesse período as principais obras que iriam marcar as interpretações do país até a atualidade […]. Cabe salientar também no universo cultural, a fundação das primeiras instituições universitárias brasileiras no ano de 1934, com a instalação de cursos de geografia [e história] nas universidades de São Paulo e do Distrito Federal (Rio de Janeiro), os quais tinham no reconhecimento empírico do país e de sua dinâmica territorial o objetivo maior de pesquisa do campo disciplinar (p. 127).

Essa modalidade de investigação se desenvolveria nas décadas seguintes, com o aumento do número de profissionais, pesquisas e instituições. Desse modo, a inversão de propósitos, no campo dos estudos geográficos, ao priorizarem o global e o local, a partir dos anos 1990, não deixa de ser também um processo de despolitização nas pesquisas e do pesquisador, ao se desconsiderar a importância da questão nacional.

Assim, dando continuidade aos seus livros Bases da formação territorial no Brasil (2000) e Território e história no Brasil (2002), o autor demonstra a importância da questão nacional, num momento em que se avolumam os estudos sobre o espaço global e as dimensões do local, repondo na agenda de pesquisas a necessidade de se entender outras escalas de análise. A esse problema estariam ligadas as escolhas teóricas e metodológicas, as predisposições políticas e a ação social do pesquisador. Embora as dimensões dos espaços nacionais tenham sido suplantadas pelos processos de globalização, que homogeneizariam territórios, economias e culturas, não estaria apenas no estudo dos espaços locais a demonstração de uma rede de tensões e de contradições no interior desse processo. E essa rede demarcaria as singularidades territoriais, econômicas e culturais, porque é justamente quando se dá atenção a todas as escalas de análise que elas aflorariam de forma mais nítida.

Diogo da Silva Roiz – Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, campus de Amambaí, e doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil ([email protected]).

Uma história do corpo na Idade Média | Jacques Le Goff e Nicolas Truong

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 207 p. Tradução: Marcos Flamínio Pires. Revisão técnica: Marcos de Castro. Resenha de ROIZ, Diogo da Silva. O corpo no Ocidente Medieval. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

O corpo está no centro de toda relação de poder.
Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica.
1

Desse modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre ‘gênero’ na Europa. Muito embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, que foi escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na Civilização do Ocidente Medieval. Leia Mais

As paixões intelectuais (3 volumes) – E. Badinter

A questão do poder e da eficiência dos intelectuais europeus é, sem dúvida, um ponto de controvérsia na historiografia internacional.

Questões como quando surgiram, como se organizam, o que pensam, como agem e o que fazem os intelectuais são fundamentais não apenas para entendê-los adequadamente, mas também para pensar e inquirir a história que foi e é escrita por eles e sobre eles. Sem deixar de lado esses questionamentos, mas detendo-se num momento que marcou a França e a Europa do século XVIII, Elisabeth Badinter nos ofereceu em sua obra As paixões intelectuais, publicada em três volumes, uma verdadeira radiografia de como surgiram e se organizaram os “intelectuais” franceses em torno do “grande público”, por meio do projeto aglutinador da “Enciclopédia”, tendo por base o “espaço público”, então em formação, com a imprensa periódica. Leia Mais

História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) – SILVA (AN)

SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, 222p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Os usos e abusos do passado na França durante o regime de Vichy. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 30, p. 301-309, dez. 2009.

[…] todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vêzes […] a primeira como tragédia, a segunda como farsa (MARX, 1969, p. 17).

Nestes termos, Karl Marx (1818-1883), na década de 1850, resumiria sua análise de uma das obras de Hegel. Ao expor o que definiu como a ‘farsa’ (do Dezoito Brumário) de Napoleão III, Marx constataria que: Doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na unidade de Amambaí.

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram os espíritos do passado, tomando- lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de [se] apresentar[em] e nessa linguagem emprestada (1969, p. 17-8).

Sob circunstâncias diferentes, mas com idéias semelhantes, Jean Chesneaux (1995) destacaria, na década de 1970, em sua análise da história e dos historiadores, tomando de empréstimo o debate do Le Monde de 26 de julho de 1974, que: “Tem-se sempre necessidade de ancestrais quando o presente vai mal” (1995, p.23). Ainda na década de 1970, Georges Duby (1993), com seu livro O domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214 (de 1973), demonstraria como aquela batalha seria recriada e adequada às circunstâncias de cada momento histórico, ao ponto de indicar os ‘choques franco-prussianos’. “Em outras palavras, o autor trabalha como um fato concreto, o enfrentamento entre Filipe Augusto da França e o Imperador Oto IV, a 27 de julho de 1214, foi adaptado a novas situações políticas” (2007, p. 15), dirá Leandro Karnal, ao apresentar a obra de Glaydson José da Silva, História Antiga e usos do passado.

Nos anos 80, Raoul Girardet, ao estudar os mitos e as mitologias políticas, lembrará que: “(…) a cada momento de sensibilidade (…) corresponde (…) uma leitura da História, com seus esquecimentos, suas rejeições e suas lacunas, mas também com suas fidelidades e suas devoções” (1987, p. 98). Neste mesmo período, Eric Hobsbawm (1997), ao enfatizar a maneira pela qual são ‘inventadas certas tradições’, ressaltará que:

(…) por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (…). Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. (1997, p. 9-10)

Discordando de tais argumentos, Stephen Bann (1994) propôs pensar as representações que foram (e são) criadas sobre o passado (europeu do século XIX), com vistas a enfatizar o papel exercido pelos historiadores e pelos lugares de produção da ‘memória social’ como os museus, os arquivos e as universidades, ao serem elaboradas certas leituras sobre o passado.

Usar o ‘passado’ para dar ‘sentido’ às ações no ‘presente’, desse modo, não é algo novo nem na História (dos homens e das mulheres do passado), nem na historiografia (HARTOG, 2003).

Mas a maneira com que o passado é usado para demarcar as ações e as reflexões no presente, de cada momento histórico, senão é ‘nova’ em todos os instantes, ao menos é múltipla. Foi esta direção que os trabalhos de François Hartog acabaram seguindo desde os anos de 1980, quando demonstrou em seu livro O espelho de Heródoto (1999) as diferentes formas de apropriação deste autor ao longo do tempo. Nesse sentido, com seu conceito de ‘regimes de historicidade’, Hartog se preocupou em teorizar de que modo os grupos e as sociedades do passado se apropriavam da história para fazerem diferentes usos do tempo e da relação passado-presente- futuro.

Foi tendo em vista essas questões que Glaydson José da Silva, em seu livro História Antiga e usos do passado (que é uma versão revista de sua tese de doutorado, intitulada Antiguidade, Arqueologia e a França de Vichy: usos do passado, defendida em 14 de março de 2005, no programa de pós-graduação em História da Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari), preocupou-se em apresentar uma análise pormenorizada das formas com que a Antiguidade e o passado gaulês, romano e galo-romano haviam sido apropriadas na França durante o Regime de Vichy, que durou entre 1940 e 1944.

Para demonstrar essa questão, o autor estudou e evidenciou a relação de diferentes temporalidades (a da Antiguidade, a do regime de Vichy na década de 1940, e a ação da direita francesa nos anos 80 e 90), para circunstanciar de que modo os passados gauleses, romanos e galo-romano estavam sendo apropriados e usados politicamente, em diferentes momentos, para justificar a ação de grupos e partidos políticos na França durante o século XX. Com isso, o autor revela, de modo didático e inovador, as relações, nem sempre lineares, entre passado e presente, e a maneira pela qual o passado é apropriado para justificar as ações de grupos e indivíduos no presente histórico. Mais detidamente, tenta descortinar a importância da Antiguidade Clássica, para se elaborar um conhecimento mais balizado sobre a História Contemporânea. Em suas palavras: O saber histórico é tomado mais como um espaço de desconstruções que de construções e reconstruções. Busca- se neste trabalho uma compreensão dos meandros, dos escaninhos de um domínio em que a memória e a sua destruição são recorrentes na reconstrução dos acontecimentos históricos, em que memória e esquecimento se ligam e tomam forma atendendo a imperativos circunscritos do tempo presente. (p. 17-8) Com isso, a obra foi dividida em quatro capítulos. Em cada um deles o autor escreveu um pequeno prólogo para apresentar ao leitor o que discutiria no capítulo. Cada capítulo foi dividido em duas partes.

No primeiro capítulo, O caráter moderno da Antiguidade: considerações teóricas e análises documentais acerca da instrumentalização do passado, há uma descrição de como a Antiguidade foi pesquisada nos anos 80 e 90, e a maneira com que o passado é usado em diferentes momentos. Detém-se na forma pela qual o Fascismo e o Nazismo se apropriaram da Antiguidade para justificarem seus projetos nacionais e suas propostas políticas para a Europa nos anos 30 e 40 do século passado.

Essas diferentes antiguidades, ou melhor, essas diferentes leituras da Antiguidade, apontam sempre para o presentismo do pensamento antigo na elaboração das práticas políticas, das doutrinas, dos jogos identitários, enfim, das visões de homem e de mundo no Ocidente. (p. 30) Nesse sentido, evidencia como o regime Vichy, nesse mesmo período, se apoiou no passado gaulês, romano e galoromano, e, em especial, na figura de Vercingetórix, para empreender suas ações políticas. Vale notar que a França não foi o único país Europeu que sucumbiu às ações do Nazismo e do Fascismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e se apoiou no passado para justificar suas ações no presente. Mesmo fora da Europa, esses regimes tiveram forte influência sobre a maneira com que o passado era usado e estudado, e a propaganda política era uma das estratégias para impor o consenso. No Brasil, Getúlio Vargas é um exemplo emblemático de como o Fascismo e o Nazismo serviram de base para que este desenvolvesse estratégias semelhantes de usar o passado e a propaganda política como formas de construir o consenso (GOMES, 1996).

No segundo capítulo, A Antiguidade a serviço da colaboração: nas trilhas da memória, a reescrita da História na França dominada (1940- 1944), o autor demonstra como a História e a Arqueologia romana e galo-romana francesas se moveram e foram usadas durante o período de ocupação alemã no país. Ao discutir a historiografia sobre o Regime de Vichy, o autor mostra como o período é pouco conhecido, mesmo em parte significativa do povo francês. Além disso, ao se ocupar da questão nacional, enfatiza como após a Revolução Francesa os usos do passado romano, gaulês e galoromano foram cada vez mais frequentes na história francesa contemporânea. A partir da análise de manuais de História, artigos de jornal e discursos, o autor reconstitui os diferentes usos que foram feitos, durantes esse período, da figura de Vercingetórix e dos gauleses “pela Révolution National – termo designado pelo Marechal Philipe Pétain para referir-se à retomada à ordem no país após a derrota militar” (p. 20). Destaca ainda como a História e a Arqueologia serviram de base na construção de um consenso, ao serem utilizadas como instrumentos de afirmação e legitimação, quando o regime procurou declaradamente romper com as tradições republicanas do passado francês.

No terceiro capítulo, Jérôme Carcopino – um historiador da Antiguidade sob Vichy, indica a importância deste intelectual com sua obra, e seus estudos sobre a Antiguidade e a maneira com que foi legada à posteridade, em função de sua participação direta no regime de Vichy como ministro da educação. “Durante o Regime Vichy, no período compreendido entre 23 de fevereiro de 1941 e 16 de abril de 1942, Jérôme Carcopino, já à época consagrado historiador, arqueólogo e epigrafista do mundo romano, exerce a função de secretário de Estado, com estatuto de ministro na área de Educação” (p. 127). Para evidenciar essa questão, o autor reconstitui a participação de Jérôme Carcopino no interior do regime e a forma como os estudos clássicos eram produzidos durante esse período.

Ministro de Vichy, Carcopino é o intelectual chamado à ação. Suas posturas face ao Regime se inscrevem na sua trajetória acadêmica, nas interfaces de múltiplas e contraditórias ideologias, diante das quais sempre teve claras as suas opções. Desejoso de ser visto como intelectual e não como político (…), é o intelectual a serviço da política. Sua atuação política não se dissocia de sua obra acadêmica; esta possibilita a compreensão daquela e se apresenta, a um só tempo, como continuidade e ruptura da mesma. O estudo do Regime de Vichy e do papel de Carcopino no mesmo período conduz, inelutavelmente, à atestação do envolvimento do historiador com o colaboracionismo de Estado, com tudo que implica esse colaboracionismo. Mas conduz, também, à necessidade de reflexão acerca da História e do papel do historiador, bem como à irrefutável relação que este mantém com os poderes. (p. 151) Por esse motivo, mesmo os estudos recentes sobre esse importante romanista, na França, levam em consideração, antes de ser analisada sua produção, a sua participação no Regime.

No quarto capítulo, História da Antiguidade e as extremas direitas francesas, a pesada herança de Vichy, revela-se que não apenas as obras de Carcopino foram lidas e interpretadas pela posteridade, de acordo com a sua participação no Regime de Vichy, mas o próprio regime deixou suas marcas na produção histórica francesa, em especial nas extremas direitas. O autor demonstra como os grupos que surgiram no imediato pós-guerra na França, a Nouvelle Droite, a Europe Acton, o GRECE e o Club de l’Horloge, acabaram sendo as matrizes ideológicas dos grupos de direita que foram se formando a partir da década de 1970. Nesse sentido, ressalta-se a participação do Front National na luta contra a imigração, os imigrantes e a Gália, e o papel exercido pela Antiguidade em Terre et Peuple para demarcar e justificar a ‘guerra étnica’, pois a “Antiguidade é, aqui, mais uma vez, um dos principais veículos da ideologia direitista” (p. 21). E: É na França de Vichy, com suas leis racistas que retiram direitos tendo como pretexto a origem dos cidadãos (…) que se inspira o F. N. [o Front National]. (…) A identidade nacional ancorada no mito gaulês permite, assim, o reencontro com o passado ideal, distante e que tem na tradição gaulesa, em sua longevidade, a resposta para os dramas atuais da sociedade francesa. (p. 178-9)

Assim, nessa mesma linha, ainda que com suas peculiaridades, defensor “de uma espécie de enraizamento cultural e de uma fidelidade identitária, o circulo T. P. [de Terre et Peuple] tem a História, desde os gregos e romanos, como testemunha dos fracassos e das derrocadas das sociedades multiculturais” (p. 190). E sobre esse aspecto, o grupo procuraria justificar sua ‘guerra total’, com ênfase nas questões étnicas.

Por suas qualidades, essa obra traz uma bela contribuição para um melhor entendimento de como a História, e certos grupos e sociedades do passado, são utilizados, em diferentes momentos, para justificar as ações no presente. Demonstrando como se utilizou, e também se abusou, do passado gaulês, romano e galo-romano na França durante o Regime de Vichy, e a herança que essas estratégias políticas e intelectuais deixaram para os partidos e grupos de extrema direita no país nos anos 80 e 90, o autor apresenta pormenorizadamente as relações entre História Antiga e História Contemporânea, e destaca que nem sempre as relações entre passado e presente são somente (ou completamente) ‘lineares’, mas sim dependem diretamente das especificidades e circunstâncias de cada momento histórico.

Referências

BANN, S. As invenções da História: ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Vilas Boas. São Paulo: Edunesp, 1994.

CHESNEAUX, J. Devemos fazer tabula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores.

Tradução de Marcos A. da Silva. São Paulo: Ática, 1995.

DUBY, G. O domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214. Tradução de Maria Cristina Frias.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

GIRARDET, R. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GOMES, A. C. História e historiadores. A política cultural do estado novo. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

HARTOG, F. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le Seuil, 2003.

___________. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

HOBSBAWM, E. & RANGER, T. (org.) A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante – 2ª edição – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MARX, K. O Dezoito Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na unidade de Amambaí.

Figuras do pensável. As encruzilhadas do labirinto VI | Cornelius Castoriadis

“É autônomo aquele que dá a si mesmo suas próprias leis” (CASTORIADIS, 2004, p. 161)

Com essas palavras, de Cornelius Castoriadis, já se buscou resumir sua filosofia, como a busca constante pela autonomia do sujeito (VALLE, 2008). Mas, evidentemente, ela não se limita a essa busca pela autonomia (CHAUÍ, 1995; CASTORIADIS, 1992, 2006). Aliás, é em sua interpretação do homem e das instituições, ou antes, da forma como os homens instituem imaginariamente as sociedades e, inversamente, estas dão contorno as suas formas de agir e pensar, que se deve pensar o lugar que teria a autonomia em seu pensamento, visto que, segundo ele, “a história da humanidade é a história do imaginário humano e de suas obras” (CASTORIADIS, 2004, v. 6, p. 127). Talvez o local em que melhor o autor tenha analisado esta questão tenha sido em sua obra As encruzilhadas do labirinto, organizada em seis volumes, o último dos quais foi póstumo. Para organizar mais didaticamente a exposição, destacou-se num primeiro momento como foi organizada esta obra pelo autor, e num segundo, analisou-se os seus principais aspectos teóricos e metodológicos. Leia Mais

Atlântida: pequena história de um mito platônico | Pierre Vidal-Naquet

Devolver o mito à imagem e à poesia, depois de ter

destrinchado sua história, é a dádiva que desejo a

todos aqueles que lerão este pequeno livro (VIDALNAQUET, 2008, p. 177).

Pequena obra-prima é como se pode definir este livro (Atlântida) de Pierre Vidal-Naquet (1930-2006), cujo trabalho renovou os estudos sobre a historiografia greco-romana do mundo antigo (mesmo considerando o fato que tenha sido especialista da Grécia clássica e helenística). Autor de uma vasta produção, em que se destacam: Os assassinos da memória (traduzido no Brasil em 1988), O mundo de Homero (2002), Os gregos, os historiadores, a democracia (2003), e em parceria com Jean-Pierre Vernant: Trabalho e escravidão na Grécia antiga (1989) e Mito e tragédia na Grécia antiga I e II (1991; 1999).

Numa pesquisa minuciosa, o que o autor procura identificar nesta obra é a elaboração de uma historiografia sobre o mito da ‘Atlântida platônica’, ao cotejar evidências arqueológicas e dados etnológicos, que ao longo do tempo serviu para justificar interpretações filosóficas, religiosas e políticas, em cujas ambições estavam: a) a de reconstituição de uma civilização perdida; b) de demonstrar as origens de um povo cuja ‘identidade’ havia sido pouco valorizada; c) de empreender jornadas a lugares distantes, com fins políticos e comerciais; d) e ainda de explorar ilhas e territórios desconhecidos. Em todas essas situações, a narrativa mítica foi se adequando aos novos contextos e espaços geográficos, reconfigurando momentos decisivos (como o de seu desaparecimento), ou se transpondo para outros povos, no interior destas novas narrativas e interpretações. Definir quais foram esses momentos, quais seus interpretes e que mutações foi sofrendo, o mito da ‘Atlântida platônica’, foi à tônica da narrativa de Pierre Vidal-Naquet, coberta de análises criteriosas, mas sem dispensar a fina ironia que é comum aos trabalhos do autor. Leia Mais

Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello / Lilia M. Schwarcz

A editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Fundação Perseu Abramo, lançou, em 2008, a coleção „Intelectuais do Brasil‟, para abordar o conjunto da obra de certos autores, cuja “reflexão sobre o Brasil seja considerada relevante para a compreensão do país”. Foram editados quatro livros naquele ano, apresentando as obras de Evaldo Cabral de Mello, Boris Fausto, Silviano Santiago e Leonardo Boff. Cada livro ficou sob a responsabilidade de um organizador, cuja tarefa, além de articular a apresentação da obra e do respectivo autor selecionado, era reunir um grupo de pesquisadores para efetuarem análises aprofundadas. Lilia Moritz Schwarcz foi a responsável pela organização das leituras críticas que foram feitas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello.

Embora a coleção não apresente o que está entendendo por „intelectual‟, supõe que são indivíduos cuja obra e atuação diante do cenário nacional e internacional contribuíram diretamente para que questões políticas e culturais fossem pensadas e repensadas, quanto ao presente (ao passado e ao futuro) das sociedades. Tal definição, mesmo que indiretamente, aparece interligada entre cada um dos quatro livros até aqui lançados pela coleção. No caso de Evaldo Cabral de Mello, tal questão se apresenta em sua atuação como historiador e diplomata, cuja relação profissional não é recente no país. Em função da presença tardia de universidades no país, a formação do ofício de historiador permaneceu, durante muito tempo, em caráter „autodidata‟. A paixão pelo ofício, alicerçava-se nos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres estaduais. Sem profissionalização, a atuação „autodidata‟ dos praticantes do ofício neste período tinha que, por razões óbvias, manter-se ligados a outras profissões. O exercício da diplomacia, ao lado da prática da pesquisa histórica, foi muito comum nos séculos XIX e XX, e mesmo após a criação das primeiras universidades, a partir da década de 1920, tal tradição não desapareceu. Evaldo Cabral de Mello, nesse sentido, esta enraizado nesta tradição de pesquisa, que media história e diplomacia: “fez uma carreira em tudo singular: seguiu a diplomacia e sempre alardeou um „horror‟ às instituições, as quais, segundo seu próprio depoimento, são sempre muito „conformistas‟” (p. 11), mas não se limitou a ela. Em suas obras, a “fonte documental permite perceber como a identidade é uma criação social, opositiva e circunstancial: uma resposta política a um contexto político [mesmo considerando sua relutância sobre o uso deste conceito]” (p. 9). Por outro lado, descortina a ideia “de que a vinda da Corte já levaria a prever uma independência conservadora e liderada pela monarquia”, cujo fundamento estava alicerçado numa interpretação finalista e parcial sobre a separação política, “condicionada pela história da Corte”, e por suas ações. Ao longo do livro, que conta com cinco ensaios, uma entrevista e um balanço dos ensaios efetuado pelo autor, apresenta-se esta questão e sua contribuição, para a produção da abra do autor.

No primeiro ensaio, Stuart Schwartz, faz um balanço da produção do autor, dando destaque as suas obras: Olinda restaurada (de 1975), Rubro veio (de 1986), O nome e o sangue (de 1989), A fronda dos mazombos (de 1995), O negócio do Brasil (de 1998) e A outra independência (de 2004). Para ele, esse conjunto formaria um sexteto de uma história regional do país, em que estudou parte do nordeste e a história de Pernambuco. Essas obras estariam articuladas num projeto historiográfico ambicioso e bem sucedido.

Em certo sentido, o sexteto de Evaldo Cabral de Mello é um exemplo brasileiro do ‘retorno à narrativa’ […]. O autor adotou este meio de exposição não porque desconhecesse a teoria nas ciências sociais, ou porque rejeitasse um modo analítico. De fato, seus livros demonstram familiaridade com um amplo espectro teórico; mas ele sempre concebeu a teoria e o método como ferramentas, não como propósitos da análise histórica. Além disso, criticou o que chama de ‘orgia’ nas ciências humanas e o abuso da interdisciplinaridade entre historiadores […] sempre se manteve de certa foram um positivista, e pensa ser possível à recuperação daquilo que realmente aconteceu no passado […] também acredita que a narrativa é a forma clássica do historiador, e o método mais adequado a sua tarefa: reconstruir os eventos do passado e explicá-los aos leitores do presente sem incorrer no pecado do anacronismo […] confia que a escrita da narrativa é o melhor método a partir do qual é possível começar a entender as estruturas subjacentes aos eventos e as conexões entre acontecimentos e estruturas. Ao mesmo tempo, sua abordagem também o tornou particularmente sensível a narrativas passadas, às maneiras através das quais atores históricos no passado representaram a si próprios e a sua realidade, explicaram eventos e usaram tais narrativas para criar uma mitologia que representa sua visão do mundo (p. 30-1).

No segundo ensaio, Luiz Felipe de Alencastro, prolonga essas análises, centrando-se na questão da narrativa contida nas obras do autor. Pauta-se na analise de: O norte agrário e o Império (de 1984), além de Rubro veio, O nome e o sangue e Olinda restaurada. Procura dimensionar a importância da narrativa histórica no encadeamento do enredo de cada um dos livros, fazendo também uma avaliação crítica do uso deste procedimento expositivo de dados. Para ele, o autor versa sobre um conflito luso-holandês, unindo a “metodologia histórica atual à erudição e à tradição regionalista”, numa reflexão que conforma três séculos de história, “conectando-a aos grandes debates historiográficos e tornando-a um dos capítulos centrais da historiografia das Américas” (p. 39).

Júnia Ferreira Furtado, em seu ensaio, analisa comparativamente O nome e o sangue com Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. Para ela, detendo-se na questão da mitologia política, enquanto Evaldo Cabral procurou demonstrar um segredo, ao expor a genealogia de uma família, Guimarães Rosa fez o inverso, no que diz respeito aos segredos do sertão, e as suas características políticas. De acordo com ela:

Ao revelar as vicissitudes e os percalços por que passou o personagem em sua tentativa de fraudar sua história familiar, criando o segredo que se oculta nas entrelinhas do processo [como cristão-novo], a narrativa [de Evaldo Cabral] desnuda o universo não só da sociedade do açúcar do Nordeste do Brasil, como também do mundo luso-brasileiro, suas formas de sociabilidade e seus conflitos. Um mundo em transformação, onde os negócios promoviam a inversão da ordem, mas onde o sangue, o nome, a honra, a linhagem e a nobreza continuavam a ser fatores estruturantes desta sociedade (p. 80).

A preocupação de Pedro Puntoni esteve mais em demonstrar as características metodológicas e as escolhas efetuadas pelo autor em sua obra. Para ele, o traço marcante da obra está em alcançar grandes sínteses sobre os processos analisados, investindo na questão narrativa, como forma de exposição dos dados, e na interpretação de uma massa documental impressionante. Por isso, a “prosa evaldiana nos conduz […] pelos desvãos desta sociedade conflituosa”, dando a “possibilidade de não apenas compreender a história, mas também de habitá-la” (p. 105).

Pautando-se na interpretação de A outra independência, Lilia Moritz Schwarcz no quinto ensaio do livro, voltou-se para o modo como Evaldo Cabral de Mello além de contraria as interpretações sobre a independência do país, não deixa de lado demonstrar que a história não é um processo teleológico no qual „os atores sociais‟ tem plena consciência de suas decisões e de suas atitudes. Para ela, as obras do autor “têm gerado movimento e feito a historiografia nacional passar por uma clara renovação e questionamento”, por que mostrou ângulos e aspectos do passado pouco percebidos, que teoria e método são importantes, mas apenas quando estão articuladas, a análise das fontes e a exposição dos dados, e que todo acontecimento impõem uma multiplicidade de olhares, não se limitando a uma única interpretação.

Na entrevista que concedeu a Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, juntamente com seus comentários aos ensaios, o autor volta à questão da articulação de sua obra num projeto coerente e organizado, destacando que não haveria tal projeto. E que foi concebendo cada obra, uma após a outra, e não todas ou um conjunto ao mesmo tempo. Ressalta a importância da carreira diplomática, para a consecução de suas pesquisas. E que:

A conclusão que tirei a partir de outras leituras foi a de que a narrativa proporciona a técnica mais adaptada a realizar a integração dos saberes históricos; e que o preconceito vigente contra ela nos meios acadêmicos não leva em conta que a opção em seu favor decorre essencialmente da natureza da realidade histórica. A historia ideal de um dado acontecimento histórico seria a meu ver a que, por exemplo, tratando da Revolução de 1848 na França, combinasse o Marx do ‘18 de Brumário de Napoleão Bonaparte’ e o Tocqueville das Recordações. O historiador não pode aceitar ser posto contra a parede pela escolha entre historiar eventos ou historiar estruturas. Não há porque optar por uma em detrimento da outra. A história puramente factual é confusa e monótona; a história puramente estrutural não o é menos, mesmo quando escrita por um historiador de talento. […] Os eventos têm uma estrutura (como demonstra a história comparada das revoluções), mas a estrutura também compõe-se de ações, pois, nada tendo de metafísica, é apenas o produto de uma miríade de microeventos, e é ação cristalizada dos homens ao longo do tempo (p. 198).

A leitura desta obra dá, portanto, um belo exemplo de como uma obra é produzida, e ao longo de sua produção quais os questionamentos, dificuldades e dilemas que perpassam por seu autor. Nesse sentido, a coleção „Intelectuais do Brasil‟ constitui um empreendimento editorial inovador e didático, por permitir uma apresentação minuciosa a produção de importantes „intelectuais‟ brasileiros, que contribuíram para a produção e a renovação do conhecimento histórico nas últimas décadas. No caso das leituras aqui apresentadas sobre a obra de Evaldo Cabral de Mello não é diferente, mesmo por que os autores possibilitaram um acesso à obra viável tanto para o iniciante, quanto para o pesquisador da área. Além disso, destaque-se o intenso debate entre os comentadores e o autor, que demonstra a complexidade que sempre permeia a interpretação de qualquer obra ou autor. O que apenas torna a obra ainda mais rica e viável para consulta. A lamentar apenas o pouco espaço que foi dado a discussão da formação do autor (principalmente, em sua infância e juventude), que apenas se inseriu na entrevista.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos. E-mail: [email protected].


SCHWARCZ, L. M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008, 204p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Historiografia e “intelectuais brasileiros”. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.15, p.122-125, jul./dez., 2009. Acessar publicação original. [IF].

A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos – FERES JR (EH)

FERES JÚNIOR, João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru: Edusc-Anpocs, 2005, 317p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. “Latin America”: entre o politicamente correto e o conceitualmente inadequado. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.

Apenas recentemente a história conceitual começou a ser um campo de investigação promissor na pesquisa histórica brasileira. Prova disso, mesmo que parcial, é que apenas em 2001 se fez a tradução do livro Crítica e crise de Reinhart Koselleck, a famosa tese do autor publicada originalmente em 1959, e em 2006, de seu grande livro Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, originalmente um conjunto de ensaios reunidos em livro em 1979, com os quais o autor se tornou uma referência internacional nos estudos sobre a história conceitual. Tudo indica que o momento tem sido fértil para que ocorram as primeiras apropriações deste importante autor nos estudos históricos desenvolvidos no Brasil neste campo de pesquisa.

Muito embora João Feres Jr. tenha defendido seu PhD nos Estados Unidos (pesquisa equivalente ao doutoramento no Brasil), a partir de sua estadia de oito anos em Nova York, após defender sua dissertação de mestrado em filosofia política na Unicamp, seu trabalho foi um exemplo de uso bem-sucedido da obra de Reinhart Koselleck para fazer uma história conceitual do termo Latin America.

Desde 2003 Feres Jr. é professor de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e em 2004 sua tese recebeu o prêmio de melhores teses do ano no concurso da Edusc-Anpocs, na área de Ciência Política, cuja função é tornar públicas as pesquisas com o financiamento integral de sua publicação. No Brasil, é um dos coordenadores do projeto de História Conceitual Comparada do Mundo Ibérico, que inclui quatro outros países (Espanha, Argentina, Colômbia e México), e há cinco anos coordena, com Marcelo Jasmin, o grupo de História das Ideias e Conceitos Políticos, que tem promovido encontros regulares para a discussão de aspectos metodológicos e de questões cruciais da história conceitual.

Por essa e por outras razões, seu texto é um bem-sucedido exemplo de uso crítico da obra de Reinhart Koselleck para elaborar uma história conceitual de Latin America. Diz ele, para justificar tal estudo, que:

Os termos usados para identificar povos, culturas e regiões do mundo têm sido, nos últimos tempos, sujeitos à revisão crítica. Isso é particularmente verdadeiro na sociedade americana, em que os temas do multiculturalismo e do respeito à diferença se tornaram candentes (…). É interessante notar, contudo, que algumas denominações étnicas escapam dessa onda revisionista. Provavelmente isso se deu porque elas não são explicitamente insultantes. Esse é o caso de Latin America, um termo amplamente usado no inglês contemporâneo e que, portanto, parece ter passado no teste do politicamente correto da sociedade americana. Entretanto, acredito que o conceito de Latin America tem sido de fato um instrumento de representação distorcida daqueles que os americanos percebem como Latin Americans e, consequentemente, um meio que contribui para o tratamento assaz desigual historicamente dispensado a essa gente, tanto àqueles que vivem no sul do Rio Grande quanto àqueles que vivem nos EUA como imigrantes “latinos”. (p. 9-10)

Nesse sentido, sua pesquisa procurou circunscrever o que quer dizer Latin America e quais seus usos no inglês americano. Com base na análise dos principais significados atribuídos ao termo, tanto na linguagem comum quanto “nos textos produzidos por especialistas das ciências sociais”, definiu a seguinte tese para a sua proposta de investigação:

(…) de que Latin America tem sido definida no inglês americano, tanto na linguagem comum quanto nos textos especializados, como o oposto de uma autoimagem glorificada da America (…) demonstrarei essa tese através de um experimento semântico parcimonioso que requer apenas um mínimo de informação histórica (…) tratarei de mostrar que, no inglês usado hoje em dia, há uma assimetria fundamental entre a percepção do Eu coletivo americano e do Outro Latino Americano. (p. 10)

Para demonstrar adequadamente sua tese, Feres Jr. preocupou-se inicialmente “com a procura de um termo semanticamente assimétrico ao conceito de Latin America em inglês”. Como ele explica, nem North America, que possui um caráter mais geográfico, nem Anglo-Saxon America, com maior ligação linguística, formavam correspondentes assimétricos adequados à comparação com Latin America, o que foi averiguado com o termo Germanic America, ou Teutonic America. Mesmo que de uso corrente no século XIX, após as guerras mundiais das primeiras décadas do século XX este termo entrou em desuso. No entanto, ele é um termo assimétrico mais pertinente que Anglo-Saxon America (que é de uso mais corrente na língua norte-americana hoje) por trazer “conotações racistas claras”. “Mas se essa intuição está correta, se Latin America também é um termo chave de um discurso racista, esse discurso deve ter uma natureza diferente do pangermanismo ou do anglo-saxonismo, pois não aparece de maneira explícita”. De modo que uma “tese auxiliar desse trabalho é a de que o discurso das ciências sociais contribui para esse ocultamento” (p. 13).

A forma clara e direta com que o autor faz a exposição de sua tese na pesquisa talvez oculte, num primeiro olhar, o trabalho árduo e cansativo que sua comprovação acarretou, ainda que a maneira com que ele demonstra seus argumentos possa parecer “óbvia”. Tal como ele indica:

O leitor atento já deve ter corretamente adivinhado que muitos dos significados pejorativos identificados na análise dos verbetes do OED e nos textos de Martin e Smith serão revelados pela análise do significado do conceito, seja na linguagem comum, seja nos discursos sociocientíficos (…). Contudo, mais interessante e revelador não é saber que eles lá estão, mas compreender em que momento histórico eles aparecem ou são deixados de lado, entender as conexões entre uma determinada definição histórica de Latin America e as ações dos homens que dela se serviram, verificar quais significados resistiram ao passar do tempo e através de qual retórica, e saber quais as implicações do uso do termo no passado e nos dias de hoje. São esses conhecimentos que o percurso do trabalho presente pretende revelar (p. 27).

O que o leitor tem, assim, “em suas mãos” é um livro sério e criterioso, muito bem pensado e formulado. Não há como negar, desde já, que a sua contribuição é dupla e evidente: contribui diretamente, de um lado, para o avanço dos estudos sobre a história conceitual produzidos no Brasil, e, de outro, para que possamos constatar que a aparente conotação politicamente correta atribuída pelos norte-americanos a Latin America e a Latin Americans, na verdade, camufla e condiciona a uma suavização as concepções racistas inerentes, que os termos inicialmente ocultam na linguagem comum e nos estudos especializados, e que servem de base para os textos usados nas universidades norte-americanas ensinarem a história da América Latina a seus alunos. De acordo com ele:

Esse não é, contudo, simplesmente um livro de história. A história conceitual praticada aqui está intimamente imbricada com um projeto crítico de desvendamento do mundo presente com vistas a transformá-lo. Portanto, a questão do significado moral da definição do Outro como mera negação da autoimagem de um Eu coletivo deve preceder a própria análise histórica do caso em questão. A teoria do reconhecimento me parece ser um bom ponto de partida para a discussão das implicações morais do problema em questão, uma vez que seu tema é a constituição reflexiva da identidade através da análise fenomenológica do encontro entre Eu e Outro (p. 23-4).

Num trabalho de ciência política dividido em sete capítulos muito bem articulados e escritos, não é de se estranhar que o autor comece por estudar e por definir, no primeiro capítulo, uma tipologia das formas de desrespeito do “Eu coletivo norte-americano” para com o “Outro latino americano”. E isso é feito a partir de uma reformulação e ampliação crítica da história conceitual preconizada por Reinhart Koselleck em seu livro Futuro passado (1979), no qual este discutiu a noção de contraconceito assimétrico, e de uma síntese crítica da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, apresentada em sua obra The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts (1995).

Essa tipologia se caracteriza, desse modo, por analisar: a) a oposição assimétrica cultural; b) a oposição assimétrica temporal; c) e a oposição assimétrica racial. Para Feres Jr., a “oposição assimétrica é uma das formas semânticas que o desrespeito pode assumir quando articulado através da linguagem, e uma das mais radicais, pois o Eu vê no Outro somente reflexões invertidas de sua própria autoimagem. Portanto, essa tipologia de formas de oposição assimétrica é também uma tipologia de formas de desrespeito”, com as quais, seja no senso comum, seja nos estudos especializados, avaliam, mesmo que implicitamente, os latino-americanos como inferiores aos norte-americanos.

Para comprovar essa dedução, no capítulo seguinte, o autor evidencia como surgiram tais conceitos na história dos Estados Unidos, promovendo um estudo do senso comum, para demonstrar quais usos de Latin America Latin Americans foram e ainda são feitos. Com base em sua tipologia, ressalta como as oposições assimétricas cultural, temporal e racial se desenvolveram e, às vezes, coexistiram no decorrer dos séculos XIX e XX, expressando formas de desrespeito ora explícitas, ora implícitas, à Latin America e aos Latin Americans. Nesse aspecto, não se limita às expressões linguísticas e aos seus significados, mas também analisa a iconografia que foi produzida no período. Pode-se argumentar aqui que, embora o autor não tenha verificado como os EUA, nas primeiras décadas do século XX, já impunham esses discursos e imagens aos países latino-americanos, muitas pesquisas produzidas no Brasil (e em outros países) têm se preocupado em demonstrar que tipos de discurso, artigos e imagens eram projetados em jornais e revistas, pelos norte-americanos (enquanto civilização racional, protestante, desenvolvida e imperialista), sobre os latino-americanos (na maioria das vezes identificados como uma civilização irracional, católica, ibérica e subdesenvolvida).

Para o autor, o “estudo dessa modalidade discursiva, tão importante para as sociedades de hoje, não tem merecido grande atenção por parte da história conceitual”, mas “a comparação entre a semântica do conceito no discurso das ciências sociais e na linguagem comum constitui uma oportunidade ímpar de análise e crítica” (p. 77-8). Não foi, então, por acaso que nos quatro capítulos seguintes Feres Jr. passou em revista a semântica do conceito de Latin America e os seus diferentes usos nas ciências sociais, percorrendo o imperativo da modernização, as discussões sobre a estabilização política, os estudos sobre dependência (mesmo considerando que neste caso houve uma apropriação, principalmente, das obras de Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faleto e André Gunder Frank pelos estudiosos norte-americanos) e os estudos do corporativismo (com atenção especial para a obra de Howard Wiarda). Da mesma forma, usou sua tipologia, constatando formas semelhantes de desrespeito, antes já expressos na linguagem comum e agora visualizados também na modalidade discursiva sociocientífica. Destaca que houve uma explosão desses estudos, após a Revolução Cubana de 1959, que, despertando os norte-americanos para o “perigo do comunismo” na América Latina, permitiu a formação de grupos de pesquisa e centros especializados nesses estudos nos EUA. De acordo com seu apêndice número 1 (apresentado à página 287), enquanto entre 1951 e 1960 houve 91 publicações no gênero, na década seguinte, entre 1961 e1970, o número passou para 328, e entre 1991 e 2000, para 502.

No último capítulo do livro, Feres Jr. se preocupou em saber quais eram os livros-texto mais lidos e usados nas disciplinas sobre a história da América Latina oferecidas nos cursos de graduação das universidades norte-americanas. Ele observa, principalmente, as obras que figuravam na bibliografia básica das disciplinas, dando ênfase aos mais citados. O capítulo é verdadeiramente primoroso, pois além de fazer um recenseamento exaustivo, ocupa-se também dos principais usos atribuídos por esses livros-texto aos termos Latin America e Latin Americans. Desse modo, a “história do conceito de Latin America no inglês americano revela a presença persistente de oposições assimétricas estruturando seu campo semântico”, tendo sido definida “implícita ou explicitamente, em oposição a uma imagem idealizada da America (Estados Unidos)”. E, ainda “que o foco central do livro tenha sido o discurso sociocientífico, o campo semântico do conceito na linguagem comum foi estabelecido, entre outras finalidades, para servir-lhe de parâmetro de comparação”, até porque, ao “passo que as oposições assimétricas temporal e cultural foram mantidas ou até mesmo amplificadas, a oposição assimétrica racial foi, no mais das vezes, silenciada” (p. 280-1). Por fim:

(…) temos a longa história das relações políticas dos EUA com seus vizinhos do sul (…). O problema mais sério e profundo do discurso dos Latin American Studies está na própria semântica do conceito, estruturado pelas oposições assimétricas que definem Latin Americans como seres destituídos de agência e de razão, como coisas (…). Assim percebemos que a negação do reconhecimento denotada pela semântica do conceito vai muito além do mero uso de uma linguagem insultosa, ela traduz-se em ações das mais concretas de negação da autonomia desse outro da America na América. Essa negação do reconhecimento só é amplificada pelo raciocínio sinedóquico que consistentemente ignora a maneira como as pessoas experimentam suas vidas como membros de uma comunidade política, de uma sociedade (p. 286).

Esse livro oferece, consequentemente, uma interpretação consistente e articulada da maneira como a América Latina e os latino-americanos foram historicamente analisados pela linguagem comum e pelos estudos norte-americanos especializados. Mostra como uma terminologia, ainda que considerada politicamente correta pela sociedade que a utiliza, pode ser conceitualmente inadequada, por guiar um conjunto de formas de desrespeito (cultural e racial) inerentes às suas acepções semânticas. Pode-se até questionar a amostra selecionada, por não cobrir todas as ciências sociais ou todos os textos das áreas selecionadas e analisadas na pesquisa, assim como se pode alegar que sua interpretação do senso comum não revela a totalidade do processo, nem todos os seus diferentes significados. Mas não há como negar que este é um livro pioneiro sobre o tema, sendo ao mesmo tempo sugestivo e instigante. Sem dúvida alguma, ele será uma referência, por rever um conhecimento herdado e permitir ao leitor (também) transformá-lo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil, bolsista do CNPq e professor dos cursos de História e de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos ([email protected]).

Uma história do corpo na Idade Média – LE GOFF; TRUONG (CP)

LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2006, 207p. Tradução: Marcos Flamínio Pires; revisão técnica: Marcos de Castro. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. A história do corpo feminino e masculino no ocidente medieval. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica (Perrot, 2005:447).

Deste modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre “gênero” na Europa. Embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na civilização do ocidente medieval.

Não faz muito tempo, os estudos históricos se abriram para um conjunto de temas e objetos mais amplos. A ampliação das abordagens na pesquisa histórica tornou mais nítida a constatação de que as “grandes” mudanças teóricas e metodológicas da história são provenientes da renovação e da ampliação dos temas investigados.

No entanto, o problema, muitas vezes, está em operacionalizar adequadamente um procedimento de pesquisa à análise de certos objetos. Cada vez mais tem se demonstrado que certos problemas e certas abordagens são pertinentes para alguns temas, mas não para outros. Como tornar o assunto passível de ser inquirido e estudado pelo pesquisador é, neste caso, o problema fundamental. A partir dessas questões, os autores indicam a necessidade e justificam o propósito de estudarem o “corpo” na Idade Média européia.

Desde o início, os autores estavam preocupados em demonstrar que o corpo, enquanto objeto de pesquisa, constitui uma das grandes lacunas da história,

um grande esquecimento do historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem corpo (9). [Seria] preciso (…) dar corpo à história. E dar uma história ao corpo [por que] o corpo tem uma história [e a] concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas (10).

Por isso mesmo, a “história do corpo na Idade Média é (…) uma parte essencial de sua história global” (11), inevitável e indispensável para se compreender adequadamente a sociedade contemporânea, na qual o corpo tem, progressivamente, ganhado cada vez mais destaque na mídia.

Mas, tratando-se de um tema pouco estudado, embora justificável, como deve ser estudado o corpo na história das sociedades? Como o corpo foi pensado e visualizado na Idade Média? O que foi, portanto, o “corpo” para a sociedade do ocidente medieval?

Para os autores, primeiro, o corpo foi o resultado de uma das várias tensões vividas no período, porque a “dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta[va] de tensões” (11). E uma das principais tensões no período “é aquela entre o corpo e a alma”. De um lado, é fruto da benção e da glorificação, principalmente religiosa (quando se trata do corpo de Cristo), de outro, é “desprezado, condenado, humilhado”. Isso porque “O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração” (13). Segundo, e como conseqüência, as representações dos homens sobre as mulheres e sobre eles mesmos no período (que tinha na visão sua principal medida de sentido da realidade), acabavam sendo mediadas por “tensões” entre o material e o espiritual. Terceiro, para melhor compreender o período, os autores pensaram a Idade Média na sua divisão clássica – séculos V ao XV e XV ao XVIII -, e acreditam que suas principais características ainda estejam incidindo.

Portanto, o mais difícil para os autores foi como estudar o corpo, objeto praticamente “esquecido pela história e pelos historiadores”, segundo apontam ao longo da justificativa do trabalho. Para eles, autores como Norbert Elias, Marc Bloch, Lucien Febvre, Michel Foucault e mesmo Jules Michelet, no século XIX, foram exceções à regra, abrindo caminhos, posteriormente trilhados por Ernest H. Kantorowicz (1895-1968), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Michel de Certeau (1925-1986), Georges Duby (1919-1996), Paul Veyne, Peter Brown e Jean-Claude Schmitt. Os autores indicam ainda a importância dos estudos sociológicos (desde os produzidos por Émile Durkheim) e antropológicos (desde os pioneiros do século XIX). Ao demonstrarem sua dívida intelectual para com estes autores pioneiros, eles apontam que, ainda assim, o corpo continuou um objeto pouco estudado. Desse modo, ser investigado na Idade Média era também oportuno, não apenas por ser escassamente estudado, mas por que naquele período se concebeu muitos de nossos comportamentos. Com o “Cristianismo” houve uma reestruturação nos conceitos e nas práticas corporais e comportamentais daquela sociedade. Foi o momento de formação do “Estado” e das “cidades modernas”, “de que o corpo será uma das mais prolíficas metáforas e cujas instituições o irão moldar”. No plano cultural houve uma completa alteração no espaço urbano, que acabou redefinindo as próprias práticas religiosas, ao redimensionar o centro de poder do “campo” para as “cidades”. Na Idade Média, “o corpo é o lugar crucial de uma das tensões geradoras da dinâmica do Ocidente” (31), porque, até então, era uma novidade. Por outro lado, pensar o corpo e a sua história é pertinente também para inquirir a sociedade contemporânea e sua revolução comportamental, sexual, gestual e corporal, acelerada a partir dos anos de 1960.

Para delimitarem melhor a pesquisa, os autores dividiram o trabalho em quatro capítulos. Os dois primeiros, mais densos e consistentes, discutem as conseqüências do carnaval e da quaresma, e de viver e morrer na Idade Média. Os dois últimos discutem como o corpo passou a ser sistematicamente “civilizado” e utilizado como uma “metáfora” para pensar outras questões e lugares. Para eles:

A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado original – quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão (35).

A “tensão” entre um corpo feminino “diabolizado” e um corpo masculino “endeusado” ficaria latente no período, porque, de início, o corpo na Idade Média foi renunciado. Controlar a sexualidade feminina, seus gestos, suas práticas, sua conduta na sociedade passaria a ser uma questão mediada pela Igreja e aceita pela sociedade. Mesmo assim, o próprio corpo feminino, não deixou de também ter “tensões” entre o bem – procriação, virgindade de “Maria”, castidade e cuidado com a família – e o mal – sexualidade, prostituição, luxuria e perversão da alma -, porque “o culto do corpo da Antiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida social” (37). Igualmente importante, foram os “tabus” construídos pela instituição religiosa sobre os fluidos corporais, como o esperma e o sangue. E

é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos (41) [principalmente, no discurso institucionalizado da Igreja].

(…) a religião cristã institucionalizada introduz uma grande novidade no Ocidente: a transformação do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalência, assim como nenhum termo dessa equação figura no Antigo Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho (49).

No entanto,

A transformação do pecado original em pecado sexual é tornada possível por meio de um sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e deformações de todos os gêneros. A interpretação tradicional afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhecimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se sem grandes dificuldades (51).

Assim, não é por acaso que “a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas também corporal”. Sendo ela “fraca”, conforme lhe verá a Igreja, a primeira versão da Criação presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais desfavorável a mulher. [Com isso, da] “criação dos corpos nasce, portanto, a desigualdade original da mulhe [e ela] irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sexual. [Por outro lado] ela é subtraída até mesmo em sua natureza biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação apenas ao sexo masculino (54).

Não foi sem razão que Georges Duby disse que essa Idade Média é “masculina”, pois os discursos, além de serem escritos por homens, estavam convictos de sua superioridade, lembram os autores.

De acordo com os autores, a revanche do “corpo” martirizado pela Quaresma, que visava contornar o “paganismo” e sistematizar regras de conduta para homens e, principalmente, para as mulheres, estava nas práticas do Carnaval. A tensão entre a Quaresma e o Carnaval será também uma tensão entre vontade e liberação, regra e discórdia, bem e mal, homem e mulher, numa sociedade fundamentalmente rural (já que em torno de 90% da população vivia nos campos nesse período). As cidades só passaram a ter maior representatividade entre os séculos XII e XIV. Tensão semelhante aparece no “trabalho”, entre o castigo e a criação. Os autores apontam que:

O corpo é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo). Ele dispõe de filtros que podem servir para distinguir o bem do mal: olhos, orelhas e boca.

A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne. Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do corpo [não sendo por isso, visto com bons olhos pelos teólogos e, consequentemente, pela sociedade] (76).

Assim, o

Carnaval do coração se manifesta[va] sob a Quaresma do corpo. (…) O que não quer dizer que os homens e as mulheres da Idade Média não conheçam os arroubos do coração ou as folias do corpo, que ignorem o prazer carnal e a afeição pelo ser amado, mas o amor, sentimento moderno, não era um fundamento da sociedade medieval (97).

O desinteresse pela mulher na Idade Média aparece também no período de gestação, no qual a mulher grávida “não é objeto de nenhuma atenção particular”. Essa desatenção perpassa todas as camadas da sociedade. Na velhice, a mulher também não será bem quista, em muitas ocasiões, por ser vista como “bruxa”. De modo geral, a velhice feminina terá uma desatenção semelhante a da mulher grávida.

As doenças e o estado mental das pessoas durante esse período também sofrerá altos e baixos, vindo a ser ora motivo de aversão, ora de cuidados e de arrependimento:

(…) os homens da Idade Média podem recorrer a um outro médico além de Cristo. Pouco a pouco, os médicos da alma – os padres – se distinguem daqueles do corpo – os médicos -, que vão se tornar ao mesmo tempo sábios e profissionais, assim como uma corporação, um corpo de ofício. Surgem escolas de medicina, assim como universidades em que homens se formam em uma ciência que é considerada, sem dúvida, um dom de Deus, mas, igualmente, um ofício. Os médicos trabalham, pois, como profissionais pagos… (113).

Nesse sentido, as “tensões” da Idade Média não se limitavam apenas as questões corporais, mas estavam inevitavelmente ligadas a questões espirituais. O trato dos vivos com os mortos é um exemplo singular:

Desde a Antiguidade, com efeito, os vivos se ocupavam dos corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em particular, eram encarregadas de lavá-los, de prepará-los para juntarem-se ao reino dos mortos que, segundo a crença, retornavam às vezes para atormentar a alma dos vivos. Com o cristianismo, estabelece-se uma hierarquia entre os defuntos, sem colocar em questão as práticas herdadas do paganismo. Somente as sepulturas dos santos, danificadas e manipuladas de diferentes maneiras, podiam ser objeto de celebração e veneração. Reza-se para os mortos, é certo, mas com a intercessão de novos heróis, os santos (122).

É a conduta dos “vivos” que mediará seus destinos após a “morte”. Aos que se comportaram adequadamente, o “Paraíso”, aqueles que não, o “Inferno”. Esse tipo de “horizonte” invadia o pensamento dos homens e das mulheres da Idade Média.

A dieta alimentar, o respeito às regras, o cultivo do espírito e a submissão à Igreja marcavam, assim, as expectativas dos homens e das mulheres. Desse modo, os cuidados com o nu, os excessos de alimentos, a “gula”, as práticas corporais (particularmente, o sexo) e esportivas (a exibição do corpo em público) igualmente marcavam o tipo de conduta a ser respeitada. Durante a Idade Média, as normas quanto às condutas corporais não se limitavam apenas aos membros da sociedade, mas também faziam parte da própria organização das metáforas usadas para definir o espaço de convivência social, em especial, o das cidades.

As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais que utilizam ao mesmo tempo partes do corpo e o funcionamento do corpo humano ou animal em seu conjunto remontam à alta Antiguidade.

(…) O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo no binômio cabeça/coração. O que dá toda força a essas metáforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comunidade de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça. Essa concepção dos fiéis como semelhantes a membros múltiplos, levados por Cristo à unidade de um só corpo, foi estabelecida por São Paulo (162).

Nessa medida, a metáfora corporal também será igualmente importante na definição da organização das cidades e da realeza, das funções do rei e de sua mediação entre a matéria e o espírito. Portanto:

A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado em história uma vantagem, um interesse suplementar. O corpo ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta, que é, em profundidade, a das idéias, das mentalidades, das instituições e mesmo a das técnicas e das economias, esse interesse dá um corpo, o corpo (173).

Nesse sentido, o “corpo tem, portanto, uma história”, o corpo foi o tema desta história escrita pelos autores. Resumido o enredo principal do livro, convém analisar alguns pontos. Primeiro, embora partam do suposto de que a abordagem cubra o período do século V ao XVIII, a interpretação privilegia os séculos X ao XIV. Segundo, por ser uma obra de caráter de síntese, e não monográfico, nem por isso deixa de ser oportuna a observação sobre as generalizações dos comportamentos femininos e masculinos para o período, sobre a maneira de controlar as vontades humanas por intermédio de um sistema de regras de conduta (elaborado e organizado pela Igreja) e das formas de representação dos corpos para toda a sociedade européia na Idade Média. Destaque-se ainda que, mesmo pouco explorado pela historiografia ocidental, a história do corpo mostra-se um tema rico e mais complexo do que supuseram os próprios autores, mesmo no que concerne ao período da Idade Média (Schmitt, 2007; Corbin, 2008). Deixando de lado as reservas, não há como negar os méritos e as contribuições desta obra, principalmente, por destacar as “metamorfoses”, positivas e negativas, sobre as representações do corpo feminino e masculino, e suas tensões entre o material e o espiritual, na Civilização do Ocidente Medieval.

Referências

CORBIN, A.; VIGARELLO, G.; COURTINE, J-J. (orgs.) História do corpo. Petrópolis-RJ, Vozes, 2008.         [ Links ]

PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, Edusc, 2005 [tradução: Viviane Ribeiro]         [ Links ].

SCHMITT, J-C. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru-SP, Edusc, 2007.         [ Links ]

Diogo da Silva Roiz– Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambaí (em afastamento integral para estudos); doutorando em História pela UFPR (bolsa CNPq). E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII | Robert Darnton

Na verdade, tudo o que se refere ao século XVIII é estranho, quando examinado em detalhe (DARNTON, 2005: 8).

Para Robert Darnton, o século XVIII é bem mais estranho do que imaginamos corriqueiramente. Seus personagens, e suas formas de agir e pensar, conforme argumenta, nos fariam ter uma sensação de estranhamento abissal. Após publicar um grande número de livros sobre o século XVIII, em parte já traduzidos no Brasil, como: Boemia literária e revolução (1987), O lado oculto da revolução (1988), O grande massacre de gatos e outros ensaios (1988), O beijo de Lamourette (1990), Edição e sedição (1992), O Iluminismo como negócio (1996), Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998) e Democracia (2001), o autor apresenta um guia, segundo ele nada convencional, para se entender o século XVIII, ou melhor, parte dele e de seus temas.

Neste livro, Os dentes falsos de George Washington (2005), em suas palavras, procurou oferecer um guia “para o século XVIII, não para todo esse período (o que exigiria um tratado em vários volumes), mas para alguns de seus recantos mais curiosos e singulares, e também para seu tema mais importante, o processo do Iluminismo” (DARNTON, 2005: 9). Para tanto, o autor expos relatos de campo, de parte de suas pesquisas, embora não dando um mapa completo do século XVIII, mas se concentrando em alguns de seus temas, como: “conexões franco-americanas, a vida na República das Letras, modos de comunicação e, por fim, formas de pensamento peculiares ao Iluminismo francês” (DARNTON, 2005: 10). Neste percurso sua tese “não é de que o século XVIII era estranho em si mesmo […] mas de que é, sim, estranho para nós”, em função das profundas transformações históricas que se deram do passado ao presente e, nesse sentido, preocupou-se em “abrir linhas de comunicação com o século XVIII e, ao segui-las até suas origens, compreender o século ‘como ele realmente era’, em toda a sua estranheza” (DARNTON, 2005: 14). Leia Mais

Pequena história dos historiadores | Philippe Tétart

Toda sociedade tem História, mas nem toda sociedade deixa testemunhos e/ou escreve sua história. Na verdade, embora a expressão ‘história vivida’, a existência das sociedades e dos homens no tempo, seja comum a todas as civilizações conhecidas (ou não), a ‘história conhecimento’, ou mais precisamente, a interpretação daquele agir humano, refere-se apenas àquelas que tiveram a preocupação (política ou cultural) de deixar a posteridade o registro escrito de suas ações, sob a forma fragmentária de documentos (oficiais ou não), ou ainda de interpretações. Evidentemente, desde “tempos imemoriais, a questão da história dos homens e de sua sociedade se coloca” (TÉTART, 2000, p. 7). Mais ainda, para aquelas onde a cultura escrita preponderou sobre a tradição oral. No entanto, a importância de quem deixa o testemunho, sob a forma documental, ou mais caracteristicamente, por meio de uma interpretação (na figura subjetiva do historiador), segundo François Hartog em seu livro O espelho de Heródoto, só teria, de fato, se iniciado na Grécia, no século V antes de Cristo, principalmente com as Histórias de Heródoto, que buscaria “construir um saber fundado nos depoimentos escritos e orais, a fim de reconstituir a cadeia dos acontecimentos históricos e de designar suas causas naturais próximas ou distantes. Inaugura assim a tradição da história factual detalhada – particularmente das guerras” (TÉTART, 2000, p 13), conforme constatará Philippe Tétart. A própria palavra ‘história’, segundo Jacque Le Goff em seu livro História e memória, tal como aparece em todas as línguas românicas ou em inglês, viria do grego antigo historie, em dialeto jônico, que derivaria da raiz indo-européia wid-, weid-, que quer dizer ‘ver’. Daí, segundo ele, o sânscrito vettas, testemunha, e o grego histor, ‘aquele que vê’, seria também ‘aquele que sabe’. E esse é, para ele, o significado que a palavra ‘história’ tinha na obra de Heródoto, de procurar, de informar, de investigar (e, por extensão, de deixar testemunhado aquilo que ‘viu’ ou ‘ouviu’). Leia Mais

O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício – GINZBURG (VH)

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictícioTradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 454 p. ROIZ, Diogo da Silva. O labirinto da realidade, os princípios da História e as regras da historiografia. Varia História. Belo Horizonte, v. 25, no. 41, Jan. /Jun. 2009.

Do labirinto de que nos fala o mito (em que Teseu recebe de Ariadne um fio que o orienta pelo labirinto, onde encontrou e matou o minotauro) aos labirintos da realidade, que nos conduz a História e a sua escrita (em função da condição sempre fragmentária dos documentos e dos relatos), as distâncias (a)parecem, até certo ponto, intransponíveis para se determinar o princípio de realidade que deu base e originou cada uma daquelas diferentes narrativas (míticas e históricas). Mas essa condição de distanciamento entre o mito e a história talvez seja apenas aparente. É o que indicou Georges Balandier, em seu livro O dédalo, ao avaliar o processo de elaboração e manutenção de um mito no tempo e interpretar as mudanças drásticas, rápidas e sutis das sociedades (em especial, as contemporâneas), que lhe foi ensejada por meio da análise do mito do labirinto, não deixando de demonstrar as relações e as trocas complexas que se estabeleceriam entre o mito e a história ao longo do tempo. Sem ser indiferente a essa questão, Carlo Ginzburg se pautou no discurso do mito do labirinto, ao apreender a rica metáfora do “fio do relato, que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade” (p.7), e sua relação com os infindáveis rastros, que as sociedades do passado nos legam em formas (definidas como) documentais. Nessa relação, entre os fios do relato e os rastros do passado, que os historiadores procurariam, de acordo com o autor, contar histórias verdadeiras (ainda que estas possam manter ligações estreitas com o falso), ao construir seu objeto de pesquisa e expor seus resultados sob a forma de uma narrativa, mesmo que peculiar. Para ele, hoje as relações entre verdadeiro, falso e fictício parecem muito mais tênues do que o foram para os historiadores oitocentistas.

Por isso argumenta, entre os quinze ensaios reunidos neste livro (e que foram produzidos entre 1984 e 2005), que há poucos decênios os historiadores passaram a dar maior atenção ao caráter construtivo e dinâmico de sua escrita, componente básico de seu ofício profissional. Alguns rastros dessa história recente do ofício de historiador formam o enredo principal deste livro, que se entrelaçam com a trajetória do autor, porque “a mistura de realidade e ficção, de verdade e possibilidade, est[iveram] no cerne das elaborações artísticas deste século” (p.334) e contra “a tendência do ceticismo pós-moderno de eliminar os limites entre narrações (…) ficcionais e narrações históricas, em nome do elemento construtivo que é comum a ambas, eu propunha considerar a relação entre umas e outras como uma contenda pela representação da realidade”, que seria matizada por “um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos”. Mas para enfrentar tal desafio não era possível se enclausurar em “velhas certezas”, era sim “preciso aprender com o inimigo para combatê-lo de modo mais eficaz” (p.9). Para o autor desse O fio e os rastros, a contenda apontada acima estaria no cerne dos debates desencadeados, desde os anos de 1950, sobre o ofício de historiador, no qual verdadeiro, falso e fictício ganhariam contornos mais híbridos, ao se desfazerem as distinções até então aceitas entre elas, e que se tornaram totalmente enfadonhas para a compreensão do passado, de acordo com a interpretação ‘cética’, dita pós-moderna.

Desde que publicou Olhos de madeiraRelações de força Nenhuma ilha é uma ilha,1 que Carlo Ginzburg vem, cada vez mais, avançando em sua crítica ao desafio cético sobre o aspecto construtivo do texto histórico, que ao ser apresentado como um discurso narrativo, a crítica pós-moderna o assemelhou ao texto literário, desfazendo, com isso, as distinções até então em voga e que calcavam no primeiro a pretensão à verdade (em função da utilização de fontes documentais, com os quais os historiadores presumiriam reconstituir o passado) e ao segundo a liberdade de criação imaginativa. Neste novo livro, o autor acrescenta os seguintes pontos: a) contar e narrar, servindo-se dos rastros do passado, para escrever histórias verdadeiras continua a ser um dos princípios do ofício dos historiadores; b) as relações entre as narrações históricas e as narrações ficcionais, ora se aproximando, ora se distanciando, é uma contenda que constitui, ao longo do tempo, uma disputa pela representação da realidade, na qual historiadores e romancistas mais se distanciaram do que aproximaram suas narrativas; c) a imposição da tese que descarta a possibilidade de as narrativas históricas apresentarem (ou falarem de) uma realidade, mas sim de quem deixou os indícios que são utilizados como fontes, desaperceberia o caráter profundo mantido nos documentos (mesmo os não autênticos) sobre “a mentalidade de quem escreveu esses textos” (p. 10); d) por isso, ler os testemunhos do passado a contrapelo, como sugeria Walter Benjamin, até para levar em consideração aquilo que não intencionavam expor quem os redigiu “significa supor que todo texto inclui elementos incontrolados” (p.11); e) e, diante das relações entre ficção e realidade, se estabeleceria um espaço representado pelo falso, “o não-autêntico – o fictício que se faz passar por verdadeiro” (p.13), que, de fato, confirmaria-se à existência de uma realidade exterior ao próprio texto; f) nesse sentido, “destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo” (p.14), não deixaria de ser uma das pretensões do ofício dos historiadores (quanto ainda de outros profissionais, mesmo que o façam de formas análogas). E foi seguindo as pistas deixadas pela obra póstuma de Marc Bloch, Apologia da história ou ofício de historiador, que o autor destes ensaios procurou entrelaçar seus textos numa nova defesa da História e de sua escrita. De Lucien Febvre (1878-1956), que figura constantemente em sua obra Relações de força (que é um debate aberto contra a crítica pós-moderna ao ofício de historiador), a Marc Bloch (1886-1944), que aparece neste texto como figura chave, os elos que se estabeleceram durante a trajetória do autor se apresentam de uma forma mais direta com a historiografia francesa. Mas não só com ela, pois, em função de suas origens familiares e educacionais, o autor manterá um débito direto com Arsenio Frugoni (1914-1970), Eric Auerbach (1892-1957), Walter Benjamin (1892-1940) e Arnaldo Momigliano (1908-1987). Além de uma exposição minuciosa sobre o desenvolvimento do ofício dos historiadores e suas contendas, este livro apresenta também o entrelaçamento e os débitos de Ginzburg para com os autores arrolados acima.

Já nos comentários feitos (no apêndice deste livro) à obra O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, o autor aproveita para fazer de modo sutil, e até inesperado, uma revisão crítica aos apontamentos expostos por Hayden White, a partir de seu ensaio O fardo da história (publicado em 1966), ao ofício dos historiadores. Mas ao invés de refazer simplesmente o caminho pelo qual White sugeriu os contornos da divergência entre cientistas sociais e críticos literários aos historiadores, quando estes propunham que sua narrativa estaria em um nível médio, epistemologicamente neutro, de a história que escreviam estar entre a ciência e a arte, Ginzburg propôs seu ajuste de contas, demonstrando as relações instáveis que mediariam as trocas recíprocas, nas estratégias narrativas utilizadas tanto por historiadores, quanto por romancistas (e filósofos), a partir do século XV. E ainda, como sugeriu o autor, o leitor poderá ver nestes ensaios produzidos a partir da década de 1980, a gênese do projeto intelectual que deu origem aos textos reunidos neste livro. Por isso, não será por acaso, que se encontre desenvolvida entre os ensaios a proposta de mostrar “como resumos de fatos de crônica mais ou menos extraordinários e livros de viagem a países distantes contribuíram para o nascimento do romance e – através desse intermediário decisivo – da historiografia moderna” (p.319). Um intento justificado ainda pelo fato de o século XX vislumbrar de modo exemplar “a mistura de realidade e ficção, de verdade e possibilidade”, e que esteve “no cerne das elaborações artísticas deste século” (p.334).

Por outro lado, a divergência apontada por White não era recente. Ginzburg demonstra que desde que o gênero histórico surgiu há pouco mais de dois milênios, que as divergências entre o discurso histórico, o literário e o filosófico são recorrentes. Por implicarem, cada qual a seu modo, representações da realidade, filósofos e romancistas acabaram dando pouca atenção ao trabalho preparatório da pesquisa elaborada pelos historiadores, e estes, por sua vez, dedicaram pouca atenção ao caráter construtivo de seu ofício, ao qual é demarcado por uma escrita, que é mediada por uma forma narrativa (ainda que peculiar). De acordo com ele, nas “últimas décadas, os historiadores discutiram muito sobre os ritmos da história [tendo a obra de Fernand Braudel (1902-1985) como base]; [mas] pouco ou nada, o que é significativo, sobre os ritmos da narração histórica” (p.321), com a qual se avolumaram críticas internas (dos próprios historiadores, hávidos por responderem aos céticos) e externas (vindas de críticos literários e filósofos). Por isso, a “crescente predileção dos historiadores por temas (e, em parte, por formas expositivas) antes reservados aos romancistas (…) nada mais é que um capítulo de um longo desafio no terreno do conhecimento da realidade” (p.326). Nesse sentido, Ginzburg responderá a indagação de White (e de François Hartog) se apoiando em Arnaldo Momigliano, ao dizer que:

A recusa, essencialmente relativista, de descer a esse terreno faz da categoria ‘realismo’, usada por White, uma fórmula carente de conteúdo. Uma verificação das pretensões de verdade inerente às narrações historiográficas como tais implicaria a discussão dos problemas concretos, ligados às fontes e às técnicas da pesquisa, a que os historiadores tinham se proposto em seu trabalho. Se esses elementos são desdenhados, como faz White, a historiografia se configura como puro e simples documento ideológico (p.327).

O que ressaltará Ginzburg, lembrando Momigliano, de que os historiadores trabalham com fontes, “descobertas ou a serem descobertas”, e as ideologias contribuem “para impulsionar a pesquisa, mas (…) depois deve ser mantida à distância” (p.328), para que seja mantido o princípio de exposição da realidade, que está na encruzilhada entre a busca da verdade e a criação imaginativa, a que os historiadores estariam, de certo modo, ‘enclausurados’. Esse princípio condicionaria a interligação de todos os momentos do trabalho historiográfico (“da identificação do objeto à seleção dos documentos, aos métodos de pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação literária”), aos quais, a redução “unilateral desse entrelaçamento tão complexo à ação imune a atritos do imaginário historiográfico, proposta por White [em Meta-história, de 1973] e por Hartog [em O espelho de Heródoto, de 1980], parece redutiva e, no fim das contas, improdutiva”. Foi precisamente graças aos atritos suscitados pelo princípio de realidade “que os historiadores, de Heródoto em diante, acabaram apesar de tudo se apropriando amplamente do ‘outro’, ora em forma domesticada, ora, ao contrário, modificando de forma profunda os esquemas cognoscitivos de que haviam partido” (p.328). Em resumo, este seria o ponto que uniria os outros quinze ensaios reunidos pelo autor neste livro, e demonstrariam como ao longo do desenvolvimento do ofício de historiador ocorreriam trocas recíprocas no campo estilístico (e, em menor proporção, expositivo dos dados) utilizados pela história, pela literatura e pela filosofia. Embora haja uma interligação entre os textos, verificável facilmente pela maneira como o autor os organizou, tendo em vista uma ordem cronológica crescente de apresentação dos dados do passado e do presente, esta não é totalmente linear como se verá. Ainda assim, dois princípios expositivos seriam plenamente visíveis: a) a do desenvolvimento do método histórico e suas trocas recíprocas com a literatura e a filosofia; b) e, neste movimento complexo, estabeleceria o lugar específico de sua obra nesta contenda, e como se posicionou durante essas últimas décadas. Para ele, a “questão da prova permanece mais que nunca no cerne da pesquisa histórica, mas seu estatuto é inevitavelmente modificado no momento em que são enfrentados temas diferentes em relação ao passado, com a ajuda de uma documentação que também é diferente” (p.334).

Ao evidenciar, no primeiro ensaio, que constatamos como reais os fatos contados num livro de história, como resultado do uso de elementos contextuais e textuais, o autor voltou-se com maior atenção para os textuais, com os quais historiadores antigos e modernos se utilizaram, e por estarem ligados a certos procedimentos literários, que por convenção presumiam estabelecer um ‘efeito de verdade’, em sua narrativa tida como parte essencial de seu ofício. Na Antiguidade Clássica esse componente textual (que daria um ‘efeito de verdade’ no relato escrito), relacionava-se a estratégia então usada de descrever ‘com vividez’ os acontecimentos. Os elos que se estabeleciam neste exercício (narração histórica – descrição – vividez – verdade) constituíam a base da escrita da história na época. Contudo, enquanto neste período, para gregos e para romanos, a verdade histórica se fundava na ‘vividez’ com que os eventos eram narrados, para nós, modernos, o autor dirá que esse efeito é encontrado por meio da utilização e interpretação dos documentos. Para ele, a historiografia moderna nasceria da convergência entre duas tradições intelectuais diferentes, a história filosófica e a pesquisa sobre a Antiguidade. Segundo ele, Momigliano teria notado o início desta mudança, no relato e na prática de pesquisa, no século XVII. Mas Ginzburg a verá no século anterior, por meio da interpretação da obra do italiano Francesco Robortello (1516-1567), que teve, de acordo com o autor, a sensibilidade de descrever parte daquelas alterações. Ao estabelecer o diálogo de Robortello com seus contemporâneos e com os autores da Antiguidade, Ginzburg acredita que demonstrou as raízes de um complexo problema, no qual surgiria à historiografia moderna, ao se distanciar das evidências puramente estilísticas e retóricas, que dariam maior vividez aos acontecimentos narrados, e dar maior atenção às “citações, notas e sinais lingüístico-tipográficos que as acompanham podem ser considerados – como procedimentos destinados a comunicar um efeito de verdade – os equivalentes” (p.37) da ‘vividez’ (a enargeia) na Antiguidade. E que estava ligada a uma cultura baseada na oralidade e na gestualidade, na qual a vividez do relato comunicaria a ‘ilusão’ da presença do passado. Já as citações e as remissões ao texto estarão ligadas a uma cultura dominada pelos gráficos e centrada na escrita, e o passado seria, portanto, “acessível apenas de modo indireto, mediado” pelos documentos. Para o autor foi graças “sobretudo à história eclesiástica e antiquária, [que] a prova documental (…) impôs-se sobre a” (p.38) mera evidência narrativa alcançada pela ‘vividez’ do relato.

A maneira como o francês Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) recolheu de suas experiências de viagem e de suas leituras os ingredientes fundamentais para a elaboração de seus ensaios é, para o autor, um caso exemplar, por que: a) demonstra como nos séculos XV e XVI eram construídas as relações entre ‘brancos’ europeus e ‘índios’ americanos, e, sobre isso, como o autor d’Os ensaios (cuja primeira edição é de 1580) a refez; b) e este transitou entre a ‘vividez’ do relato e a remissão a textos, para a comprovação de seus argumentos (no terceiro ensaio).

O diálogo entre ficção e história (exposto no quarto ensaio) ganhará mais envergadura no século XVII, quando em 1647 na cidade de Paris, Jean Chapelain (1595-1674) passou a avaliá-la em seu texto Sobre a leitura de velhos romances (cuja primeira edição póstuma foi publicada em 1728), ao ter como base o romance Lancelot. A maneira como François de La Mothe Le Vayer (1588-1672), a partir de 1646, tomará partido nesta questão dará ao ensaio um tom detetivesco, principalmente, ao destacar que “uma das tarefas da história é a exposição daquilo que é falso” (p. 90). Para Ginzburg:

Nesse caso, portanto, a distância crítica com respeito à matéria tratada não é obra de Diodoro mas dos seus leitores, sendo o primeiro de todos La Mothe Le Vayer. Para ele a história se nutria não só do falso mas da história falsa – para usar mais uma vez as categorias dos gramáticos alexandrinos retomadas polemicamente por Sexto Empírico. As ficções (…) referidas, e partilhadas, por Diodoro podiam tornar-se matéria de história. Chapelain, que dava um desconto à veracidade de Lívio, entendeu a argumentação do Jugement às ficções (…) de Homero e de Lancelot: ambas poderiam tornar-se matéria de história (p.91).

Mais ainda:

A fé histórica funcionava (e funciona) de modo totalmente diferente. Ela nos permite superar a incredulidade, alimentada pelas objeções recorrentes de ceticismo, referindo-se a um passado invisível, graças a uma série de oportunas operações, sinais traçados no papel ou no pergaminho, moedas, fragmentos de estátuas erodidas pelo tempo, etc. Não só. Permite-nos, como mostrou Chapelain, construir a verdade a partir das ficções (…) a história verdadeira a partir da falsa (p.93).

A partir da análise do milanês Girolamo Benzoni (1519-1570) em A história do novo mundo (de 1565), e suas implicações perante a compreensão do xamanismo e do uso de produtos entorpecedores na Europa, Ginzburg procurou demonstrar, ao relacioná-la a História geral e natural das Índias de Gonzalo Fernández de Oviedo (1478-1557), cuja primeira edição foi publicada em 1535, e aos débitos comuns destes autores para com Pomponio Mela e Solino sobre os trácios e Máximo de Tiro sobre os cita, que estão, por sua vez, relacionados a Heródoto, não deixa de ser tão surpreendente, quando se visualiza as possíveis raízes mongólicas e orientais dos rituais xamânicos dos citas, cujos autores do século XVI os aproximaram do xamanismo americano. Com isso, o autor observa que o “episódio interpretativo que reconstruí com minúcia talvez excessiva pode ser considerado quase banal: não a exceção, mas a regra” (p.111) para a construção e compreensão de qualquer processo histórico, que é matizado por testemunhos e esquecimentos, trocas recíprocas e inovações (algumas vezes até inesperadas).

A leitura de Eric Auerbach empreendida em Mímesis (obra pioneira, cuja primeira edição foi publicada em 1946) sobre Voltaire, é refeita por Ginzburg (no sexto ensaio) para demonstrar os contextos de ambos os autores e seus respectivos textos, suas leituras e seus débitos, com vistas a indicar como o estranhamento era uma estratégia estilística que Voltaire, inspirando-se em Swift, utilizava-se para propor uma representação sobre a realidade de sua época, na qual a diversidade cultural e religiosa, começava a ser homogeneizada, em função da ação da economia e do mercado mundial. Tal questão demonstraria as metamorfoses sobre a maneira com que Voltaire compreendeu a tolerância, e a forma como Auerbach a despercebeu em sua época.

O texto de Jean-Jacques Barthélemy (1716-1795) sobre a Viagem do jovem Anacársis à Grécia (de 1788) foi utilizado pelo autor (no seu sétimo ensaio) para demonstrar a inatualidade de sua estratégia narrativa, que não foi “nem um tratado sistemático de antiquariato, nem uma narrativa histórica” (p.146), mas teve uma inspiração direta nos antiquários, verdadeiros e falsos, e não nos historiadores que começavam a falar da realeza e de sua autoridade. Mesmo procurando documentar as indicações de seu texto (com mais de 20 mil notas, como lembrará Ginzburg), o trabalho de Barthélemy, em sua “híbrida mescla de autenticidade e ficção” procuraria superar os limites da historiografia existente. Mas durante seu processo de elaboração surgiria um outro texto, Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon (1737-1794), que se utilizaria da mesma cultura antiquária que inspirou Barthélemy, e a complementaria com outros elementos, como as idéias filosóficas de sua época, e que o tornariam o fundador da historiografia moderna “por ter sabido fundir antiquariato e história filosófica” (p.153). Nesse sentido, o caminho tomado por Barthélemy, que “propunha a fusão entre antiquariato e romance”, foi uma estratégia, em longo prazo, perdedora, e hoje, para o autor, inatual, mas que nem por isso deixaria de ser “um antepassado involuntário [da etnografia histórica, prática] de antropólogos ou pesquisadores, mais próximos de nós” (p.153).

Para contornar as críticas pós-modernas “de abolir a distinção entre história e ficção” (p.157) ele partiu (no oitavo ensaio) de um caso analisado em escala microscópica, para “decifrar a identificação de Julien Sorel com Israël Bertuccio à luz dessa leitura verossímil” (p.159), da obra, Marino Faliero, de George Gordon Byron (1788-1824), escrita em 1820, para chegar a conclusões análogas. O que na época Lord Byron (forma como era mais conhecido) via como a análise de ‘fatos reais’, para nós pertenceriam ao mundo da ficção literária, mas “justamente porque é importante distinguir entre realidade e ficção, devemos aprender a reconhecer quando uma se emaranha na outra” (p.169). Nesse caso, o exemplo de Marino Faliero permitiria que se observassem os contornos entre realidade e ficção, e as mudanças que se operaram nessa relação, nas primeiras décadas do século XIX, quando a historiografia moderna passará a circunscrever e circunstanciar as regras do método histórico, e a delinear as restrições e diferenças da escrita da história sobre a criação ficcional dos romances.

Ainda seguindo por esses rastros, o autor verá o desafio lançado por Henri-Marie Beyle (1783-1842), mais conhecido como Stendhal, aos historiadores em seu ‘romance’ O vermelho e o negro, que era “uma representação pontual da sociedade francesa sob a restauração” (p.178), e que será, depois, visto como uma construção (puramente) literária, não deixa de ser também um caso exemplar (quando cotejou seu processo de elaboração e a possível data de sua conclusão e publicação). Em especial, porque mostra como o ‘discurso direto livre’ foi descartado pela pesquisa histórica, por não deixar, por definição, traços documentais. Por isso, “um procedimento como o discurso direto livre, nascido para responder, no terreno da ficção, a uma série de perguntas postas pela história, pode ser considerado um desafio indireto lançado aos historiadores” e ao qual o autor acrescenta: “Um dia eles poderão aceitá-lo de uma maneira que hoje nem conseguimos imaginar” (p.188).

No rastro da interpretação de Eric Hobsbawm, em sua autobiografia Tempos interessantes (publicada em 2002), na qual indica uma transição subterrânea em processo, tal qual a que ocorreu durante o período de 1890 a 1970, entre os procedimentos da história dos eventos políticos para a história social, em função das críticas efetuadas pelos historiadores ‘modernizadores’ sobre os ‘tradicionais’ que se deu àquela mudança epistemológica, que Ginzburg se voltará para a gênese da micro-história italiana (no décimo terceiro ensaio). Por Hobsbawm o ter inserido dentro da análise pós-moderna, crítica quanto aos procedimentos da história, que este irá reconstituir o desenvolvimento da micro-história italiana, com vistas a demonstrar que mesmo inserido neste campo de estudo (e não na macro-história econômica e social, defendida por Hobsbawm) não deixou de refutar as críticas dos céticos, pós-modernos. Por isso refez o caminho trilhado pela micro-história, desde os anos de 1970, quando com Giovanni Levi passaram a discutir a questão. Ao mesmo tempo indicou a gênese do termo ‘micro-história’ no campo das ciências humanas. De George R. Stewart (que primeiro se utilizou da noção em 1959) a Luis González y González (que a usou em sua obra Uma aldeia em tumulto em 1968), perpassando pelas obras de Raymond Queneau, Primo Levi, Ítalo Calvino, Andréa Zanzotto, Richard Cobb, Emmanoel Le Roy Ladurie, François Furet e Jacques Le Goff, as reviravoltas das discussões sobre a compreensão do termo foram diversas. E a maneira pela qual a micro-história italiana se desenvolveu foi diversa e independente da maneira como ocorreram as discussões na Inglaterra e na França.

Dito isto, convém destacar que ao lado desta reconstituição da história do ofício de historiador, o autor insere um conjunto significativo de exemplos, para discutir as bases da pesquisa histórica, e responder e refutar as críticas pós-modernas à escrita da história (ao rever os conceitos de verdade, autenticidade, testemunho, provas, documento, narrativa, cientificidade e realidade). Da conversão dos judeus (cap.2) de Minorca em 417-8, que se seguiu à chegada das relíquias de santo Estêvão, descritas por Peter Brown em O culto aos santos (de 1981); as relações (apresentadas no cap.10) entre o Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu de Maurice Joly (lançado anonimamente em Bruxelas em 1864) e os Protocolos dos sábios de Sião, de 1903, em que uma “refinada parábola política se transformou numa tosca falsificação” (p.209); aos testemunhos individuais que expressavam a única versão sobre acontecimentos traumáticos emitida pelo sobrevivente, o princípio de realidade é o centro da discussão (no cap.11); a maneira como Siegfried Kracauer, em sua obra póstuma História: as últimas coisas antes das últimas, lançada em 1995, na qual o autor estabelece uma reconstrução dinâmica e recíproca entre história e fotografia (e cinema) (no cap.12); até as discussões sobre as proximidades e diferenças entre o inquisidor e o antropólogo na coleta e organização dos testemunhos (cap.14), e as relações entre a feitiçaria e o xamanismo (cap.15), o que se verá será uma discussão que, no rastro da obra póstuma de Bloch, demonstrará, na contramão da crítica pós-moderna, que o princípio de realidade ainda constitui um campo legítimo da pesquisa histórica, e em seu processo construtivo, continua a manter uma ligação estreita entre verdade e provas.

Naturalmente, que pelo que até aqui foi dito, muitos poderão acusar Carlo Ginzburg de ser um (mero) atualizador dos antiquários dos séculos XVII e XVIII. Que seu método expositivo é impreciso, às vezes exagerado, ao apontar continuidades e descontinuidades milenares entre diferentes posturas teóricas, ou entre certos costumes, formas de agir e pensar, dos homens e das mulheres de outrora, como já indicou Perry Anderson,2 ressaltando que a “explicação que ele oferece é convencional e descuidada – pouco mais do que referências genéricas” (p.88). Ao empreender sua resposta ao desafio ‘cético’, dito ‘pós-moderno’, Carlo Ginzburg alerta para a necessidade de maior precisão do método e das pesquisas documentais, as quais favoreceriam a elaboração das ‘provas’, quando expostas em uma narrativa. Talvez seja o que indica, ao dizer que sabendo “menos, estreitando o escopo de nossa investigação, nós esperamos compreender mais”3 Contudo, seu método não passou ileso, mesmo entre os historiadores profissionais,4 o que não quer dizer que sua contribuição tenha sido irrelevante,5 tanto para a renovação dos estudos históricos, quanto para o desafio lançado pela ‘virada lingüística’, nos anos de 1960 e 1970, e que ele avança ainda mais neste livro.

1 GINZBURG, C. Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.         [ Links ] 2 ANDERSON, P. Investigação noturna: Carlo Ginzburg. In:. Zona de compromisso. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Edunesp, 1996, p.67-98.         [ Links ] 3 GINZBURG, C. Latitudes, escravos e a Bíblia: um experimento em micro-história. Revista Artcultura, UFU, v.9, n.15, p.86, 2007.         [ Links ] 4 ANDERSON, P. Investigação noturna: Carlo Ginzburg, p.67-98.         [ Links ] 5 LIMA, H. E. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidadesRio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.         [ Links ]

Diogo da Silva Roiz– Doutorando em História da Universidade Federal do Paraná. Rua Tibagi, n. 404, Edifcio Aruanã, ap. 100, Centro, Cep. 80060-110. Curitiba/PR. [email protected].

Em busca da Idade Média: conversas com Jean- Maurice de Montremy | Jacques Le Goff

LE GOFF Jaques www cartacapital com br

LE GOFF Em Busca da Idade MediaLE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média: conversas com Jean- Maurice de Montremy. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 222p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2, ago, 2008.

Torna-se cada vez mais comum a apresentação de trajetórias acadêmicas e intelectuais em forma de testemunho, coletadas a partir de conversas e entrevistas, normalmente efetuadas quando o profissional está perto do final de sua carreira e se encontra em idade avançada, na qual a avaliação e organização da obra se evidenciam corriqueiramente.

Para Jacques Le Goff esse tipo de empreendimento já se tornou comum, uma vez que o têm praticado desde o final da década de 1970, devido ao sucesso da História das Mentalidades e do Imaginário. No entanto, enquanto as conversas e entrevistas concedidas nos anos de 1970 e 80 vislumbravam mais a atuação do autor e do grupo, ao qual faz parte até hoje, que é o da ‘terceira geração’ do movimento dos Annales na França, nas que tem oferecido nesta primeira década do século XXI, estas tem demarcado especificamente sua trajetória e produção intelectual. Leia Mais

A Redução de nuestra Señora de la Fe no Itatim: entre a cruz e a espada | Neimar Machado de Sousa

Mesmo que a região Sudeste concentre atualmente mais de 60% das pesquisas de mestrado e doutorado produzidas em História, vem chamando a atenção o aumento quantitativo e qualitativo de pesquisas desenvolvidas junto aos novos programas de Pós- Graduação em outras regiões do país, como é o caso da região Centro-Oeste. São estudos que, além de tratarem de temas pouco notados (e aparentemente ‘esquecidos’) pelos pesquisadores dos ‘grandes centros’, estão permitindo a revisão de inúmeros aspectos regionais, visitados até então apenas por ‘memorialistas’.

Fruto direto desse desenvolvimento é o programa de Pós-Graduação em História, nível mestrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS, da atual UFGD), Campus de Dourados (CPDO), em funcionamento desde 1999, onde Neimar Machado de Sousa apresentou como dissertação de mestrado a pesquisa A Redução de nuestra Señora de la Fe no Itatim: entre a cruz e a espada, sob a orientação do Prof. Dr. Eudes Fernando Leite, no ano de 2002, e foi publicada dois anos após a defesa, pela editora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), da cidade de Campo Grande/MS. Leia Mais

O Brasil e os dias: estado-nação, modernismo e rotina intelectual | André Botelho

O modernismo no Brasil tem atraído a atenção de diversos estudiosos, preocupados com a pormenorização (no espaço e no tempo), a delimitação (de autores e obras) e, principalmente, a revisão (conceitual, teórico-metodológica e historiográfica) do tema, desde o final dos anos de 1980.

A pesquisa de André Botelho, originalmente apresentada como tese de doutorado de Sociologia em 2002 na Unicamp, com o título Um ceticismo interessado: a obra de Ronald de Carvalho dos anos 20, sob a orientação da professora Élide Rugai Bastos, além de se inserir nesse amplo e diversificado movimento de renovação dos estudos sobre o modernismo (a modernidade e a modernização) brasileiro, traz, ele próprio, uma bela contribuição para os debates. Leia Mais

A escrita da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990) – GATTI JÚNIOR (AN)

GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990). Bauru: EdUSC; Belo Horizonte: Editora da UFU, 2004. 252p. Resenha de ROIZ, Diogo da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.25, p.229-235, 2007.

A escrita da história nos livros didáticos de ensino fundamental (e médio) no Brasil é tema que vem despertando a atenção de estudiosos de Educação, Ciências Sociais e História desde, pelo menos, os anos de 1980. Evidentemente, encontram-se estudos pioneiros antes desse período, muito embora fossem esparsos. Com o desenvolvimento dos programas de pós-graduação no país, a partir dos anos de 1970, avançou-se consideravelmente no número, densidade e discussões da historiografia brasileira sobre a história dos livros didáticos no país. A tese de Circe Bittencourt, Livro didático e conhecimento histórico, que foi defendida em 1993 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, é um bom exemplo da forma como as pesquisas sobre a produção, divulgação e usos dos livros didáticos de história se desenvolveram de lá para cá. Foi seguindo os passos dessa historiografia que, em 1998, Décio Gatti Júnior defendeu, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, sua tese Livro didático e ensino de história: dos anos sessenta aos nossos dias.

Edusc, em co-edição com a Edufu. Uma alteração substancial do texto, ora publicado, foi a exclusão das entrevistas que o autor fez em 1997 com autores de livros didáticos e editores, provavelmente em função da quantidade de páginas do material. O livro permaneceu dividido em três capítulos.

Na apresentação assinada pela professora Ester Buffa, orientadora do trabalho, desenvolvido entre 1994 e 1998, esta já esclarece as características do texto para o leitor, dando ênfase às suas contribuições para o tema. Para ela:

Ao buscar uma explicação, depois de analisar toda uma enorme coleção de livros didáticos de História, o autor, apoiado num referencial teórico-metodológico adequado, empreende uma análise do livro didático que passa pela sua escrita e confecção. Mostra como se passou, quanto à escrita, do autor individual à equipe técnica responsável (cap. 1) e quanto à confecção, da produção artesanal à indústria editorial (cap. 2).

Finalmente, focaliza as transformações ocorridas na escola e na sociedade brasileiras que fizeram com que o livro didático se tornasse definidor do processo de ensino-aprendizagem (cap. 3).(Gatti Júnior, 2004, p. 12-3).

Indica ainda que, por seu recorte inédito e suas análises, a leitura do livro é recomendada para os alunos de cursos de graduação em História, Ciências Sociais e Pedagogia, e ainda para os estudiosos da História da Educação e das Teorias do Currículo de História do Ensino Fundamental e Médio das escolas publicas do país.

Na introdução, o autor indica o que o levou a fazer essa pesquisa (além da questão formal do título de doutor na área de Educação), quais foram seus questionamentos e suas hipóteses. Segundo ele, “part[iu]-se da idéia de que, a partir da década de 1960, quando teve início o ainda inconcluso processo de massificação do ensino brasileiro, tenha ocorrido: a transformação dos antigos manuais individual à equipe técnica responsável pela elaboração dos produtos editoriais voltados para o mercado escolar; e a evolução de uma produção editorial quase artesanal para a formação de uma poderosa e moderna indústria editorial” (Idem, p. 16). Cada uma daquelas características correspondeu a cada um dos três capítulos do livro, tal como, acima, Ester Buffa já havia referido. Ressalta ainda que “a delimitação espacial foi se solidificando concomitantemente ao avanço do desenvolvimento da investigação, na qual os sujeitos envolvidos encontravam-se nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte e João Pessoa, bem como os empreendimentos editoriais enfocados concentravam-se na região sudeste do Brasil” (Idem, p. 17). Para atingir seus objetivos, pautou-se metodologicamente nos procedimentos de André Chervel sintetizados no texto História das disciplinas escolares, traduzido no Brasil em 1990. Observa que:

[…] a partir dos relatos feitos pelos autores e editores de diversas coleções didáticas, foi possível perceber que a constituição dos conteúdos disciplinares, expressos nos livros didáticos, não era a transposição dos saberes produzidos na pesquisa científica, mas sim, resultado de um leque amplo de fatores, tais como: as novidades produzidas no âmbito das ciências, que são selecionadas conforme as opções teóricometodológicas dos autores e, por vezes, dos editores; as mudanças curriculares e programáticas provenientes dos diversos órgãos que legislam sobre a educação escolar; a sociedade civil, especialmente a mídia que por vezes conduz o aparecimento ou a valorização de certas temáticas em detrimento de outras. (Idem, p. 18).

Assim, ao destacar a escolha do período, do recorte do tema e das fontes, o autor preocupou-se em expor a procedência dos livros didáticos que pesquisou e onde pesquisou. Por outro lado, o tema e as fontes para a pesquisa justificavam-se ainda, segundo ele, porque além “de desempenhar esse papel central no cotidiano mencionar, no exercício profissional dos educadores dos mais diferentes níveis, os livros didáticos desde há muito são ainda o produto mais vendido pelas editoras nacionais” (Idem, p. 26).

E desde que surgiram, “os livros didáticos ganhavam, em pleno século XVII, uma função que conservam até os dias de hoje, a de portadores dos caracteres das ciências. De fato, durante os séculos subseqüentes, a palavra impressa, principalmente aquela registrada na forma de livros científicos, ganharia um estatuto de verdade que ainda hoje se dissemina em grande parte dos bancos escolares e da vida cotidiana das pessoas” (Idem, 36).

Como estariam caracterizados os processos de editoração e distribuição dos manuais escolares e dos livros didáticos no Brasil? Como definir a sua periodização? Essas questões foram fundamentais para o autor definir precisamente o seu recorte, e ao mesmo tempo pensar a história dos livros didáticos de ensino fundamental (e médio) no Brasil. Nas suas palavras:

O período compreendido entre as décadas de 1930 e 1960 caracterizou-se, no que diz respeito aos manuais escolares, da seguinte forma: foram livros que permaneceram por longo período no mercado sem sofrer grandes alterações; livros que possuíam autores provenientes de lugares tidos, naquela época, como de alta cultura, como o Colégio D. Pedro II [fundado em 1838]; livros publicados por poucas editoras que, muitas vezes, não os tinham como mercadoria principal e, por fim, livros que não apresentavam um processo de didatização e adaptação de linguagem consoante as faixas etárias às quais se destinavam. Nesse sentido, a década de 1960 foi o momento da transição desses manuais escolares para os livros didáticos do final da década de 1990, pois todas as características mencionadas foram paulatinamente sendo transformadas e adaptadas a uma nova realidade escolar […]. (Idem, p. 37).

A proposta do autor no livro começava, nesse sentido, por estudar, no primeiro capítulo, o lento e gradual processo de transição do autor individual para a equipe técnica responsável pela produção, diagramação e editoração dos livros didáticos de História de ensino fundamental (e médio) (e médio). Para demonstrar essa passagem, o autor contou com a contribuição da professora Joana Neves, que escreve livros didáticos desde 1975, do professor José Jobson de Andrade Arruda, autor de livros didáticos desde 1976, e dos professores Ricardo de Moura Faria, que escreve desde 1975, e Flávio Costa Berutti, que começou em 1986. Todos eles, a partir de entrevistas, permitiram que o autor fosse historiando as mudanças na linguagem, na adaptação ao público, na profissionalização do processo de editoração e na distribuição dos livros didáticos, a partir da década de 1970. O autor, demonstrando as diferenças e proximidades, compara as trajetórias acadêmicas de cada um dos entrevistados. Finaliza a análise do capítulo discutindo questões como a formação da memória nacional, da verdade no discurso histórico, da periodização em história, a rotina de trabalho, a relação com os editores e a maneira como cada um deles percebeu as mudanças que foram ocorrendo na escrita e na editoração dos livros didáticos.

No segundo capítulo, volta-se para a forma como ocorreu a passagem de uma produção tipicamente artesanal, para uma verdadeira indústria editorial especializada na produção de livros didáticos de História (e outras áreas do saber) de ensino fundamental (e médio) no país. Para contribuir com essa demonstração, também como no capítulo anterior, o autor se pautou em entrevistas realizadas em 1997 com os editores Alexandre Faccioli, da Saraiva, Lino Fruet, também da Saraiva, José Orlando Cunha, da Editora Lê, e João Guizzo, na época diretor da Ática. Também procurou indicar as semelhanças e diferenças entre cada um deles, como viram o desenrolar do processo nas suas editoras e no mercado editorial brasileiro, e como se relacionavam com os autores de livros didáticos durante esse período.

No terceiro capítulo, procurou evidenciar a passagem da escola voltada para as elites, para uma escola de massas, na qual o produto central passava a ser o livro didático. Nesse capítulo, o autor mescla as contribuições dos autores de livros didáticos e dos editores entrevistados, para melhor demonstrar essa passagem e como ela foi recebida pelo mercado editorial brasileiro. Evidencia como autores e editores passaram a se preocupar com o currículo, os programas oficiais, a diversidade regional, e em conseqüência disso melhorar o serviço de distribuição e editoração de livros didáticos e paradidáticos.

Nesse processo, o autor mostra a importância que os livros didáticos passaram a ter na veiculação de conteúdos escolares, no processo de ensino-aprendizagem, norteado por procedimentos metodológicos que incluíam o uso de letras de música, filmes e imagens no trabalho dos professores com seus alunos. Finaliza o capítulo evidenciando como os livros didáticos passaram a ser o produto central de várias editoras, que, para melhor distribuírem seus títulos no mercado, definiam sofisticadas estratégias de divulgação e publicidade perante a sociedade, as escolas e os professores do ensino fundamental (e médio) no país.

A leitura desse livro, nesse sentido, oferece ao leitor um conhecimento pormenorizado de como os livros didáticos de história de ensino fundamental (e médio) foram escritos e produzidos nas últimas décadas, com destaque para a passagem do autor individual para a equipe técnica especializada, da produção artesanal à indústria editorial de confecção de livros didáticos e paradidáticos e, finalmente, das mudanças da escola voltada para a elite se ampliar e abranger as massas. Nas suas palavras:

O governo federal, maior comprador de livros didáticos das editoras privadas, passava a observar com mais atenção aquilo que adquiria para distribuir à população carente [em função da inflação do mercado editorial de livros didáticos no país e da definição, pelo MEC, de formas mais eficientes de avaliação dos livros didáticos produzidos e distribuídos massas, que suplantou o de elite do início do século XX, ganhava em qualidade, ainda que faltassem livros aos alunos do ensino médio e verbas suficientes para a aquisição de livros pelas bibliotecas escolares. (Idem, p. 238).

De modo que o texto é uma bela contribuição para o tema, e certamente será um convite para novas pesquisas sobre o assunto

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP, Campus de Franca. Coordenador do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campos de Amanbaí.

Acessar publicação original

[IF]

PINSKY Carla Bassanezi (Org), Fontes históricas (T), Contexto (E), ROIZ Diogo da Silva (Res), Anos 90, Fonte histórica, Ensino de História, Metodologia da História, Pesquisa histórica

PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 302p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.227-233, 2007.

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP, Campus de Franca. Coordenador do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campos de Amanbaí.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

 

Voltaire político: espelhos para príncipes de um novo tempo | Marcos Antônio Lopes

Voltaire, um conservador?

Nesse novo livro, o professor Marcos Antônio Lopes oferece uma interpretação de como Voltaire, considerado pelo autor como o “Plutarco do Iluminismo”, analisou a política de sua época e escreveu sobre ela, descrevendo a organização de sistemas de governo e a maneira como os príncipes e imperadores da época manifestavam sua ação perante o Estado, em suas biografias comparativas. O texto foi originalmente uma tese de doutorado em História, defendida em 1999, na Universidade de São Paulo. Partes da tese já foram publicadas, em versões reformuladas, sob os títulos de: Voltaire literário em 2000, pela Editora Imaginário, e Voltaire historiador em 2001, pela Editora Papirus. O que o leitor encontra neste novo livro é a parte inédita da tese, que também aparece bastante revista pelo autor. O texto foi dividido em cinco capítulos, antecipados por uma introdução e por uma bela apresentação escrita pelo professor Norberto Luiz Guarinello. Leia Mais

Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado | John Lewis Gaddis

Resenhista

Diogo da Silva Roiz


Referências desta Resenha

GADDIS, John Lewis. Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2003. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Como os historiadores escrevem a história das sociedades passadas? História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 7, n. 1, p. 217-223, jan./jun. 2007. Acesso apenas pelo link original [DR]