The Unsettled Plain: An Enviromental History of the Late Ottoman Frontier | Chris Gratien

«Çukurova è inesauribile»1: questa espressione dello scrittore Yaşar Kemal, riportata nei ringraziamenti da Chris Gratien è l’espressione più calzante per riassumere in una battuta l’ottimo saggio The Unsettled Plain. La frontiera del tardo periodo ottomano analizzata è la Cilicia: le sue pianure e i ritmi di vita dei suoi abitanti tracciano un percorso attraverso le diverse e convulse fasi finali dell’impero ottomano e degli albori della Repubblica di Turchia. L’autore analizza la regione della Cilicia nei suoi mutamenti da vilayet (provincia) ottomano dell’Ottocento a protettorato francese degli anni Venti del Novecento, alla sua trasformazione durante la Repubblica di Turchia. Leia Mais

História Ambiental: configurações do humano e tessituras teórico-metodológicas | Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki e Tânia Regina Zimmermann

Suzana Arakaki Imagem Dourados News História Ambiental
Suzana Arakaki | Imagem: Dourados News

A obra História ambiental: configurações do humano e tessituras teórico-metodológicas, organizada pelas historiadoras Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Tania Regina Zimmermann, professoras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, foi publicada em 2020, pela editora Milfontes. Os oito capítulos que compõem o livro são escritos por pesquisadores de diferentes regiões do país, o que, como mencionado por Susana Cesco na apresentação da obra, indica para a descentralização das pesquisas em história ambiental, que vem se fortalecendo no Brasil. Considerando os capítulos em conjunto, permitem ao leitor que conheça importantes aspectos da área de pesquisa, bem como levantam reflexões a respeito do seu papel tanto no ensino básico quanto no superior.

Ao longo do primeiro capítulo, intitulado História ambiental: alguns desafios conceituais e políticos, os historiadores Eurípedes Antonio Funes e Kenia Sousa Rios, professores da Universidade Federal do Ceará, apresentam algumas provocações em torno da ideia de natureza como um fato dado. Para eles, as noções de natureza são historicamente construídas, sendo influenciadas pelas variadas experiências temporais. Assim, exemplificam que a concepção de natureza como um recurso a ser dominado, inclusive no campo científico, remete ao século XIX. Nesse contexto, os autores apontam que o nordeste brasileiro passa a ser concebido como uma natureza inóspita, onde a seca se torna um obstáculo para a modernização do sertão. Leia Mais

História Ambiental, Migrações e Globalidades | Fronteiras – Revista catarinense de História | 2022

Há séculos as sociedades estão vivenciando problemas socioambientais, como doenças, epidemias, pandemias, mudanças climáticas, enchentes, tornados, entre outros – que foram catalisados por atos de degradação e não preservação/conservação dos recursos naturais. Tais problemas ocorreram e ocorrem de forma inter-relacionada e em escala global. Como exemplo, podemos citar o mês de janeiro de 2022 – em meio à pandemia de covid-19, durante o aumento considerável no número de casos em todo o mundo por conta da dispersão da variante ômicron – o Brasil foi acometido por enchentes, queimadas e deslizamentos. E também foi assim, perante o cenário do caos e de eminentes crises ambientais, que foi fomentada a necessidade de trazer o meio ambiente para as discussões da disciplina de História. Na década de 1970, surge a História Ambiental, que trouxe uma premissa revisionista tornando a disciplina da História muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tinha tradicionalmente se apresentado.

O estudo do meio natural pelo viés da História Ambiental Global tem sua relevância redimensionada por questões transversais como: as fronteiras e seus espaços de conflitos; a biodiversidade; o patrimônio que resulta das múltiplas relações entre natureza e cultura; entre outros. Também é importante relacionar estas questões com os estudos sobre os movimentos migratórios humanos e da flora e fauna, os estudos dos aspectos históricos, demográficos e ambientais – presentes na formação dos territórios. Desta forma, através de estudos e discussões que tangenciam os aspectos aqui apresentados, os textos que compõem o Dossiê História Ambiental, Migrações e Globalidades legitimam a necessidade de discutirmos o meio ambiente dentro da História e em escala global. Leia Mais

Shrinking the Earth: The Rise and Decline of American Abundance | Donald Worster

Shrinking the Earth, “Encolhendo a Terra”, em tradução livre, é a produção literária mais recente do historiador ambiental Donald Worster, que nasceu em 1941 e cresceu em Hutchinson, Kansas. Na década de 1970, ele se tornou mestre em filosofia pela Yale University e doutor em História pela mesma universidade. A partir de 1989, ocupou a cadeira de História Norte-americana da University of Kansas. Após sua aposentadoria, em 2012, Worster se tornou especialista estrangeiro e professor sênior da escola de História da Universidade Renmin, China. Ele é um dos fundadores da história ambiental norte-americana e foi presidente da American Society for Environmental History. Durante sua carreira, escreveu livros que influenciaram o campo da disciplina, como A River running West: the Life of John Wesley Powell (2000) e A Passion for Nature: the Life of John Muir (2008).

A História Ambiental pretende entender como ambiente e sociedade se relacionam. A disciplina surgiu em meados de 1970, predominantemente na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), quando cientistas naturais apontaram consequências danosas da ação humana sobre a natureza. Essa nova percepção de estudo enfrentou, e ainda enfrenta, resistência das Ciências Humanas, embasadas no paradigma durkheimiano, no qual o social se explica apenas pelo social. Worster dialoga nesse livro com a noção de fronteiras e limites, trabalhados pelos historiadores norte-­americanos Frederick Jackson Turner (1861-1932) e Walter Prescott Webb (1888-1963). A obra resenhada trata da história ambiental mundial e busca explicar como chegamos à atual situação planetária, marcada cada vez mais pela escassez de recursos, pontuando questões importantes para o estudo da sustentabilidade. O livro está dividido em três partes, além do prólogo e epílogo. Cada parte é composta de três capítulos narrativos e de um quarto capítulo referente a uma viagem de campo.

No prólogo “Luz Verde de Gatsby”, o autor utilizou uma passagem do romance de Francis Fitzgerald (1896-1940), The Great Gatsby (1925), para delinear uma visão alternativa do passado de devastação da natureza e guiar a leitura. A passagem se refere aos momentos em que Gatsby, um emergente social romântico e sonhador, enxerga uma luz verde à distância no porto e fica esperançoso de ser aceito pela rica Daisy Buchanan. A luz apenas assinala o ancoradouro da mansão de Daisy, mas simboliza as expectativas de Gatsby em relação ao seu futuro. Essa luz verde também representa as expectativas de crescimento da já próspera sociedade estadunidense de 1920. Worster chamou de “teoria da luz verde” a ilusão que os humanos têm de um futuro em que a natureza seja sempre abundante.

Ainda no prólogo, Worster avisa que abandonou três perspectivas familiares na história contemporânea: da simpatia pelos perdedores, da escola dos bons hábitos e das boas instituições e da continuidade do Holoceno. Sobre as duas primeiras, Worster afirma que trata dos êxitos na extração de matérias-primas da natureza, principalmente os referentes à colonização dos EUA. Sobre a terceira visão, ele aponta que alguns cientistas já consideram que estamos no Antropoceno, uma era de grandes transformações causadas na biosfera pelo ser humano, principalmente a partir da Revolução Industrial do século XVIII. A era anterior, o Holoceno, iniciada há doze milênios e pós período de glaciação, teve sua relativa estabilidade da natureza abalada justamente pela atuação humana.

Na parte I, Worster descreve as revoluções que ocorreram na sociedade europeia após o descobrimento do Novo Mundo pelos colonizadores europeus. Eles conseguiram expandir suas fronteiras e promover o desenvolvimento utilizando recursos naturais obtidos de suas colônias, mas mesmo alguns dos primeiros economistas advertiram que o crescimento econômico e social tinha um limite. O inglês John Stuart Mill (1806-1873) foi o primeiro a dizer que essa limitação não era necessariamente ruim, pois impunha novos desafios ao estilo de vida europeu (1848). Além disso, para Mill nem tudo do mundo natural podia ser precificado ou utilizado, ideia semelhante à dos primeiros defensores da natureza selvagem, ou wilderness, como William Wordsworth (1770-1850) e Henry David Thoreau (1817-1862). Worster finaliza a primeira parte descrevendo a caça desenfreada às baleias na ilha de Nantucket na metade do século XIX, o que levou à quase extinção do animal.

A parte II, “Depois da Fronteira”, narra uma sequência de práticas de extração de recursos naturais nos EUA, as suas consequências e os estudos feitos pelo conservacionismo norte-americano, encabeçado por George Perkins Marsh (1801-1882). É descrito o poder destrutivo da agricultura, que desequilibrava ciclos d’água. A crise hídrica foi tema da viagem de campo, que trata do “Vale Imperial”, na Califórnia, estado que passou por uma grande seca em 2003. A devastação continuou por meio do desenvolvimento industrial do século XIX, quando o combustível propulsor da indústria, o carvão, levou à contaminação do ar, solo e da água por substâncias tóxicas, alterando o ciclo do carbono. Combinado com o ferro, o carvão proporcionava a criação do aço, que passou a ser utilizado nas ferrovias, amplificando a expansão das cidades e a destruição ambiental. Com a escassez do carvão, o gás natural e o petróleo se tornaram os próximos combustíveis das atividades humanas. Essa grande dependência dos recursos naturais e como lidar com ela é descrita na sequência. O presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) tentou associar o conservacionismo aos interesses industriais, o que foi desastroso para o meio ambiente. Para Roosevelt, a construção de barragens, por exemplo, significava transformar um “desperdício” de força d’água em lucro para a sociedade. Atualmente, essa associação falaciosa fica explícita em empresas que utilizam o prefixo “eco” em seus produtos, sem praticar qualquer forma de proteção à natureza.

Após tanta devastação, chegamos ao limite, tema da terceira parte do livro. A narrativa inicia com a fase posterior à Segunda Guerra Mundial nos EUA, que se caracterizou pelo aumento do consumismo e desenvolvimento desenfreado, incomodando até mesmo os conservacionistas mais adeptos da prosperidade econômica. Surgiu, então, uma categoria mais prática de conservacionistas, a dos ambientalistas modernos, que comprovaram como a ação exploradora humana acarretava na degradação do meio ambiente.[1] Worster dispende boa parte dos capítulos seguintes discorrendo sobre a obra dos cientistas Dennis Meadows e Donella Meadows (1941-2001), autores principais de The Limits to Growth (1972). O livro foi um alerta sobre as dinâmicas do sistema social, seus limites e a necessidade de ajustes para que o mundo não colapse. A partir desse estudo, outros pesquisadores começaram a delimitar uma zona de perigo relacionada à capacidade de suporte da Terra. A viagem de campo, “Rio Athabasca” (Canadá), encerra a terceira parte. O betume descoberto no rio canadense, localizado em uma floresta boreal, tinha extração e tratamento difíceis e onerosos. Após a crise do petróleo em 1973, investiu-se desesperadamente em sua extração e área e o rio ficaram devastados.

No epílogo, “Vida em um pálido ponto azul”, Worster cita a viagem ao espaço da Voyager I, em 1977. O astrônomo Carl Sagan (1934-1996) pediu que fosse fotografado o que havia ao redor da nave. Foi registrada apenas a Terra, um pálido ponto azul. O Novo Mundo esperado pela ida do homem ao espaço não existe. Worster propõe que é preciso aprender a viver com os recursos disponíveis. Ele alerta que, por conta do crescimento da tecnologia, da população e do consumo, o nosso mundo está encolhendo ecologicamente. A lógica da composição do livro se completa: descoberta, exploração e limites.

Worster expõe a sua preocupação principal com a devastação ambiental desde o primeiro capítulo do livro e a reitera ao longo de sua narrativa: “Mas quais são as chances de encontrar outra natureza, outro hemisfério de abundância tão fácil? Zero”[2] (p. 25). Apesar do livro ser definido como de História Ambiental global, Worster concentra sua narrativa na Europa e nos EUA, o que não desvirtua a proposta da obra. Sua riqueza de informações a torna acessível a qualquer pessoa que tenha interesse em compreender o “encolhimento” da Terra, situação explícita a quem se propõe observar minimamente as condições em que se encontra o meio ambiente. Shrinking the Earth não se desenvolve em tom alarmista, mas não deixa de ser um alerta sobre a situação atual e futura da Terra e seus habitantes: não temos mais um longo passado pela frente.

Notas

1. Para melhor compreensão das categorias de proteção da natureza, sugiro NASH, 1990.

2. Trad. livre da autora: “But what are the odds of finding another nature, another hemisphere of such easy abundance? Zero”.

Referências

FITZGERALD, Francis Scott. The Great Gatsby. New York: Charles Scribner’s Sons, 1925.

MEADOWS, Donella H. et al. The Limits to Growth: a Report for the Club of Rome’s Project on the Predicament of Mankind. New York : Universe Books, 1972.

MILL, John Stuart. Principles of Political Economy with Some of their Applications to Social Philosophy. Vols. I & II. London: John W. Parker, 1848.

NASH, Roderick. American Environmentalism: Readings in Conservation History. New York: McGraw-Hill, 1990.

WORSTER, Donald. A River running West: the Life of John Wesley Powell. New York: Oxford University Press, 2000.

WORSTER, Donald. A Passion for Nature: the Life of John Muir. New York: Oxford University Press, 2008.

Julıana da Costa Gomes de Souza – Universidade de Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável. E-mail: [email protected]


WORSTER, Donald. Shrinking the Earth: Th e Rise and Decline of American Abundance. London: Oxford University Press, 2016. Resenha de: SOUZA, Julıana da Costa Gomes de. Como chegamos a este ponto?  Varia História. Belo Horizonte, v. 37, n. 74, p. 635-639, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

Watering the Revolution: An Environmental and Technological History of Agrarian Reform in Mexico | Mikael Wolfe

El agua suele ser una capa material poco abordada en el estudio del mundo agrario, tanto en América Latina como en el mundo. De hecho, se puede argumentar que analizar el campo como un espacio hídrico –configurado por vertientes, cuencas, canales, ríos, lagos, lagunas, reservas y, acaso más importante, derechos de agua– resulta un ejercicio mucho más complejo y posiblemente más fructífero que cuando se le ve como un “simple” espacio terrestre. Aunque la lucha por los derechos de la tierra ha dominado las narrativas históricas de las comunidades agrarias y los sujetos rurales de esta parte del mundo, existe otra historia por contar en clave hidrológica que da cuenta de los conflictos desatados por el elusivo control y la explotación del agua. Watering the Revolution es el estudio pionero de Mikael Wolfe que ofrece una primera mirada tecnomedioambiental sobre la reforma agraria post-revolucionaria en México. El libro es el resultado de un prolijo estudio de la región nor-central de la Comarca Lagunera, un espacio irrigado por los ríos Nazas y Aguavanal. La topografía de esta región produce una excentricidad medioambiental dado que ninguno de estos ríos desemboca en el océano, sino que producen una serie de lagunas cuyas cuencas sostienen regímenes de agricultura intensiva. En 1936, la riqueza hídrica de la Comarca Lagunera condujo a Lázaro Cárdenas a construir la primera represa del México post-revolucionario. Wolfe documenta el proceso de transformación de los regímenes hídricos producto de la construcción de esta represa, el papel de los técnicos agrarios en diseñar infraestructura y políticas públicas para un nuevo gobierno del campo y el desigual acceso al agua que subyació al reparto de tierras, entendido comúnmente como el aparente gran triunfo de la Revolución Mexicana. Leia Mais

História Ambiental e Migrações: diálogos – GERHARDT (RL)

MORETTO Samira1 História Ambiental
Samira Moretto. Foto: Researchgate  /

GERHARDT M Historia ambiental e migracoes História AmbientalGERHARDT, Marcos; NODARI, Eunice Sueli; MORETTO, Samira Peruchi. (Orgs.). História Ambiental e Migrações: diálogos. São Leopoldo: Oikos; Chapecó: UFFS, 2017. 267 p. Resenha de: NUNES DE SÁ, Débora. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.4, n.6, p.268-272, jan./dez., 2017.

O livro “História Ambiental e Migrações: diálogos”, organizado pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Laboratório de Imigração, Migração e História Ambiental (LABIMHA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Marcos Gerhardt, Eunice Sueli Nodari e Samira Peruchi Moretto, traz um conjunto de catorze textos que analisam as interfaces entre a História Ambiental e as migrações humanas em diferentes espaços e períodos históricos. Os autores e autoras oriundos de diferentes universidades, interpretam e analisam as diferentes relações socioambientais e consequentes transformações nas paisagens estabelecendo também um diálogo que é interdisciplinar.

O primeiro capítulo “Colonização e desflorestamento: a expansão da fronteira agrícola em Goiás nas décadas de 1930 e 1940”, foi escrito por Sandro Dutra e Silva, José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond. Nele, os autores analisaram as devastações que ocorreram nas florestas de Goiás, inseridas no bioma do Cerrado, também chamadas de “Mato Grosso de Goiás” e classificadas como Floresta Estacional Decidual. Por meio de relatos, tais como o do advogado Carlos Pereira Magalhães (1881-1962) e da atriz e escritora norte-americana Joan Lowell (1902-1967) e de relatórios como o produzido por Speridião Faissul (que acompanhou Leo Waibel pelo interior de Goiás), entre outras fontes, os autores analisaram as transformações e os meios como o Mato Grosso de Goiás foi devastado pelas ações humana. O maior impacto foi a partir do início do século XX, quando ocorreu a expansão de ferrovias e rodoferrovias, a implantação da “A Marcha para o Oeste” colocada em prática pelo governo de Getúlio Vargas e a consequente criação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás.

No segundo capítulo, escrito por Marcos Gerhardt, “O relato de Wilhelm Vallentin: meio ambiente e imigração”, o autor tomou como fonte de análise a obra In Brasilien, publicada em 1909 em Berlim, pelo viajante alemão Wilheln Vallentin. Esse viajante descreveu sua passagem pela América meridional, relatando paisagens e o descrições sobre o Sul do Brasil no relato de Vallentin, com relação às comunidades teuto-brasileiras. Interpretou também que, assim como para outros viajantes e cronistas do fim do século XIX e início do XX, Vallentin pensava que “havia uma rígida separação entre cultura e natureza” (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 42), e reafirmou que atualmente há um esforço para se pensar cultura e natureza de forma menos dicotômica.

“Da Alemanha para a florestal subtropical brasileira: as propostas do Dr. Paul Aldinger para as colônias alemãs no sul do Brasil”, escrito por João Klug, analisa a ação do pastor alemão Paul Aldinger na colônia Hansa Hamônia, localizada no Vale do Itajaí entre 1901 e 1927. Aldinger foi o responsável pelas atividades escolares e religiosas desenvolvidas na colônia de Hamônia e foi o responsável pela fundação do jornal Der Hansabote que, em suas publicações, priorizou temáticas voltadas aos assuntos escolares e eclesiásticos, bem como a produção agrícola da colônia. Klug analisou como Paul Aldinger foi sujeito ativo na organização da Hansa Hamônia, e como eram contraditórias as impressões sobre sua personalidade.

No capítulo seguinte, “A construção do espaço rural nas colônias de imigrantes do sul do Brasil”, Manoel P. R. Teixeira dos Santos analisou como se deu a privatização das terras florestais cobertas pela Mata Pluvial Atlântica, em especial para a constituição da Colônia Blumenau em Santa Catarina a partir de 1850. Santos utilizou como fontes mapas e relatórios estatísticos do período de 1861 a 1880 que conjugados permitiram ao historiador identificar a distribuição dos lotes coloniais e as consequentes transformações ambientais, bem como a expansão das áreas de cultivos e pastagens na Colônia Blumenau.

Eunice Sueli Nodari, em “Entre florestas e parreiras: a vitivinicultura no Alto Vale do Rio do Peixe/SC”, explorou os diferentes valores atribuídos à produção de vinho, sejam eles simbólicos, culturais, estéticos ou econômicos, analisando, assim, como a produção de vinho no Brasil, tendo como um de seus financiadores os incentivos estaduais e federais, tornou-se uma commodity e transformou paisagens. Sua análise é parte do projeto de pesquisa “Dos vinhedos familiares às grandes empresas: a reconfiguração de paisagens no Brasil através da Vitivinicultura” em parceria com a Stanford University.

“Os pinhais da fazenda Quatro Irmãos/RS e a Jewish Colonization Association”, escrito por Isabel Rosa Gritti, analisa a ação da companhia colonizadora Jewish criada em 1891 “com o objetivo de propiciar a emigração dos judeus vítimas de discriminações no leste europeu” (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 95). Essa companhia adquiriu em 1909 a Fazenda Quatro Irmãos com 93.985 hectares, em terras que no período pertenciam ao município de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e administrou-a até 1962. A autora, a partir da análise de diferentes fontes, afirmou que a Jewish tinha como principal preocupação a exploração florestal da fazenda e que sua preocupação com os imigrantes era secundária.

O capítulo “História Ambiental e as migrações no Reino Vegetal: a domesticação e a introdução de plantas”, de Samira Peruchi Moretto, produz um estado da arte sobre a introdução e a domesticação de espécies vegetais. A autora estuda e analisa as diferenças entre uma espécie considerada introduzida com relação àquela domesticada. Afirmou também que a “alimentação tem uma relação bastante direta com a escolha, a domesticação e a dispersão de plantas”. (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 120).

“Paisagem e uso comum da Floresta Ombrófila Mista pela ocupação cabocla do Oeste de Santa Catarina”, de Marlon Brandt, analisa três períodos histórico-geográficos desde a metade do século XIX à primeira metade do XX, os quais o autor considerou fundamentais para compreender as práticas costumeiras da população cabocla e a sua interação com a Floresta com Araucária no Oeste de Santa Catarina. Seu estudo perpassa o uso da terra, a extração da erva-mate e a criação de animais, analisando também como se deu a ruptura desse sistema nas primeiras décadas do século XX, em consequência das práticas introduzidas pelos colonos.

Miguel M. X. de Carvalho, em “O aumento da população humana (colonização e crescimento vegetativo) e os impactos sobre a floresta com araucária – séculos XIX e XX”, por meio da interpretação de recenseamentos demográficos do período de 1872 a 1960, analisou como os fluxos migratórios possibilitaram o crescimento vegetativo da população na região de ocorrência endêmica da Floresta com Araucária no sul do Brasil e como, em decorrência disso, houve uma descontrolada exploração madeireira que levou ao “quase total desaparecimento das florestas primárias com araucária” (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 141).

No capítulo seguinte, Luís Fernando da Silva Laroque pesquisou as “Movimentações e relações com a natureza dos Kaingang em territórios da bacia hidrográfica Taquari-Antas e Caí, Rio Grande do Sul” no período dos séculos XIX ao XXI. Além do aporte teórico na história ambiental, também utilizou autores que estudam o conceito de territorialidade, isto é, as diferentes relações sociais, políticas e simbólicas. O autor constatou que, atualmente, “acionando a memória e a continuidade de suas movimentações” (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 171), as comunidades Kaingangs, localizadas em Estrela, a Jamã tÿ Tãnh, a Foxá em Lajeado, a Pó Mág em Tabaí e em Farroupilha a Pó Nãnh Mág, no Rio Grande do Sul, vivem o processo de (re)territorialidade de suas comunidades.

Em “Entre decretos, disputas judiciais e conflitos armados: batalhas entre Estado, camponeses e indígenas pela posse da Reserva Florestal de Nonoai-RS” Sandor Fernando Bringmannn analisou a luta histórica do grupo étnico Kaingang pela Reserva Florestal de Nonoai e afirmou que a redemarcação da reserva como área indígena “[…] é fruto muito mais das pressões protagonizadas pelos índios, por meio de mobilizações políticas e ações armadas, do que por ações das agencias indigenistas que parecem ter abandonado as prerrogativas pelas quais foram criadas” (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 190).

A historiadora argentina María Cecilia Gallero escreveu “La yerba mate en el prisma de la historia ambiental, Misiones (Argentina)”, no qual analisou transformações no ambiente de Misiones, no início do século XX, decorrentes da introdução do cultivo de erva-mate (Ilex paraguariensis), produto importante econômica e historicamente para a região misionera. Abordou as características da economia extrativa, a chegada dos profissionais suíços que iniciaram o cultivo em grande escala da Ilex e, por último, os impactos resultantes da introdução dos ervais cultivados. Dessa forma, elaborou um panorama da mudança de uma economia ervateira extrativa para uma produtiva, tomando como objeto de análise a Cooperativa de Productores de Yerba Mate de Santo Pipó, fundada por imigrantes suíços.

No capítulo “‘O tempo é minha testemunha’: só as pedras estavam aqui, todo o resto é imigrante”, os autores Haruf Espindola e Maria Vilarino historicizam o processo de ocupação da região do Vale do rio Doce. A primeira ocupação da região foi indígena, em especial, do tronco linguístico Macro-Jê, que ocupavam o leste de Minas Gerais, norte do Espírito Santo e centro-sul da Bahia. As primeiras tentativas de ocupação da região por parte de imigrantes europeus e seus descendentes ocorre com o processo de mineração, especialmente na porção mais a Oeste do rio Doce, na cidade de Mariana. Mesmo com esforços estatais, que criaram vários artifícios para fomentar a ocupação da região, os resultados foram pequenos. No final do século XIX, outra tentativa, dessa vez com colonos estrangeiros foi realizada, com destaque especial para a Colônia do Rio Doce, onde colonos estadunidenses confederados tentaram implantar sua ocupação. No entanto, estes não tiveram êxito, devido a problemas de saúde, como a malária. A ocupação efetiva da região só ocorreu no século XX, com a construção da ferrovia ligando Vitória a Minas, que tinha como objetivo a expansão da fronteira agrícola e a extração de recursos minerais, ao mesmo tempo em que implementou um plano de saneamento e controle de patógenos.

O último capítulo, “A imigração senegalesa: dimensões históricas, econômicas e socioambientais”, foi escrito por João Carlos Tedesco. O recorte temporal adotado se dá a partir do século XX, no qual o autor analisou os diversos aspectos históricos da emigração senegalesa, tanto para países da América do Sul como da Europa Ocidental. Tedesco afirmou que a emigração “revela um amplo tecido de causalidades, consequências e dimensões sociais”, e que os “[…] emigrantes revelam ser sujeitos ativos no mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que são vítimas de múltiplas mudanças ambientais, culturais e religiosas” (GERHARDT, NODARI, MORETTO, 2017, p. 253).

Em seu conjunto, História Ambiental e Migrações: diálogos permite compreender as diferentes transformações nas paisagens, sejam sociais ou ambientais, decorrentes das ações humanas, principalmente pelo viés das migrações de humanos e plantas. A multiplicidade de fontes utilizadas pelos autores e autoras proporcionam aos leitores e leitoras transitar pelos diferentes caminhos que integram o cultural e o natural. É uma importante contribuição historiográfica não só para a abordagem da História Ambiental, mas sim todas as áreas do conhecimento que têm interesse em compreender como se estabeleceu as interações entre humanos e não humanos ao longo do tempo.

Débora Nunes de SáDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Laboratório de Imigração, Migração e História Ambiental (www.labimha.ufsc.br), sob a orientação da professora Doutora Eunice Sueli Nodari. E-mail: [email protected]

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Inherit the Holy Mountain: Religion and the Rise of American Environmentalism – STOLL (VH)

STOLL, Mark R. Inherit the Holy Mountain: Religion and the Rise of American Environmentalism. New York: Oxford University Press, 2015. 406 p. SILVA, Sandro Dutra e. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 59, Mai./ Ago. 2016.

Nos últimos anos temos sido surpreendidos com a vasta produção intelectual no campo da história ambiental. Uma evidência das preocupações historiográficas com o mundo natural, principalmente no escopo qualitativo dos debates e dos temas no qual emergem os questionamentos, cada vez mais múltiplos, sobre a relação entre a história e a natureza. Esse é o caso da importante obra Inherit the Holy Mountain: religion and the rise of American Environmentalism, do historiador norte-americano Mark Stoll.

O trabalho de Stoll reflete o exercício intelectual sobre o qual se dedicou, por quase três décadas, no exaustivo ofício de responder historicamente sobre o background protestante nas origens do movimento ambiental nos Estados Unidos. Dito isso, reforço a importância de um trabalho que deve ser entendido sobre duas premissas iniciais: (i) não se trata de uma aventura historiográfica, mas o amadurecimento do tema a partir da experiência acadêmica de um historiador com grande trânsito no campo ambiental; (ii) o trabalho não utiliza da retórica e nem do proselitismo em seus argumentos, nem se presta à defesa engajada de uma tese contra premissas anteriormente apresentadas sobre a cultura judaico-cristã.

Não é esse o caminho de Mark Stoll ao tratar do tema. Destaco que as conexões entre a visão apreciativa da natureza e o background calvinista surgiram em pesquisa sobre o ativista ambiental John Muir. Essa percepção foi a motivação necessária para que ele investigasse a repetição desse modelo e as bases culturais que propiciavam uma representação do mundo natural a partir de distintos grupos religiosos nos Estados Unidos. Na década de 1990 publicava o seu primeiro trabalho sobre as origens protestantes do ambientalismo americano no livro Protestantism, Capitalism, and nature in America. As pesquisas se aprofundaram com a ampliação de correlações entre determinadas denominações protestantes e a ação de teólogos, ambientalistas, artistas plásticos, poetas, burocratas e políticos, dentre outros, resultando no primoroso trabalho que é Inherit the Holy Mountain.

A tese central deste livro é que as origens do ambientalismo norte -americano, presente nos movimentos de conservação da natureza, legislação ambiental e preservação da Wilderness, tiveram um background protestante, fundamentando-se, sobretudo, nos grupos calvinistas da Nova Inglaterra: os congressionais e os presbiterianos. Tomados como sujeitos históricos da expansão da ética conservacionista e do discurso de moralização da vida e ordem social puritana, essas comunidades foram analisadas a partir do ethos social, por meio de um conjunto rico e diverso de fontes na interpretação dos seguintes processos: a teologia da natureza nos discursos do próprio Calvino e nos sermões dos ministros calvinistas na Europa e Estados Unidos entre os séculos XVII a XIX; a estética artísticas e o profundo valor teológico dos pintores do Connecticut Valley que revelavam a paisagem e a moral social expressa no papel contemplativo e moralizante da natureza; os projetos urbanos e a relação entre os espaços sociais e a função moral dos bosques e parques públicos; os hábitos de imersão na Wilderness como devoção protestante de contato com a natureza, vista como revelação divina a ser “lida” no book of nature ; na criação de instituições científicas para o uso e conservação dos recursos naturais; a política de manejo agrícola, silvicultura e a instituição burocrática de normas e organizações voltadas para a conservação da natureza; o ativismo ambiental e os valores religiosos no hábitos dos seus agentes; a criação e ampliação de áreas protegidas, dentre outras.

Interessante o ponto de partida, centrado na ação social de personagens ligadas ao movimento ambientalista e com background calvinista, e que marcam toda a obra. Um exemplo é a obra de Thomas Cole, “The Oxbow”, exposta na exibição da National Academy of Design de Nova York em 1836, que evidencia o caminho erudito em relacionar estética, paisagem e ethos puritano no refinado trabalho da interpretação histórica. Stoll ressalta que os sujeitos por ele analisados tinham o coração na igreja de Hartford e a mente na universidade em Yale, o mainstream intelectual dos calvinistas. Mark Stoll aproxima a sua objetiva na interpretação do ethos sem cair nas armadilhas da delimitação que coletiviza e reduz o objeto. Esse é um dos grandes méritos da obra, sobretudo ao apresentar o background religioso a partir de personagens caras ao movimento conservacionista, e que muitos trabalhos biográficos simplesmente não perceberam esse background no jogo histórico do ativismo e da causa ambiental.

O autor faz uma análise consistente sobre a base epistemológica da “teologia da natureza”, fundamentando-se nos princípios do melhor aproveitamento dos recursos naturais na agricultura (Improvement ) e na conservação das florestas, mananciais e outros bens naturais para as futuras gerações (Stewardship ). Improvement e Stewardship são conceitos-chave da tradição calvinista e que o historiador se apropriou com maestria na intepretação da trajetória de diferentes personagens ligadas ao ativismo de proteção da natureza nos Estados Unidos como Pinchot, Marsh, Thoreau, Emerson, John Muir, Rachel Carson, Theodore Roosevelt, dentre outros.

Importante mencionar que a obra não se limita a abordar exclusivamente os calvinistas. Outras filiações religiosas como os Batistas, Metodistas, Batistas afro-americanos, católicos e judeus também foram contemplados sob a ótica da atuação no movimento ambiental contemporâneo. A temática ambiental desses grupos, no entanto, não privilegia os preceitos conservacionistas, mas os direitos civis, alimentação orgânica, lutas sociais, dentre outras. A concepção transcendentalista e sua ética conservacionista também foi abordada. No entanto, ficou confusa as descrições do transcendentalismo e sua complexidade filosófica em meio ao debate protestante e às origens de Ralph Waldo Emerson.

Uma das contribuições mais originais é a rica abordagem da atuação dos presbiterianos na instituição de leis nacionais e de agências de conservação, parques e florestas durante a Progressive Era (1885-1921). A administração de quatro presidentes presbiterianos (Harrison, Cleveland, Theodore Roosevelt e Wilson) foi destacada na ampliação nacional da proteção à natureza. Aliando história política e história ambiental destaca a ampliação das áreas protegidas e a participação privilegiada de políticos, ambientalistas e burocratas nesse período.

Considero que Inherit the Holy Mountain traz um revigorante olhar historiográfico, que oferece um requintado aporte teórico-metodológico e pode ser considerada a masterpiece de um dos mais notáveis historiadores ambientais da América.

Sandro Dutra e Silva – Pós-Graduação Stricto Sensu Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, Universidade Estadual de Goiás, Campus Anápolis de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas Anápolis, GO, 75.132-400, Brasil. [email protected].

História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza – FRANCO (H-Unesp)

FRANCO, José Luiz de Andrade et al. (orgs.). História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, 392 p. Resenha de: SILVEIRA, Tissiano da. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O livro aqui resenhado traz alguns dos autores mais conceituados no assunto, referência quase obrigatória para quem se aventura pela História Ambiental. Além disto, traça um panorama da produção mais recente nesta área, assim como mantém uma preocupação em delimitar um campo de estudo pelo qual se busca demonstrar que há especificidades ao pensar e produzir a partir deste lugar. Portanto, esta dupla abrangência – a escrita e a constituição de um campo da História Ambiental – é ponto de partida para apresentar a obra e penetrar nesta construção em curso. A tarefa é empreendida aqui por um grupo heterogêneo composto por historiadores, geógrafos, biólogos, cientistas sociais, cartógrafos, ecólogos e até profissionais da ciência da computação que se aproximam quando voltam seus interesses para as interações entre os homens e o meio ambiente.

O Prefácio, de Stefania Barca, vice-presidente da Sociedade Europeia de História Ambiental, reafirma alguns marcos importantes para a área. A necessidade de se afastar de uma visão que separa, de forma irreconciliável, homem e natureza é pedra de toque dos trabalhos neste campo, o que poderá se confirmar na grande maioria dos artigos apresentados na publicação. Além desta, três premissas são apresentadas por Barca como basilares destes estudos, postas quase em tom de aviso aos navegantes: a natureza não é algo fixo e imutável; as diferentes sociedades interagem de forma diferente com o meio; e, por último, as ciências produziram visões da natureza a partir das sociedades – e do tempo – em que elas estavam inseridas; assim, construção do saber não está desvinculada da evolução cultural. Tais premissas nos ajudam a não cair em armadilhas do anacronismo, a evitarmos pensar em ambientalismo avant la lettre, ou o inverso, criando-se assim heróis e vilões. Até mesmo porque este não é o papel da história, afinal.

Outra questão cara aos estudos da História Ambiental é a interdisciplinaridade, pois na obra se percebe que há uma busca permanente, talvez mesmo um esforço contínuo, em demonstrar esta perspectiva configurada na seleção de alguns artigos que levam os leitores a caminhar por terrenos mais comuns aos paleontólogos – devido ao grande alargamento da temporalidade, utilizada nestes estudos – e a aportes com grande carga de tecnicidade, como geotecnologia. Tratados no livro a partir da possibilidade do uso de tais técnicas, os artigos procuram mesmo uma forma de ajustamento entre campos que há muito se afastaram pela busca de sua autonomia e que tão somente no final do século XX voltam a se aproximar, mas desta feita com as especificidades já consolidadas.

Os 16 artigos estão divididos em quatro blocos. O primeiro chama-se “A História Ambiental como Fronteira Interdisciplinar: Aspectos teóricos e metodológicos”, no qual escrevem José Augusto Pádua; Christian Brannstrom; Nilson Correia da Silva, Osmar Abílio de Carvalho Junior, Renato Fontes Guimarães e Sandro Dutra e Silva. O segundo, “A Expansão e Ocupação das Fronteiras Territoriais”, tem textos de Fernando Antonio dos Santos Fernandes e Bernardo B. A. Araújo; Gilberto de Menezes Schittini; José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond; Sandro Dutra e Silva; Marcelo Lapuente Mahl; Ely Bergo de Carvalho; Gilmar Arruda; Regina Horta Duarte e Natasha Stefania Ostos. “A Exploração dos Recursos Naturais na Fronteira” é o terceiro bloco, que conta com Eunice Sueli Nodari; Kelerson Semerene Costa; Giovana Galvão Tavares, Sílvia Fernanda de Mendonça Figueirôa e Genilda D’Arc Bernardes; José Paulo Pietrafesa, Selma Simões de Castro e Silas Pereira Trindade; e, por último, “História Ambiental e Conservação da Natureza”, com um texto de José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond e outro de Donald Worster.

Não é à toa que a ideia de “fronteira” se encontra nos títulos dos três primeiros blocos que dividem a publicação. A temática ambiental nos confronta com os lugares que são diversos, lugares que se relacionam de diversas formas com o ambiente, mas que não se separam por barreiras fixas e intransponíveis. Ao contrário, a fluidez entre estes espaços é objeto da preocupação de vários estudos e permite as mais variadas interações das populações com diferentes biomas. Estes são espaços em que se aplicam e se desenvolvem políticas, algumas vezes (acredito ser na maioria) de forma desastrosa.

A ideia contida nos textos de Turner ou Webb1 sobre as fronteiras do oeste americano serve para ilustrar o que foi dito anteriormente. Estes autores temiam que o espaço da fronteira se tornasse uma reserva para o desenvolvimentismo, o alargamento da ação humana, que marchava a todo vapor sobre ela. No que estavam certos, pois a fronteira neste sentido se torna o cerne da conservação de ambientes pouco antropizados.

No primeiro bloco do livro, temos a questão da fronteira assumida como um lugar de encontro de saberes, de teorias e metodologias que não costumam ocupar o mesmo texto, pelo menos não com o mesmo peso como aporte teórico-metodológico. Para tal, abre-se a série de artigos com um texto, já publicado e de grande circulação, de José Augusto Pádua. Tenho como hipótese que abrir uma publicação com o texto do Pádua e encerrar com Donald Worster não só garante um lugar bem demarcado nos cenários das atividades científicas, mas também assegura um caráter de circularidade da obra; melhor dizendo, abre-se um espaço em que um autor brasileiro e o outro, norte-americano, estariam em diálogo direto, a partir do qual se estabelecem os marcos da discussão, demarca-se um território e se solidifica um campo de estudo. Podemos nos perguntar se isto poderia ser algo que fixa os historiadores ambientais em um terreno seguro, impedindo um avanço teórico e metodológico do campo. Quanto a isto, o livro parece mais emaranhar que responder à questão – deixo claro que esta não é uma questão do livro, em nenhum momento isto está posto -, pois a preocupação em manter as premissas estabelecidas por produções que se tornaram referência2 parece patente.

“As Bases Teóricas da História Ambiental”, publicado pela primeira vez por Pádua em 2010, é um texto muito recomendado àqueles que se iniciam nos estudos deste campo. Não que ele não seja denso, não tenha profundidade, mas – como anuncia no título – propõe expor as bases para o estudo na História Ambiental, mostrando os caminhos e entraves para seu desenvolvimento. E nisto, é eficiente. Talvez uma pergunta atrevida possa ser feita: ainda é necessário reafirmar estas bases nas produções mais recentes, talvez em detrimento das pesquisas realizadas?

Ainda neste primeiro bloco há uma interessante revisão da “hipótese da madeira”, lançada por Warren Dean3 em seu consagrado livro sobre a ocupação humana na mata atlântica. Com correções de cálculos e elementos desprezados por este autor, o trabalho passa por uma crítica bem acurada, com ajustes que me parecem realinhar dados que careceriam de um olhar técnico mais especializado quando utilizados como fontes. Parece-me aí que a interdisciplinaridade encontra um entrave, pois utilizar dados brutos pode levar a resultados bastante divergentes, já que em cada área das ciências estão circunscritas inúmeras técnicas, as quais não são inteiramente dominadas por outras. Assim, acredito que o artigo de Brannstrom é, no mínimo, um alerta para repensarmos alguns limites para a interdisciplinaridade.

No bloco seguinte temos no primeiro texto uma perspectiva de tempo que também pode ser bastante interessante para pensarmos estas imbricações de áreas e disciplinas, cujo título é “As primeiras fronteiras: impactos ecológicos da expansão humana pelo mundo”. Os autores, ambos da área biológica, iniciam suas reflexões naquilo que dizem ser a queda da “primeira grande fronteira”, a colonização da Austrália há 50 mil anos. Eles apontam para a ação humana como responsável pelo menos por dois terços da extinção da megafauna do planeta, assim, demarcando os primórdios do que seria a força da “pisada humana” na Terra.

Este bloco e o seguinte, “A Exploração dos Recursos Naturais na Fronteira”, demonstram a preocupação da História Ambiental com os discursos e representações sobre a natureza, desde a criação do misticismo em torno do engenheiro Bernardo Sayão, “abatido por uma árvore” durante a construção da Rodovia Belém-Brasília, aos relatos de exploração de ovos de tartaruga nos rios amazônicos. A preocupação em historicizar os discursos e as políticas de avanço sobre as fronteiras é considerada especialmente nestes dois blocos do livro; a separação destas duas partes mais dedicadas aos resultados de pesquisas é tão tênue quanto as fronteiras naturais, mas, por uma questão de organização, se justifica.

São justamente estes artigos que tornam mais interessante a publicação, pois demonstram como a teoria e metodologia da História Ambiental estão sendo aplicadas aos mais diversos objetos de pesquisa. A construção simbólica a respeito da natureza é realmente um campo vasto para estes estudos e nos ajuda a entender desde discursos governamentais a aspectos culturais das sociedades, os quais, à primeira vista, podem parecer naturalizados, mas os fios de Ariadne conduzem ao entendimento destas construções, desvelados pela inquietação daqueles que observam cuidadosamente o passado. E não nos esqueçamos de que o passado explicado hoje tem sempre o olhar viciado do/no presente.

É especialmente esclarecedor o artigo que trata da construção da imagem, positivada, do eucalipto em Minas Gerais na segunda metade do século XX; sob a égide do desenvolvimento da região, a substituição da cobertura vegetal por uma espécie exótica era saudada ante as qualidades da segunda, tendo como pano de fundo um discurso nacionalista em que as árvores se destacavam. Esta contradição aparente tem uma temporalidade específica, um contexto próprio, cujas tramas políticas e econômicas estão muito bem trabalhadas no texto “Entre ipês e eucaliptos…”, demonstrando as inúmeras possibilidades da pesquisa em História Ambiental.

Também são tratadas de forma geral, nestes blocos, as políticas ambientais, constituições de Unidades de Conservação, por exemplo, tendo como contraponto artigos que tratam de políticas desenvolvimentistas como “A crescente produção sucroalcooleira no cerrado…”. Como dito antes, este miolo – se o pudermos assim chamar – é interessante por abordar vários biomas e objetos, em que, realmente, se descortina um panorama das pesquisas em História Ambiental feitas no Brasil.

Por estarmos em outro momento da produção historiográfica, quando a biografia torna-se uma possibilidade de escrita da História, sem a carga negativa que lhe acompanhava, é digno de nota o texto sobre Zoroastro Artiaga. Longe de exaltar seus propósitos, o artigo demonstra que a partir de uma iniciativa pessoal podemos ter acesso a inúmeras questões, por exemplo: como os interesses econômicos rivalizavam ou se associavam a interesses científicos e quais implicações surgiam destas urdiduras.

No quarto bloco do livro temos apenas dois textos, um deles escrito pelos organizadores do volume, Drummond e Franco, e o outro, o texto final, de Donald Worster, publicado anteriormente, em 1995. Os dois textos cumprem bem a função de fechamento, pois ambos vão elaborar uma reflexão sobre o perfil daquele que se ocupa de estudos ambientais; o primeiro, que pensa naqueles que demonstravam preocupações com o ambiente até quando se configura a atuação do ambientalista, e depois o texto de Worster, que trata mais especificamente do “historiador ambiental”.

O texto “História das preocupações com o mundo natural no Brasil…” é interessante não somente por nos mostrar como foi construído, a partir de indivíduos ou grupos, o pensamento ambiental no Brasil e a influência dele em políticas públicas, mas por mostrar as fissuras neste contexto ambientalista no qual, em larga medida, insere-se o historiador ambiental. E o é também ao situar aqueles chamados preservacionistas/conservacionistas e, pari passu, os socioambientalistas, oriundos – segundo os autores – de correntes de pensamento socialista ou de “esquerda” que utilizam a questão ambiental para dar mais visibilidade às questões sociais. Para os autores, a crítica aos preservacionistas/conservacionistas ocorre, em grande parte, por desconhecimento do que era inovador e crucial em suas proposições.

Isto é importante para entendermos as políticas e problemáticas relativas às unidades de conservação, pois há uma separação bem distinta que reflete estes dois posicionamentos: as áreas de uso sustentável e as de proteção integral. Acredito que muitos trabalhos que ainda estão sendo escritos se encontram com esta questão, principalmente se discutem a presença de pessoas em áreas de proteção ou mesmo se pesquisam áreas para as quais se pensa a criação de reservas.

O último texto, apesar da data de sua primeira publicação, é para mim a reflexão mais fresca sobre a história ambiental. Aqui, Worster nos coloca diante de uma questão basilar, ou que pelo menos deveria ser, às pesquisas neste campo: para que fazemos nossas pesquisas? Longe de imaginar um caráter utilitarista para nossos esforços, penso que temos que pesar o resultado que tal trabalho pode ter para a sociedade, acho mesmo que é imperativo que ofereça uma contribuição social.

Voltando os olhos para os movimentos, que ocorrem em distintas velocidades, de sociedades e da natureza, o autor alerta para algo inegável, ele fala mesmo que a sociedade tem percebido cada vez mais a dependência que os seres têm uns dos outros. Assim, pensar em fazer História Ambiental é perceber que esta dependência se aplica às mais variadas formas de interação, inclusive com a tecnologia.

Por fim, a coletânea se mostra muito proveitosa para aqueles que se dedicam ou farão suas pesquisas no campo da História Ambiental. Como diz Woster em seu artigo: “A história” deu lugar “às histórias”. Portanto, faz-se necessário circular os resultados e também inquietações daqueles que se dedicam a estes estudos. Neste sentido, esta publicação cumpre seu papel, apesar de alguma incerteza quanto às questões metodológicas – refiro-me à interdisciplinaridade, como utilizá-la como recurso ou perspectiva, o que me pareceu nesta obra uma questão que ainda carece de ganhar corpo.

Notas

1 Cf. CRONON, W. Un lugar para relatos: naturaleza, historia y narrativa. In: PALACIO, G; ULLOA, A. Repensando la naturaleza: Encuentros y desencuentros disciplinarios en torno a lo ambiental. Bogotá, Colombia: Universidad Nacional de Colombia-Sede Leticia; Instituto Amazónico de Investigaciones Imani; Instituto Colombiano de Antropología e Historia; Colciencias, 2002, p. 29-65.

2 Podemos pensar em alguns autores brasileiros que contribuíram para isto, tais como José Augusto Drummond, José Augusto Pádua e Regina Horta Duarte, e autores americanos como Donald Worster e William Cronon.

3 DEAN, Warren. A ferro e fogo: a historia e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Tissiano da Silveira – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contato: [email protected].

Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930) – CORRÊA (H – Unesp)

CORRÊA, Dora Shellard. Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930). Londrina: EDUEL, 2013, 274 p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O resgate do lugar histórico de grupos antes relegados ou mesmo ignorados pela historiografia tem sido, nas últimas décadas, um campo fértil de pesquisas para muitos historiadores. Essa exumação do passado é realizada tanto fora quanto dentro do Brasil, comumente centrada em mulheres, crianças, indígenas e minorias em geral – atores que foram sistematicamente banidos pela história oficial ou pelas generalizações de linhas teóricas e metodológicas que dominaram a disciplina até grande parte do século XX.

É esta uma linhagem de pesquisa que encontrou fontes de origens diversificadas para dar voz aos esquecidos – desde o testemunho oral até os vestígios mais indistintos de sua presença no passado – em tentativa de escapar da documentação oficial, a qual orientaria o banimento desses grupos, cujo lugar seria mantido fora da história.

Lançado neste ano (2013), o livro Paisagens Sobrepostas, de Dora Shellard Corrêa, vem ao encontro deste trabalho de resgate ao trazer à luz aqueles que antes foram destinados à escuridão histórica. Porém, a autora segue por um caminho diferente do trilhado pela maior parte dos historiadores desta linha. Sua pesquisa e análise têm como orientação geral a história ambiental, e isto apresenta um viés próprio para a historiografia.

A história ambiental, apesar de ser uma área de estudos ainda recente – inaugurada por volta da década de 1970 -, conta com alguns pressupostos teóricos e ferramentas metodológicas consolidadas entre aqueles que nela pesquisam. Uma delas, que representa uma herança de uma corrente historiográfica anterior, é sua vinculação à geografia, particularmente ao trazer para os pesquisadores o espaço como objeto de análise.

No seu livro, Dora Corrêa trouxe à superfície os esquecidos da história de São Paulo, a partir da recuperação das paisagens dos lugares que habitavam. Na compreensão da autora, índios, posseiros e lavradores pobres em momentos históricos distintos tiveram seus espaços de existência – suas paisagens – alterados para a adequação daquilo que o Estado brasileiro entendia como ideal a seus interesses econômicos. Assim, esse processo de apropriação soterrou não somente o lugar, também os que ali existiam.

A definição de paisagem utilizada pela autora foi elaborada por Henri Lefebvre: uma forma de ação do ser humano sobre a natureza representando uma dominação, mesmo que pretensa, sobre o espaço. De forma geral, a paisagem no livro significa a produção do espaço. Ou seja, de como seres humanos de distintas raízes socioculturais modificam a natureza de forma a torná-la suscetível a sua sobrevivência ou a outros interesses.

Embora entendida por Dora Corrêa dessa maneira – como uma “elaboração intelectual” -, a paisagem no livro não passa pela interpretação da História Cultural, que a concebe como uma representação da cultura e dos valores de determinada sociedade – uma perspectiva utilizada por muitos historiadores ambientais. O filtro conceitual principal da autora, entretanto, é o econômico. Seguindo nesta linha de interpretação, a argumentação reorienta o significado de paisagem de Lefebvre, no qual esta não é somente a produção do espaço, mas a produção no espaço.

Porém, essa delimitação do conceito de paisagem feita pela autora não a impede de utilizá-la de formas diversas em sua argumentação que pode ser encontrada de dois modos e sob uma variedade de sentidos. Ora é entendida como abstração, ao representar um enquadramento ou imagem da realidade; outras vezes, traduzindo algo concreto, como natureza, recursos naturais ou lugar. Este procedimento consciente ou inconsciente da autora pode gerar certa confusão para os leitores ao longo do livro, porém, não é nada que prejudique a clareza do argumento.

Este argumento, aliás, se desenrola a partir de um recorte cronológico longo, de pouco mais de dois séculos: de 1723 a 1930. E a paisagem escolhida por Corrêa é uma região localizada no sudoeste do Estado de São Paulo, conhecida como “Matas de Itapeva”, que beira a divisa com o Paraná.

Embora extenso, o recorte histórico atende às intenções do livro, pois o processo de sobreposição de paisagens deve ser compreendido dentro desta longa duração, com atenção voltada para as mudanças e apropriações da área em foco. Isto não significa que o processo seja lento, pelo contrário, é movido por ações violentas de apropriação das áreas, alterando-se drasticamente a finalidade econômica do espaço e o cotidiano das pessoas que nele habitavam.

A autora estabelece três momentos que considera significativos destas sobreposições: 1845-1912-1930; indicam a passagem de sertão para área civilizada ou de terras devolutas para aldeamento indígena. Estes períodos mostrariam também o trato que o Estado brasileiro deu às paisagens da Mata de Itapeva e seus habitantes dentro da divisão tripartite da História do Brasil: Colônia, Império e República.

Apesar da abrangência temporal, o livro se restringe à história e ao espaço paulista. Com a dimensão geográfica reduzida para uma história regional de São Paulo, o foco da análise histórica fica também assim delimitado, inclusive suas fontes e o diálogo que tem com a historiografia, paulista em sua maioria.

Não significa que a autora não tenha expandido essas escalas com a inserção da região no contexto histórico brasileiro em cada um dos períodos analisados. Mas isto ocorre apenas de maneira relacional, ou seja, vendo-se São Paulo como parte do quadro maior do Brasil. Fica a sensação de que, se essa inserção fosse feita comparativamente, o livro se enriqueceria ainda mais, com identificação dos mesmos processos de sobreposição de paisagens aplicados a outras regiões. Por exemplo, o Norte do Paraná, onde se localizam Londrina e Maringá, cuja historiografia, mesmo com outras perspectivas teóricas e metodológicas, abordou justamente esse processo de apropriação de terras consideradas sertões, mas habitadas por seres humanos – índios ou caboclos –, tal como nos trabalhos de Rogério Ivano (Crônicas de Fronteira) e de Nelson Tomazi (Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias).

As fontes podem atrair o interesse metodológico. Além dos tradicionais relatos de viajantes, especialmente Saint-Hilaire, a autora fez uso da documentação oficial, o que, levando-se em conta o resgate dos esquecidos, poderia ser considerado incomum. Entram no escopo de análise os itinerários de exploração de rios e caminhos, processos judiciais, memórias e relatórios. Esta documentação, apesar de apontar para o vazio histórico destas regiões, não levou Corrêa a legitimar o esquecimento. Pelos vestígios deixados nas descrições das paisagens, as camadas soterradas recuperaram sua existência.

Dora Corrêa faz surgir, a partir destas fontes, as paisagens sepultadas, tal como ocorre no “pentimento“, jargão das artes que usa e que significa uma alteração ocasionada pelo tempo em uma pintura, levando-se à revelação de outras pinturas sobrepostas num mesmo quadro. A analogia, apesar de todo o cuidado que a autora aplica a seu livro, se encaixa bem com o desenrolar da análise e a forma como ela monta sua narrativa.

Já o diálogo com a historiografia pode chamar atenção para uma releitura dos clássicos da historiografia nacional e paulista. A entrada de outros autores no argumento ocorre na maior parte das vezes como contraponto. Apesar de ressaltar a importância e trazer a historiografia para seu texto, a autora procurou mostrar os esquecimentos, especialmente os relacionados à história indígena, uma leitura montada basicamente nas obras de Caio Prado Júnior, Pierre Monbeig e Sérgio Buarque de Holanda. Os dois primeiros se teriam baseado na concepção de que os “sertões” teriam sido dominados pelos colonizadores, legitimando-se assim os vazios de história dessas regiões, um contraponto para a análise da autora. Já Holanda tratou as relações entre os habitantes destas paisagens e o Estado, entrando como reforço argumentativo.

Por fim, Paisagens Sobrepostas de Dora Corrêa traz para a História Ambiental brasileira mais um caminho de pesquisa e análise para ser seguido. Uma área que, no País, normalmente se leva pelas bases da historiografia estadunidense, a pesquisa de Dora e sua leitura dos clássicos da História do Brasil, moldados pela perspectiva econômica, possibilitam ao historiador ambiental ampliar suas ferramentas e formas de interpretação histórica.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social na FFLCH da USP e bolsista FAPESP.

 

 

Água, poder urbano y metabolismo social | Rosalva Loreto López

O livro Agua, poder urbano y metabolismo social, organizado por Rosalva Loreto López, inaugura a coleção Estudios Urbanos y Ambientales. Loreto López é membro do Instituto de Ciências Sociais e Humanidades da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla (México) e pesquisadora responsável pelo Corpo Acadêmico Sociedad, Ciudad y Território, siglos XVI- XXI.

A obra composta por seis artigos se propõe a tratar o tema da água na cidade de Puebla e seu entorno, assim como as relações sociais estabelecidas a partir de seu uso em diversas atividades, entre os séculos XVI e XX. Como pressupostos, privilegia a história ambiental e, mais especificamente, o conceito de metabolismo social. Este conceito é sistematizado por Manuel González de Molina no capítulo que fecha a coletânea, Sociedad, naturaleza, metabolismo social: sobre el estatus teórico de la historia ambiental.O metabolismo social apresenta-se como uma analogia ao metabolismo celular, com seus processos de absorção, transformação e excreção de materiais. O autor defende que o metabolismo social engloba o conjunto de processos em que os seres humanos – organizados em sociedade, independentemente da sua formação social e momento histórico – realizam ações que transformam, consomem e excretam materiais e/ou energias provenientes do mundo natural. Molina considera que a historia ambiental é o estudo histórico da evolução e da mudança das sociedades humanas, e os processos naturais e sociais agentes ativos em permanente e mútua determinação. Ressalta também a importância de reconciliar sociedade e natureza. Entretanto, esse capítulo não se afina completamente aos outros que integram a coletânea, por ser estritamente teórico e não abordar o tema da água como acontece nos demais. Leia Mais

The fire ant wars: nature, science and public policy in twentieth-century America – BUHS (RBH)

BUHS, Joshua Blu. The fire ant wars: nature, science and public policy in twentieth-century America. Chicago: The University of Chicago Press, 2004. 216p. Resenha de: DRUMMOND, José Augusto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008.

Este livro instigante narra a vitoriosa invasão dos Estados Unidos da América pela América do Sul, ocorrida na década de 1930. Da Flórida à Califórnia, chegando ate à Virgínia ao norte, a ocupação sul-americana afetou quase a metade do território continental norte-americano. No entanto, essa invasão não foi feita por um exército profissional ou irregular de um país ou grupo de países, mas por um bem organizado e belicoso exército de formigas da espécie Solenopsis invicta (cujos nomes populares em português e inglês são respectivamente ‘formiga-de-fogo’ e fire ant), nativa de vários países sul-americanos.

O texto foi adaptado da tese de doutorado do autor (graduado em zoologia) na área de história e sociologia da ciência, defendida em 2003 na University of Pennsylvania. Buhs é atualmente pesquisador independente, trabalhando na Califórnia. A temática e a abordagem se enquadram na história ambiental, com foco mais forte (1) nas trocas biológicas entre regiões e continentes — tema do conhecido livro do historiador ambiental Alfred Crosby, Ecological imperialism: the biological expansion of Europe, 900-1900. Cambridge, Cambridge University Press, 1986 — e (2) nas relações entre ciência e tecnologia e as políticas públicas de combate à formiga-de-fogo. Os cinco capítulos são muito bem escritos, organizados e documentados, compondo um volume compacto e repleto de informação detalhada e sólida, análise aguda, discussão teórica e conceitual avançada e conclusões desafiadoras.

Buhs inicia o livro com uma torrente de informações sobre a origem geográfica, a ecologia e a biologia da formiga-de-fogo, uma entre muitas centenas de espécies de formigas nativas da América tropical e subtropical. Poucas décadas depois de a sua vanguarda invadir os Estados Unidos, no início da década de 1930, provavelmente pelo porto marítimo de Mobile (Alabama), a formiga-de-fogo se reproduziu e se espalhou vigorosamente. Chegou ao ponto de se tornar uma espécie ‘típica’ do Sul dos Estados Unidos, tanto que muitos residentes chegaram a considerá-la uma espécie nativa. No entanto, logo se percebeu que era uma invasora, pois virou grave praga em parques, praças e quintais urbanos, em beiras de estradas e em terras dedicadas à agropecuária — embora menos presente em áreas densamente florestadas. Por causa disso ela foi exaustivamente estudada e tornou-se alvo de campanhas caríssimas (todas fracassadas) de controle e erradicação. Transformou-se até em ‘personagem’ da cultura sulista dos Estados Unidos, homenageada por músicas, festivais e narrativas de folclore, sendo até adotada como mascote de times esportivos. No contexto anticomunista da Guerra Fria, conservadores menos tolerantes e mais mal-humorados chegaram ao extremo de comparar as formigas do fogo a invasores ‘comunistas’.

No entanto, ainda há incertezas fascinantes sobre a invasora. Por exemplo, não se sabe ao certo de onde ela veio — se da Argentina, do Paraguai ou do Brasil, países nos quais é nativa. Estudos genéticos indicam que as populações de formigas do fogo dos Estados Unidos são mais fortemente aparentadas com as do médio rio Paraguai. Outra incerteza é sobre o modo da invasão — uma ou mais rainhas grávidas teriam sido transportadas em cargas de frutas e madeiras? Ou teria uma colônia inteira sido transportada nas terras usadas como lastro nos navios? Talvez nunca se descubra o modo de invasão, mas ela certamente teve a ajuda involuntária dos humanos. Por que a formiga-de-fogo se tornou a espécie de formiga dominante em alguns lugares, e em outros ficou em plano secundário?

Seja como for, a formiga-de-fogo, adaptada a terras sujeitas a perturbações naturais periódicas, ligadas às cheias e vazantes de corpos de água, coloniza facilmente terras perturbadas, tanto naturalmente quanto pela atividade humana. Essa qualidade ajudou no seu rápido espalhamento do litoral do Alabama para os demais estados do Sul e Sudeste dos Estados Unidos, pois eles passavam por uma fase de intensa modernização agrícola. Os novos, numerosos e extensos campos de cultivo e pastos, o desmatamento, a introdução de maquinário pesado (tratores e bulldozers) e de pesticidas, além de obras diversas (estradas, canais, drenagem etc.), criaram territórios ideais para a proliferação da cuiabana. Ou seja, a disseminação das formigas-de-fogo também teve a ajuda humana involuntária. Porém, dois outros fatores de ordem estritamente natural ajudaram nessa proliferação: a falta de um predador ou competidor na fauna nativa e os invernos brandos. Porém, um outro fator natural — invernos rigorosos — ajudou a controlar a sua progressão mais para o norte dos Estados Unidos.

Em contraste com as primeiras seções do livro, onde predominam as abordagens e fatos da ecologia, zoologia, história natural e geografia física, as demais focalizam ações e atitudes humanas em relação às formigas-de-fogo, principalmente de cientistas, técnicos governamentais, políticos locais, estaduais e federais e fabricantes de pesticidas. As ‘guerras’ mencionadas no titulo não se deram, portanto, apenas entre os humanos em geral e os invasores invertebrados, mas entre diferentes segmentos da sociedade civil e do aparelho governamental. Eles discordavam entre si quanto à identificação, aos perigos e às vulnerabilidades da formiga-de-fogo e quanto aos modos de combatê-la. Não havia consenso sobre a sua periculosidade, por exemplo. As guerras entre humanos se explicitaram nas diferentes campanhas de erradicação e controle da formiga-de-fogo, em que se enfrentaram portadores de diferentes conceitos sobre a natureza e sobre a sociedade, correspondentes a coalizões políticas mais ou menos fortes e duradouras que reuniam atores desde o nível estritamente local ao nacional.

O autor demonstra esperança de que o melhor conhecimento sobre essas guerras e sobre o fracasso generalizado do combate às invasoras contenha uma “lição de humildade” (p.172) para os humanos confrontados com outros problemas naturais. Ele sustenta que natureza e sociedade são muito mais complexas internamente e nas suas relações mútuas do que supunha a maioria dos que estiveram nas trincheiras humanas das guerras. Técnicos e cientistas, por exemplo, saíram chamuscados, pois a sua credibilidade junto aos cidadãos foi seriamente abalada. O seu engajamento nas guerras os colocou na companhia um tanto incômoda de políticos e lobistas oportunistas, especialmente aqueles ligados à ainda nascente indústria de pesticidas sintéticos. Esse ainda jovem ramo industrial viu no combate às formigas-de-fogo uma grande oportunidade de vender os seus produtos e de convencer o público sobre as suas virtudes.

As fontes usadas são variadas e amplas. Materiais primários (cartas, memorandos, planos e relatórios) vieram de arquivos históricos e administrativos locais, estaduais e nacionais. Papers e relatórios científicos inéditos foram pesquisados em arquivos e bibliotecas universitárias e em arquivos particulares de cientistas. O autor usou ainda uma extensa relação de livros e teses universitárias de muitas áreas de saber e dezenas de artigos científicos (publicados em revistas especializadas de história natural, ecologia, zoologia, geografia, agronomia, química, história da ciência e história ambiental, ciência política etc.), ilustrando bem o caráter multidisciplinar da pesquisa. As bem selecionadas ilustrações (mapas, desenhos, charges e fotografias) enriquecem o texto.

O livro é de alta qualidade e será de interesse e proveito para pesquisadores, estudantes e cidadãos interessados nas relações entre humanos e não-humanos, em especial no tocante a introduções intencionais ou acidentais de seres vivos em locais distintos dos seus habitats ou áreas de ocorrência naturais. No entanto, cabe destacar dois pontos. Primeiro, trata-se de uma temática que, embora relevante para a realidade brasileira — diversa da norte-americana —, é um tanto avançada para o estado atual das ciências biológicas e sociais no Brasil. Segundo, a abordagem é avançada, e não introdutória. É mais recomendável, portanto, o seu uso em centros de pesquisa e pós-graduação, e não em cursos de graduação.

José Augusto Drummond – Centro de Desenvolvimento Sustentável – Universidade de Brasília (UnB), SAS Quadra 05, bloco H, n. 50, 2º and., zona central. 70070-914 Brasília – DF – Brasil. E-mail: [email protected]

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Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica – MAYR (VH)

MAYR, Ernst. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Prefácio de Drauzio Varella. Tradução de Marcelo Leite. Resenha de: FONSECA, Alexandre Torres. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 574-576, jul./dez., 2006.

As contribuições feitas por Ernst Mayr à biologia evolucionária o colocariam certamente em qualquer lista dos maiores biólogos evolucionários do século XX. Edward Wilson e Stephen Jay Gould, colegas de Mayr em Harward, chegam a colocá-lo como o maior biólogo de todos os tempos. Mas as realizações de Mayr se estenderam para além da biologia. Além de seus trabalhos de divulgação da história natural e da evolução, ele também escreveu sobre a história e a filosofia da ciência, especialmente da biologia.

Se levarmos em consideração o volume, a abrangência e a profundidade do trabalho de Ernst Mayr, ele ocupa um lugar único no desenvolvimento da biologia evolucionária no século XX. E, para entendermos adequadamente este desenvolvimento, nós precisamos entender seu trabalho. E é exatamente isso que Biologia, ciência única nos permite. A cuidadosa edição da Companhia das Letras, com tradução de Marcelo Leite, transforma Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica (2005) em um livro indispensável tanto para historiadores da ciência quanto para os historiadores ambientais, e, naturalmente, também para os biólogos.

Mayr, que morreu em fevereiro de 2005 com cem anos, começou seus estudos em medicina, mudando depois para a biologia. Publicou seu primeiro paper aos dezenove anos, em 1923; tornou-se Ph.D. com 22 anos pela Universidade Humboldt em Berlim. Publicou quase 700 papers e 25 livros, dos quais o último é Biologia, ciência única, que é, segundo ele, uma versão revisada e mais madura de seus pensamentos.

Mayr, ao mudar-se para os Estados Unidos em 1931, considerava-se um ornitologista. Durante sua vida deu nome a 26 espécies e a 473 subespécies novas de pássaros, publicou cerca de 300 artigos discutindo e descrevendo a variação geográfica e a distribuição dos pássaros. Como muitos de seus contemporâneos acreditava na herança lamarkiana até se tornar amigo e interlocutor de Theodosius Dobzhansky, o qual vai exercer grande influência no pensamento de Mayr. Desse encontro surgirá a Moderna Síntese evolucionária.

A teoria evolutiva moderna surgiu entre 1936 e 1947, com a Síntese Evolucionária ou Síntese moderna. Este termo foi introduzido por Julian Huxley no livro Evolution: The Modern Synthesis, em 1942. Esta síntese é reunião da teoria de Darwin com a genética e as contribuições da sistemática e da paleontologia. Este processo começou com R. A. Fisher, J. B. S. Haldane e Sewall Wright. Alguns anos mais tarde, o paleontólogo George Gaylord Simpson, o biólogo Ernst Mayr e o geneticista Theodosius Dobzhansky irão alargar o paradigma neodarwinista. E da união entre o darwinismo e a genética nascerá o neodarwinismo.

O termo neodarwinismo ou teoria neodarwinista é usado correntemente como sinônimo de Síntese Moderna por quase todos os biólogos evolucionários, como por exemplo, Dennett, Gould, Futuyma e Dawkins. É neste sentido que este termo é usado neste artigo. Ernst Mayr, embora tenha usado neodarwinismo com esse sentido, mudou de idéia em Biologia, ciência única (2005). Por isso, a importância deste livro. Fica claro que a promessa feita na introdução do livro, de apresentar uma versão revisada e mais madura de seu pensamento, é realizada.

Neste livro (capítulo 7, Maturação do darwinsimo), ele diz que é um equívoco chamar de neodarwinismo à versão do darwinismo desenvolvida nos anos 1940, porque Romanes já havia usado este termo, em 1894, para qualificar o “paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve [soft inheritance] (isto é, sem a crença na herança de características adquiridas)” (2005, p. 147). Na sua nova maneira de pensar, a teoria sintética da evolução, o “produto da síntese das teorias dos estudiosos da anagênese e da cladogênese” (p. 147), deveria ser chamada simplesmente de darwinismo, pois se trata

em essência, da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação e sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedade foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na retomada do simples termo “darwinismo”, porque ele engloba os aspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular, refere-se à inter-relação entre variação e seleção, o cerne do paradigma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao paradigma evolucionista, após um longo período de maturação, simplesmente como darwinismo (p. 147).

Outro exemplo é a discussão sobre o que constitui uma espécie (capítulo 10, Um outro olhar sobre o problema da espécie). O conceito de espécie defendido por Mayr é ao mesmo tempo sua mais conhecida contribuição para o estudo da biologia, e o motivo pelo qual a maioria dos biólogos, hoje em dia, discordam da visão de espécie de Darwin. Neste capítulo ele critica o conceito de espécie dos “taxonomistas de poltrona”.

Mayr também descreve as causas que o levam a considerar a biologia uma ciência única, autônoma, com vários conceitos ou princípios específicos, necessitando, por isso, de uma filosofia da biologia específica, que difere de filosofia da ciência, segundo ele, mais ligada à física. No capítulo 9, As revoluções científicas de Thomas Kuhn acontecem mesmo?, discute as idéias de Kuhn sobre revolução científica e paradigma, chegando à conclusão que esta não é uma boa teoria para a biologia. Mayr considera que “as descrições da epistemologia evolucionista darwiniana parecem captar melhor a mudança em teoria em biologia” (p. 184), fazendo uma clara opção por esta última.

Ernst Mayr é importante para a história da biologia e para o pensamento biológico por ter sido tanto um participante ativo da história na criação da Moderna Síntese quanto por sua significativa obra reflexiva sobre a filosofia da biologia. Nos últimos vinte anos de sua vida, ele se dedicou mais à história e à filosofia da biologia. Seu grande trabalho nesta área é The growth of Biological thought, de 1982, um tour de force de 974 páginas, que demorou dez anos para ser concluído. Havia a promessa de um segundo volume que não se realizou. Além disso, ele influenciou consideravelmente três ou quatro gerações de biólogos. Mayr diz que “por toda a biologia há numerosas controvérsias não resolvidas, e que ele não era otimista a ponto de acreditar que [ele tivesse] resolvido todas (ou mesmo a maioria)” (p. 13-14) delas. E o desafio que ele propõe aos jovens pesquisadores evolucionistas é ir em busca tanto das questões não respondidas quanto, e isso é o mais importante, de questões não formuladas. Com certeza, Biologia, ciência única é um bom começo.

Alexandre Torres Fonseca – Doutorando em Ciência e Cultura na História. UFMG. E-mail: [email protected]

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História & Natureza – DUARTE (VH)

DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Resenha de: ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A sabedoria vegetal. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.35, p. 240-243, jan./jun., 2006.

Retiro semelhanças de pessoas com árvores

de pessoas com rãs

de pessoas com pedras

etc etc

Retiro semelhanças de árvores comigo.

Não tenho habilidade pra clarezas.

Preciso obter sabedoria vegetal.

(BARROS, Manoel Desejar ser. In: Livro sobre nada, p. 51)

Aprendi com Manoel de Barros que a ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos. Talvez seja esse o desafio lançado para a História Ambiental, do qual o livro de Regina Horta Duarte, História & Natureza, é um belo exemplo: menos classificar e nomear e mais medir os encantos, falar dos sentidos, dos sentimentos, das imagens, que cada sociedade humana atribuiu ao que se chama de natureza. Encantos é que não falta autora, dona de olhos azuis de céu e bochechas de rosa. Ao ler seu livro, páreo estar escutando a sua voz doce e carinhosa, quase um canto de sabiá laranjeira, a dizer com simplicidade e firmeza que não concorda com tal leitura feita sobre a nossa relação com a natureza. Como sempre, fazendo uma crítica equilibrada, percuciente, atentando para o que há de pertinente em cada uma das formulações, comumente conseguindo encontrar um caminho próprio, uma forma própria de ver. Quase a escuto dizendo, sussurrando, a fórmula mágica e quase impossível de resistir, a interjeição que sempre nos faz aderir  sua posição, expressão do que seria um jeito bem mineiro de ser: “né”!

O livro é composto de três capítulos. No primeiro, Os historiadores em diálogo com seu tempo, a autora vai se dirigir aos jovens, a quem, como confessa na apresentação, seu discurso é dirigido, na tentativa de modificar a visão sobre a disciplina histórica que parece prevalecer entre eles, ou seja, a de que a história trata de coisas velhas, de trastes, de restos do passado, não tendo nada a dizer ao tempo presente. A história seria uma matéria maçante, chata, exigindo a memorização de uma montanha de eventos que não serviria para nada, que nada significariam para esta juventude que vive preocupada com o futuro e habita um mundo radicalmente distinto daquele sobre o qual a história costuma falar. Ao tomar a natureza como tema de análise histórica, ao tratar das formas como o homem pensou e praticou a natureza, como nela interferiu e com ela se constituiu, a história estaria tratando de um tema dos mais candentes do nosso tempo. A questão de nossa relação com o meio ambiente é, hoje, um problema que se coloca como prioritário para esta juventude. Ela deve procurar encontrar soluções, ou seja, inventar formas novas de se relacionar com o meio ambiente, o que implica rever as próprias concepções acerca da natureza e do homem presentes em nossa cultura. A história tem um papel importante a desempenhar neste processo de revisão de práticas e valores,  medida que pode contribuir para desnaturalizar a nossa forma de lidar com o ambiente, nos ajudando a entender como chegamos ao estado atual de degradação, de poluição e de modificação dos ecossistemas.

No segundo capítulo, Sociedade, natureza e história, a obra faz uma incursão pela história da relação entre homem e natureza, nas várias sociedades humanas, procurando deixar claro que não é apenas a sociedade moderna ou contemporânea que devastou ou devasta a natureza ou que explorou ou explora os recursos naturais, muitas vezes, acima da sua capacidade de renovação; mas que isso ocorreu desde as formas de organização mais simples dos grupos humanos, sendo esta intervenção no meio ambiente e seu poder transformador, quase sempre, relativo ao grau de desenvolvimento técnico destas sociedades. Fugindo de qualquer mirada romântica, que contamina muitas discussões e muitas práticas em torno da questão ambiental, o livro nos fala de que o homem nunca viveu em completa harmonia com a natureza, nem com a sua própria, justamente por ser um animal cultural, o que implica de saída em negar, de certa forma a natureza, inclusive a sua própria. O texto coloca-se, claramente, em oposição a certo discurso ecológico que faz dos índios, por exemplo, seres como que pertencentes  natureza, como se fossem elementos da paisagem, o que implica na animalização destes e a defesa, muitas vezes explicita, de que não devem ter acesso aos benefícios, que afinal também foram trazidos pelo processo civilizatório. Discorda, ainda, do sonho edênico de uma natureza intocada, de um retorno a uma vida natural, presente em muitos discursos ecológicos, mostrando, como, paradoxalmente, a vida natural tornou-se uma das principais mercadorias vendida, hoje, no mercado capitalista. Lendo o livro de Regina Horta, levei o susto de quem aprende algo que nunca havia parado para sequer imaginar, quando ela narra a devastação ambiental feita pelos gregos antigos ou pelo Império romano. Neste momento me perguntei como é possível que a terra e seus recursos tenham aguentado tanta devastação, por tanto tempo. Acostumado aos massacres humanos que formam a história, me dei conta, lendo este livro, de outros tantos massacres que também vieram constituir o que chamamos de história; não apenas o massacre dos gatos, tema do texto de Robert Darnton, com sua gloriosa função de forma de resistência da classe trabalhadora, mas dos pássaros, dos leões, dos ursos, das raposas, dos carvalhos, dos mognos, etc . Cheguei a me perguntar, lendo o número de animais abatidos nas arenas romanas, em uma só ocasião festiva, como ainda temos tal biodiversidade espalhada pelo planeta.

Entendemos um pouco como isso foi possível  medida que a história feita pela autora não é uma história maniqueísta, uma história feita por mocinhos e vilões, mas uma história que busca tratar o tema que se propõe a estudar com muito equilíbrio, vendo-o por vários ângulos e em toda a sua complexidade, explorando, inclusive suas ambiguidades. Aqui Regina revela um dos seus melhores traços como pessoa: ela não é uma pessoa arrogante e autoritária, e isso aparece em sua maneira de escrever a história. Ela escreve uma história que não arrota verdades definitivas, nem posições inquestionáveis. Em um outro percurso pelas várias sociedades humanas, a obra vai mostrar todas as práticas e discursos daqueles que denunciaram a devastação da natureza, que colocaram as suas vidas em defesa dos animais e das plantas. Vai mostrar, inclusive, como um fenômeno histórico, que normalmente é tratado hoje com muitas reservas, o processo de expansão comercial e política européia, foi um fator de disseminação de variedades diversas de plantas e animais, iniciando o que poderíamos chamar de processo de globalização da natureza, do qual a criação dos vários jardins botânicos e zoológicos é um fenômeno importante. Contraditoriamente, a mesma colonização que aumenta a biodiversidade por onde passa, trazendo plantas e animais que seriam a base da alimentação das novas sociedades em construção, aumenta, também, a diversidade de microrganismos letais á saúde de populações nativas que não carregam em seus corpos defesas imunológicas contra os efeitos destes vírus ou bactérias alienígenas.

No terceiro capítulo, História e História Ambiental, o livro vai contar a história da emergência da história ambiental, procurando mostrar os problemas que levaram  sua emergência, as discussões conceituais que a atravessa, as correntes em que se subdivide. Ensaia também uma sumária e incompleta arqueologia da história ambiental entre nós, onde a falta de referência ao livro Nordeste, de Gilberto Freyre, Ø uma lacuna a ser revista numa próxima edição, já que sem dúvida, mais do que os textos citados de Capistrano de Abreu, de Caio Prado Jr. e de Sérgio Buarque de Holanda, onde a abordagem ecológica está presente, mas é tangencial, o livro de Freyre Ø explicitamente estruturado em torno da relação entre homem e natureza, e se coloca como um ensaio de eco sociologia. Este capítulo mostra como a autora está a par das discussões mais contemporâneas no campo da história ambiental, sendo uma especialista reconhecida, nacional e internacionalmente, neste campo historiográfico.

O livro História & Natureza, é de leitura obrigatória, não só por seu conteúdo, pelas informações valiosas que traz acerca da história da relação entre homem e meio ambiente, ao longo do tempo, mas também por ser leitura agradável, leitura bem informada, leitura crítica e problematizadora de nosso lugar na história e na natureza. Ler este livro, mais do que saber acadêmico, me trouxe saber vegetal, que é, segundo Manoel de Barros, receber com naturalidade uma rã no talo. E ler este texto é como receber uma rã no talo, pois sua leitura provoca a sensação de choque e de desconforto, nossa sensibilidade fica eriçada, ele é um convite a gesto instintivo e necessário, sua leitura provoca surpresa e angústia. A leitura nos faz experimentar o sobressalto que provoca, em doutores formados, a escritura daquilo que, de certa forma, já sabíamos, mas possivelmente tínhamos medo de sequer dizer. Coisas que, durante muito tempo, foram imprestáveis e impensáveis para a palavra do historiador, tinham existência só coisal, agora ditas nos levam a boquiabrir. Espero que elas passem a dar germânios, depois que Regina regou a horta dos historiadores e nela fez brotar coisas que abasteciam o abandono, coisas esquecidas na terra, e que agora urgem em falar ou ser faladas. A história está aprendendo, talvez, que mais do que desencantar ela precisa encantar seus leitores e aqueles que a fazem. Talvez, com este livro aprendamos que precisamos escrever história com passarinhos fazendo poleiro na cabeça.

Durval Muniz de Albuquerque Junior – Departamento de História/ Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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