Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930) – CORRÊA (H – Unesp)

CORRÊA, Dora Shellard. Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930). Londrina: EDUEL, 2013, 274 p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O resgate do lugar histórico de grupos antes relegados ou mesmo ignorados pela historiografia tem sido, nas últimas décadas, um campo fértil de pesquisas para muitos historiadores. Essa exumação do passado é realizada tanto fora quanto dentro do Brasil, comumente centrada em mulheres, crianças, indígenas e minorias em geral – atores que foram sistematicamente banidos pela história oficial ou pelas generalizações de linhas teóricas e metodológicas que dominaram a disciplina até grande parte do século XX.

É esta uma linhagem de pesquisa que encontrou fontes de origens diversificadas para dar voz aos esquecidos – desde o testemunho oral até os vestígios mais indistintos de sua presença no passado – em tentativa de escapar da documentação oficial, a qual orientaria o banimento desses grupos, cujo lugar seria mantido fora da história.

Lançado neste ano (2013), o livro Paisagens Sobrepostas, de Dora Shellard Corrêa, vem ao encontro deste trabalho de resgate ao trazer à luz aqueles que antes foram destinados à escuridão histórica. Porém, a autora segue por um caminho diferente do trilhado pela maior parte dos historiadores desta linha. Sua pesquisa e análise têm como orientação geral a história ambiental, e isto apresenta um viés próprio para a historiografia.

A história ambiental, apesar de ser uma área de estudos ainda recente – inaugurada por volta da década de 1970 -, conta com alguns pressupostos teóricos e ferramentas metodológicas consolidadas entre aqueles que nela pesquisam. Uma delas, que representa uma herança de uma corrente historiográfica anterior, é sua vinculação à geografia, particularmente ao trazer para os pesquisadores o espaço como objeto de análise.

No seu livro, Dora Corrêa trouxe à superfície os esquecidos da história de São Paulo, a partir da recuperação das paisagens dos lugares que habitavam. Na compreensão da autora, índios, posseiros e lavradores pobres em momentos históricos distintos tiveram seus espaços de existência – suas paisagens – alterados para a adequação daquilo que o Estado brasileiro entendia como ideal a seus interesses econômicos. Assim, esse processo de apropriação soterrou não somente o lugar, também os que ali existiam.

A definição de paisagem utilizada pela autora foi elaborada por Henri Lefebvre: uma forma de ação do ser humano sobre a natureza representando uma dominação, mesmo que pretensa, sobre o espaço. De forma geral, a paisagem no livro significa a produção do espaço. Ou seja, de como seres humanos de distintas raízes socioculturais modificam a natureza de forma a torná-la suscetível a sua sobrevivência ou a outros interesses.

Embora entendida por Dora Corrêa dessa maneira – como uma “elaboração intelectual” -, a paisagem no livro não passa pela interpretação da História Cultural, que a concebe como uma representação da cultura e dos valores de determinada sociedade – uma perspectiva utilizada por muitos historiadores ambientais. O filtro conceitual principal da autora, entretanto, é o econômico. Seguindo nesta linha de interpretação, a argumentação reorienta o significado de paisagem de Lefebvre, no qual esta não é somente a produção do espaço, mas a produção no espaço.

Porém, essa delimitação do conceito de paisagem feita pela autora não a impede de utilizá-la de formas diversas em sua argumentação que pode ser encontrada de dois modos e sob uma variedade de sentidos. Ora é entendida como abstração, ao representar um enquadramento ou imagem da realidade; outras vezes, traduzindo algo concreto, como natureza, recursos naturais ou lugar. Este procedimento consciente ou inconsciente da autora pode gerar certa confusão para os leitores ao longo do livro, porém, não é nada que prejudique a clareza do argumento.

Este argumento, aliás, se desenrola a partir de um recorte cronológico longo, de pouco mais de dois séculos: de 1723 a 1930. E a paisagem escolhida por Corrêa é uma região localizada no sudoeste do Estado de São Paulo, conhecida como “Matas de Itapeva”, que beira a divisa com o Paraná.

Embora extenso, o recorte histórico atende às intenções do livro, pois o processo de sobreposição de paisagens deve ser compreendido dentro desta longa duração, com atenção voltada para as mudanças e apropriações da área em foco. Isto não significa que o processo seja lento, pelo contrário, é movido por ações violentas de apropriação das áreas, alterando-se drasticamente a finalidade econômica do espaço e o cotidiano das pessoas que nele habitavam.

A autora estabelece três momentos que considera significativos destas sobreposições: 1845-1912-1930; indicam a passagem de sertão para área civilizada ou de terras devolutas para aldeamento indígena. Estes períodos mostrariam também o trato que o Estado brasileiro deu às paisagens da Mata de Itapeva e seus habitantes dentro da divisão tripartite da História do Brasil: Colônia, Império e República.

Apesar da abrangência temporal, o livro se restringe à história e ao espaço paulista. Com a dimensão geográfica reduzida para uma história regional de São Paulo, o foco da análise histórica fica também assim delimitado, inclusive suas fontes e o diálogo que tem com a historiografia, paulista em sua maioria.

Não significa que a autora não tenha expandido essas escalas com a inserção da região no contexto histórico brasileiro em cada um dos períodos analisados. Mas isto ocorre apenas de maneira relacional, ou seja, vendo-se São Paulo como parte do quadro maior do Brasil. Fica a sensação de que, se essa inserção fosse feita comparativamente, o livro se enriqueceria ainda mais, com identificação dos mesmos processos de sobreposição de paisagens aplicados a outras regiões. Por exemplo, o Norte do Paraná, onde se localizam Londrina e Maringá, cuja historiografia, mesmo com outras perspectivas teóricas e metodológicas, abordou justamente esse processo de apropriação de terras consideradas sertões, mas habitadas por seres humanos – índios ou caboclos –, tal como nos trabalhos de Rogério Ivano (Crônicas de Fronteira) e de Nelson Tomazi (Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias).

As fontes podem atrair o interesse metodológico. Além dos tradicionais relatos de viajantes, especialmente Saint-Hilaire, a autora fez uso da documentação oficial, o que, levando-se em conta o resgate dos esquecidos, poderia ser considerado incomum. Entram no escopo de análise os itinerários de exploração de rios e caminhos, processos judiciais, memórias e relatórios. Esta documentação, apesar de apontar para o vazio histórico destas regiões, não levou Corrêa a legitimar o esquecimento. Pelos vestígios deixados nas descrições das paisagens, as camadas soterradas recuperaram sua existência.

Dora Corrêa faz surgir, a partir destas fontes, as paisagens sepultadas, tal como ocorre no “pentimento“, jargão das artes que usa e que significa uma alteração ocasionada pelo tempo em uma pintura, levando-se à revelação de outras pinturas sobrepostas num mesmo quadro. A analogia, apesar de todo o cuidado que a autora aplica a seu livro, se encaixa bem com o desenrolar da análise e a forma como ela monta sua narrativa.

Já o diálogo com a historiografia pode chamar atenção para uma releitura dos clássicos da historiografia nacional e paulista. A entrada de outros autores no argumento ocorre na maior parte das vezes como contraponto. Apesar de ressaltar a importância e trazer a historiografia para seu texto, a autora procurou mostrar os esquecimentos, especialmente os relacionados à história indígena, uma leitura montada basicamente nas obras de Caio Prado Júnior, Pierre Monbeig e Sérgio Buarque de Holanda. Os dois primeiros se teriam baseado na concepção de que os “sertões” teriam sido dominados pelos colonizadores, legitimando-se assim os vazios de história dessas regiões, um contraponto para a análise da autora. Já Holanda tratou as relações entre os habitantes destas paisagens e o Estado, entrando como reforço argumentativo.

Por fim, Paisagens Sobrepostas de Dora Corrêa traz para a História Ambiental brasileira mais um caminho de pesquisa e análise para ser seguido. Uma área que, no País, normalmente se leva pelas bases da historiografia estadunidense, a pesquisa de Dora e sua leitura dos clássicos da História do Brasil, moldados pela perspectiva econômica, possibilitam ao historiador ambiental ampliar suas ferramentas e formas de interpretação histórica.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social na FFLCH da USP e bolsista FAPESP.

 

 

Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: Metamorfoses de uma festa (1923-1938) – SILVA (H-Unesp)

SILVA, Zélia Lopes. Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: Metamorfoses de uma festa (1923-1938). São Paulo: Editora UNESP; Londrina: Eduel, 2009, 304p. Resenha de: BARREIRO, José Carlos. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Nas últimas décadas, o carnaval brasileiro tem sido objeto de reflexão por parte de antropólogos, historiadores e estudiosos em geral devotados à temática da cultura. Contudo, a bibliografia sobre o tema é ainda surpreendentemente restrita, razão pela qual o livro de Zélia Lopes da Silva sobre o carnaval paulista nas décadas de 20 e 30 surge em boa hora. Sempre mobilizada para o tema do carnaval e de todo o seu universo simbólico arrebatador, a decisão da autora de enveredar-se por este caminho surgiu ainda quando realizava pesquisas para sua tese de doutoramento sobre os anos 1930. Zélia percebeu, através da documentação analisada, que havia naqueles anos um profundo interesse dos contemporâneos pelo carnaval. Tal interesse vinculava-se, dentre outros aspectos, ao debate em curso, iniciado nos anos 1920, entre segmentos intelectuais preocupados com a identidade do país, que discutiam sobre as conveniências ou não da institucionalização e nacionalização do carnaval. A autora, então, não teve dúvida em relação à pertinência do tema e desenvolveu-o como tese de livre-docência, transformado-a agora em livro editado pela Edunesp/Eduel.

A escassez de bibliografia sobre o tema já justifica por si um estudo desta natureza, principalmente em se tratando do carnaval de São Paulo, sobre o qual as pesquisas são ainda mais escassas. Mas não é somente aqui que reside o credito principal a ser atribuído ao trabalho de Zélia. A densa documentação, árduamente trabalhada e interpretada pela autora desperta no leitor especializado um grande interesse, sobretudo quanto ao método interpretativo aplicado na análise do material iconográfico – telas de pintores, caricaturas, capas de revistas e fotografias. Já na introdução do livro, as análises e interpretações da caricatura “Carnaval” de Belmonte e a representação de Sátiro, semideus, habitante das florestas e companheiro inseparável de Dionísio, extraídas das revistas A Cigarra, de 1923, e Fon Fon, de 1927, dão mostras do trabalho que será desenvolvido ao longo de todo o livro. Estas experiências são recentes no âmbito da historiografia, e, via de regra, as imagens aparecem nos trabalhos apenas como ilustração. É preciso advertir, contudo, que o trabalho especializado da análise de densa documentação escrita e iconográfica, envolvendo a aplicação de conceitos e métodos específicos não é empecilho para o leitor não especializado. A concepção gráfica, a farta ilustração colorida, a fluidez do texto e a beleza das imagens desvelam aspectos instigantes da festa símbolo do Brasil, que poderão ser usufruídas de forma muito prazerosa, independentemente do interesse pelo método historiográfico aplicado para a análise do objeto.

Vale a pena destacar pelo menos duas circunstâncias que valorizam sobremaneira o livro de Zélia. Primeira, a análise da festa popular carnavalesca não está dissociada das configurações sociais e políticas mais amplas vividas pela sociedade brasileira da época. De fato, o tenso quadro político e social vivido pelo Brasil naqueles tempos precisou ser levado em consideração, para que o carnaval da época pudesse ser entendido em suas verdadeiras dimensões. Lembremos que as balizas cronológicas definidas pela autora para seu estudo, que se circunscreveram aos anos de 1923 a 1938, envolveram situações delicadas do ponto de vista político. Os anos de 1923 inauguraram o governo de Artur Bernardes, que tomou posse sob os ruídos militares de 1922. Embora sufocados, esses motins alteraram a rotina dos folguedos carnavalescos de 1923, impondo regras duras aos foliões e maior controle ao seu movimento. Os foliões de 1938 também sofreram as sequelas do golpe de estado de 1937, que não censurou apenas os órgãos de imprensa, mas igualmente a “circulação livre” dos possíveis pândegos que conformaram a efetividade dos festejos do carnaval. Em decorrência, o ano de 1938 marcou certo refluxo do carnaval em São Paulo, notadamente o de rua. As drásticas medidas que foram tomadas pelas autoridades de Segurança Pública cercearam a movimentação dos foliões que, para caírem na folia, teriam de se submeter às rígidas exigências e proibições acionadas por essas autoridades.

A segunda circunstância que merece destaque no livro refere-se ao fato de que as reflexões vão muito além das afirmações que viraram lugar-comum em vários estudos sobre o carnaval, analisado quase sempre sob o prisma da dicotomia carnaval de elite versus carnaval popular. A autora enfrenta complicações analíticas mostrando que o carnaval paulista define-se através de múltiplos cenários e influências além de criações e redefinições de espaços diversificados de sociabilidade. Isto implica a ausência de fronteiras rígidas entre as características da festa praticada por segmentos populares e aquela praticada pelos setores mais elitizados da sociedade. De fato, do ponto de vista dos espaços ocupados, os palcos das festanças carnavalescas nem sempre eram os mesmos para os dois segmentos. Mas isso não impedia que em alguns momentos houvesse a inserção de segmentos populares nos circuitos do carnaval elegante, assim como, da mesma forma, os segmentos das elites frequentavam os redutos do carnaval popular de rua. O carnaval do Brás é um exemplo típico desse embaralhamento, que acabava por produzir mútuas influências. É claro que esse processo não foi linear, e, tampouco, isento de tensões. Pesadas interdições recaíam duramente sobre as sociedades e blocos populares, cobrando, além da obrigatoriedade do registro oficial, que seus membros devessem ser revistados mesmo antes da saída às ruas, ainda na sede de suas entidades. Nesse sentido, as regras gerais nem sempre tiveram uma aplicação universal, uma vez que tais cuidados não foram extensivos às sociedades carnavalescas elegantes.

Enfim, apesar das rígidas e frequentes intervenções oficiais, principalmente sobre os blocos populares, é preciso considerar, diz Zélia, que a desobediência por parte dos foliões nunca deixou de fazer parte do acontecer carnavalesco. As ruas eram teimosamente invadidas por grupos, blocos e mascarados, mesmo que tivessem que se sujeitar às rígidas imposições legais ou simplesmente desobedecer a elas.

Apesar disso, intervenções oficiais no sentido de estabelecer um modelo único para o carnaval destruíram algumas de suas formas espontâneas, principalmente através de medidas acionadas pelo Estado no início dos anos 1930, abrindo caminho para o modelo do carnaval/show exibido em diversos espaços públicos.

José Carlos Barreiro – Professor Doutor – Departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – 19806-900 – Assis – SP – Brasil. E-mail: [email protected].