Antonio Fagundes no palco da História: um ator | Rosangela Patriota

Antonio Fagundes Cassia Kiss e Rosangela Patriota Imagens A G News 1
Antonio Fagundes, Cássia Kiss e Rosangela Patriota | Imagens: A G News

A definição de um bom trabalho historiográfico depende de variáveis que convergem para o trato acadêmico sistematizado e com fundamentação teórica. Diante disso, o acesso ao conhecimento é possível, entre outras coisas, pela capacidade do historiador em se disponibilizar a apreciar um determinado tema e, a partir daí, realizar recortes, recuperar fontes, organizar ideias, confrontar versões e tomar decisões diretamente relacionadas à composição da narrativa e da análise. Enfim, construir interpretações na área de História é um processo denso, que demanda tempo e envolvimento com a pesquisa. Certamente por isso, livros publicados por pesquisadores experientes chamam a atenção e auxiliam as novas gerações de pesquisadores.

Lançado em 2018, pela Editora Perspectiva, o livro Antonio Fagundes no palco da história: um ator, da historiadora Rosangela Patriota, é um desses casos. Dedicada ao estudo da relação entre História e Teatro, a pesquisadora possui vasto currículo, que abrange, por exemplo, a publicação de inúmeros artigos e livros, o desenvolvimento de projetos de pesquisas financiados por órgãos de fomento e orientações de mestrado e doutorado que versam sobre o tema.

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Le travail de l’histoire | Étienne Anheim

Em 2010, Gérard Noiriel, no verbete Métier/communauté, incitava-nos à reflexão sobre o conteúdo da prática do métier de historiador. Relendo Marc Bloch, ele nos reportava às tarefas cotidianas que englobam o “ser historiador” em um contexto contemporâneo. Com a passagem de alguns anos, encontro, particularmente, em Étienne Anheim, especialista da cultura erudita do final da Idade Média no Ocidente, um grande esforço para, sociológica e historicamente, pensar acerca da experiência do trabalho do historiador em toda a sua generalidade.

Assim, para esta pergunta que silenciosamente nos acompanha: “o que é ser historiador?”, Étienne Anheim, professor da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), em Paris, figurando como observador participante, lança-nos uma resposta: ser historiador é ser pesquisador, professor, orientador, supervisor, avaliador, editor, administrador; e, considerando que a prática historiadora age sobre o si em sua forma de interpretar o mundo, o historiador deve estar preparado para intervir no debate público quando instigado ou convocado. É no trânsito por essas múltiplas tarefas, posições e disposições entrelaçadas que o livro está organizado. Leia Mais

O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro | Marina Basso Lacerda

Não é difícil entender por que o livro de Marina Basso Lacerda, O novo conservadorismo brasileiro, fruto de sua tese de doutorado no IESP/UERJ, foi finalista no Prêmio Jabuti 2020 na categoria de Ciências Sociais. O livro é bom. Bem distribuído, conciso e sóbrio. Mas, assim como qualquer obra, há alguns defeitos que abrem flancos para críticas. O mais complexo deles pautado no próprio conceito que permeia todo o livro: neoconservadorismo. É inegável que há uma nova configuração na política brasileira, cujo marco inicial pode ser pensado nas Jornadas de Julho de 2013. Não que o Bolsonarismo seja consequência direta das Jornadas, mas aquele momento pode ser pensado como a gênesis de um processo de ruptura e turbulências que foram gradualmente se intensificando a cada ano. Mas até que ponto essa direita, que sem dúvida ascendeu, pode ser entendida como uma nova direita? E, mais problemático, é possível utilizar apenas um conceito para englobar uma configuração tão heterogênea de grupos que vão de conservadores laicos a fundamentalistas religiosos? Leia Mais

Na contramão da liberdade: A guinada autoritária nas democracias contemporâneas | Timotht Snyder

O livro Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas, do historiador norte-americano Timothy Snyder, chega em momento oportuno para ampla parcela do público brasileiro. Compreender a onda autoritária que se fortalece em âmbito global e que atualmente governa este país, tem chamado a atenção de muitos leitores. A obra, publicada originalmente em inglês em 2018, insere-se num filão editorial composto por obras como O povo contra a Democracia (Companhia das Letras, 2019), de Yascha Mounk, Como a Democracia chega ao fim (Todavia, 2018), de David Runciman, e Como as democracias morrem (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; livros agrupados por alguns analistas em categorias como “biblioteca da ansiedade” ou “bibliografia do fim do mundo”.1 Tais nomes poderiam sugerir exagero ou alarme falso, o que desconsideraria a urgência das questões tratadas em tais livros. Afinal, o perigo é real, inadiável. Basta considerar a erosão de nossas instituições democráticas nos últimos tempos. Os leitores brasileiros da referida obra poderiam, desse modo, beneficiar-se muito das considerações de Snyder acerca de processos históricos que, se não nos governam por inteiro, certamente mantêm relações com nossas instituições e vida política. Seu livro fornece tanto elementos para uma melhor compreensão da difusão recente do autoritarismo em várias partes do mundo, quanto possíveis caminhos para se contrapor a ele. Neste último caso, talvez valha a pena discutir tal obra a partir de alguns aspectos do fortalecimento de um movimento autoritário no Brasil e de suas especificidades, de maneira a evitar sua diluição completa no fenômeno abordado pelo livro, bem como a tomada das mesmas vias propostas pelo autor para a manutenção ou o revigoramento da democracia. Leia Mais

O Sindicato que a Ditadura queria: o Ministério do Trabalho no governo Castelo Branco (1964-1967)

A autora de O Sindicato que a Ditadura queria é Heliene Nagasava. Servidora do Arquivo Nacional desde 2008, ela atua na organização e pesquisa dos acervos ligados à História do Brasil Republicano, destacando-se no trabalho com os arquivos da repressão. Sua atuação no Arquivo Nacional, somado ao engajamento no Laboratório de Estudos da História do Mundo do Trabalho (LEHMT/UFRJ) e em projetos ligados à Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), traça o lugar social da investigação histórica aqui analisada. O livro é resultado de dissertação de mestrado, orientada por Paulo Fontes (UFRJ), e defendida no Centro de Pesquisa e Documentação de História do Brasil Contemporâneo (CPDOC-FGV).

A pesquisa articula a intenção de revelar e utilizar os acervos da história recente do país, a contraposição das memórias das elites políticas do governo Castelo Branco (1964-1967) com os arquivos da repressão, e a compreensão da história social dos trabalhadores na ditadura. A análise estrutura-se em três capítulos: o primeiro compreende passagem de Arnaldo Sussekind como ministro do trabalho (1964-1965) e os embates com os trabalhadores; o segundo analisa a repressão feita nos sindicatos a partir do Ato Institucional nº 1; o terceiro enfoca as medidas tomadas pelos ministros do trabalho Peraccchi Barcelos e Nascimento e Silva. No panorama da história política do Brasil República e da história social dos trabalhadores, o livro e pesquisa deslocam o enfoque dado ao Ministério do Trabalho nas décadas de 1930 e 1940 para o período da ditadura civil-militar. Leia Mais

Flavio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário – De 1943 a 1984 | Benito Bisso Schmidt

Em Tempos interessantes, Eric Hobsbawm comentou que comumente as biografias “terminam com a morte do biografado, mas as autobiografias não têm esse fim natural”, uma ironia que não se traduz apenas como humor para historiadores envolvidos em empreitadas biográficas (2002, p. 447). Autor proeminente nos estudos sobre esse gênero, Benito Schmidt enfrentou como desafio o que para Hobsbawm era chiste ao biografar o gaúcho Flavio Koutzii, cuja biografia não teve o aludido fim natural: Koutzii não apenas contribuiu imensamente para a produção do livro, como foi um leitor privilegiado antes e depois de sua publicação – e, assim como Hobsbawm, Koutzii é judeu, fez-se comunista e não dispensa a fina ironia.

Após debruçar-se por quase uma década sobre variados registros que a vida de Koutzii lega à pesquisa histórica, Schmidt lançou um livro bastante singular, tanto pela relação que estabeleceu com seu objeto e principal fonte – Koutzii e suas memórias -, quanto pela forma como articulou essa fonte com as demais. Da primeira às últimas páginas nota-se que o livro é a confluência da relação entre biógrafo e biografado – especial singularidade da obra. Leia Mais

O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura | Elizabeth Cancelli

Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura, da historiadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Elizabeth Cancelli, é realização de uma década de sólida pesquisa de documentos inéditos em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos. Esforço que já resultou, entre trabalhos publicados no país e no exterior, no livro O Brasil e os outros: o poder das ideias (CANCELLI, 2012).

Neste novo lançamento, a autora aprofunda um tópico de investigação persistente na sua obra recente. Mais amiúde, as finalidades e o percurso de construção, durante a Guerra Fria, de três lugares-comuns da historiografia sobre o Brasil República, que são, além disso, também temas duradouros de nossa tradição de pensamento político: primeiramente, o exotismo brasileiro no interior da modernidade ocidental, tema através do qual vem sendo preenchidas de conteúdos as noções de “falta”, de “atraso” e de “subdesenvolvimento” nacional; em segundo, a defesa, para sanar essa condição de “minoridade” internacional do Brasil, de um ideal de missão intelectual cuja tarefa seja a adequação do país e do brasileiro a padrões hegemônicos de vida social e econômica; em terceiro, o destaque, nessas propostas de alinhamento, à acelerada transformação do Homem, equilibrada através da estabilidade da vida política e das esferas de poder. Leia Mais

História Econômica e Social do Estado de São Paulo 1850-1950 | Francisco Vidal Lun e Herbert S. Klein

Em 1950, São Paulo era o mais importante centro econômico populacional do país. No século XXI, o estado de São Paulo poderia ser classificado como a 36a maior economia do mundo em termos do PIB gerado (450 bilhões de dólares, em 2010) e a 31a nação do mundo, em termos da população (41,2 milhões, em 2010).

Essas constatações, trazidas por Luna e Klein nas primeiras páginas do livro, tornam-se mais surpreendentes e contrastantes, quando os autores destacam que, um século antes, em 1850, São Paulo não tinha qualquer relevância econômica, populacional e política no Império ou na nação brasileira. Em menos de um século, São Paulo ascendeu à principal estado do país, posição consolidada com a República. Leia Mais

Colonos do Café | Maria Sílvia Beozzo Bassanezi

A leitura do livro Colonos do Café é fluida e agradável. De imediato, é como se o leitor entrasse num túnel do tempo e espiasse a vida de trabalhadores e trabalhadoras na faina do café em uma fazenda paulista no tempo de dantes, parafraseando Maria Paes de Barros (1998).

O trabalho em uma propriedade rural modelo, a fazenda Santa Gertrudes, é o eixo central da obra. Os números e valores referentes ao montante de trabalhadores e à produção cafeeira da fazenda são significativos e justificam, por si só, uma análise pormenorizada. No entanto, o que nos deparamos é com uma pesquisa acurada e meticulosa dos trabalhadores que formaram o complexo e diverso universo da fazenda. À dura labuta de sol a sol de muitos homens e mulheres envolvidos na produção cafeeira, é possível vislumbrar, ademais, a história e as particularidades da fazenda, informações sobre a produção cafeeira e as múltiplas experiências cotidianas de seus colonos. Leia Mais

As Américas na primeira modernidade | Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins

Uma das qualidades que se busca na produção acadêmica é a capacidade de cativar e prender a atenção de seu leitor. Ao longo de séculos, escritores e suas obras têm tido sucesso ou insucesso nesse sentido: conseguir produzir um texto que seja interessante, que produza reflexões no ledor e que estimule a busca por mais conhecimento, seja para seu interesse pessoal ou para sua área profissional, é prova inequívoca de que o trabalho atingiu seu objetivo.

Em um romance publicado pela Editora Record, intitulado A livraria mágica de Paris, de autoria da francesa Nina George, a autora, por meio de seu personagem Jean Perdu, define a função da livraria similar à de uma farmácia literária. Perdu nega-se a vender um livro quando percebe que não é aquele que a pessoa necessita. Por meio dos livros, o indivíduo, com seus problemas, dores, tristezas e incertezas, pode aí encontrar sua cura, ou, pelo menos, um paliativo (GEORGE, 2016). Leia Mais

La Modernité désenchantée. Relire l’histoire du XIXe siècle français – FUREIX; JARRIGE (H-Unesp)

FUREIX, Emmanuel; JARRIGE, François. La Modernité désenchantée. Relire l’histoire du XIXe siècle français. Paris: Éditions La découverte, 2015. 390 p. Resenha de: ROZEAUX, Sébastien. História [Unesp] v.35  Franca  2016.

Voici un ” essai historiographique ” voué à devenir un ouvrage de référence pour celui qui étudie, de près ou de loin, l’histoire de la France au XIXe siècle, en cela qu’il nous offre une recension précise et très informée de l’historiographie de ces trente dernières années. Ce tableau compréhensif de la recherche historique s’inscrit, et c’est là la grande vertu de ce livre-panorama, dans une histoire de la France qui s’écrit, de plus en plus, dans diverses langues et dans un dialogue accru entre des traditions historiographiques différentes. Cette attention accordée aux traditions française et anglo-saxonne, en particulier, a largement contribué à enrichir et complexifier, un peu plus encore, l’histoire d’un siècle sur lequel les historiens, en France et dans le monde, publié qu’aujourd’hui.

Cet ouvrage écrit à quatre mains paraît dans une nouvelle collection intitulée ” Écritures de l’histoire “, qui aspire à mettre en évidence ” la fabrique de l’histoire en train de se faire “, soit une attention particulière donnée aux conditions de la production du discours historique, passé et présent, ainsi qu’à ses usages dans l’espace public. L’ouvrage d’Emmanuel Fureix et de François Jarrige s’ouvre ainsi sur le constat amer d’une histoire du XIXe siècle dont l’ample renouvellement est contemporain de son éloignement dans les mémoires et les imaginaires, à mesure que les programmes scolaires, notamment, en atténuent ou édulcorent les traits les plus saillants, réforme après réforme. Or, dans le même temps, les deux auteurs constatent un certain regain d’intérêt pour ce XIXe siècle – dont l’historiographie récente porte la trace -; regain d’intérêt qu’ils relient, en particulier, à l’essor des mouvements de contestation contre la ” radicalisation du néolibéralisme “, en cours depuis les années 1980, contexte favorable, à leurs yeux, pour comprendre ” la quête incessante d’un autre XIXe siècle, à la fois plus réaliste et émancipé à l’égard des œillères héritées du passé ” (p. 37).

En effet, les deux historiens ont à cœur, dans cet essai, de mettre en évidence l’actualité du XIXe siècle, dès lors que celui-ci est restitué dans son irréductible complexité. Car, comme il est rappelé dans l’introduction, ” le siècle du progrès et de la modernité fut donc aussi celui des ambivalences, des inachèvements et des désenchantements ” (p. 10). Observateurs attentifs et enthousiastes de ce paysage ” luxuriant ” qu’offre le XIXe vu à travers le prisme de l’historiographie la plus récente, Emmanuel Fureix et François Jarrige ont l’ambition commune, tout au long des sept chapitres thématiques que compte l’ouvrage, de témoigner des vertus de cette attention nouvelle des historiens pour les arrangements, les discontinuités, les résistances et les expériences singulières qui ont permis de rompre avec une lecture trop linéaire ou téléologique du XIXe siècle.

Ainsi, l’ouvrage s’ouvre sur une relecture critique du siècle de la modernité advenue, ce ” macro-récit téléologique qui rend invisibles la richesse et la diversité des situations ” (p. 50). Le renouvellement concomitant de plusieurs champs historiographiques (parmi lesquels, l’histoire économique, celle des sciences, du travail ou encore rurale) permet d’offrir un tableau contrasté du siècle de la ” révolution industrielle “, dont la modernité affichée cache le plus souvent une réalité autrement plus complexe, faite d’accommodements, d’adaptations et de résistances, afin de dépasser le paradigme réducteur des prétendus ” archaïsmes ” d’une société en quête de ” modernité “.

Le livre fait ensuite l’inventaire des novations les plus remarquables en histoire culturelle, depuis l’histoire des sensibilités, jusqu’à l’histoire du livre et de la presse. Ces différents renouvellements historiographiques ont permis de prendre la mesure de l’ampleur et des limites des bouleversements d’un siècle marqué par l’émergence de la culture de masse, la démocratisation de l’éducation scolaire ou le ” triomphe du livre “. Sur ce dernier point, les deux auteurs s’attardent, à raison, sur l’étude très féconde des usages sociaux quotidiens du journal, qui ont contribué à renouveler en profondeur une histoire des appropriations de l’imprimé et des pratiques de lecture. Si l’essai se fait l’écho des nouvelles approches transnationales de l’histoire des intellectuels et de la circulation de la notoriété d’une œuvre ou d’un auteur, il est toutefois regrettable, ici, que les deux auteurs n’accordent pas la même attention au renouveau de l’histoire du livre et de l’édition. De nombreux travaux collectifs et internationaux, menés récemment, ont déjà établi qu’il était indispensable, désormais, de penser le livre et le monde de l’édition en France dans une perspective transnationale, connectée. Ce faisant, l’histoire des transferts et des circulations culturelles transatlantiques fournit des éclairages précieux sur une histoire culturelle qui entre en résonnance avec la mondialisation des phénomènes culturels, en cours au XIXe siècle – et en particulier entre les continents américain et européen.1

Par ailleurs, l’attention accrue des historiens à l’agency des acteurs a contribué au renouveau d’une histoire culturelle et sociale attentive, depuis le Linguistic turn, à historiciser les processus d’identification (individuel ou collectif) via l’analyse des constructions discursives dont, pour une part, ils résultent. En témoignent, par exemple, la nouvelle histoire du genre (appréhendée comme une construction sociale et culturelle de la différence des sexes), les débats autour de la question des identités sociales ou le renouveau des approches pour penser la construction du national – des réflexions que, là aussi, une attention nouvelle aux approches comparées et internationales ne manqueront pas d’enrichir plus encore à l’avenir.

Sur le versant politique, les auteurs rappellent la nécessité de ” rompre avec une histoire univoque de l’acculturation républicaine ” (p. 233) : la déconstruction du grand récit de la modernisation démocratique a mis en lumière les limites de la démocratisation, l’importance des résistances et l’extraordinaire diversité des voies de la politisation, au-delà du rôle encore limité de l’élection et du vote. La construction de l’État offre un autre champ de renouveau, par l’importance accordée à la réflexion socio-historique sur la progressive étatisation de la société, comme le permet, notamment, l’étude des ” nouvelles ingénieries du politique “, depuis l’essor de la statistique jusqu’au ” gouvernement des honneurs “. Une nouvelle histoire sociale de l’État et de ses agents, la réflexion sur le pouvoir régulateur de l’État vis-à-vis du marché et la mesure précise de son autorité au sein de la société sont autant de contributions pour penser à nouveaux frais la construction de l’État, l’étatisation des sociétés et ses limites.

Cette réflexion sur l’État et ses pouvoirs se trouve prolongée dans sa dimension impériale, puisque la colonisation est un champ d’études particulièrement fécond, en vertu des ” dynamiques pluridisciplinaires et transnationales ” et de ” la montée en puissance de l’histoire globale ” (p. 330). Dans la droite ligne des études postcoloniales, l’émergence d’une nouvelle histoire impériale a produit de nombreux travaux sur les mutations à l’œuvre au sein des sociétés métropolitaines et coloniales, par la mise en évidence de la complexité de leurs échanges et de leurs relations. L’imposition de l’ordre colonial sur les territoires colonisés se révèle être ainsi la source de violences protéiformes et de nouvelles inégalités, comme il produit des singularités remarquables, au prix de résistances et d’arrangements de ces sociétés soumises à ces formes inédites de la domination.

Historiens du XIXe siècle, Emmanuel Fureix et François Jarrige rappellent à travers cet essai les vertus d’une science, l’histoire, qu’ils envisagent comme la ” mise en scène de la pluralité des possibles à travers l’étude des sociétés passées et de la diversité des modes d’inscription dans le monde ” (p. 386). Et les deux auteurs d’énoncer, peut-être trop rapidement, les vertus émancipatrices de la science historique, en ces temps gagnés par le ” désenchantement ” et une ” insatisfaction ” anxiogène. J’ajouterai aux mérites de cet ouvrage, pour un public lecteur étranger, et notamment brésilien, celui de mettre en évidence la fécondité d’une histoire comparée à l’échelle internationale, compte tenu de l’intensification croissante de la circulation des hommes, des idées et des marchandises au XIXe siècle. Pour un spécialiste de l’histoire du Brésil à l’époque impériale, il ressort de la lecture de cet essai que l’histoire de la France au XIXe siècle, dont le dynamisme et le renouvellement sont ici brillamment exposés, doit désormais se lire et s’écrire dans sa dimension connectée et transnationale. De cette exigence découle aussi l’injonction faite aux spécialistes de l’histoire culturelle, sociale, économique ou politique, du Brésil en particulier et de l’Amérique latine dans son ensemble, à une plus grande attention à ces transferts, circulations (importations et exportations) et connexions auxquels le ” nationalisme méthodologique ” a longtemps fait obstacle. C’est par ce dépassement du carcan national dans l’écriture de l’histoire, en France et ailleurs, que les historiens peuvent prétendre in fine contribuer à produire collectivement une histoire mondiale ou atlantique des sociétés contemporaines.

1 Voir, en particulier: COOPER-RICHET D.; MOLLIER, J.-Y. Le Commerce Transatlantique de Librairie . Campinas/S.P: UNICAMP/Publicações IEL, 2012. ABREU M.; DEAECTO M. M. A Circulação transatlântica dos impressos [recurso eletrônico]: Conexões. Campinas, São Paulo: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2014. ABREU. M.; SURIANI DA SILVA A. C. (eds.). The cultural Revolution of the Nineteenth century . Theatre, the Book-trade and Reading in the Transatlantic World. Londres/New York: I. B. Tauris, 2016.

Sébastien Rozeaux – Docteur en histoire contemporaine. Centre de recherche sur le Brésil colonial et contemporain – Mondes américains. École des hautes études en sciences sociales, Paris. EHESS (Siège), 190-198 – Avenue de France – 75244 – Paris – CEDEX 13.

Les membres du Coetus Internationalis Patrum au Concilie Vatican II – ROY-LYSENCOURT (H-Unesp)

ROY-LYSENCOURT, Philippe. Les membres du Coetus Internationalis Patrum au Concilie Vatican II. Inventaire des interventions et souscriptions des adhérents et sympathisants. Liste des signataires d’occasion et des théologiens. Leuven: Peeters, 2014, 484p. Resenha de: CALDEIRA, Rodrigo Coppe. História [Unesp] v.34 no.2 Franca July/Dec. 2015.

A história do Concílio Vaticano II deu passos largos nos últimos anos. Depois do grande e ambicioso projeto levado a cabo por Giuseppe Alberigo, que resultou em cinco tomos da História do Concílio Vaticano II, grande número de pesquisas (FAGGIOLI, 2013, p. 927-955; SCATENA, 2013, p. 1-13; SCHICKENDANTZ, 2014, p. 105-141) foi desenvolvido sobre esse que é considerado um dos maiores eventos religiosos do século XX. Análises teológicas, historiográficas e sociológicas foram construídas a fim de ampliar a compreensão dos inúmeros aspectos do concílio e sua recepção. No Brasil, poucos estudos mais verticalizados de viés histórico foram realizados (BEOZZO, 2005COPPE CALDEIRA, 2011), especialmente quando os atores e sujeitos históricos analisados pertenciam à orbe dita “conservadora”, conceito polissêmico e quase desconhecido em sua complexidade por muitos scholars da área. Nesse caso específico, apenas o estudo deste pesquisador foi desenvolvido (COPPE CALDEIRA, 2012COPPE CALDEIRA, 2011ROUTHIER, 2013, p. 623-624). Os historiadores brasileiros do catolicismo contemporâneo, em sua grande maioria padres, religiosos e leigos ligados aos movimentos eclesiais que nasceram sob o influxo da Teologia da libertação, privilegiaram a abordagem dessa vertente da Igreja brasileira.

Se de um lado dos debates conciliares existia um importante brasileiro como Dom Hélder Câmara, congregado àqueles que se posicionavam em favor da distensão entre a Igreja e a modernidade, muito estudado e também louvado, de outro, desempenhando papel tão importante quanto ele no jogo de forças, encontrava-se Dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo de Diamantina, ligado à Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a TFP de Plínio Corrêa de Oliveira.

A obra apresentada, escrita e organizada por Philippe Roy-Lysencourt, tem o mérito primeiro, assim sendo, de trazer à luz do conhecimento histórico aqueles que tiveram papel de destaque no Vaticano II, reverberando suas ações e posições até os dias de hoje. Ela recolhe preciosas indicações sobre o Coetus Internationalis Patrum, o principal grupo de opositores no seio do concílio, organizado com o intuito de barrar e mitigar a força dos grupos que agiam em direção do aggiornamento (atualização) proposto por João XXIII.

Coetus, que se formou no processo e dinâmica conciliar, agiu incansavelmente a fim de minimizar os “danos no sistema”, que interpretavam estar em perigo. Os temas que mais os preocupavam, fazendo-os mover na busca de conquistar votos para as suas causas, foram a liberdade religiosa, o ecumenismo, a liturgia, a formação hierárquica da Igreja, o perigo comunista. Esse último teve como importante ator Geraldo de Proença Sigaud, que conseguiu recolher por volta de quinhentas assinaturas numa petição que solicitava a condenação explícita ao comunismo pelo texto conciliar. Não obteve o sucesso esperado, mas conseguiu a inserção de uma nota de pé de página na Constituição Pastoral Gaudium et spes com a indicação dos documentos pontifícios que assim faziam (nota 16). Outra vitória relativa das ações do Coetus foi aquela que acabou por gerar a Nota Explicativa Prévia na Constituição Dogmática Lumen gentium. Após duras discussões sobre as relações entre a colegialidade episcopal e o papa, com a proposta de texto final que desagradava o Coetus, o “Comitê diretor” do grupo pressionou o papa Paulo VI de várias maneiras e lhe enviou um comunicado dizendo que se o texto fosse aprovado daquela maneira, a plenitude do poder do Romano Pontífice poderia ser esvaziado. O papa cedeu e, preocupado com o máximo de consenso, mandou publicar a nota, que acabou por abalizar as interpretações vindouras do texto.

Roy-Lysencourt defendeu uma tese de doutorado memorável na Université Laval (Québec) sobre o grupo, seus principais personagens, sua pré-história, a atuação no concílio, as redes de contatos.1 Apresentando-nos uma quantidade espantosa de documentos, pesquisados em arquivos do Canadá, EUA, Europa e também Brasil, o historiador realizou um trabalho que se torna, sem sombra de dúvidas, junto da obra resenhada, referências fundamentais para os estudiosos não só do Coetus Internationalis Patrum, mas do concílio como um todo.

O livro em questão não traz análises verticalizadas sobre o grupo e sua atuação, que podem ser lidas na tese do autor, mas ampla documentação relacionada à história de sua formação e atividade durante o concílio. Contudo, a obra não deixa de trazer uma breve história do grupo, a fim de situar o leitor e justificar a organização do material. Como é possível ler no subtítulo, o historiador nos oferece, a partir das fontes pesquisadas, um inventário das intervenções conciliares, as subscrições daqueles que aderiram ao grupo, os simpatizantes, os assinatários de ocasião e os teólogos que deram sustentação intelectual a ele. Realizando uma prosopografia desses importantes atores conciliares, Roy-Lysencourt informa o percurso biográfico de cada um deles, aponta o número de intervenções realizadas (intervenções orais, animadversiones scriptae), as referências nas Actas Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II, e os temas abordados em cada uma delas, e também bibliografias complementares.

As inovações historiográficas apresentadas pela obra giram em torno da sistematização de fontes já conhecidas, porém não catalogadas em referência aos membros do Coetus, além da novidade que é trazer a lume esse grupo de padres conciliares numa perspectiva mais aprofundada, o que não tinha acontecido até o momento. Os pesquisadores que se enveredarem para a investigação sobre do grupo encontrarão na obra o nome de todos os seus componentes, o que facilitará, por exemplo, estudos que se interessem em reconstituir as redes de sociabilidade por trás do evento.

Os primeiros padres conciliares tratados fazem parte do que chama de “Comitê diretor”. Tratava-se de Mons. Marcel Lefebvre, Mons. Geraldo de Proença Sigaud, Mons. Antonio de Castro Mayer, Mons. Luigi Carli e de Dom Jean Prou. Com uma compilação de diferentes fontes, Roy-Lysencourt chegou a uma segunda categoria: “companheiros de estrada”. O autor reagrupa os participantes nessa categoria entre aqueles (membros) que participavam ativamente das reuniões e trabalhos do grupo e aqueles (simpatizantes) que aprovavam o essencial da política de combate do Coetus, participando ou não de algumas reuniões, assinando os modi propostos pelo grupo ou algumas intervenções dos membros do comitê diretor, sem, no entanto, se engajar em seu seio. A terceira categoria é a dos “Cardeais simpatizantes”, pois o seu engajamento e proximidade com o grupo não foi, em geral, da mesma ordem que aquela dos “companheiros de estrada”. Os “assinatários de ocasião” perfazem uma quarta categoria, qual seja, a de padres que assinaram uma ou outra intervenção proposta pelo Coetus, contudo sem pertencer a nenhum dos grupos anteriormente definidos. Roy-Lysencourt nos lembra que a assinatura de um padre conciliar numa petição ou documento difundido pelo Coetus não é absolutamente um critério suficiente para concluir sua pertença ou simpatia pelo grupo. Por fim, uma quinta categoria, “Os teólogos” (periti) que cooperaram com o Coetus de uma maneira ou outra. Destaca-se no grupo Victor-Alain Berto, peritus de Mons. Marcel Lefebvre.

A obra de Roy-Lysencourt é indispensável para os estudiosos do Concílio Vaticano II, já que dá voz àqueles atores que foram frequentemente rotulados e enquadrados em tipos de esquemas claramente maniqueístas, o que não ajuda na compreensão do evento, mas unicamente transparece os lugares políticos em disputa no período pós-conciliar. Os silêncios e os não ditos também não são objeto do historiador?

REFERÊNCIAS

BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II. 1959-1965. São Paulo: Paulinas, 2005. [ Links ]

COPPE CALDEIRA, Rodrigo. Os baluartes da tradição. O conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011. [ Links ]

COPPE CALDEIRA, Rodrigo. Os baluartes da tradição. O conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011. Resenhado por GONÇALVES, Marcus. História, v. 31, n. 1, jan./jun. 2012. [ Links ]

COPPE CALDEIRA, Rodrigo. Os baluartes da tradição. O conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011. Resenhado por LIBANIO, João Batista. Horizonte, v. 9, n. 24, p. 1197-1201, dez. 2011. [ Links ]

FAGGIOLI, Massimo. Council Vatican II. Bibliographical Survey. 2010-2013. Cristianesimo nella Storia, n. 34, p. 927-955, 2013. [ Links ]

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ROY-LYSENCOURT, Philippe. La préhistoire du Coetus Internationalis Patrum: une formation romaine, antilibérale et contre-révolutionnaire. In: ROUTHIER, G.; ROY-LYSENCOURT, P.; SCHELKENS, K. (dir.). La théologie catholique entre intransigeance et renouveau. La réception des mouvements préconciliaires à Vatican II. Leuven: Revue d’Histoire ecclésiastique, 2011, p. 321-354. [ Links ]

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1 Para uma ideia preliminar do trabalho que trata sobre a formação intelectual dos padres que farão parte do Coetus, ver: ROY-LYSENCOURT, 2011, p. 321-354.

Rodrigo Coppe Caldeira – Pós-Doutorado em Teologia (FAJE) e Doutorado em Ciências da Religião (UFJF). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Pós-graduação em Ciências da Religião. Av. Dom José Gaspar 500 – Coração Eucarístico – Belo Horizonte-Minas Gerais.

Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity – KELLY (H-Unesp)

KELLY, Christopher (org.). Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity. Cambridge/UK: Cambridge University Press, 2013. eBook. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel de. História [Unesp] v.34 no.2 Franca July/Dec. 2015.

Teodósio II governou o Império Romano do Oriente, já separado administrativamente da porção ocidental, por longos quarenta e dois anos (408-450 d.C.). Um dos primeiros registros que se dispõe da sua personalidade é fornecido pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla que o descreveu, no livro VII da sua História Eclesiástica, como “extremamente doce em comparação a todos os homens que estão sobre a terra”. Relatos dessa natureza, dentre outros do período, que chegaram até nós, certamente contribuíram para a construção, pela historiografia antiga e moderna, de uma imagem de desaprovação desse imperador. Nesses relatos, Teodósio II é associado a um governante ineficiente, fraco e suscetível de ser manipulado pelas redes de influências de poderosos cortesãos e bispos da hierarquia eclesiástica em construção.

Essa perspectiva negativa das ações de Teodósio II frente aos desafios que lhes foram apresentados foi, em grande medida, realçada pelos intermináveis conflitos teológicos protagonizados por diferentes facções episcopais que buscavam se afirmar como referência em ortodoxia a ser seguida. A sensação de caos que teria caracterizado aquele contexto, de acordo com algumas análises historiográficas, projetava uma falta de autoridade das ações imperiais na condução desses conflitos. Isso poderia, inclusive, ameaçar a sua posição de governante. Contudo, esse viés de análise tem sido reavaliado por pesquisas mais recentes que buscam encarar a documentação textual do período como artefatos discursivos retóricos de alta carga subjetiva. Como já alertava Jean-Michel Carrié (1999) – na introdução da obra conjunta com Aline Rousselle, L’Empire Romain en Mutation: des Sévères à Constantin – 192-337 – muitas vezes produzida em momentos de conflitos, a documentação do período, à primeira leitura, pode induzir o historiador a interpretar os acontecimentos em conformidade com as paixões partidárias das facções em confronto. Não podemos deixar de perceber, ainda, o interesse propagandístico que norteou a preservação e a transmissão desses documentos que, certamente, pode ter contribuído para enaltecer a imagem de aliados ou destruir a reputação de desafetos.

A proposta dessa obra ora resenhada, Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity (2013), conforme indica o seu organizador Christopher Kelly, não se trata de uma tentativa revisionista em ampla escala da reputação desse imperador. Trata-se, acima de tudo, de reavaliar os aspectos chave da política administrativa por ele conduzida, em conjunto com seus auxiliares mais próximos. As estratégias implementadas a partir dessa colaboração possibilitou a sua permanência como o governante que por mais tempo administrou o império, a despeito das deficiências que lhes são atribuídas. Além de trazer importantes considerações sobre o governo de Teodósio II, na sua apresentação da obra, Kelly faz uma abrangente revisão historiográfica acerca do período teodosiano e estabelece um rico diálogo com e entre os capítulos subsequentes, assinados por historiadores de destaque no tema.

Esse objetivo de releitura do governo teodosiano muito vem a contribuir para o entendimento mais amplo do período que se convencionou chamar de Antiguidade Tardia. Essa periodização, atualmente melhor estabelecida entre meados do século III até o século VIII d.C., busca observar as transformações pelas quais passou a sociedade romana nas diferentes esferas da vida social, política, econômica e cultural. Desse modo, ao até então propalado “declínio e queda” do império descortina-se novos modos de enxergar o período como num momento rico em possibilidades de análises e singular em relação ao período clássico precedente e ao medievo que o sucedeu. A presente obra contribui para esse novo olhar a partir de uma leitura enriquecedora da documentação explorada, que em muito pode contribuir para as reflexões dos pesquisadores que trabalham com diferentes tipos de textos produzidos no período. Como exemplo de documentos trabalhados na presente obra citamos o Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum, as Histórias Eclesiásticas, asNovellae (novas leis emitidas entre 438 e 441), os Acta Conciliorum Oecumenicorum,Panegíricos, dentre outros.

Nesse sentido, além do Capítulo 1 introdutório, que compõe toda a Parte I do livro, de autoria do organizador, Christopher Kelly, seguem-se mais dez capítulos, divididos em três diferentes áreas de interesses. A Parte II, intitulada Arcana imperii (Capítulos de 2 a 5), busca analisar os problemas de se construir um relato satisfatório da complexa dinâmica política do império e, em particular, o papel e a influência dos grupos que competiam na Corte em Constantinopla. Na Parte III,Past and present (Capítulos de 6 a 8), são expostas algumas preocupações contemporâneas dos autores teodosianos no sentido de apresentar uma retórica de unidade do império que, de fato, já se encontrava dividido política e administrativamente. A Parte IV, Pius princeps (Capítulos de 9 a 11), explora as dificuldades de apresentar, louvar e relembrar uma imagem de Teodósio II como um pio governante cristão.

Afunilando as três áreas de interesses acima citadas, no Capítulo 2 intituladoMen without women: Theodoisus’ consistory and the business of government, Jill Herries indica sua percepção, a partir da análise do Código Teodosiano, da forma colegiada com que as decisões eram tomadas na Corte imperial em Constantinopla. Ao estabelecer diálogo com a obra de Kenneth Holum,Theodosian Empresses: Women and Imperial Dominion in Late Antiquity, de 1982, a autora minimiza a ascendência atribuída àAugusta Pulquéria, irmã mais velha de Teodósio II, como canal de influência poderoso nas decisões tomadas na Corte. Para ela, a dinâmica dos grupos de interesses em uma Corte multipolar, cujos membros eram prestigiados pelo imperador, é uma resposta à estabilidade do governo teodosiano. No Capítulo 3, Theodosius and his generals, Doug Lee percebe a mesma estratégia imperial de privilegiar a diversidade no campo militar em consonância com o que indicou Harries na sua análise sobre o Consistorium. Lee observa que a inexistência de tentativas a usurpações pode estar relacionada à escolha de generais portadores de diferentes visões político-religiosas. A análise prosopográfica por ele empreendida identificou generais não cristãos, arianos e de outras tantas formas de cristianismos que interagiam na sociedade romana do período. Essa estratégia dinástica teodosiana teria tido o efeito de dissuadir as ambições de ascensão de qualquer desses generais ao comando do poder imperial.

No capítulo 4, Theodosius II and the politics of the first Council of Ephesus, Thomas Graumann analisa duas comunicações oficiais do imperador (sacrae) e uma carta dirigida ao bispo Cirilo de Alexandria. Nesses documentos, Graumann indica como, na perspectiva imperial, o primeiro Concílio de Éfeso, reunido em 431, foi conduzido por funcionários imperiais no sentido de dar uma percepção de unidade à Igreja a despeito do relacionamento tenso entre os vários grupos de interesse, de modo que nenhuma facção emergisse dominante. Encerrando essa segunda parte, no Capítulo 5, Olympiodorus of Thebes and eastern triumphalism, Peter Van Nuffelen destaca como o cronista não cristão Olimpiodoro, cuja obra foi perdida, mas resumida por cronistas posteriores, oferece um valioso relato dos eventos ocorridos no Ocidente entre 407 e 425. Ao buscar descrever sua percepção de instabilidade reinante na porção ocidental, Olimpiodoro o faz em contraste com a construção de uma imagem de um império oriental estável. Nesse sentido, Nuffelen inova ao mostrar como Olimpiodoro, ao escrever sua história do Ocidente tendo como espelho o Oriente, contribuiu para difundir uma ideologia triunfalista e integradora do império oriental teodosiano.

No Capítulo 6, Mapping the world under Theodosius II, Giusto Traina percebe como além do Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum – documento que elenca a estrutura administrativa civil e militar tanto do Oriente quanto do Ocidente – serviu a propósitos propagandísticos como expressão da importância que o regime teodosiano dava a uma ideia de Império Romano como estrutura unitária, embora tal unidade fosse apenas virtual. No contexto da sua elaboração (datada em torno de 401 para a parte oriental e atualizada na década de 420 no Ocidente), a Notitiabuscava oferecer uma visualização ideológica do poder imperial em termos geográficos. No Capítulo 7, “The insanity of heretics must be restrained”: Heresiology in the Theodosian Code, Richard Flower explora os tratados de heresiologia como oDe haeresibus, de Agostinho de Hipona, e oPanarion, de Epifânio de Salamina, e os compara com um pronunciamento de Teodósio II, emitido em 428, e preservado na forma de lei com o títuloDe haereticis no Código Teodosiano 16.5.65. De acordo com Flower, embora esses tratados de literatura técnica, para ele fonte de conhecimento mais seguro e confiável, tenham em alguma medida inspirado a lei de repressão aos heréticos inscrita no Código Teodosiano 16.5.65, essa legislação deve ser lida no contexto da sua aplicação. Esse cuidado decorre da prevalecente tendência de condenação de oponentes teológicos visando à criação de uma autoridade religiosa durante o governo de Teodósio II. Ou seja, o autor busca demonstrar uma seletividade no momento da aplicação da lei.

Finalizando a terceira parte do livro, no Capítulo 8, Classicism and compilation, interaction and tranformation, Mary Whitby nos fornece uma interessante análise de como os textos da literatura grega do século V d.C. estabeleceram interação com os gêneros clássicos. Para ela, essa tendência estava associada a crescente importância do cristianismo na sociedade romana. Whitby analisa uma pletora de gêneros literários como as Vidas, orações fúnebres, a História Lausíaca, osflorilegia, diálogos, enciclopedismos, paráfrases bíblicas e histórias eclesiásticas. Tais análises buscam observar a riqueza da produção literária durante o governo de Teodósio II, bem como a forma flexível e criativa com que os autores cristãos estabeleceram diálogo com as formas literárias do passado no sentido de dar autoridade aos seus escritos através uma retórica refinada.

No Capítulo 9, Stooping to conquer: the Power of imperial humility, Christopher Kelly novamente trás sua contribuição através da análise das cerimônias de humildade imperial (como ex. transferência de relíquias de mártires, longas procissões lideradas pelo imperador com pés descalços). Na sua leitura, tais acontecimentos estavam relacionados a estratégias orquestradas em que cerimônia religiosa e ideologia imperial se uniam tanto para dar sensação de proximidade com os cidadãos como para promover a piedade imperial. Estabelecendo um diálogo entre os panegíricos escritos no período com o Panegírico a Trajano, de Plínio o Jovem, Kelly demonstra como essas atitudes de humildade paradoxalmente aproximavam a família imperial de seus súditos e, ao mesmo tempo, acentuava a distância entre governante e governados com o intuito de justificar e legitimar a autocracia imperial. No Capítulo 10, The imperial subject: Theodosius II and panegyric in Socrates’ Church History, Luke Gardiner considera os problemas encarados pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla na sua escrita sobre o regime teodosiano, ao qual era contemporâneo, particularmente em termos da reivindicação pública de piedade imperial. Gardiner observa uma estratégia similar adotada por Sócrates de Constantinopla, em sua História Eclesiástica, àquela adotada por Eusébio de Cesareia quando escreveu sobre o imperador Constantino. Os destaques e as habilidades atribuídas ao imperador, nesses panegíricos, serviam como estratégia para nuançar julgamentos de reprovação das decisões imperiais, em vista do risco de se criticar um imperador que ainda se encontrava no poder.

Encerrando essa quarta parte e finalizando a obra, o Capítulo 11, sob o títuloTheodosius II and his legacy in anti-Chalcedonian communal memory, Edward Watts analisa a forma como o governo de Teodósio II foi avaliado em quatro textos egípcios escritos entre os séculos V e VIII d.C.: o Plerophories, de João Rufus, a História de Dióscoro, do Pseudo-Theopistus, asCrônicas, de João de Nikiu e o Synaxary – um catálogo que lista os santos comemorados em cada dia do calendário egípcio. Watts observa que a tendência desses textos em realçar aspectos positivos do governo de Teodósio II, descrevendo aquele momento como o auge do império cristão e o paraíso da ortodoxia, tinha por estratégia estabelecer um contraste com o governo do imperador Marciano (450-457). No Concílio de Calcedônia, em 451, cujas decisões foram respaldadas por Marciano, ficou definido a natureza dual do corpo do Cristo encarnado, decisão essa que colidia com a doutrina que apregoava a união dessas naturezas, bastante popular na tradição egípcia e inspirada nos ensinamentos do bispo Cirilo de Alexandria.

Em vista da riqueza das temáticas analisadas, bem como a originalidade com que a documentação textual é trabalhada nos diferentes capítulos, consideramos que a presente obra passa a se constituir referência para os estudiosos dispostos a enfrentar os desafios de melhor entender o governo de Teodósio II. A grande quantidade de documentos remanescentes desse período encontra-se a espera de outras tantas abordagens instigantes como as que foram oferecidas nessa coletânea. Esse livro certamente trará, também, valiosas contribuições a todos os pesquisadores que se debruçam sobre o recorte cronológico denominado de Antiguidade Tardia, assim como aos historiadores em geral por seu caráter inovador na leitura da documentação.

Daniel de Figueiredo – Doutorando em História Antiga. Programa de Pós-graduação em História da Faculdade Ciências Humanas e Sociais. UNESP – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca – Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, n. 900, CEP: 14409-160, Franca, São Paulo, Brasil. Bolsista FAPESP.

Boko Haram: Islamism, politics, security and the state in Nigeria – CHOUIN (H-Unesp)

CHOUIN, Gérard (org.). Boko Haram: Islamism, politics, security and the state in Nigeria. Leiden: Marc-Antoine Pérouse de Montclos, 2014. 275p. Resenha de: WENCZENOVICZ, Tahís J. História [Unesp] v.34 no.1 Franca Jan./June 2015.

Trata-se esta de uma obra que reúne pesquisadores de universidades africanas, europeias e norte-americanas e que tem como escopo refletir sobre a atuação, formação e surgimento do movimento denominado Boko Haram. As investigações levadas a cabo inserem-se numa ação conjunta do Centro de Estudos Africanos e do Instituto Francês de Pesquisa na África e se dividem em duas partes – parte I, composta por 6 artigos, e parte 2, por 5. No total, estão inseridos 16 pesquisadores como colaboradores. A introdução foi escrita por Marc-Antoine Pérouse de Montclos, doutor em Ciência Política, professor no Instituto Francês de Geopolítica da Universidade de Paris e especialista em conflitos armados na África do Sul. O conjunto de autores que integram a obra possui larga experiência em temáticas como: militarismo, terrorismo, violência e religião, insurgência, militância e radicalização. Enquanto formação, há uma variedade na especialidade – como Ciência Política, Filosofia, História, Antropologia – porém tudo converge para a mesma temática na trajetória de pesquisa.

Essa observação faz-se necessária para justificar a extensão da obra – 275 páginas – bem como o ineditismo no uso de fontes e espaços de pesquisa. É necessário registrar que, já no prefácio, o organizador aponta uma das principais objeções encontradas pelos autores: a dificuldade em se aproximar das fontes, considerando-se que parte dos acervos encontram-se sob domínio dos líderes do movimento e esses, em sua maioria, acompanham de forma direta os movimentos bélicos da região. Marc-Antoine Pérouse de Montclos assim complementa:

Escrever sobre Boko Haram é uma tarefa difícil, já que os investigadores têm em alguns momentos o acesso limitado à informação em primeira mão. De fato, os investigadores estrangeiros e nacionais atuam geralmente com a sua segurança não garantida. Recentemente, como o núcleo do conflito migrou de Maiduguri, capital do Borno, para o interior da Nigéria, às margens do Lago Chade e ao longo da fronteira de Camarões, as informações disponíveis sobre o conflito tornaram-se ainda mais escassas.Tais dificuldades contrastam com a demanda urgente do público nigeriano e a comunidade internacional tanto para análises inteligíveis da situação como criar formas concretas e científicas para compreender o conflito (p.7).

Como temática, falar em Boko Haram quase dispensa justificação, devido a seu ineditismo. É uma boa oportunidade para compreender a história e a dinâmica do movimento que tem provocado uma onda de violência na África e com fortes indícios de ligação com o terrorismo mundial. Desde 2003 ocupando as manchetes internacionais, os grupos associados ao extremismo religioso e ao militarismo têm inquietado nações e líderes mundiais, especialmente os ditos “Ocidentais”. Paradoxalmente, é visto e representado na imprensa como um movimento incansável, numeroso, mas que atua de forma clandestina e invisível.

Termos como Al-Qaeda, Jihad e Taliban são usados como sinônimos dos movimentos tidos na África e em diversos países do Oriente e demais regiões, às quais faltam estudos para avaliar cada um desses conflitos dentro de sua especificidade. Esta é a tônica dessa obra: investigar Boko Haram a partir de um viés político, sociológico, religioso e antropológico. No decorrer dos capítulos também se propõe investigar como o islamismo radical desestabilizou o Estado, a sociedade civil, desafiando sua laicidade no decorrer do último século. Em uma sociedade pluralista, a jihad do Boko Haram levanta muitos questionamentos em relação a sharia, liberdade de religião, choque de civilizações e à perspectiva de uma guerra civil com os cristãos. No entanto, todas estas questões como a guerra contra o terrorismo, armamento da população, violência extremada e extermínio de algumas minorias e até conceitos e explicações de termos usados sem a devida historicidade pela imprensa são encontradas e diluídas no decorrer dos 11 artigos que compõem o livro. Após essas observações gerais, passam-se a indicar o objetivo e a temática de cada texto.

O primeiro artigo, intitulado The message and methods of Boko Haram e escrito por Kyari Mohammed, explica o surgimento do Boko Haram como milícia e seu reconhecimento pelos demais grupos organizados na Nigéria e outras regiões da África. Também demonstra sua evolução como célula social e suas relações com as elites econômicas e políticas local.

O Boko Haram surgiu de um pequeno grupo de militantes islâmicos que abertamente desafiando o Estado nigeriano entre dezembro de 2003 e outubro de 2004, adquiriu a simpatia da população e buscou construir sua identidade. Posteriormente, uniram-se com o grupo Mohammed Yusuf, que havia retornado do exílio auto-imposto na Arábia Saudita até 2009, momento a qual o movimento adquiriu uma posição de associação a extrema violência com os inimigos e ostentando boas condições militares. O grupo evoluiu, remodelado em si, e também mudou suas táticas e estratégias em resposta ao Estado de alta-handed […]. Moveu-se a partir dessa fase acompanhado de discursos inflamados para a fase de luta armada e busca de adeptos (p. 9).

O segundo texto, denominado Christian perceptions of Islam and society in relation to Boko Haram and recent events in Jos and northern Nigeria, escrito pelo professor nigeriano Henry Gyang Mang, busca identificar as várias percepções e perspectivas dos Cristãos em relação ao Islã na Nigéria contemporânea, considerando fatores como identidade, geografia e do exercício de possível alteridade entre os grupos. Mang apresenta as quatro pricipais divisões em que o Cristianismo na Nigéria está assentado e traça paralelos com base em questões que envolvem o Islã. Estas divisões apresentaram várias mudanças com base em sua historicidade e as compara com os atuais impasses. E, embora ele se diga conclusivo, ao término do texto desafia o leitor com a seguinte afirmação: Os cristãos têm um único ponto geral, de vista sobre os “corredores sangrentos” do Islã, a violência crescente. Os conflitos entre cristãos e islâmicos criou uma atmosfera em que a retórica pode facilmente deslizar para chamadas de vingança, mesmo quando não há lógica alguma para que ela se efetive.

O terceiro artigo, Boko Haram and its Muslim critics: Observations from Yobe State, elaborado por Johannes Harnischfeger, inicia-se conceituando e justificando a sharia – nome que se dá ao Direito Islâmico. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário da maioria das sociedades ocidentais, não há separação entre religião e direito, todas as leis são religiosas e baseadas nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos que se transformam em jurisdição. A campanha para transformar o Estado e a sociedade com base na sharia foi iniciada por políticos muçulmanos em 1999, quando o regime militar terminou e o poder deslocou-se para o Sul cristão. Embora a campanha tenha sido principalmente uma questão de política, estendeu-se para a questão religiosa. Homens e mulheres foram recrutados para o processo de islamização do Estado. Nesse artigo também é possível encontrar a formação e relações estabelecidas pelo Boko Haram até meados de 2014, bem como a figuração das mulheres nessa seara de incertezas sociais e violência.

Como já apontado, sabe-se que, oficialmente, o Boko Haram afirma que luta pela sharia, combate a corrupção do governo, a falta de pudor das mulheres, a prostituição e outros vícios. Segundo eles, os culpados por esses males são os cristãos, a cultura ocidental e a tentativa de ensinar algo às mulheres e às meninas. Segundo os líderes do Boko Haram, o sequestro eventual das meninas pelas milícias tem por intenção permitir que elas comecem uma vida nova – como servas.

A sharia virou lei no norte, que tem uma maioria muçulmana. O sul, com a maioria cristã, não aceita a sharia, e dessa posição nasceram os primeiros conflitos. O governo e a capital ficam no sul, mas por causa dos inúmeros conflitos, ameaças e crescimento dos fiéis islâmicos, o número total dos muçulmanos já ultrapassou o dos cristãos, e por isso o Boko Haram exige a sharia para o país inteiro.

Traditional quaranic students (ALMAJIRAI) in Nigeria: fair game for unfions air accusati, escrito por Hannah Hoechner, coteja o quarto artigo e discorre sobre a dificuldade de acesso à educação básica das crianças, adolescentes e jovens na Nigéria e região, o que levaria parte desses cidadãos a, consequentemente, engrossar as fileiras do movimento de islamização. Os alunos que ingressam no ensino formal têm sido debate da comunidade científica nigeriana e também de organismos internacionais, na tentativa de universalizar o ensino primário e permitir uma condição de vida que reforce o princípio da dignidade humana. Por outro lado, muitos pesquisadores também têm discutido como esses jovens têm servido às milícias na condição de potenciais soldados voluntários que se integram rapidamente ao contexto do Boko Haram.

O próximo texto é escrito por Henry Gyang Mang, intitulado Christian perceptions of Islam and society in relation to Boko Haram and recent events in Jos and northern Nigeria. Ele afirma que o conflito religioso na Nigéria tem girado em torno das duas principais matrizes religiosas: o cristianismo e o islamismo. O crescimento de ambas matrizes religiosas enquanto poder temporal tem influenciado as agremiações político-ideológicas. Por outro lado, evidencia-se também o surgimento de dissidências internas que acabam fomentando grupos disponíveis a comporem parcerias entre o poder religioso e político. Esse cenário foi agravado com o surgimento do Boko Haram, um fenômeno que tem adicionado novas perspectivas ao discurso sobre religião e à unidade nacional na Nigéria.

No decorrer do texto, o autor apresenta as várias percepções e perspectivas dos Cristãos em relação ao Islã na Nigéria contemporânea, considerando-se fatores como identidade, geografia e o crescente dinamismo na crença e na doutrina cristã em relação “ao outro”. Ele argumenta que há quatro divisões principais pelas quais evoluiu o Cristianismo na Nigéria, com base em questões que envolvem o Islã, num misto entre disputas e remodelações.

O sexto artigo é escrito por Portia Roelofs e denominado Framing and blaming: Discourse analysis of the Boko Haram uprising. A autora realiza análise de discurso a partir do recorte de reportagens no período de cinco semanas, num exercício de acompanhar os principais movimentos do Boko Haram no processo de islamização do Estado e enfrentamento das questões “ocidentais” mediante dois periódicos. Das reportagens analisadas, Roelofs inclui o discurso do Socio-Economic, que defende o Estado como provedor do desenvolvimento, ao passo que o discurso político da Agência postula o Estado como provedor de ordem. O discurso estrutural religioso enfatiza o Estado de papel secular na contenção expansionista do Islã. Em outra fonte, o periódico Agência Religiosa sugere o Estado como elemento integrador entre o Islã, Estado e demais religiões. Nesse artigo pode-se observar o uso das mídias em prol das disputas religiosas, com destaque ao Boko Haram.

A sétima parte, escrita por Marc-Antoine Pérouse de Montclos Boko Haram and politics: from insurgency to terrorism com base no caso de Boko Haram, ou Jama’atu Ahlis-Sunnah Wal Lidda’awati Jihad, apresenta uma discussão geral sobre a relação entre o Islã e a política na Nigéria. Ao contrário do Hamas na Palestina, Hezbollah no Líbano ou os Irmãos Muçulmanos no Egito, o Boko Haram não é classificado nem como um partido político nem como uma rede de caridade. Segundo Montclos, torna-se político porque ele contesta valores ocidentais, desafia a laicidade do Estado nigeriano, e revela a corrupção de uma “democrazy” que depende de uma elite dominante – classe política – a qual desmoraliza a ação dos homens de bem.

Acrescenta também que o grupo terrorista tem como objetivo acabar com a democracia na Nigéria, concretizar o processo de islamização e promover a educação exclusivamente em escolas islâmicas. Observa-se que essas metas são efetivadas aos poucos se levarmos em conta que, no dia 25 de dezembro de 2011, cerca de cinco ataques a bomba em várias cidades da Nigéria causaram pelo menos 40 civis mortos e um policial ferido. O primeiro ataque aconteceu nos arredores da capital Abuja, o segundo, na cidade de Jos, no centro do país, o terceiro, na cidade de Gadaka, no nordeste, e os outros dois na cidade de Damaturu, no norte. Os alvos foram igrejas católicas durante a celebração da Missa do Galo após a Véspera de Natal.

A segunda parte, composta de 5 artigos e que tem como título Boko Haram and the nigerian state: a strategic analysis, inicia-se com o texto de Marc-Antoine Pérouse de Montclos, momento em que o autor busca a genealogia e a nomenclatura de Boko Haram, sua formação histórica e discute elementos de categorização e enquadramento desse nas funções religiosas e políticas.

A partir de fontes jornalísticas e acompanhamento de boletins do movimento e das guerrilhas, o autor pergunta: por que a Nigéria nunca teve um partido político religioso, seja islâmico ou cristão? O autor também compara outros Estados que possuem ou negaram essa composição, como Abuja, Sudão, dentre outros.

O próximo artigo, chamado Boko Haram and the evolving Salafi Jihadist threat in Nigeria, editado pelo autor Freedom Onuoha, apresenta a evolução em número e força do Boko Haram paralelizando as ações tomadas pelo Estado nigeriano e demais organizações para conter a violência das milícias junto à sociedade civil. Segundo o autor, ao longo dos últimos três anos o Boko Haram tem ganhado espaço também na mídia nacional e internacional por marcar suas ações com elevado grau de violência. Onuoha afirma que a causa central desta violência em expansão é a corrupção, a pobreza extrema e a falta de perspectivas de uma grande maioria da população nigeriana. Os extremistas têm poucas dificuldades de recrutar apoiantes, por exemplo, eles podem ser encontrados entre as multidões de jovens desempregados. Também afirma que o Boko Haram tem apoiantes em todas as camadas da sociedade nigeriana, incluindo-se os antigos ditadores, salafitas ricos e membros ativos em cargos elevados do Governo.

Para reduzir sua capacidade operacional, o governo nigeriano adotou várias medidas de contrainsurgência. Apesar dos esforços do governo, o grupo continuou a operar ataques no norte da Nigéria com o intuito de ingressar na região sul e ampliar seu prestígio e reconhecimento, bem como atingir seu objetivo central: criar um estado islâmico com base no modelo dos Talibãs Afegãos. A estratégia seria “libertar” o norte da Nigéria dos cristãos e depois, o resto do país. O terror tem como alvo não apenas os cristãos, mas também os muçulmanos moderados e seu clero. Outros alvos incluem políticos que defendem a paz e a reconciliação, professores, jornalistas, agentes da polícia e membros do exército.

Na sequência, o texto By the numbers:the Nigerian State’s efforts to counter Boko Haram, escrito por Rafael Serrano e Zacharias Pieri, examina a interação entre a insurgência e contrainsurgência no nordeste da Nigéria. Analisa também a eficácia das políticas públicas de segurança na tentativa de frear a insegurança da população e de dissipar a violência causada por atos extremistas do Boko Haram. Os pesquisadores analisam com bases estatísticas se as ações desenvolvidas pelo estado inibem ou corroboram a violência, tendo por base as diversas campanhas desenvolvidas pelo poder público no enfrentamento à violência extremada.

Para fazer isso, utilizam-se de dados compilados pelos órgãos oficiais e de organismos internacionais que comparam a quantidade de campanhas desenvolvidas pelo governo nigeriano, mortes de militares e civis, investimento em armamento e a viabilidade de manter ou não as ações coordenadas com verbas públicas.

O último texto, redigido por Gérard Chouin, Manuel Reinert e Elodie Apard, intitula-se Body count and religion in the Boko Haram crisis: Evidence from the Nigeria Watch database e propõe analisar a identidade “civil e religiosa” das vítimas do Boko Haram. Muitos foram os ataques repentinos, às vezes não planejados, mas regados de muita violência. Somente em 2014, 340 soldados foram abatidos nas ruas. O Governo afirma não saber o que fazer ou tem medo de enfrentar as figuras influentes que atuam nos bastidores, porém o tamanho das ações militares e atentados supera o passado. Após 2012, o Boko Haram opera com caminhões e carros blindados, cercando vilas cristãs que ainda existem no norte da Nigéria, e mata a população inteira. As mulheres têm sido alvo frequente dos extremistas.

Vários ataques foram feitos a escolas onde estudam meninas, pelo simples motivo de os islamistas serem contrários a qualquer grau de instrução ser oferecido a elas. Muitas dessas foram capturadas e levadas para serem violentadas pelos guerrilheiros (estupro e atentado ao pudor). Também há casos em que são presas pelos milicianos e liberadas para toda a população muçulmana estuprá-las.1 Nesse cenário, o Boko Haram aumenta sua popularidade e visibilidade. O ataque mais comentado aconteceu no dia 15 de abril de 2014 em Chibok, no Estado de Borno, onde a população foi morta ou fugiu, e mais de 200 meninas entre 7 e 15 anos, alunas de uma escola, foram capturadas e levadas pela milícia. No início, as fontes falaram em 100 meninas, mas dois órgãos da imprensa oficial da Nigéria apontaram o total de 234 vítimas, que foram levadas em grupos pequenos a vários locais e, a partir da apreensão seguida de sequestro, não mais retornaram à vida coletiva.

Á guisa de conclusão, com base no exposto tem-se uma noção consistente e ampla acerca da temática, e, sem dúvidas, há profícuas razões para lê-la.

1 As meninas geralmente são estupradas com base na aya 33.50 do alcorão até aceitarem virar muçulmanas e casarem com um dos seus torturadores. As que se recusam ao casamento, após algumas semanas são liberadas, mas antes de saírem da casa é costume lixar o mamilo direito da vítima na soleira da porta até ele desaparecer. Às vezes também partes da genitália ou mamas são cortadas.

Thaís Janaina WenczenoviczUniversidade Estadual do Rio Grande do Sul, Contato: [email protected].

Crime et Châtiment au Moyen Âge (Ve-XVe siècle) – ROUREILLE (H-Unesp)

TOUREILLE, Valérie. Crime et Châtiment au Moyen Âge (Ve-XVe siècle). Paris: Éditons du Seuil, 2013. 329 p. Resenha de: TEODORO, Leandro Alves. História [Unesp] v.34 no.1 Franca Jan./June 2015.

Uma carta de remissão, elaborada pela chancelaria régia da França no início do século XVI, reporta que o barbeiro Guilherme Caranda, ao final da procissão de corpus Christi na cidade de Senlis, ouviu, na porta de casa, o serralheiro Claude Caure proferir aos gritos várias palavras obscenas e blasfemadoras. Segundo a peça, “numa explosão de raiva”, Caranda – que não era considerado “muito dócil” – teria reagido imediatamente às provocações verbais, retirando uma faca do bolso para golpear o olho esquerdo do blasfemador. Embora este serralheiro tenha protegido seu rosto com a mão, não se estancava a ferida aberta em seu corpo pelo corte, e, por falta de curativo ou cuidados médicos, veio pouco tempo depois a óbito. Com a notícia do assassinato espalhada pela cidade, o barbeiro, temendo algum tipo de repressão por parte das autoridades, fugiu da França para algum lugar não informado. Em 1530, depois de o crime ter sido investigado pelo poder régio, Guilherme Caranda foi inocentado.

A partir dos séculos XIV e XV, num período em que o poder régio passa a julgar com mais regularidade os crimes de homicídio cometidos em diferentes cantos da França, muitos outros homens foram inocentados ou condenados por pareceres emitidos por monarcas. Partindo da análise de casos semelhantes ao julgamento de Caranda, a historiadora Valérie Toureille,1 mestre de conferência da universidade Cergy-Pontoise, procura esquadrinhar, na obra Crime et Châtiment, não apenas um repertório de crimes ou os diferentes tipos de julgamentos que ocorriam na Idade Média, mas também os limites tolerados para a prática da violência física nesses tempos. A história sobre o crime e o castigo que propõe é enriquecida com várias passagens em que investiga o emprego realizado pelos medievos de termos como “homicídio”, “delito”, “inquérito” e “pena”. Dito de outro modo, tomando como alvo o vocabulário da época, a pesquisadora sugere que o fio condutor de seu livro é investigar como, na Idade Média, os juristas e outros letrados descreviam o que entendiam por crime e justiça. A história dos crimes de Toureille está amparada, pois, na convicção de que os diálogos entre o passado e o presente não podem deixar de respeitar a peculiaridade de cada tempo, bem como de que a sensibilidade humana em relação à violência e ao medo é tão histórica e presa aos limites de cada época quanto os inquéritos criminais ou o próprio processo de solidificação dos jogos de poder.

Toureille procura descontruir a impressão – que, segundo ela, está cristalizada no senso comum do homem moderno – de que a violência física era um grave empecilho para o ordenamento social na Idade Média; alega que a percepção que os juristas desse período tinham do mundo era diferente da nossa, por defenderem, por exemplo, tanto a aprendizagem do uso de armas como indispensável para a vida, quanto o assassinato de caluniadores ou blasfemadores como prática necessária para a manutenção da harmonia entre os cristãos. Deslizando por diferentes tipos de documentos, como códigos legislativos e crônicas, a historiadora considera que, ao contrário dos nossos tempos, a Idade Média teria sido um período em que os homens aprendiam a conviver diariamente com a violência física, pois as cidades e as estradas eram lugares repletos de ladrões, assassinos e estupradores. Ao longo do livro, é recorrente, portanto, a ideia de que o cristão estava habituado com cenas de agressão que seriam hoje certamente condenadas, mas que, naquela época, poderiam ser toleradas ou, dependendo do caso, aceitas sem nenhum tipo de repressão pública.

Toureille também chama atenção para o fato de que, nos dias de hoje, é bastante comum ouvir que, na Idade Média, enquanto os camponeses e os clérigos seriam pessoas sem coragem para tomar qualquer atitude violenta, os guerreiros aristocráticos se notabilizariam pelo uso excessivo da força física. Para contrapor tal opinião, ela mostra, a partir de relatos da época, que camponeses e religiosos precisavam aprender a utilizar instrumentos cortantes que carregavam consigo, já que a falta de segurança nas estradas e ruelas das cidades os obrigava a saber se defender de saqueadores. Aliás, Toureille não deixa de afirmar que, malgrado as diferenças entre um camponês e um guerreiro, o varão leigo de todos os grupos sociais era ensinado a demarcar seu território e a impor respeito pela força física. Na visão dela, uma diferença substancial, contudo, era que os nobres possuíam melhores condições do que os camponeses, tanto para se organizar em bandos e se munir de armas, quanto para realizar saques em diferentes lugares. Ao mirar a desconstrução de opiniões de não especialistas acerca da Idade Média, a pesquisadora também defende que a prática de crimes, ao contrário do que já tinha ouvido, estava longe de ser exclusiva dos homens. Analisando algumas peças criminais em que mulheres eram acusadas por roubo de alimentos, panos e outros objetos domésticos, mostra que o crime era banalizado, a ponto de diferentes tipos de cristãos chegarem a cometê-lo, independentemente da condição social e do gênero.

Tourreille não deixa de ressaltar, do mesmo modo, que a escala de crimes hediondos de nossos tempos é diferente do quadro de delitos condenados na Idade Média. Por exemplo, ela afirma que hoje não há na França qualquer espécie de legislação penal para crimes que firam o primeiro mandamento (amar a Deus sobre todas as coisas), mas naquela época, um jurista consideraria, pois, muito mais grave a injúria ao nome de Cristo do que o assassinato em legítima defesa. Explorando os limites da prática do homicídio e da aceitação da violência, Toureille esmiúça códigos de honras e os costumeiros franceses e chega à conclusão de que a sociedade medieval se organizava em torno da batalha, fosse esta um confronto corpo a corpo durante uma guerra ou uma disputa pela defesa da honra da família. Para ela, a batalha era então um meio para as pessoas resolverem suas rixas, tirarem satisfações e, sobretudo, manterem conservada a hierarquia da vila ou do reino frente a qualquer ameaça externa. Por isso, insiste em dizer, em mais de um capítulo, que a ação de matar, quando fosse para a proteção dos seus, era muito mais do que uma ação tolerada, era uma prova de valentia e audácia – dois valores julgados indispensáveis, na Idade Média, a qualquer homem que quisesse ser respeitado e visto como virtuoso.

Ao inventariar os delitos julgados graves, Toureille assevera que a traição poderia ser considerada mais lesiva que o homicídio. Segundo ela, numa sociedade como a medieval em que a palavra era vista como espelho da alma, faltar com a verdade diante de seu superior e deixar de cumprir um pacto firmado eram deslizes considerados inaceitáveis, a ponto de se poder executar alguém por quebra de contrato. Avançando em seu raciocínio, a historiadora vai além e diz que o roubo era outro crime que poderia causar uma sensação de repugnância muito maior que o homicídio, por desequilibrar as finanças das vítimas e criar um clima de instabilidade social. Toureille explica que muitos ladrões, além de tirarem os bens mais preciosos de suas vítimas, aproveitavam a ocasião tanto para estuprar as mulheres quanto para incendiar as casas que foram por eles assaltadas. Por esse motivo, o roubo acabava, para ela, abrindo espaço para outros delitos que passaram a ser cada vez mais reprimidos pelas autoridades régias e religiosas da época.

Ao longo do livro, Toureille também não deixa de afirmar que o homicídio, depois do falecimento das bases jurídicas do Império Romano, era um problema resolvido, na maioria das vezes, pelas partes envolvidas, pois pouco eficiente era o poder régio para conseguir interferir nesse tipo de contenda. Conta essa historiadora que foi apenas, no século XIII, que os tribunais começaram a surgir como mediadores, isto é, instâncias superiores, para punir, por exemplo, a pessoa que tivesse violentado uma mulher ou matado alguém por motivo fútil. Descrevendo o papel do poder régio no fortalecimento dos tribunais, o livro salta para as leis régias que foram criadas para proibir saques, estupros, roubos, assassinatos e outros crimes, isto é, as normas legislativas elaboradas com a finalidade de garantir a integridade física e moral dos súditos do monarca. Daí em diante ganham cada vez mais espaço, na trama de Crime et Châtiment, os mecanismos de contenção de delitos batizados, no final da Idade Média, de “crimes de lesa-majestade”, chamados assim por denegrirem, de algum modo, a imagem do príncipe.

Visando mostrar a formação da justiça régia francesa, Toureille ressalta que os monarcas começaram, entre os séculos XIV e XV, não apenas a criar um corpus de obras jurídicas, mas também a pôr em prática suas leis, enviando funcionários para diferentes cantos das cidades com a missão de punir homicidas, blasfemadores, sodomitas e outros criminosos. Além disso, ela enfatiza que os reis passaram a defender, nesse momento, a existência de um exército permanente, o que teria levado os juristas a condenarem a formação de grupos de saqueadores e de outros homens armados que não possuíam autorização para agir. Destaca essa historiadora que o resultado da criação dessas medidas foi o aparecimento de uma “memória judicial” – ou seja, decretos e cartas que mantinham a salvo do esquecimento tanto as leis quanto o nome de criminosos e seus respectivos crimes. Na sequência, apresenta o governo do monarca S. Luís (1214-1270) como um marco na configuração do direito medieval, pois possibilitou o advento de um sistema de punição cujo cabeça não poderia ser outro homem a não ser o próprio rei.

Toureille ressalta, contudo, que o tribunal monárquico passou a sofrer a concorrência dos tribunais eclesiásticos por volta dos séculos XIII e XIV. Afirma que, desde o século XII, a Igreja já investia na compilação de códigos canônicos e de outros tipos de materiais que pudessem orientar os prelados a saberem como excomungar e degredar pessoas consideradas criminosas. Tal era o papel das leis canônicas que essa pesquisadora reservou um espaço expressivo do livro para dizer que a legislação da Igreja foi a principal responsável por naturalizar a ideia de que o delito não passava de um tipo de pecado que ameaça a ordem, como rapto ou incêndio. Destaca também que, graças à legislação canônica, a confissão do acusado e o depoimento das testemunhas se tornaram peças-chaves para a resolução de crimes. Cruzando a gama de penas aplicadas pelos tribunais reinóis e eclesiásticos, Toureille vai mostrando, portanto, como que, nos séculos XIII e XIV, surgiram novas correntes políticas e teológicas criadas para ajudar o fiel a entender que o uso exagerado da força física poderia desencadear ações delituosas e, por isso mesmo, pecaminosas.

A história descrita por Toureille não é apenas acerca do repertório de crimes e castigos, mas uma história que busca mostrar que os homens da Idade Média, diferentemente de nós, toleravam certos tipos de violência. Nos dias de hoje, em que a criminalização e a descriminalização de algumas práticas são pauta recorrente na sociedade, essa historiadora parte de questões que preocupam o homem moderno sem negligenciar, contudo, a singularidade dos tempos medievais, isto é, o próprio modo como os medievos definiam suas ações. Em suma, a leitura da obra Crime et Châtiment fascina, pois faz o leitor percorrer quatro capítulos muito bem escritos e que se notabilizam pela erudição neles apresentada.

1 Valérie Toureille também é autora de Vol et brigandage au Moyen Âge (PUF/2006), Robert de Sarrebrück ou l`honneur d`un écorcheur (PUR/2014), entre outros trabalhos.

Leandro Alves Teodoro – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP, Contato: [email protected].

Perú y la Guerra Civil Española – CARRASCO (H-Unesp)

CARRASCO, Olga Muñoz. (Org.). Perú y la Guerra Civil Española. La voz de los intelectuales. Madrid: Calambur Editorial, 2013, 559 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.33 no.2 Franca July/Dec. 2014.

A coleção HGCE – Hispanoamérica y la Guerra Civil Española – consiste em uma série de estudos sob a direção geral do poeta e crítico literário britânico Niall Bins. Trata-se de uma recompilação de textos de época introduzidos por adensados comentários críticos sobre o impacto da Guerra Civil da Espanha entre os intelectuais da América hispânica. O Volume 3, ora apresentado, foi organizado por Olga Muñoz Carrasco, poetisa, professora e investigadora da Saint Louis University (Madrid Campus) e colaboradora honorária do Departamento de Literatura Hispanoamericana da Universidad Complutense de Madrid. Encontram-se publicados entre os anos de 2012 e 2013 quatro volumes da coleção: Equador (volume 1), Argentina (volume 2), Peru (volume 3) e Chile (volume 4), estando em fase de preparação o volume 5, alusivo a Cuba. Cada um deles reúne testemunhos que permitem conhecermos o panorama do campo intelectual do país em questão no período de 1936 e 1939, quando as disputas estavam concentradas na convivência entre as vicissitudes da política interna e as tensões geradas pelo drama da guerra espanhola. A coleção, ao aliar o diálogo entre as análises dos especialistas organizadores aos documentos selecionados, propõe uma compreensão sobre o termo “intelectual” no contexto altamente politizado e ideologicamente polarizado dos anos 1930, sem, contudo, prescindir de considerá-lo necessariamente elástico: “Para nuestra colección, “intelectual” es toda persona que participó con la palabra escrita en el debate de ideas sobre la guerra civil”. (p. 15).

A cuidadosa pesquisa de Muñoz Carrasco – desenvolvida em arquivos e bibliotecas das cidades de Lima e Madrid – constitui, assim, uma referência importante para os estudiosos da história intelectual iberoamericana, pelo menos, por duplo motivo. Primeiro, porque demarca os inevitáveis contrastes e níveis de engajamento dos intelectuais peruanos, cujas escolhas entre nacionalistas e republicanos na guerra da Espanha praticamente não admitiam recuos ou tergiversações. Segundo, porque os documentos que acompanham a obra proporcionam uma mirada sobre a representação que a elite pensante do país latino-americano construiu a partir de uma metáfora, fosse de natureza poética ou de conteúdos enunciados mais especificamente pela narrativa política: a metáfora do “espelho” traduziu o fenômeno da guerra em termos de identificação dos peruanos com a “madre patria”. Em outras palavras, o conflito não foi tratado como um acontecimento estranho ou exterior às sensibilidades políticas peruanas. Chegou a ser vivido como uma causa própria, ao aprofundar as divisões entre os intelectuais mais tradicionalistas – à direita do espectro político – e os de esquerda. Enquanto os primeiros viam na guerra a possibilidade real de acabar com o comunismo que ameaçava destruir a raiz católica do mundo hispânico, seus rivais defenderam uma ordem que designavam democrática pela qual também lutavam no Peru. Na parte inicial, uma indagação decisiva lançada às fontes atravessa o debate proposto por Muñoz Carrasco: como buscar uma Espanha que se projetava para além de suas fronteiras e de seu tempo; ou, como recuperar a origem comum entre a Iberoamérica e a mãe pátria dado que o presente de então somente as aproximava pela violência e terror compartilhados? É nessa perspectiva que a autora traçou similitudes entre as realidades históricas de Peru e Espanha, elaborando o quadro descritivo, a um só tempo amplo e preciso das atitudes e práticas que conduziam os intelectuais peruanos a caminhos incertos e antagônicos.

Segundo Carrasco, o contato entre os dois países havia sido mínimo durante quase todo o século XIX, desde que o Peru não manteve relações diplomáticas com a monarquia ibérica nos primeiros 50 anos de sua independência. Ainda que tenha se restabelecido a partir de 1879, escasseavam na relação demandas institucionais que permitissem o intercâmbio, e, em muitas ocasiões, iniciativas isoladas definiram a criação de espaços de diálogo como a Academia de la Lengua, a Academia Nacional de la Historia e a Sociedad Geográfica de Lima.

A situação passou por mudanças entre os anos 20 e 30 do século passado. Pouco a pouco foram se desfazendo as imagens negativas herdadas da época da independência, e nas celebrações do centenário da batalha de Ayacucho (1924) começaram a ser construídos novos laços culturais, evidenciados por expressivo número de livros e artigos dedicados à Espanha. A violência política e a turbulência social também foram marcas comuns no Peru e na Espanha, assim como outros pontos de contato, quanto à urgência de transformações estruturais, acentuavam o parentesco entre as duas sociedades:

[…] ambos países poseían élites políticas que buscaban un camino pacífico hacia la modernidad, habían heredado un sistema de distribución de tierra arcaico y mostraban diferencias dramaticas en el reparto de la riqueza. Por otro lado, tanto España como el Perú contaban con sectores económicos emergentes en la industria y el comercio, así como con una burguesía y un proletariado que, cada vez más, consideraban los modelos tradicionales obstáculos a sus aspiraciones. (CARRASCO, p. 33).

Se no Peru a proibição e o expurgo de movimentos políticos como a APRA de Victor Haya de la Torre se intensificaram com a ditadura de Óscar Benevides e com a ascensão do fascismo, na Espanha republicana muitos projetos que apontavam para a modernização da sociedade (laicização, reforma agrária, reforma trabalhista, etc.) tenderam ao fracasso diante da intransigência obstinada de fontes de poder social, como a Igreja, o Exército, os terratenentes e a influente FE – Falange Espanhola. Depois de 1935, a brecha aberta entre as duas Espanhas (republicana e nacionalista) também apareceu no Peru, ainda que sua relevância tenha sido menor do que em outros países latino-americanos, como Argentina, Chile ou México. A maioria de intelectuais peruanos contemporâneos da guerra civil firmou-se na identidade e na trajetória política e social do Peru para mostrar o que considerava a única possibilidade viável do momento: o apoio aos nacionalistas de Franco. A oposição a eles aconteceu não só por meio dos textos de viajantes eventuais, mas também de uma poética insurgente e de um periodismo de resistência que encontraram, ora na clandestinidade, ora no exílio de intelectuais pró-republicanos, os principais lugares de ressonância.

A travessia do estudo de Muñoz Carrasco para a documentação histórica confere ao volume sua circunstância determinante, porque é ali que são escutados os dilemas saídos das vozes dos intelectuais. Podemos indagar e, sobretudo, compreender a partir de um mínimo olhar sobre os manifestos: como se organizava o campo das disputas e, principalmente, de que modos o conflito espanhol afetava vidas, obras e compromissos políticos?

A linguagem tensionada nos revela, junto ao processo de degeneração da guerra, as mudanças que aconteceram na percepção dos indivíduos e o empenho em circunscrever o conflito num horizonte de compreensão. Dos manifestos hispanofóbicos de Alberto Hidalgo e seu grito ¡España no existe! – passando pela poesia de vanguarda de Magda Portal a verter sentimentos de amor e ódio (“Te odiaba España por tus frailes hipócritas y sombrios…”), chegando-se à defesa do fascismo em Víctor Andrés Belaúnde -, o volume é rico pelo contraditório que continuamente desperta. De um lado, tal exemplo pode ser rastreado na ação do escritor pró-republicano César Vallejo (1895-1938). Do seu desterro madrilenho em 1931, via com ceticismo os primeiros passos de uma República que, a seu juízo, “no hacía más que perpetuar las jerarquías de antes”; no entanto: “Cinco años después, en cambio, la radicalización de la República bajo el Frente Popular y la resistencia popular al levantamiento militar lo encandilarían”. (CARRASCO, p. 493).

Depois de várias manifestações do poeta em favor da República por meio de correspondências, artigos em jornais e periódicos, uma de suas últimas intervenções antes da morte no exílio parisiense de 1938 veio da participação no II Congreso Internacional de Escritores para Defensa de la Cultura, realizado em Madrid no mês de julho de 1937, quando a guerra civil espanhola completava o primeiro ano. No texto-discurso “La responsabilidad del escritor”, a comovedora argumentação de Vallejo parece reafirmar uma “vocação zolaiana”, se nos é permitida a expressão, para definir o papel do intelectual na defesa intransigente daqueles que percebe como oprimidos e negligenciados pelas mais variadas espécies de injustiças e tiranias:

Me refiero ahora al aspecto de la responsabilidad del escritor ante la Historia y, señaladamente, ante los momentos más graves de la Historia. Hablemos un poco de esa responsabilidad, porque creo que en este momento, más que nunca, los escritores libres están obligados a consustanciarse con el pueblo; a hacer llegar su inteligencia a la inteligencia del pueblo y romper esa barrera secular que existe… […] Camaradas: los pueblos iberoamericanos ven claramente en el pueblo español en armas una causa que les es tanto más común cuanto que se trata de una misma raza y, sobre todo, de una misma historia. […] la causa de la República Española es la causa del Perú, es la causa del mundo entero [y] los pueblos que han sufrido una represión, una dictadura, el dominio de las clases dominantes, poderosas, durante siglos y siglos, llegan por una aspiración extraordinaria a tener esta rapidez; porque un largo dolor, una larga opresión social, castigan y acrisolan el instinto de libertad del hombre en favor de la libertad del mundo hasta cristalizarse en actos, en acciones de libertad. (VALLEJO apud CARRASCO, p. 513-514).

Ao extremo de Vallejo encontra-se José de la Riva-Agüero (1885-1944). De raízes aristocráticas, Marquês de Montealegre de Aulestia, ele encarnava, segundo a análise de Jeffrey Klaiber (2008, p. 460-462), o pensamento integrista e nacionalista, também designado nacional-catolicismo. Riva-Agüero ingressou tarde no rebanho católico, porque em sua juventude e ainda como professor em San Marcos professava ideias liberais e positivistas. Em célebre discurso de 1932 diante de seus companheiros de promoção no colégio La Recoleta, formalmente renunciou a seu passado liberal e declarou-se católico, ao alegar seu distanciamento da religião como fruto de leituras imprudentes e atropeladas. (KLAIBER, p. 460). Para traduzir seus impulsos nacional-católicos do campo da retórica ao da ação efetiva, Riva-Agüero liderou, durante a guerra civil espanhola, campanhas de arrecadação de fundos e apoios para Franco: “yo soy el mayor contribuyente mensual para la Cruz Roja Nacionalista. Deseo que allá se enteren de que cumplo con mis deberes”. (RIVA-AGÜERO apud CARRASCO, p. 433). Foi precisamente sua lealdade ao franquismo que o levou a tecer elogios ao governo peruano quando este rompeu as relações com a República, reconhecendo, ao menos implicitamente, a vitória antecipada dos nacionalistas de Franco. A radical distinção entre os intelectuais aderentes a um lado e outro da contenda fica mais patente quando Muñoz Carrasco nos oferece um excerto de discurso pronunciado por Riva-Agüero na noite de 17 de junho de 1938, no banquete do Club Nacional de Lima em homenagem ao escritor e conselheiro da Falange Espanhola Eugenio Montes:

Con inmenso alivio de ánimo, hemos visto que el Gobierno de Perú ha roto al cabo y en definitiva las relaciones diplomáticas que, siquiera en protocolo y apariencia, lo ligaban a esa hechiza y nefasta España de los rojos, la cual durante un año no cesó de agraviarnos, hasta agotar nuestra paciencia tan sufrida; España roja que no es sino la rabiosa antítesis, la negación blasfema, execrable, de la genuina y bendita España tradicional; de la sustantiva, católica y duradera: la de nuestros antepasados, civilizadores y progenitores del Perú moderno. (RIVA-AGÜERO apud CARRASCO, p. 438).

Resultado de anos de investigação, o estudo de Muñoz Carrasco recupera textos pouco conhecidos de dezenas de intelectuais peruanos da época. Coloca-nos em contato com figuras centrais no panorama das letras e da política, cuja produção completa sobre a guerra civil é imprescindível registrar. Outra virtude do trabalho é que a variedade de materiais se apresenta, metodologicamente, dentro de um critério unificado quanto às tipologias de textos selecionados: a dimensão política do conflito se revela por meio de correspondências, poemas, discursos e artigos em jornais e periódicos que formam o cerne da produção intelectual peruana sobre a guerra civil. Junto à matriz propriamente política e ideológica das militâncias, quedamos surpreendidos pelo impacto pessoal e moral que emerge da ação de cada um dos envolvidos, cujas consequências, não raras vezes, podem estar além da ação das organizações. Resta ponderar sobre a atualidade do tema. Quando muito se discute a rarefação do indivíduo no campo da literatura e a evasão do sujeito da atividade política, ou quando as marcas tradicionais do engajamento são confrontadas pelo anonimato e a diluição, que parecem frustrar o próprio núcleo narrativo das experiências, o estudo de Carrasco restitui um debate que propõe repensarmos as grandes causas emancipacionistas, as vivências e representações sobre princípios e dilemas éticos.

Referências

CARRASCO, O. M. (Org.). Perú y la guerra civil española. La voz de los intelectuales. Madrid: Calambur Editorial, 2013. [ Links ]

KLAIBER, J. , S. J. Los intelectuales y la religión en el Perú. In: AGUIRRE, C.; McEVOY, C. (Eds.). Intelectuales y poder. Ensayos en torno a la república de las letras en el Perú e Hispanoamérica (ss. XVI-XX). Lima: Instituto Francés de Estudios Andinos, 2008, p. 457-477. [ Links ]

Marcos Gonçalves – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil. Contato: [email protected].

Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII) – ANDRADE FILHO (H-Unesp)

ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012, p. 256. Resenha de: ESTEVES, Germano Miguel Favaro. História [Unesp] v.33 no.1 Franca Jan./June 2014.

Nos últimos decênios, mais precisamente a partir dos anos oitenta, vimos o aumento e consolidação dos estudos relativos à antiguidade e ao medievo no Brasil. Temas que eram tão distantes de nossos pesquisadores, agora eles tomam corpo em grupos de estudos, congressos e encontros internacionais, na formação de profissionais antiquistas e medievalistas que compõem o quadro docente das universidades brasileiras.

Nesse percurso se insere a produção de Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor de História Medieval na UNESP. Seu livro, resultado de seu doutoramento na USP em 1997, revisto e agora publicado pela Editora da USP, traz uma significativa contribuição, ao lado de artigos e capítulos de livros que o próprio autor vinha publicando, para o debate de uma estimulante temática: a íntima relação entre religião e poder.

Já na introdução, Andrade Filho, com uma linguagem clara, trata da progressiva aproximação entre as estruturas do reino visigodo e as da Igreja, o que resultaria na elaboração de uma teoria da realeza, em que o rei é considerado o “ungido do Senhor”. Havia, portanto, um profundo sentido teocrático da realeza, que encontraria sua legitimidade na sanção divina à autoridade do rei. A monarquia, assim, revestia-se de um caráter sobrenatural fornecido e legitimado pela Igreja.

Como ferramentas para sua análise, o autor faz uso de uma gama de fontes que englobam hagiografias, leis civis e conciliares e um corpus de textos litúrgicos, dialogando diretamente com várias pesquisas sobre o reino visigodo. Esse corpus documental é utilizado de forma dinâmica para explicar a religiosidade e a montagem da monarquia católica com a conversão de Recaredo.

No primeiro capítulo da obra, intitulado “Uma Hispânia Convertida?”, a indagação logo no caput mostra-nos os problemas suscitados pela cristianização da Península Ibérica na Antiguidade Tardia. O paganismo explicitado por meio de cultos e práticas religiosas que, segundo Andrade Filho, são “difíceis de desenraizar” mostra a oposição entre o mundo urbano e o mundo rural. Este último representava um desafio maior para a penetração do Cristianismo; porém, após a conversão/cristianização, a verdadeira ortodoxia católica não teria grandes problemas no combate às heresias, era o ambiente em que existia maior severidade dos cristãos contra o paganismo. Em contrapartida, o mundo urbano, no que tange à religião, é o lugar do bispado, que se torna, em muitos casos, um mecanismo de ascensão social em que o grupo nobiliárquico dominante, a elite hispano-romana e visigoda, disputa esse tão almejado posto de poder.

No segundo capítulo da obra, intitulado “Cultura e Religião no Reino de Toledo”, o autor trata diretamente das consequências da conversão de Recaredo e da formação da Societas Fidelium Christi, quando supõe a composição do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma só fé e regido por uma cabeça cuja autoridade provinha do próprio Deus, e no qual os segmentos eclesiásticos tentavam disseminar uma nova concepção do sagrado, centrada em uma pretensa distinção entre os fatos religiosos e não religiosos. Porém, o mundo rural, pouco tocado pelo cristianismo católico, continuava a se alimentar dos velhos fundos de crenças ancestrais, tornando-se um meio que exigia da Igreja e de seus clérigos um movimento inverso, “de cima para baixo”, na tentativa de reordenar a sociedade segundo as finalidades religiosas.

Por meio do debate entre historiografia e fontes primárias, o autor busca desde o Baixo Império Romano a justificativa para a montagem da “Societas Fidelium Christi“, centrada na questão da “analogia antropomórfica”, expressa em leis civis, cânones conciliares e outros textos da Hispânia visigótica. Nos procedimentos de cristianização impostos pelo clero à população pagã, articulavam-se diversas relações e interpenetrações entre a “religiosidade popular” e a “oficial”. O Cristianismo veiculava a ideia de que as práticas pagãs estavam sob o jugo dos espíritos do Mal, unindo-se de forma íntima a idolatria, a magia e a heresia, fato que oferece ao pesquisador um vasto campo de possibilidades para a análise de tais temas.

No capítulo seguinte, intitulado “Religiosidade ou Religiosidades?”, o autor ressalta o costume de chamar de paganismo as manifestações relativas à religiosidade popular e mostra as dificuldades de uma sociedade mista em relação à religiosidade pretendida. Instiga-nos a pensar sobre a profundidade alcançada pelo Cristianismo e sobre a efetiva conversão e/ou cristianização produzida no reino visigodo. Segundo Andrade Filho, “a expressão religiosidade popular produz os efeitos mais diversos” (p. 104), mostrando o problema de definição de tal expressão e apontando o caráter empobrecedor de uma análise que a aborda como se tratasse de meras “permanências ou resistências pagãs” dentro do contexto hispano-visigodo. O autor demonstra, ainda, como ocorre a relação entre as práticas cristãs e as pagãs em diversas fontes do período. As práticas pagãs eram condenadas em concílios, regras monásticas e hagiografias; entretanto, tal condenação resulta na assimilação de mitos e ritos pagãos pela teoria cristã, além da aquisição, por parte dos santos, de muitas características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Ou seja, produzem um Cristianismo que dá continuidade a crenças anteriores a ele. Dessa forma, a pergunta persiste: “haveria então, efetivamente, uma religiosidade popular?”.

No quarto capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, Andrade Filho toca em um dos pontos essenciais de sua tese: a formação da “analogia antropomórfica”. Para o autor, a conversão ao catolicismo torna-se fundamento ideológico do reino de Toledo, e o Cristianismo é o elemento de coesão social. A conversão de Recaredo seria interpretada como um novo princípio, e a aliança entre Deus e a monarquia seria expressa na junção “rex-regnum“, corroborada pelo rito da unção régia: aproximava-se o posto do monarca com o da realeza judaica e, assim, o legitimava. O Deus cristão seria, antes de tudo, um Deus de vitória, do qual se poderia solicitar o triunfo, pois o monarca era escolhido pela gratia Dei. Segundo o autor, “de forma mais ampla, todos os habitantes do reino, enquanto cristãos, faziam parte de um corpo maior: da Igreja, do corpus Christi” (p. 162).

Em seu quinto e último capítulo, “Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo”, Andrade Filho demonstra a necessidade de novas análises documentais, indica como o Cristianismo criou uma cosmologia que, apesar das críticas, englobou diversos componentes do esquema pagão e que seria adotada e desenvolvida por Isidoro de Sevilha, na concepção dualista do homem integral, dotado de corpo e alma. Segundo o autor, é com base nesse pensamento hierofânico que se articula a metáfora da analogia antropomórfica, com suas correspondentes ligações entre o reino/corpo e a Igreja/alma, os quais deveriam compor um todo, isto é, a sociedade cristã.

Com uma análise minuciosa das fontes literárias do período, principalmente os documentos hagiográficos, que expressam os momentos de angústia em que vivia a sociedade visigoda cristã, Andrade Filho toca a questão do monopólio da intermediação do sagrado por parte do ordo clericorum, relação complexa diante das realidades cotidianas, pois, se para o mundo culto a leitura do “corpo místico” parecia plausível como sinal divino, tal ideia seria difícil de ser assimilada pela “religiosidade popular”, que ficava restrita ao destino de sua gente, de sua terra e de seus bens locais. Sendo assim, configuram-se dois tipos de paganismo: aquele praticado pelas elites, oficial e essencialmente urbano, e o dos humildes do campo, reduzido em grande medida, pela Igreja da época e pela historiografia tradicional, à condição conjunto de meros hábitos e usos sociais.

Observa-se, portanto, que o autor instiga o leitor à medida que aborda o tema de forma aberta e com metodologias não convencionais aos textos. Além disso, o autor deixa de lado as teorias prontas e as análises superficiais, demonstrando grande sensibilidade com relação à produção de um material científico valioso para a interpretação da sociedade do período. Ao abordar a monarquia visigoda, mostra-nos como esta se comporta e se contempla em um espelho ideal, ao transcender o elemento institucional da Igreja e colocar a religiosidade e a monarquia em meio a um processo em que novos valores são incorporados. Enfim, a obra de Andrade Filho, de forma clara e ao mesmo tempo erudita, incita-nos a pensar as relações entre religião e religiosidade, o catolicismo pós-conversão e a religiosidade partilhada dentro e fora do reino visigodo de Toledo. Constitui, pois, valiosa contribuição para os estudos referentes ao reino visigodo e à Antiguidade Tardia.

Germano Miguel Favaro Esteves – Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da UNESP /Assis.

História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza – FRANCO (H-Unesp)

FRANCO, José Luiz de Andrade et al. (orgs.). História Ambiental: fronteiras, recursos naturais e conservação da natureza. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, 392 p. Resenha de: SILVEIRA, Tissiano da. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O livro aqui resenhado traz alguns dos autores mais conceituados no assunto, referência quase obrigatória para quem se aventura pela História Ambiental. Além disto, traça um panorama da produção mais recente nesta área, assim como mantém uma preocupação em delimitar um campo de estudo pelo qual se busca demonstrar que há especificidades ao pensar e produzir a partir deste lugar. Portanto, esta dupla abrangência – a escrita e a constituição de um campo da História Ambiental – é ponto de partida para apresentar a obra e penetrar nesta construção em curso. A tarefa é empreendida aqui por um grupo heterogêneo composto por historiadores, geógrafos, biólogos, cientistas sociais, cartógrafos, ecólogos e até profissionais da ciência da computação que se aproximam quando voltam seus interesses para as interações entre os homens e o meio ambiente.

O Prefácio, de Stefania Barca, vice-presidente da Sociedade Europeia de História Ambiental, reafirma alguns marcos importantes para a área. A necessidade de se afastar de uma visão que separa, de forma irreconciliável, homem e natureza é pedra de toque dos trabalhos neste campo, o que poderá se confirmar na grande maioria dos artigos apresentados na publicação. Além desta, três premissas são apresentadas por Barca como basilares destes estudos, postas quase em tom de aviso aos navegantes: a natureza não é algo fixo e imutável; as diferentes sociedades interagem de forma diferente com o meio; e, por último, as ciências produziram visões da natureza a partir das sociedades – e do tempo – em que elas estavam inseridas; assim, construção do saber não está desvinculada da evolução cultural. Tais premissas nos ajudam a não cair em armadilhas do anacronismo, a evitarmos pensar em ambientalismo avant la lettre, ou o inverso, criando-se assim heróis e vilões. Até mesmo porque este não é o papel da história, afinal.

Outra questão cara aos estudos da História Ambiental é a interdisciplinaridade, pois na obra se percebe que há uma busca permanente, talvez mesmo um esforço contínuo, em demonstrar esta perspectiva configurada na seleção de alguns artigos que levam os leitores a caminhar por terrenos mais comuns aos paleontólogos – devido ao grande alargamento da temporalidade, utilizada nestes estudos – e a aportes com grande carga de tecnicidade, como geotecnologia. Tratados no livro a partir da possibilidade do uso de tais técnicas, os artigos procuram mesmo uma forma de ajustamento entre campos que há muito se afastaram pela busca de sua autonomia e que tão somente no final do século XX voltam a se aproximar, mas desta feita com as especificidades já consolidadas.

Os 16 artigos estão divididos em quatro blocos. O primeiro chama-se “A História Ambiental como Fronteira Interdisciplinar: Aspectos teóricos e metodológicos”, no qual escrevem José Augusto Pádua; Christian Brannstrom; Nilson Correia da Silva, Osmar Abílio de Carvalho Junior, Renato Fontes Guimarães e Sandro Dutra e Silva. O segundo, “A Expansão e Ocupação das Fronteiras Territoriais”, tem textos de Fernando Antonio dos Santos Fernandes e Bernardo B. A. Araújo; Gilberto de Menezes Schittini; José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond; Sandro Dutra e Silva; Marcelo Lapuente Mahl; Ely Bergo de Carvalho; Gilmar Arruda; Regina Horta Duarte e Natasha Stefania Ostos. “A Exploração dos Recursos Naturais na Fronteira” é o terceiro bloco, que conta com Eunice Sueli Nodari; Kelerson Semerene Costa; Giovana Galvão Tavares, Sílvia Fernanda de Mendonça Figueirôa e Genilda D’Arc Bernardes; José Paulo Pietrafesa, Selma Simões de Castro e Silas Pereira Trindade; e, por último, “História Ambiental e Conservação da Natureza”, com um texto de José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond e outro de Donald Worster.

Não é à toa que a ideia de “fronteira” se encontra nos títulos dos três primeiros blocos que dividem a publicação. A temática ambiental nos confronta com os lugares que são diversos, lugares que se relacionam de diversas formas com o ambiente, mas que não se separam por barreiras fixas e intransponíveis. Ao contrário, a fluidez entre estes espaços é objeto da preocupação de vários estudos e permite as mais variadas interações das populações com diferentes biomas. Estes são espaços em que se aplicam e se desenvolvem políticas, algumas vezes (acredito ser na maioria) de forma desastrosa.

A ideia contida nos textos de Turner ou Webb1 sobre as fronteiras do oeste americano serve para ilustrar o que foi dito anteriormente. Estes autores temiam que o espaço da fronteira se tornasse uma reserva para o desenvolvimentismo, o alargamento da ação humana, que marchava a todo vapor sobre ela. No que estavam certos, pois a fronteira neste sentido se torna o cerne da conservação de ambientes pouco antropizados.

No primeiro bloco do livro, temos a questão da fronteira assumida como um lugar de encontro de saberes, de teorias e metodologias que não costumam ocupar o mesmo texto, pelo menos não com o mesmo peso como aporte teórico-metodológico. Para tal, abre-se a série de artigos com um texto, já publicado e de grande circulação, de José Augusto Pádua. Tenho como hipótese que abrir uma publicação com o texto do Pádua e encerrar com Donald Worster não só garante um lugar bem demarcado nos cenários das atividades científicas, mas também assegura um caráter de circularidade da obra; melhor dizendo, abre-se um espaço em que um autor brasileiro e o outro, norte-americano, estariam em diálogo direto, a partir do qual se estabelecem os marcos da discussão, demarca-se um território e se solidifica um campo de estudo. Podemos nos perguntar se isto poderia ser algo que fixa os historiadores ambientais em um terreno seguro, impedindo um avanço teórico e metodológico do campo. Quanto a isto, o livro parece mais emaranhar que responder à questão – deixo claro que esta não é uma questão do livro, em nenhum momento isto está posto -, pois a preocupação em manter as premissas estabelecidas por produções que se tornaram referência2 parece patente.

“As Bases Teóricas da História Ambiental”, publicado pela primeira vez por Pádua em 2010, é um texto muito recomendado àqueles que se iniciam nos estudos deste campo. Não que ele não seja denso, não tenha profundidade, mas – como anuncia no título – propõe expor as bases para o estudo na História Ambiental, mostrando os caminhos e entraves para seu desenvolvimento. E nisto, é eficiente. Talvez uma pergunta atrevida possa ser feita: ainda é necessário reafirmar estas bases nas produções mais recentes, talvez em detrimento das pesquisas realizadas?

Ainda neste primeiro bloco há uma interessante revisão da “hipótese da madeira”, lançada por Warren Dean3 em seu consagrado livro sobre a ocupação humana na mata atlântica. Com correções de cálculos e elementos desprezados por este autor, o trabalho passa por uma crítica bem acurada, com ajustes que me parecem realinhar dados que careceriam de um olhar técnico mais especializado quando utilizados como fontes. Parece-me aí que a interdisciplinaridade encontra um entrave, pois utilizar dados brutos pode levar a resultados bastante divergentes, já que em cada área das ciências estão circunscritas inúmeras técnicas, as quais não são inteiramente dominadas por outras. Assim, acredito que o artigo de Brannstrom é, no mínimo, um alerta para repensarmos alguns limites para a interdisciplinaridade.

No bloco seguinte temos no primeiro texto uma perspectiva de tempo que também pode ser bastante interessante para pensarmos estas imbricações de áreas e disciplinas, cujo título é “As primeiras fronteiras: impactos ecológicos da expansão humana pelo mundo”. Os autores, ambos da área biológica, iniciam suas reflexões naquilo que dizem ser a queda da “primeira grande fronteira”, a colonização da Austrália há 50 mil anos. Eles apontam para a ação humana como responsável pelo menos por dois terços da extinção da megafauna do planeta, assim, demarcando os primórdios do que seria a força da “pisada humana” na Terra.

Este bloco e o seguinte, “A Exploração dos Recursos Naturais na Fronteira”, demonstram a preocupação da História Ambiental com os discursos e representações sobre a natureza, desde a criação do misticismo em torno do engenheiro Bernardo Sayão, “abatido por uma árvore” durante a construção da Rodovia Belém-Brasília, aos relatos de exploração de ovos de tartaruga nos rios amazônicos. A preocupação em historicizar os discursos e as políticas de avanço sobre as fronteiras é considerada especialmente nestes dois blocos do livro; a separação destas duas partes mais dedicadas aos resultados de pesquisas é tão tênue quanto as fronteiras naturais, mas, por uma questão de organização, se justifica.

São justamente estes artigos que tornam mais interessante a publicação, pois demonstram como a teoria e metodologia da História Ambiental estão sendo aplicadas aos mais diversos objetos de pesquisa. A construção simbólica a respeito da natureza é realmente um campo vasto para estes estudos e nos ajuda a entender desde discursos governamentais a aspectos culturais das sociedades, os quais, à primeira vista, podem parecer naturalizados, mas os fios de Ariadne conduzem ao entendimento destas construções, desvelados pela inquietação daqueles que observam cuidadosamente o passado. E não nos esqueçamos de que o passado explicado hoje tem sempre o olhar viciado do/no presente.

É especialmente esclarecedor o artigo que trata da construção da imagem, positivada, do eucalipto em Minas Gerais na segunda metade do século XX; sob a égide do desenvolvimento da região, a substituição da cobertura vegetal por uma espécie exótica era saudada ante as qualidades da segunda, tendo como pano de fundo um discurso nacionalista em que as árvores se destacavam. Esta contradição aparente tem uma temporalidade específica, um contexto próprio, cujas tramas políticas e econômicas estão muito bem trabalhadas no texto “Entre ipês e eucaliptos…”, demonstrando as inúmeras possibilidades da pesquisa em História Ambiental.

Também são tratadas de forma geral, nestes blocos, as políticas ambientais, constituições de Unidades de Conservação, por exemplo, tendo como contraponto artigos que tratam de políticas desenvolvimentistas como “A crescente produção sucroalcooleira no cerrado…”. Como dito antes, este miolo – se o pudermos assim chamar – é interessante por abordar vários biomas e objetos, em que, realmente, se descortina um panorama das pesquisas em História Ambiental feitas no Brasil.

Por estarmos em outro momento da produção historiográfica, quando a biografia torna-se uma possibilidade de escrita da História, sem a carga negativa que lhe acompanhava, é digno de nota o texto sobre Zoroastro Artiaga. Longe de exaltar seus propósitos, o artigo demonstra que a partir de uma iniciativa pessoal podemos ter acesso a inúmeras questões, por exemplo: como os interesses econômicos rivalizavam ou se associavam a interesses científicos e quais implicações surgiam destas urdiduras.

No quarto bloco do livro temos apenas dois textos, um deles escrito pelos organizadores do volume, Drummond e Franco, e o outro, o texto final, de Donald Worster, publicado anteriormente, em 1995. Os dois textos cumprem bem a função de fechamento, pois ambos vão elaborar uma reflexão sobre o perfil daquele que se ocupa de estudos ambientais; o primeiro, que pensa naqueles que demonstravam preocupações com o ambiente até quando se configura a atuação do ambientalista, e depois o texto de Worster, que trata mais especificamente do “historiador ambiental”.

O texto “História das preocupações com o mundo natural no Brasil…” é interessante não somente por nos mostrar como foi construído, a partir de indivíduos ou grupos, o pensamento ambiental no Brasil e a influência dele em políticas públicas, mas por mostrar as fissuras neste contexto ambientalista no qual, em larga medida, insere-se o historiador ambiental. E o é também ao situar aqueles chamados preservacionistas/conservacionistas e, pari passu, os socioambientalistas, oriundos – segundo os autores – de correntes de pensamento socialista ou de “esquerda” que utilizam a questão ambiental para dar mais visibilidade às questões sociais. Para os autores, a crítica aos preservacionistas/conservacionistas ocorre, em grande parte, por desconhecimento do que era inovador e crucial em suas proposições.

Isto é importante para entendermos as políticas e problemáticas relativas às unidades de conservação, pois há uma separação bem distinta que reflete estes dois posicionamentos: as áreas de uso sustentável e as de proteção integral. Acredito que muitos trabalhos que ainda estão sendo escritos se encontram com esta questão, principalmente se discutem a presença de pessoas em áreas de proteção ou mesmo se pesquisam áreas para as quais se pensa a criação de reservas.

O último texto, apesar da data de sua primeira publicação, é para mim a reflexão mais fresca sobre a história ambiental. Aqui, Worster nos coloca diante de uma questão basilar, ou que pelo menos deveria ser, às pesquisas neste campo: para que fazemos nossas pesquisas? Longe de imaginar um caráter utilitarista para nossos esforços, penso que temos que pesar o resultado que tal trabalho pode ter para a sociedade, acho mesmo que é imperativo que ofereça uma contribuição social.

Voltando os olhos para os movimentos, que ocorrem em distintas velocidades, de sociedades e da natureza, o autor alerta para algo inegável, ele fala mesmo que a sociedade tem percebido cada vez mais a dependência que os seres têm uns dos outros. Assim, pensar em fazer História Ambiental é perceber que esta dependência se aplica às mais variadas formas de interação, inclusive com a tecnologia.

Por fim, a coletânea se mostra muito proveitosa para aqueles que se dedicam ou farão suas pesquisas no campo da História Ambiental. Como diz Woster em seu artigo: “A história” deu lugar “às histórias”. Portanto, faz-se necessário circular os resultados e também inquietações daqueles que se dedicam a estes estudos. Neste sentido, esta publicação cumpre seu papel, apesar de alguma incerteza quanto às questões metodológicas – refiro-me à interdisciplinaridade, como utilizá-la como recurso ou perspectiva, o que me pareceu nesta obra uma questão que ainda carece de ganhar corpo.

Notas

1 Cf. CRONON, W. Un lugar para relatos: naturaleza, historia y narrativa. In: PALACIO, G; ULLOA, A. Repensando la naturaleza: Encuentros y desencuentros disciplinarios en torno a lo ambiental. Bogotá, Colombia: Universidad Nacional de Colombia-Sede Leticia; Instituto Amazónico de Investigaciones Imani; Instituto Colombiano de Antropología e Historia; Colciencias, 2002, p. 29-65.

2 Podemos pensar em alguns autores brasileiros que contribuíram para isto, tais como José Augusto Drummond, José Augusto Pádua e Regina Horta Duarte, e autores americanos como Donald Worster e William Cronon.

3 DEAN, Warren. A ferro e fogo: a historia e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Tissiano da Silveira – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contato: [email protected].

O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina – MIRES (H-Unesp)

MIRES, Fernando. O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina. Organização e tradução Vicente Rosa Alves. Florianópolis, Ed. da UFSC; Bernúncia Editora, 2012, 242 p. Resenha de: PERES, Jackson Alexsandro. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O livro O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina, foi publicado originalmente em 1990 na Costa Rica, e depois também no Chile, Argentina, Itália e Alemanha, o que demonstra a relevância do tema. Somente em 2012, ganhou uma edição em língua portuguesa, traduzida e organizada por Vicente Alves e publicada pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina em parceria com a Bernúncia Editora. Os 22 anos que separam a primeira publicação da edição de 2012 foram de crescimento dos movimentos ecológicos em todo o mundo e de surgimento de novos conceitos relacionados ao assunto. Porém, passados tantos anos, a obra se mantém atual em muitos aspectos. Nas palavras do autor Fernando Mires, na apresentação à edição brasileira, os problemas ecológicos, principalmente na América Latina, permanecem tão vigentes como no final da década de 1980.

Mires, sociólogo, nasceu no Chile em 1943. Até 1973 foi professor de Sociologia e História do Chile no Instituto de Sociologia da Universidade de Concepción. Atua desde 1975 como docente pesquisador no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Oldenburg, Alemanha, país que lhe concedeu o título de Privat Dozent na área de Política Internacional – máximo grau acadêmico conferido pelas universidades alemãs. Sua obra, aqui resenhada, constitui a primeira de uma trilogia na qual ele propõe o estudo de temas fundamentais para a construção do que ele considera uma “nova radicalidade social”. O segundo livro da trilogia citada é El discurso de la indianidad (San José, Quito, 1992); e o terceiro, El discurso de la miséria (Caracas, 1994). Neles, o autor discute as relações entre indianidade e política e a construção da miséria social e política, respectivamente. Em sua trilogia, o interesse de Mires é questionar a lógica interna da modernidade por meio dos antagonismos e contrastes que esta produziu, e em O discurso da natureza o objetivo central é apresentar os pressupostos para essa nova radicalidade social.

O livro está dividido em quatro capítulos e um comentário final. Mires já deixa claro seu intento logo na introdução da obra e a conceitua como polêmica, por ser uma proposta em contraposição às ideologias do crescimento econômico. Nesse ponto, os argumentos fica clara a atualidade de O discurso da natureza, visto que o crescimento econômico é ainda o objetivo que projeta a maioria dos países. Para se contrapor a isso, nos é apresentado o que o autor chama de “nova radicalidade social”. Uma nova radicalidade seria necessária porque, diante dos atuais problemas – como os feministas, os religiosos e também os ecológicos –, a concepção mais drástica até então contra a sociedade capitalista e de consumo, que eram as teorias socialistas, não é mais suficientemente radical para se opor a essa nova demanda.

A longa marcha da Ecologia é o título do primeiro capítulo. Nele se discute como a Ecologia, de ciência pura que residia dentro dos laboratórios, passou a fazer parte do meio político como um dos temas dominantes. Mires apresenta como documento inaugural do que ele chama de apogeu ecológico contemporâneo o relatório apresentado pelo Clube de Roma em 1972 sob o título “Os limites do crescimento”. Segundo o autor, o documento evidencia os problemas ambientais decorrentes do esgotamento dos recursos naturais, em tom catastrófico.

As avaliações feitas naquele relatório se tornaram tendências realistas no início da década de 1990, ano da primeira edição da obra. Transcorrem nesse capítulo as discussões sobre as proporções alcançadas pelo relatório de 1972 e suas polêmicas, e são discutidos outros documentos que, na época, formularam críticas a “Os limites do crescimento”. Aliás, este seria um título mais adequado ao primeiro capítulo, não apenas pela citação do relatório do Clube de Roma, mas por trazer, a partir desse documento, as discussões acerca da Ecologia e de sua dimensão política. Isso porque, quando se pensa em Ecologia e preservação, esbarra-se na pressão sociopolítica e nos discursos em prol do crescimento econômico, sendo este o foco da última parte do primeiro capítulo e também a discussão mais importante: as tensões entre Economia e Ecologia. Pensar ecologicamente é fazer uso daquilo que o autor chama de “segunda crítica à Economia Política”, equivalente à “nova radicalidade social”. Diferenciando-se da primeira crítica à economia burguesa atribuída a Karl Marx, essa segunda crítica à economia política pretende acusar a economia burguesa e marxista de ter ocultado o significado da natureza na formação do capital. Ou seja, quando se prega o desenvolvimento econômico, que nada mais é do que o desenvolvimento de métodos mais intensivos na exploração do meio natural, se omite o preço social da perda desse meio.

Após essa contextualização, o autor busca entender, agora no segundo capítulo, Rumo à formação de um pensamento ecológico na América Latina, o porquê de a Ecologia haver demorado tanto tempo para penetrar nos círculos políticos da América Latina. É apontado ainda um atraso no que concerne ao uso da Ecologia como arma crítica e analítica, ao comparar os países latino-americanos com alguns da Europa e com os Estados Unidos da América. Nesse ponto, o argumento que Mires utiliza para defender sua tese é que os países latino-americanos possuem características socioculturais e ambientais que são refletidas no discurso desenvolvimentista hegemônico neles proferido. A dificuldade em desenvolver um pensamento crítico acerca das discussões ecológicas resulta, segundo ele, da crença compartilhada por políticos, empresários e teóricos de esquerda e direita de que a América Latina atravessa uma revolução industrial, como aquela vivida na Europa nos séculos XVIII e XIX. Dessa crença emerge a ilusão de que existem ainda enormes áreas não utilizadas que estão à espera de conquistadores. Esse pensamento faz com que governos – e neste ponto o Brasil é citado muitas vezes – incentivem a ocupação dessas áreas. Outro viés usado em prol do desenvolvimentismo seria o “álibi da dependência”, ou seja, a culpabilidade dos países imperialistas, em uma versão nacionalista dos discursos. Assim, o discurso dita que a preocupação com temas ecológicos deveria ser dos países ricos e industrializados, já que os países pobres têm outros problemas a sanar, como a fome e a miséria. Outro ponto recorrente é culpar os países imperialistas de utilizar ideologias ecológicas como uma manobra para impedir o crescimento de países pobres.

Para uma leitura ecológica da realidade latino-americana – como o próprio título do terceiro capítulo sugere -, se ocupa em mostrar que, apesar de parecer que não existe consciência ecológica na América Latina, ela subsiste. A diferença é que, enquanto nos países europeus essa consciência alcançou notável grau de expressão política, na América Latina ela se mantém dissimulada, em nível cultural, nas “economias naturais”. Os grupos que o autor menciona como praticantes desse tipo de economia são as próprias vítimas da modernização: índios e camponeses. Por isso, utiliza o termo Etnoecologia, o que não levaria em conta somente os supostos sistemas naturais objetivos, mas sim os sistemas naturais que estão relacionados com os seres humanos, trazendo exemplos dessa relação com dois povos distintos: os Shuaras (Shuar) e os Aimarás. Para Fernando Mires, as origens da modernidade latino-americana ocorreram com a colonização hispano-portuguesa, pois as crenças trazidas pelos colonizadores continuam atuais. A crença eurocêntrica como um ideal de desenvolvimentismo e a crença de que os recursos naturais do continente são infinitos são as mais recorrentes.

O quarto capítulo, intitulado O modo de produção amazônico: ou os milagres da antiecologia, revela uma interessante reflexão sobre os desdobramentos da ocupação da Floresta Amazônica, incentivada pelas crenças apresentadas no capítulo anterior. É, portanto, segundo o autor, o melhor exemplo da imposição de relações de valor, ou seja, de impor a lógica de lucro e de acumulação aos consumidores imediatos da natureza (indígenas e camponeses) e também o lugar no mapa onde se comete em grande escala atos programados de “ecocídio” e “etnocídio”. Em resumo, Mires conceitua o modo de produção amazônico como um complexo econômico orientado pela destruição da natureza em virtude da obtenção imediata de lucros. Discute, além disso, algumas situações ocorridas principalmente no Brasil, como o alagamento de grandes áreas devido à construção de barragens para produção de energia elétrica e o desmatamento da floresta para abrir áreas de plantio, em razão do mito da fertilidade milagrosa do solo amazônico. A discussão, em todo o capítulo, gira em torno daqueles que são imediatamente afetados pela ideologia do crescimento por esses processos. Os povos que são imediatamente afetados são chamados pelo autor de “sujeitos da resistência ecológica”. Isso porque, além de enfrentar policiais, empresários e latifundiários, esses atores têm ainda que modificar sua própria cultura.

Ao apresentar seu comentário final, Mires retoma os pontos discutidos nos quatro capítulos reforçando a ideia de que a Ecologia por si só não possui um valor político, tampouco ditará os modelos de ações políticas, mas é, sobretudo, parte do que se espera de uma nova radicalidade social. Podemos corroborar o argumento do autor ao classificar o livro como polêmico. Também é uma importante referência para entender, sob o ponto de vista social, como se deu a trajetória percorrida pela Ecologia: de ciência pura para uma consciência coletiva que culmina em debates políticos e econômicos. Atual na grande maioria de suas discussões, o livro também o é, principalmente no que concerne à ideologia do crescimento, deliberadamente em prática nos países latino-americanos. Por outro lado, 22 anos é muito tempo, principalmente se pensarmos na velocidade com que ocorreram as mudanças no século XX. Devido a sua importância, uma atualização se faz necessária, principalmente no tocante aos termos conceituais e a práticas e discursos de movimentos ecológicos. Apesar disso, concordamos que o discurso ecológico não conseguiu ainda desativar o discurso economicista e que é necessário que o livro, em breve, deixe de ser um livro atual.

Jackson Alexsandro Peres – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930) – CORRÊA (H – Unesp)

CORRÊA, Dora Shellard. Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930). Londrina: EDUEL, 2013, 274 p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O resgate do lugar histórico de grupos antes relegados ou mesmo ignorados pela historiografia tem sido, nas últimas décadas, um campo fértil de pesquisas para muitos historiadores. Essa exumação do passado é realizada tanto fora quanto dentro do Brasil, comumente centrada em mulheres, crianças, indígenas e minorias em geral – atores que foram sistematicamente banidos pela história oficial ou pelas generalizações de linhas teóricas e metodológicas que dominaram a disciplina até grande parte do século XX.

É esta uma linhagem de pesquisa que encontrou fontes de origens diversificadas para dar voz aos esquecidos – desde o testemunho oral até os vestígios mais indistintos de sua presença no passado – em tentativa de escapar da documentação oficial, a qual orientaria o banimento desses grupos, cujo lugar seria mantido fora da história.

Lançado neste ano (2013), o livro Paisagens Sobrepostas, de Dora Shellard Corrêa, vem ao encontro deste trabalho de resgate ao trazer à luz aqueles que antes foram destinados à escuridão histórica. Porém, a autora segue por um caminho diferente do trilhado pela maior parte dos historiadores desta linha. Sua pesquisa e análise têm como orientação geral a história ambiental, e isto apresenta um viés próprio para a historiografia.

A história ambiental, apesar de ser uma área de estudos ainda recente – inaugurada por volta da década de 1970 -, conta com alguns pressupostos teóricos e ferramentas metodológicas consolidadas entre aqueles que nela pesquisam. Uma delas, que representa uma herança de uma corrente historiográfica anterior, é sua vinculação à geografia, particularmente ao trazer para os pesquisadores o espaço como objeto de análise.

No seu livro, Dora Corrêa trouxe à superfície os esquecidos da história de São Paulo, a partir da recuperação das paisagens dos lugares que habitavam. Na compreensão da autora, índios, posseiros e lavradores pobres em momentos históricos distintos tiveram seus espaços de existência – suas paisagens – alterados para a adequação daquilo que o Estado brasileiro entendia como ideal a seus interesses econômicos. Assim, esse processo de apropriação soterrou não somente o lugar, também os que ali existiam.

A definição de paisagem utilizada pela autora foi elaborada por Henri Lefebvre: uma forma de ação do ser humano sobre a natureza representando uma dominação, mesmo que pretensa, sobre o espaço. De forma geral, a paisagem no livro significa a produção do espaço. Ou seja, de como seres humanos de distintas raízes socioculturais modificam a natureza de forma a torná-la suscetível a sua sobrevivência ou a outros interesses.

Embora entendida por Dora Corrêa dessa maneira – como uma “elaboração intelectual” -, a paisagem no livro não passa pela interpretação da História Cultural, que a concebe como uma representação da cultura e dos valores de determinada sociedade – uma perspectiva utilizada por muitos historiadores ambientais. O filtro conceitual principal da autora, entretanto, é o econômico. Seguindo nesta linha de interpretação, a argumentação reorienta o significado de paisagem de Lefebvre, no qual esta não é somente a produção do espaço, mas a produção no espaço.

Porém, essa delimitação do conceito de paisagem feita pela autora não a impede de utilizá-la de formas diversas em sua argumentação que pode ser encontrada de dois modos e sob uma variedade de sentidos. Ora é entendida como abstração, ao representar um enquadramento ou imagem da realidade; outras vezes, traduzindo algo concreto, como natureza, recursos naturais ou lugar. Este procedimento consciente ou inconsciente da autora pode gerar certa confusão para os leitores ao longo do livro, porém, não é nada que prejudique a clareza do argumento.

Este argumento, aliás, se desenrola a partir de um recorte cronológico longo, de pouco mais de dois séculos: de 1723 a 1930. E a paisagem escolhida por Corrêa é uma região localizada no sudoeste do Estado de São Paulo, conhecida como “Matas de Itapeva”, que beira a divisa com o Paraná.

Embora extenso, o recorte histórico atende às intenções do livro, pois o processo de sobreposição de paisagens deve ser compreendido dentro desta longa duração, com atenção voltada para as mudanças e apropriações da área em foco. Isto não significa que o processo seja lento, pelo contrário, é movido por ações violentas de apropriação das áreas, alterando-se drasticamente a finalidade econômica do espaço e o cotidiano das pessoas que nele habitavam.

A autora estabelece três momentos que considera significativos destas sobreposições: 1845-1912-1930; indicam a passagem de sertão para área civilizada ou de terras devolutas para aldeamento indígena. Estes períodos mostrariam também o trato que o Estado brasileiro deu às paisagens da Mata de Itapeva e seus habitantes dentro da divisão tripartite da História do Brasil: Colônia, Império e República.

Apesar da abrangência temporal, o livro se restringe à história e ao espaço paulista. Com a dimensão geográfica reduzida para uma história regional de São Paulo, o foco da análise histórica fica também assim delimitado, inclusive suas fontes e o diálogo que tem com a historiografia, paulista em sua maioria.

Não significa que a autora não tenha expandido essas escalas com a inserção da região no contexto histórico brasileiro em cada um dos períodos analisados. Mas isto ocorre apenas de maneira relacional, ou seja, vendo-se São Paulo como parte do quadro maior do Brasil. Fica a sensação de que, se essa inserção fosse feita comparativamente, o livro se enriqueceria ainda mais, com identificação dos mesmos processos de sobreposição de paisagens aplicados a outras regiões. Por exemplo, o Norte do Paraná, onde se localizam Londrina e Maringá, cuja historiografia, mesmo com outras perspectivas teóricas e metodológicas, abordou justamente esse processo de apropriação de terras consideradas sertões, mas habitadas por seres humanos – índios ou caboclos –, tal como nos trabalhos de Rogério Ivano (Crônicas de Fronteira) e de Nelson Tomazi (Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias).

As fontes podem atrair o interesse metodológico. Além dos tradicionais relatos de viajantes, especialmente Saint-Hilaire, a autora fez uso da documentação oficial, o que, levando-se em conta o resgate dos esquecidos, poderia ser considerado incomum. Entram no escopo de análise os itinerários de exploração de rios e caminhos, processos judiciais, memórias e relatórios. Esta documentação, apesar de apontar para o vazio histórico destas regiões, não levou Corrêa a legitimar o esquecimento. Pelos vestígios deixados nas descrições das paisagens, as camadas soterradas recuperaram sua existência.

Dora Corrêa faz surgir, a partir destas fontes, as paisagens sepultadas, tal como ocorre no “pentimento“, jargão das artes que usa e que significa uma alteração ocasionada pelo tempo em uma pintura, levando-se à revelação de outras pinturas sobrepostas num mesmo quadro. A analogia, apesar de todo o cuidado que a autora aplica a seu livro, se encaixa bem com o desenrolar da análise e a forma como ela monta sua narrativa.

Já o diálogo com a historiografia pode chamar atenção para uma releitura dos clássicos da historiografia nacional e paulista. A entrada de outros autores no argumento ocorre na maior parte das vezes como contraponto. Apesar de ressaltar a importância e trazer a historiografia para seu texto, a autora procurou mostrar os esquecimentos, especialmente os relacionados à história indígena, uma leitura montada basicamente nas obras de Caio Prado Júnior, Pierre Monbeig e Sérgio Buarque de Holanda. Os dois primeiros se teriam baseado na concepção de que os “sertões” teriam sido dominados pelos colonizadores, legitimando-se assim os vazios de história dessas regiões, um contraponto para a análise da autora. Já Holanda tratou as relações entre os habitantes destas paisagens e o Estado, entrando como reforço argumentativo.

Por fim, Paisagens Sobrepostas de Dora Corrêa traz para a História Ambiental brasileira mais um caminho de pesquisa e análise para ser seguido. Uma área que, no País, normalmente se leva pelas bases da historiografia estadunidense, a pesquisa de Dora e sua leitura dos clássicos da História do Brasil, moldados pela perspectiva econômica, possibilitam ao historiador ambiental ampliar suas ferramentas e formas de interpretação histórica.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social na FFLCH da USP e bolsista FAPESP.

 

 

Mitos do Estado arcaico: evolução dos primeiros Estados, cidades e civilizações – YOUFFEE (H-Unesp)

YOFFEE. Norman. Mitos do Estado arcaicoevolução dos primeiros Estados, cidades e civilizações. Trad. Carlos Eugenio Marcondes de Moura. São Paulo: EDUSP, 2103, 352 p. Resenha de: ROCHA, Ivan ESperança. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

Apesar de utilizar um título infeliz, por se referir a mito com um significado negativo que denigre sua densidade e importância cultural, Yoffee compensa amplamente esse deslize com um texto que traz novas e importantes contribuições sobre a origem e formação do Estado e que leva em consideração não apenas suas próprias pesquisas, mas importantes discussões acadêmicas sobre o tema. Além disso, sua publicação preenche uma grande lacuna relativa a obras em língua portuguesa sobre história antiga oriental.

Professor de antropologia na Universidade de Michigan e especialista em arqueologia mesopotâmica, Yoffee propõe uma ruptura com uma perspectiva unilinear de compreensão do processo de surgimento e desenvolvimento dos Estados, cidades e civilizações, em defesa de vias multilineares e menos rígidas de abordagem. Se por um lado ele dispensa uma especial atenção às sociedades mesopotâmicas, encontra em outras experiências sociais, situadas inclusive no âmbito das Américas, dados comparativos que contribuem para alicerçar suas propostas interpretativas e para indicar diferentes tipos de estruturas de estado que nem sempre se pautam por padrões únicos de organização. Apresenta evidências de uma grande variedade de sistemas sociais e de tipos de poder entre os primeiros Estados.

Yoffee critica muitos arqueólogos – talvez com excessivo rigor – que, influenciados pelo darwinismo social, interpretaram o passado em termos evolutivos, considerando o Estado o ponto de chegada de um progressivo e controlado sistema de organização e aperfeiçoamento das sociedades antigas. Cabe lembrar que o darwinismo, aliado ao eugenismo, também causou sérios desvios na interpretação do desenvolvimento socioeconômico brasileiro no final do século XIX e início do século XX.

Este tipo de interpretação considera os Estados antigos regimes totalitários e estáveis, governados por déspotas que monopolizavam o fluxo de bens, serviços e informações, impondo-se ao resto da população, o que, segundo Yoffee, deixa de levar em conta outros papéis sociais para além daquele do líder, tais como os assumidos por escravos, soldados, sacerdotes e sacerdotisas, camponeses, prostitutas, mercadores e artesãos – que constituem atores importantes nos Estados mais antigos.

Apresenta como suporte à sua crítica as novas informações trazidas pela arqueologia sobre as sociedades antigas, que permitem rever a compreensão sobre as ascensões e colapsos ocorridos nos primeiros Estados. Como exemplo de mudanças no conhecimento do mundo antigo, diz que a influência do helenismo sobre a Mesopotâmia foi redimensionada; atualmente, defende-se que os gregos mais que helenizarem, orientalizaram-se em seu contato com os povos da região.

Yoffee não nega cabalmente a ideia de evolução social nem a contribuição dos neoevolucionistas para o estudo das mudanças sociais, mas o que rejeita nestes é um enfoque tendencioso que, segundo ele, se concentra em heróis ou numa elite dirigente como responsáveis únicos pelo planejamento e construção de monumentos e cidades, pela conquista e pela sua submissão inerte de seus vizinhos. Segundo Yoffee, a compreensão da evolução dos primeiros Estados exige uma reformulação de modelos restritivos e excludentes. Destaca que a pior consequência da visão neoevolucionária é considerar de segunda categoria as sociedades modernas que não são Estado.

Nos dois primeiros capítulos, Yoffee apresenta e discute as teorias que foram empregadas para compreender a evolução dos primeiros Estados e as mudanças ocorridas em relação a elas. No terceiro capítulo, descreve as diferentes trajetórias das cidades e Estados antigos; no quarto, o processo de simplificação das formas assumidas pelo poder nos primeiros Estados. No quinto, discute os papéis desempenhados pelas mulheres da Mesopotâmia; no sexto, avalia os processos de “colapso” que atingiram os primeiros Estados e civilizações; no sétimo, apresenta experiências de socialização alternativas à do Estado, indicando que a evolução social não foi uma via de mão única e que houve resistência e negociações em relação ao controle totalitário; no oitavo, discute as contribuições e limites da analogia e do método comparativo por parte dos arqueólogos. No último capítulo, entrando no campo de sua especialização, avalia os caminhos da evolução dos Estados e da civilização mesopotâmica.

A teoria neoevolucionária retratou o surgimento dos Estados como uma série de mudanças extremamente rápidas de um estágio de sociedade para outro. Essa teoria defende que em cada estágio todas as instituições sociais – política, economia, organização social, sistema de crenças – estavam de tal modo interligadas que a mudança tinha de ocorrer em todas elas ao mesmo tempo, no mesmo ritmo e na mesma direção. Segundo este modelo, as civilizações antigas teriam passado pelos mesmos estágios de desenvolvimento e declínio.

Yoffee defende a evolução dos antigos Estados como um processo de diferenciação social e de integração política, promovidos por meio de várias formas de poder e de diferentes relações no âmbito do poder. Ao longo da evolução dos primeiros Estados, diferentes grupos concorrem no processo de criação, transformação e domínio dos recursos simbólicos e cerimoniais que permitiam recombinações entre si na criação de novas coletividades sociais. Diz que se, de um lado, os primeiros Estados consistiam em um centro político com estrutura própria de liderança, com atividades especializadas, por outro, entravam em cena numerosos outros grupos que se distinguiam por mudanças contínuas em relação às necessidades e objetivos e à força e à debilidade do centro político. Deparamo-nos, assim, com diferentes formas de poder que não estão centradas apenas no governante principal.

Aproximando grupos étnicos da Mesopotâmia, de Teotihuacán, de Wari e Harappa, dentre outros, indica que seus líderes formaram elites, algumas vezes se tornaram funcionários dos Estados, mas também mantiveram um conjunto de poderes locais que ficavam fora do alcance dos Estados. Dentre esses líderes, destaca o papel dos anciãos das comunidades, que podiam convocar assembleias com forte poder de tomada de decisões, mas atuavam à margem da ação de reis e de suas cortes.

A evolução dos primeiros Estados e civilizações foi marcada pelo desenvolvimento de grupos sociais semiautônomos. Em cada um desses grupos havia patronos e clientes organizados em hierarquias, e lutas pelo poder se verificavam em seu interior e entre seus líderes. Os Estados surgiram como parte do processo no qual grupos sociais diferenciados e estratificados se recombinaram sob novos tipos de liderança centralizada.

Embora seu levantamento sobre cidades do Egito, América do Sul e Teotihuacán se refira a trajetórias históricas particulares daquelas regiões, ele também evidencia que, em cada região do mundo onde apareceram os primeiros Estados, as cidades coligiam e cristalizavam tendências de longo prazo que caminhavam em direção à diferenciação e à estratificação.

No início da história das primeiras cidades, Estados e civilizações, grupos sociais diferenciados recombinaram-se em cidades, as quais constituíam centros de peregrinações, trocas, armazenamento e redistribuição, além de concentrar ações de defesa e operações de guerra. Nessas urbes foram criadas novas identidades relativas à cidadania, mas que não substituíram integralmente as identidades existentes relacionadas a grupos econômicos, étnicos e de parentesco.

Não são apenas os poderosos que agem na antiguidade, mas qualquer indivíduo. Apesar de as mulheres não constituírem habitualmente temas de textos antigos e não serem temas costumeiros de análises arqueológicas, Yoffee destaca que nos primeiros Estados mulheres que pertenciam ou não à elite se envolviam em certas atividades diárias, que incluíam transações, litígios e rituais ocorridos nas cidades do período da Antiga Babilônia.

O autor considera a década de 1990 emblemática para o estudo arqueológico do “colapso” dos antigos estados e civilizações com importantes publicações sobre o tema, visto que os estudos evolucionários se preocuparam mais com o surgimento dos Estados do que com seus “colapsos”. O estudo dos colapsos garante a compreensão das inúmeras instabilidades ocorridas no interior dos Estados.

Voltando a sua área de especialização, Yoffee afirma que não existiu um antigo Estado mesopotâmico, como sistema político regional de longa duração, cujos governantes tenham estabelecido domínio sobre outras cidades e suas adjacências. Na Assíria ao norte e na Babilônia ao sul havia muitos grupos étnicos diferentes – a maioria deles com línguas e histórias próprias – que participaram e contribuíram para a teia da cultura mesopotâmica, mas sem uma tendência centralizadora.

O principal “mito” que permeia o estudo dos primeiros Estados é que existia algo que poderia ser denominado Estado arcaico e que todos os primeiros Estados eram simplesmente variações desse modelo. Yoffee critica este e outros mitos sobre o Estado arcaico enfatizando que existem maneiras úteis de comparar e contrastar histórias evolucionárias.

Em conclusão, em Mitos do Estado arcaico: evolução dos Primeiros Estados, Cidades e Civilizações, apesar de optar por generalizações em sua crítica ao viés neoevolucionista de abordagem do tema, Yoffee chama atenção, de forma enfática, para a necessidade de rever análises simplistas sobre as primeiras sociedades mesopotâmicas e de ampliar a compreensão do papel assumido por diferentes atores na construção e desenvolvimento dos primeiros Estados.

Ivan Esperança Rocha – Professor Livre-docente de História Antiga do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Campus de Assis.

Varnhagen no caleidoscópio – GUIMARÃES; GLEZER (H-Unesp)

GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; GLEZER, Raquel (orgs.). Varnhagen no caleidoscópio. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2013, 451 p. Resenha de: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O crítico Sílvio Romero, na sua idiossincrática História da Literatura Brasileira, destaca, reiterada vezes, o quão variado eram os talentos e o quão empenhado era o patriotismo daqueles homens de letras que iniciaram suas atividades intelectuais no Brasil durante a primeira metade do século XIX. Romero salienta, sem dúvida com o propósito torto de fustigar os seus contemporâneos “demasiado cosmopolitas”, que eram homens cientes das imensas carências intelectuais do Brasil e orgulhosos de serem patriotas, homens que atuaram como romancistas, dramaturgos, pedagogos, administradores, políticos, médicos higienistas, historiadores, em suma, que atuaram onde sentiam que o país independente, ainda em processo de construção, deles necessitava para galgar um lugar entre as nações “civilizadas” do mundo, como então se dizia.

Exageros à parte, é por certo característico da atuação de grande parte dos homens de cultura brasileiros do Oitocentos o marcado espírito patriótico — “tudo para o Brasil e pelo Brasil”, como vinha estampado na capa da renomada revista Niterói — e uma produção intelectual extensa e variada — que ia do romance histórico aos relatórios provinciais —, da qual, não raro, mesmo os pesquisadores conhecem somente a parcela mais luminosa. Daí a importância e o interesse do lançamento de Varnhagen no caleidoscópio, obra coletiva, coordenada pelas pesquisadoras Lúcia Maria Paschoal Guimarães e Raquel Glezer, que traz para o leitor um panorama amplo e extremamente instrutivo da variada produção escrita de um dos mais importantes homens de cultura do Brasil oitocentista, Francisco A. Varnhagen.

Varnhagen… não é uma coletânea de artigos — formato que arrebata poucos leitores ultimamente — sobre a obra do renomado historiador; trata-se antes de uma obra coletiva, estruturada com esmero, que intercala ensaios analíticos e escritos do próprio Visconde de Porto Seguro, tudo precedido por uma introdução das coordenadoras, dando a conhecer as linhas gerais da obra e o percurso de vida do analisado. O eixo ou eixos do livro são, sem dúvida, aquilo que poderíamos denominar núcleos documentais: os escritos do próprio Varnhagen, uns menos outros mais conhecidos, todos, no entanto, ofuscados por seus trabalhos históricos e literários de grande vulto.

O primeiro eixo documental, composto por registros epistolares, nomeadamente por Oito cartas de Francisco Adolfo de Varnhagen a Diego Barros Arana (1864-1865), é precedido por dois ensaios analíticos, que preparam o leitor para a devida exploração das potencialidades interpretativas dos documentos que vai encontrar. No primeiro deles, a pesquisadora Raquel Glezer analisa uma outra correspondência do Visconde de Porto Seguro, aquela mantida, entre 1839 e 1849, com o português Joaquim Heliodoro Cunha Rivara, dando especial atenção às profundas relações de amizade que uniam os dois intelectuais, mas também, e sobretudo, ao circuito intelectual a que ambos pertenciam.

Em seguida, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves descortinam para o leitor uma outra faceta de Varnhagen, a de diplomata. Explorando, em larga medida, a sua correspondência oficial, os pesquisadores traçam um quadro de seu périplo, entre 1860 e 1867, por diversos países da América Latina — Paraguai, Cuba, Colômbia, Equador, Venezuela, Chile e Peru —, onde cumpriu a delicada missão de defender os interesses de uma monarquia num mundo de repúblicas. A sua movimentada passagem pelo Chile e pelo Peru merece uma atenção mais detida dos autores. Aí, o representante monarquista da única monarquia das Américas, coerente com os princípios liberais que cultivava, posicionou-se, a despeito das diretrizes do seu governo, contra as ações da coroa espanhola, numa querela que esta manteve com as repúblicas do Pacífico ao longo dos anos de 1864 e 1865.

O segundo eixo é constituído pelo interessante Grande jornada a vapor, um relato de viagem no qual Varnhagen nos conta a rápida visita — 14 dias somente — que fez, em 1867, acompanhado da esposa e do filho, a 15 estados dos Estados Unidos da América. O relato da “escapadela” do Visconde ao vizinho do norte, logo depois de intempestivamente deixar as suas ocupações diplomáticas nas repúblicas do sul da América, é precedido por um ensaio da pesquisadora Lúcia Paschoal Guimarães, onde aprendemos um pouco sobre os antecedentes e as condições da viagem, compartilhamos de alguns detalhes pitorescos nela ocorridos e, acima de tudo, encontramos uma síntese dos comentários do viajante acerca da progressista, ordenada e próspera sociedade norte-americana, uma sociedade em que as mulheres gozavam de uma liberdade excessiva para os seus olhos, politicamente liberais mas moralmente conservadores.

O terceiro eixo traz o peculiar Memorial orgânico, um pequeno livro publicado inicialmente em 1849, que traça um “diagnóstico das deficiências da formação brasileira”, de um ponto de vista geopolítico e econômico, e apresenta uma ampla gama de propostas destinadas a superar os problemas do país e conduzi-lo para o rol das nações civilizadas. O ensaio que o precede, assinado pelo pesquisador Arno Wehling, trata de esmiuçar os diagnósticos e soluções propostos por Varnhagen, avaliando os seus impactos na política local, situando-os no ambiente político-cultural do Império e identificando os princípios gerais que os orientam.

Arremata este instigante Varnhagen no caleidoscópio um quarto eixo documental, no qual o leitor encontra o curioso A origem turaniana dos americanos tupis-caraíbas e dos antigos egípcios indicado pela filologia comparada, um minucioso escrito interessado em demonstrar, sobretudo através do estudo de variantes linguísticas, que os nossos tupis eram originários de um velho continente. De autoria do pesquisador Temístocles Cézar, o ensaio que o antecede, abrindo para o leitor possibilidades de interpretação do escrito, dedica-se a situar os esforços de Varnhagen no sentido de encontrar uma origem egípcia para os selvagens do Brasil numa discussão mais abrangente: aquela, tradicional na cultura do Ocidente, relativa ao binômio antigo/moderno.

Ao término da visualização do caleidoscópio Varnhagen, o leitor, de certo modo, reencontra, com muito mais nuances e detalhes, aquele tipo social, característico do Oitocentos brasileiro, instintivamente construído por Silvio Romero: o intelectual com múltiplos interesses culturais, dedicado a um sem número de atividades e movido por um saliente patriotismo, um patriotismo que, como tão bem demonstra a vida e a obra de Varnhagen, retórico ou não, passível ou não de críticas no tocante às direções que propunha para a pátria, movia e dava coerência aos escritos e ações dos homens de letras de então.

Jean Marcel Carvalho França – Professor Livre-docente de História do Brasil Colonial do Departamento de História da UNESP e autor, entre outros livros, de Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999), Visões do Rio de Janeiro Colonial (José Olympio Editora, 2000), Mulheres Viajantes no Brasil (José Olympio Editora, 2008) e A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII (José Olympio Editora, Editora UNESP, 2012).

Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850 – PAQUETTE (H-Unesp)

PAQUETTE, Gabriel. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850. United Kingdom, Cambridge University Press, 2013, 463 p. Resenha de: MOURA, Denise Aparecida Soares de. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Na historiografia de nações de herança colonial, certos temas, como o da independência política, por exemplo, são alvo de grandes controvérsias e chegam mesmo a formar escolas interpretativas (GARRIDO, 2009). Na historiografia das antigas metrópoles, o tema nada prestigioso da independência de sua suas colônias é, de um modo geral, apagado da memória.

Porém, tendo em vista a longa vida dos impérios europeus coloniais da época moderna, como imaginar que a separação política de suas colônias tenha desconectado imediatamente suas histórias? O caso do império português é um dos mais expressivos deste tipo de indagação, e o paradigma da “era das revoluções”, cuja ideia chave é a da ruptura, algo aparentemente mais próximo de situações, como as vividas pelos Impérios britânico ou hispânico, não é aplicável a sua história.

Essa é a tese defendida por Gabriel Paquette, professor da Johns Hopkins University, em seu recém-publicado “Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions”. O tema do colonialismo e das independências em perspectiva atlântica é algo que há certo tempo vem fazendo parte das reflexões deste historiador, que escreveu ainda “Enlightenment, governance and reform in Spain and its Empire, 1759-1808” (2008) e também dirigiu a coletânea “Connections after colonialism: Europe and Latin America in the 1820s” (2013).

“Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions” conta com uma consistente pesquisa empírica realizada em arquivos e bibliotecas do Brasil, de Portugal, dos Estados Unidos e da Inglaterra. O livro é formado por cinco capítulos distribuídos ao longo de quase 450 páginas. O autor faz uma análise global do processo histórico do mundo luso-brasileiro no período 1770-1850, focalizando suas transformações políticas, mas levando em consideração fatores de mútua influência e continuidades nas suas histórias, especialmente a partir de 1822, quando ocorreu a formalização da separação política entre Brasil e Portugal.

O tipo de abordagem da obra permite situá-la, do ponto de vista da historiografia brasileira, no âmbito de ensaios seminais como “Herança colonial – sua desagregação” (HOLANDA, 1962) e “A Interiorização da Metrópole” (DIAS, 1972), que contribuíram para modernizar a intepretação do processo da independência do Brasil. Ao negar fatores de ruptura neste processo e mesmo identificar seu caráter de conflito doméstico, que opôs portugueses do Reino e da velha Corte – como faz especialmente o segundo ensaio -, estes autores lançaram as bases, posteriormente desdobradas pela historiografia, para que a compreensão da história do Brasil pudesse ser feita fora das perspectivas de análise polarizadoras.

O primeiro capítulo do livro analisa o período 1777-1808 e mostra a mobilização da elite de letrados e funcionários luso-brasileiros, patrocinada pelo Estado português, sob a liderança de ministros como Sebastião José ou D. Rodrigo de Souza Coutinho, em torno do projeto de remodelação das estruturas políticas, econômicas e administrativas do Império. Esta foi uma conjuntura de recalibragem das estruturas do Império, como considera o autor, que conclui ser o período colonial tardio do Brasil um tempo de consolidação de seu status e posição de precedência política e de maior integração com Portugal.

A ocupação de Lisboa pelas tropas francesas, contudo, estabeleceu as bases da crise política do Império entre os anos de 1807-1822, conforme é discutido no segundo capítulo. A instalação da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, e a elevação do Brasil a Reino Unido, em 1815, ponto alto da sua precedência política, contribuiu para estabelecer um divisor de águas no projeto luso-brasileiro de modernização do Império.

A transformação do Brasil em sede da Monarquia colocou para a velha Corte que permaneceu no reino alguns desafios, como o de expulsar o invasor francês, enfrentando ao mesmo tempo um agudo déficit econômico e a tarefa de assegurar a sobrevivência política de Portugal perante as outras nações da Europa. Para tanto, grupos políticos da península se articularam em torno de um projeto monárquico conservador, cujo objetivo era recuperar a antiga conformação do Império Luso-brasileiro, com Lisboa como cabeça das instituições políticas e da Coroa.

Como fazer, contudo, para que a nova Corte estabelecida no Rio de Janeiro perdesse o status político-institucional alcançado desde 1808? É neste ambiente político que o autor propõe a compreensão do desenvolvimento de uma cultura intelectual constitucional no atlântico ibérico, como parte de um movimento mais amplo que envolvia também outras nações, como Espanha, França e Inglaterra.

Os processos de independência do século XVIII e início do XIX levaram antigas metrópoles a reformular suas constituições e as antigas colônias a elaborar suas próprias cartas de leis. Dada a natureza de conflito doméstico da separação política do Brasil com a permanência, inclusive, da mesma linhagem dinástica que governava Portugal, a cultura constitucionalista do atlântico ibérico foi caracterizada pela expectativa portuguesa de reabilitar o antigo Império, tanto do ponto de vista das Cortes Constituintes de Lisboa, de 1821, como do projeto final da Carta constitucional outorgada por D. Pedro, em 1824.

Conforme pode ser acompanhado nos capítulos 3 e 4, nos intervalos cronológicos entre 1822-1826 e 1828-1834 a vida política nas duas pontas do atlântico português continuou ligada pela persistência desta expectativa das forças políticas em Portugal, algo que somente desapareceria com a morte de D. Pedro, em 1834, e com o surgimento das discussões públicas em torno de temas comuns como legitimidade e direitos dos Bragança, o aparecimento de modelos de sistema monárquico e a emergência de personagens – como o próprio D. Pedro, D. Miguel, D. Maria e seus conselheiros.

Mais especialmente no quarto capítulo são apresentados e discutidos os meandros nacionais e internacionais da guerra civil ocorrida em Portugal, que opôs correntes de Miguelistas, adeptos de D. Miguel e Cartistas, e defensores do direito de D. Pedro à Coroa portuguesa e da carta constitucional portuguesa de 1826, que influenciaram a movimentação política de todo o atlântico português, incluindo-se os Açores, que abrigou a resistência dos defensores da legitimidade de d. Maria contra as pretensões de D. Miguel de permanecer no trono português.

O capítulo 5 analisa o esforço português de converter a África em seu novo Império nos trópicos, após a perda do Brasil. O intervalo 1820-1850, tradicionalmente visto como um hiato na história portuguesa em relação ao colonialismo, na realidade foi caracterizado pela ação intensa, especialmente após 1834, de escritores de textos políticos e econômicos, jornalistas e funcionários públicos que produziram memórias, ensaios e relatórios que refletiam sobre os erros do colonialismo português e sobre um novo modelo de colonização a partir da África.

Assim como na fase dos confrontos entre miguelistas e cartistas, este outro momento da história portuguesa – de reinvenção do colonialismo e da utopia portuguesa de voltar a ser um poderoso Império – retoma o espírito de diagnóstico dos letrados do final do século XVIII identificando os erros cometidos na colonização do Brasil para corrigi-los na África.

“Imperial Portugal…” está inserido no horizonte teórico-metodológico da história atlântica, que, do ponto de vista acadêmico, ganhou força nos Estados Unidos entre as décadas de 70 e 80, a partir dos trabalhos impressos pela Johns Hopkins University Press e dos seminários organizados pela Harvard University.

Alguns adeptos desta corrente têm apontado como um de seus desafios a superação da circunscrição da sua análise aos limites de um Estado-nação específico (Games, 2006). Os trabalhos publicados nesta linha de abordagem, contudo, revelam que estes limites detêm também motivações metodológicas. Certamente serão necessárias mais pesquisas e organização mais funcional de acervos documentais para que se possa alcançar uma visão de síntese da civilização do atlântico.

Em virtude disto e seguindo na tradição dos trabalhos do historiador inglês John Russell-Wood, este é um livro que pode ser encaixado no âmbito de preocupações voltadas para a conceituação da especificidade do atlântico português. Para que esta especificidade ficasse mais clara, contudo, o autor deveria ter recorrido mais a uma das muitas metodologias utilizadas no estudo da história atlântica: a comparação. Se o paradigma da “era das revoluções” pode explicar a experiência do atlântico hispânico, mas não a do português, esta experiência poderia ter sido mais evocada, pelo menos na introdução do livro.

O autor atribui todo o peso do espírito reformista do Império português da segunda metade do século XVIII à ação do ministro Sebastião José, desconsiderando que o período anterior – o do reinado de D. João V – contém todas as forças reformistas que serão ampliadas ou remodeladas no período posterior. (Maxwell, 1996).

O tema do reformismo ilustrado português poderia ter sido mais bem conceituado se algumas abordagens tivessem sido mais acuradamente empregadas (Dias, 1968; Prado, 1999). Neste caso, o exemplo de Frei Veloso – que dependia de que agentes do exterior lhe enviassem obras para serem traduzidas – não é suficiente para endossar a tese de uma ilustração de enxerto, porque esta tipografia durou apenas dois anos.

Um aspecto positivo ao longo de toda a obra é o minucioso trabalho de micro-história sobre a interferência inglesa no processo de reconhecimento da independência do Brasil e da constituição de 1826, elaborada por D. Pedro para Portugal e inspirada na constituição do Brasil de 1824.

“Imperial Portugal…” é uma obra que também pode ser vista como uma análise do processo de descolonização do ponto de vista das suas influências e consequências para a metrópole. Para a historiografia de um país de herança colonial como o Brasil, o livro contribui para uma nova forma de abordar o processo de descolonização, ou seja, inverte a problematização para a metrópole.

O último capítulo do livro introduz, de fato, uma questão estimulante e que diz respeito à reinvenção do Império Português na África. Neste caso, entre a independência do Brasil e 1850 não teria ocorrido um intervalo, como diz Paquette, até o advento do neocolonialismo português neste continente.

O engajamento em torno desta questão estimulou jornalistas e intelectuais a produzir uma série de escritos, memórias e relatórios amparados nas referências da colonização do Brasil. O Estado, especialmente, esteve envolvido neste esforço de construção de um novo Império, ao incentivar portugueses residentes no Brasil a fundar colônias agrícolas na África. Para a historiografia brasileira, este capítulo abre uma frente de pesquisa que talvez possa conceituar este movimento do século XIX, quando Portugal enfrentou o desafio de se reinserir no atlântico sul.

“Imperial Portugal…”, portanto, é uma obra de reflexão sobre o tema maior da descolonização e dos novos modelos de colonização do século XIX na perspectiva do atlântico português. Para os historiadores, de um modo geral, este livro é um excelente exemplar de rigor metodológico na pesquisa histórica, pois o autor faz cortes precisos em um longo processo histórico, como os dos anos 1770-1850, documentando e analisando as questões próprias de cada momento. Para os pesquisadores do mundo luso-brasileiro ou que buscam construir uma visão de síntese sobre a civilização do atlântico entre o XVIII e o XIX, este é um livro inspirador de temáticas na área de história política e intelectual.

Referências

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PRADO, Maria Emilia. O estado como vocação: ideias e práticas políticas no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Access, 1999.         [ Links ]

Denise Aparecida Soares de Moura – Professora de História do Brasil do Departamento de História da UNESP (Campus de Franca).

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 – MARSON; OLIVEIRA (H-Unesp)

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: EDUSP, 2013, 348 p. Resenha de: PEREIRA, Milena da Silveira. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Monarquia constitucional, liberalismo, negócios e escravidão foram temas caros ao século XIX e a toda uma historiografia brasileira, que passou boa parte do século XX ressignificando tais conceitos e categorias com mais vigor, por vezes, que o próprio Oitocentos. Tomados por Izabel Andrade Marson, Cecília Helena L. de Salles Oliveira e outros colaboradores da obra como uma espécie de guia para se entender a formação e a constituição do Império do Brasil, tais conceitos são explorados a partir da constatação e negação de três assertivas que, como defendem as organizadoras da coletânea, estão no cerne de uma determinada leitura teórica e interpretativa da história imperial.

Dialogando diretamente com parte da historiografia brasileira produzida no século XX, as pesquisas que compõem Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 (publicação da EDUSP, com financiamento da Capes, CNPq e Museu Paulista) problematizam, debatem e refutam esses três paradigmas. O primeiro desses modelos questionado é aquele que afirma ter a sociedade brasileira do século XIX conservado uma herança colonial retrógrada, caracterizada pela inexistência de cidadãos conscientes de seus direitos e, consequentemente, impossibilitados de uma vivência revolucionária. O segundo é o que afirma que o período imperial foi concebido como uma fase de transição entre o Brasil Colônia, marcado por instituições ultrapassadas, e o Brasil República, caracterizado por uma experiência nacional “autêntica” e pela presença de instituições “modernas”, como a república, a cidadania burguesa, o trabalho livre, a vida urbana, a industrialização. O terceiro e último paradigma problematizado e rebatido nesta obra é o que defende a falta de cadência entre as vivências brasileiras e europeias e o comportamento e pensamento “imitativos” e “desprendidos” da realidade social brasileira.

A obra, retomando e realimentando um debate das décadas de 60 e 70 acerca da incompatibilidade entre liberalismo e escravidão no Oitocentos brasileiro e do descompasso histórico do Brasil em relação à Europa, pretende, pois, problematizar e revisar criticamente a denominada “tese do atraso” da sociedade brasileira – ou seja, “o inacabamento, a inorganicidade e a intangibilidade da nação brasileira” naquele tempo – a partir de diversificadas perspectivas do fazer histórico, como as de E. P Thompson, Hannah Arendth, Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, Pierre Rosanvallon, Reinhart Koselleck, Quentin Skinner e John Pocock.

Assumindo tal propósito, esta reunião de escritos produzidos por pesquisadores do Museu Paulista, da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas está articulada em duas partes. A primeira, intitulada (Re)configuração de pactos e negociações na (re)fundação do Império, abarca trabalhos que exploram questões relacionadas: às negociações dos impostos, honrarias e cargos administrativos entre Portugal e Brasil; à análise dos festejos públicos da Monarquia e da arquitetura recriada por integrantes da missão artística francesa no Rio de Janeiro. Abarca também estudos que passam pelo mapeamento dos diferentes pronunciamentos e posicionamentos da Câmara do Império (1826-1827) sobre o tráfico e os significados da escravidão para o país; e, por fim, os “incidentes” ocorridos, em 21 de abril de 1821, na Praça do Comércio – centro de muitas e importantes negociações – , e seus desdobramentos políticos. Este primeiro momento tem como colaboradores Ana Paula Medicci, Cecília Helena de Salles Oliveira, Emílio Carlos Rodriguez Lopez, Vera Lúcia Nagib Bittencourt e João Eduardo Finardi Álvares Scanavini.

Compõe a segunda parte da coletânea os estudos de Erik Hörner, Izabel Andrade Marson, Maria Cristina Nunes Ferreira Neto e Eide Sandra Azevêdo Abrêu. Denominado Revoluções e conciliações: fluidez do jogo político, dos partidos e dos empreendimentos, este conjunto de textos inclui um trabalho que relaciona os princípios do liberalismo e do comércio à formação do Partido Liberal e do Partido Conservador e à participação política no Brasil da primeira metade do século XIX. Outro estudo trata da relação entre monarquia, empreendedorismo – voltado ao “livre-cambismo” e à defesa da “indústria nacional” – e Revolução Praieira (1842-1848). Compreende ainda esta segunda parte um artigo sobre a trajetória pessoal e pública do importante político liberal e negociante mineiro Theophilo Ottoni e um último que explora a proximidade dos embates entre orientações político-econômicas liberais e o fracasso da Liga Progressista, grupo formado por membros “moderados” do partido conservados e do partido liberal.

Em todas essas pesquisas, o leitor notará a preocupação dos autores em apresentar novas perspectivas sobre a história política, do ponto de vista de sua cultura, da formação da opinião pública, da atuação dos estadistas e dos grupos sociais. Notará igualmente a preocupação de perceber o político no cotidiano ou, como destacam as organizadoras, “nas ruas e praças, nas estradas, nas fazendas, nos festejos, nas manifestações, na imprensa, nos ambientes públicos e privados”. Todos esses espaços, como o próprio título da obra sugere, são analisados à luz das “imbricações entre política e negócios”. Aquele leitor interessado em revisitar a formação e a consolidação do Império brasileiro a partir das mediações entre monarquia constitucional, liberalismo, negócios e escravidão, encontrará, portanto, nesta coletânea um bom caminho.

Milena da Silveira Pereira – Doutora em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, e professora substituta nos cursos de História e de Relações Internacionais, da UNESP/Franca. E-mail: [email protected].

 

Brazil at the Dawn of the Eighteenth Century – ANTONIL (H-Unesp)

ANTONIL, André João. Brazil at the Dawn of the Eighteenth Century. Tradução: Timothy J. Coates (completando uma tradução parcial iniciada por Charles R. Boxer). UMASS – Dartmouth: Tagus Press, 2012, 246 p. Resenha de: VIOTTI, Ana Carolina de Carvalho. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Desde meados do século XIX, quando desperta de um hiato editorial de pouco menos de um século – melhor, passa a circular depois de ter sua destruição oficialmente decretada – , a obra “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas” assinada pelo então “Anônimo Toscano” (1711) tem suscitado muitas edições. A aqui apresentada, sob o título de “Brazil at the Dawn of the Eighteenth Century”, é de 2012 e traz a primeira versão em língua inglesa da obra, fruto do empenho inicial do professor Charles Boxer e do professor Timothy J. Coates, que finalizou o projeto.

O autor da obra, cuja identificação passou de “anônimo” a André João Antonil e, finalmente, a João Antonio Andreoni (1649-1716), um jesuíta italiano em atividade no Brasil, bem apresenta o assunto de sua empresa: a “cultura”, tomada por ele como a atividade agrícola, e a “opulência” ou riquezas passíveis de uso pela Coroa nas terras austrais. Das riquezas, as que considerou principais: o açúcar da Bahia e de Pernambuco e a mineração recém-descoberta nos antigos Cataguazes – as Minas Gerais, no século XVIII – , grandes alvos da atenção e dedicação do inaciano, e a pecuária e o tabaco, aos quais reservou breves capítulos. O trabalho de Antonil é demasiado detalhado: há, por exemplo, no capítulo intitulado “Sumário de tudo que é normalmente exportado anualmente do Brasil para Portugal e seu valor” (ANTONIL, 2012, p. 207), a demonstração “do bem que o Brasil propicia ao reino de Portugal”, colocando um sumário do que apresentara nas outras partes do texto, inclusive com indicações numéricas, de onde conclui que “listando todas as informações juntas, não deixará de atrair mais atenção” (ANTONIL, 2012, p. 207), àquilo que optara por tratar em separado. Outros tantos exemplos poderiam seguir.

A obra não conheceu, porém, sucesso em seu tempo. Pouco depois de ser dada à prensa, recebeu ordem régia de que a recolhessem “logo e não se deixe correr” e, mesmo tendo passado pelo crivo censor dos peninsulares, foi então julgado que suas licenças haviam sido “dadas sem a ponderação que pede um negócio público”.1 Fosse porque “o livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostrando toda a sua possança, justificando todas as suas pretensões, esclarecendo toda a sua grandeza” (ABREU, 1969, p 196), pela possibilidade de ter sido apreciada apenas pelo Tribunal do Santo Ofício (SILVA, 2011, p. 53), por ter revelado o caminho do ouro aos estrangeiros (SCHWARTZ, 2012, p. XI), pela conjuntura política de Portugal naquele início de século (LEITE, VII, p. 111-113) ou por nenhuma dessas razões, o fato é que apenas sete exemplares remanesceram da tentativa de extirpe. Após a “redescoberta”, em 1800, daquele texto inacessível, as edições, parciais, alteradas ou mais verossímeis, passaram surgir e, com elas, novas formas de se ler o período alvejado pelo irmão Andreoni.

Todos esses dados podem não configurar novidade àqueles que dominam o português, tanto se consideramos o volume de reedições quanto, especialmente, quando se têm à mão exemplares bastante completos e precedidos de estudos exaustivos sobre o período e a obra, como o de Andrée Mansuy Diniz Silva – publicado na França e em Portugal (2001), reeditado pela Edusp/São Paulo (2007) e tida como “versão definitiva” do texto em francês por Stuart Schwartz. Esse leitor pode acessar com facilidade, ainda, reflexões de autores de relevo, especificamente sobre o jesuíta e sua “Cultura e opulência” ou que o abordam para dar as cores do Brasil Setecentista, como Capistriano de Abreu, Affonso E. Taunay, Sérgio Buarque de Holanda, entre tantos outros. Há que se considerar, contudo, que mesmo com a menção a Antonil em importantes estudos estrangeiros, o texto integral ainda se mantinha fora do alcance de seus entusiastas não-lusófonos.

A primeira das edições na língua de Shakespeare, nesse sentido, procura trazer àqueles pesquisadores anglófonos o texto completo do jesuíta do Setecentos. Precedida de um breve prefácio do citado Professor Schwartz e uma igualmente breve introdução do tradutor final, Professor Coates, percebe-se que a preocupação de seus organizadores não rezava em rechear a edição com notas explicativas ou com um estudo mais detido sobre o conteúdo do documento. Não se caracteriza, igualmente, como uma versão fac-símile: é, pois, uma tradução que busca divulgar o texto do irmão da Companhia e, a partir das alterações que tornaram, segundo Coates, o texto inteligível ao inglês, fomentar outras pesquisas. A divisão dos capítulos e subcapítulos presente no original de 1711 foi integralmente mantida, assim como os termos que se mostraram não traduzíveis como tostões ou mascavos batidos (ANTONIL, 2012, p. 112). Apesar dessa tentativa de manter, com maior rigor possível, o texto pautado no original, a alteração do título salta aos olhos e acaba por alterar a intenção do autor primeiro; como era então corrente, Antonil oferece quase um resumo da obra no título: “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas, e minas; com várias notícias curiosas do modo de fazer o açúcar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descobrir as da prata; e dos grandes emolumentos, que esta conquista da América Meridional dá ao Reino de Portugal com estes, e outros gêneros, e contratos reais”. O novo batismo do texto, algo como “O Brasil na aurora do século dezoito”, em tradução livre, acaba por excluir aquilo que pareceu tão caro ao inaciano, a saber: enumerar com cuidado quais assuntos o leitor poderia encontrar no volume, embora ressalte que esse mesmo volume, para além de falar dos quatro itens elencados pelo italiano, é um panorama sobre aquele Brasil.

Se é verdade que a Coroa portuguesa viu nas linhas do jesuíta um verdadeiro mapa para as minas de ouro do Brasil, não com menor riqueza o historiador consegue vislumbrá-la. As prescrições e indicações de técnicas, caminhos e assuntos vinculados à produção, beneficiamento e comércio de gêneros aqui encontrados podem ser lidas como um verdadeiro panorama das relações sociais de outrora: através das descrições do funcionamento do engenho e dos centros mineradores, acabava por imprimir sua ótica não só da economia, mas das gentes do Brasil. Em português, francês ou inglês, a obra permanece como ponto de apoio e referência incontornável para os que se debruçam sobre a história econômica, do cotidiano, do trabalho, dos escravos…

Notas

1 CARTA do Conselho Ultramarino ao [?]. Lisboa, 17 de março de 1711.

Referências

ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1969.         [ Links ]

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas, e minas; com varias noticias curiosas do modo de fazer o assucar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descubrir as da prata; e dos grandes emolumentos, que esta conquista da America Meridional dá ao Reyno de Portugal com estes, e outros gêneros, e contratos reaes. Lisboa: Na Officina Real Deslandesiana, 1711. Disponível em http://ia700402.us.archive.org/3/items/culturaeopulenci00anto/ culturaeopulenci00anto.pdf. Acesso em: 15 abr 2013.         [ Links ]

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas etc [1711]. Introdução e comentário crítico de Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.         [ Links ]

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. volumes VI e VII. Lisboa, 1938-1951.         [ Links ]

TAUNAY, Affonso D’Escragnolle. Antonil e sua obra. Estudo biobibliográfico por Affonso D’Escragnolle Taunay. In: ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil [1711], 3.ª ed. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp, 1982. (Coleção Reconquista do Brasil)        [ Links ]

Ana Carolina de Carvalho Viotti – Doutoranda em História e Cultura Social na Universidade Estadual Paulista (UNESP – SP – Brasil). Historiógrafa do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa História (CEDAPH) da mesma Universidade. Contato: [email protected].

A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas – BENITES (H-Unesp)

BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, 120 p. Resenha de: ZIMMERMANN, Tânia Regina. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Tonico Benites pertence à etnia Kaiowá, da aldeia Jaguapiré, município de Tacuru. É graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – com a dissertação intitulada: “A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas” – e concluiu o doutorado na mesma instituição. Benites foi professor de Psicologia da Educação na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.

A obra que aqui apresentamos é resultado de suas pesquisas etnográficas nas aldeias Kaiowá de Sassoró e Jaguapiré, Mato Grosso do Sul. Ao longo dos três capítulos que compõem a obra, o autor centralizou seus estudos na escolarização promovida por órgãos públicos nas aldeias e nos impactos deste processo na educação escolar tradicional das famílias Kaiowá; seguem-se análises sobre a construção da educação indígena a partir do olhar de muitas famílias extensas, incluindo-se discursos de líderes religiosos e das novas gerações escolarizadas.

No primeiro capítulo, Benites pontua as tradições de conhecimento nas aldeias e a história de formas de dominação, desde a conquista europeia até a Guerra do Paraguai. Para o autor, os Guaranis são um povo resistente, pois, apesar dos contatos com os grupos colonialistas dominadores, eles mantêm até o tempo presente um modo comum de ser, viver e falar sua língua materna. Neste processo colonialista são analisados os trabalhos nos ervais, o sistema de aldeamento e a ação missionária. Para o autor, historicamente, os povos indígenas foram expulsos e desvinculados pelo Estado brasileiro de seus territórios antigos, que foram comercializados mediante leis que favoreciam principalmente os latifundiários. O Estado passou a considerar os indígenas, jurídica e socialmente, seres não civilizados, que estariam ainda em processo de evolução humana. Para Benites, a postura do governo brasileiro contribuiu para acentuar a discriminação e a manutenção de estigmas contra os indígenas.

Segundo Benites, os espaços territoriais conhecidos como reservas indígenas, nos quais os índios devem viver, são sítios de confinamento, nos quais os Guaranis e Kaiowás limitam seus modos autônomos de vivência e às vezes passam fome, miséria e perdem referências e tradições culturais.

Ainda neste capítulo, o autor analisa a constituição histórica das aldeias Kaiowá de Sassoró e Jaguapiré, nas bacias do rio Iguatemi, de Mato Grosso do Sul e os conflitos e divergências em relação à interferência do Estado ao impor um modelo de educação escolar denominada escola polo indígena municipal.

No capítulo seguinte, “Organização social e transmissão de conhecimentos entre os Ava kaiowá”, Benites nos brinda com uma análise da organização política e doméstica na perspectiva familiar e geracional e segue contemplando os rituais, normas, comportamentos, namoro-casamento, interferências religiosas externas e conflitos intra e intercomunitários. O autor finaliza o capítulo com a explicação do processo de educação de jovens e crianças pela família e comunidade, com ênfase nos espaços, e das técnicas e rituais de transmissão de conhecimento em práticas cotidianas. Para Benites, as crianças e jovens aprendem como devem viver e se comportar, de acordo com as práticas de cada família extensa.

No último capítulo, “Os Ava em face da educação escolar”, o autor aborda algumas lógicas e práticas escolares, religiosas e governamentais nas aldeias. Benites inova ao interpretar a educação escolar formal a partir do olhar dos Ava Kaiowá, ou seja, das famílias e dos líderes religiosos. O autor também enfatiza que há um entendimento de algumas famílias de que o ensino da escrita e a educação formal são fonte de diversos saberes, prestígio e poder político dos não indígenas. Para muitas famílias, a escola constitui uma instituição externa, que complementa sua educação tradicional. Por fim, Benites analisa o movimento indígena Kaiowá, que reivindicou a especialização de professores indígenas a partir da década de 90; esse projeto foi denominado “Ara Verá”. O autor conclui que, mesmo com o movimento, as atividades educativas nas aldeias permaneceram sob o domínio dos missionários da missão Evangélica Caiuá.

Eis o conjunto de interpretações produzidas pelo antropólogo Benites que constitui uma importante referência para pessoas ávidas por um saber aberto para a construção do novo, para o respeito ao diferente, ou seja, conforme as palavras do próprio autor: “[…] entende-se que esta escola indígena nas aldeias deve […] estar a serviço da diversidade de ser e de viver de cada família extensa contemporânea, o Ava kuera reko reta (‘modo de ser múltiplo’)”.

Tânia Regina Zimmermann – Professora Doutora do Curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, unidade de Amambai. E-mail: [email protected].

O navio negreiro: uma história humana – REDIKER (H-Unesp)

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 456 p. Resenha de: BARREIRO, José Carlos. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

A escravidão negra no Brasil é, provavelmente, um dos temas mais pesquisados pela historiografia brasileira. Muito se escreveu sobre o trabalho escravo nas lavouras de cana e café, no trabalho doméstico e nas cidades, com a prestação de pequenos serviços aos senhores, feita geralmente sob a condição de escravos de ganho.

As controvérsias entre as múltiplas formas de abordagem do tema continuam alimentando instigantes discussões entre os especialistas. Há os que defendem a ideia de que, no Brasil, a escravidão foi mais amena, comparada à de outros países. Outras vertentes enfatizam a brutalidade a que os escravos estavam submetidos nas relações de trabalho, o que impossibilitava sua reação ao sistema, eternizando-se sua condição de escravo. Muitos outros historiadores têm ressaltado, mais recentemente, a existência de uma consciência escrava que, embora fragmentária e ambígua, elevava o escravizado à condição de pessoa, como tal, capaz de se colocar como sujeito de sua própria libertação por meio de suas lutas cotidianas ao longo do tempo. Contudo, na maioria das vezes nossos estudos se limitam ao entendimento do escravo desde seu desembarque nos portos brasileiros até sua inserção nas relações de trabalho. São poucos ainda os que investigam as diversas etnias, culturas e linguagens dos habitantes do continente africano.

Marcus Rediker, ao contrário, percorre o caminho completo e complexo da reinvenção da escravidão no mundo moderno. Neste seu livro, desvenda a ação, muitas vezes concertada, das elites daquele continente aliadas ao comerciante europeu e ao capitão de navio e seus ajudantes no aprisionamento e venda dos escravos para as colônias do novo mundo. Estes deixavam suas terras para, amontoados nos porões dos navios negreiros, chegar a seu destino após meses de travessia.

Nesse sentido, a edição brasileira do livro de Rediker parece bastante oportuna para instigar a ampliação de nosso olhar historiográfico no exame da questão da escravidão sob uma ótica mais globalizada. Precisamos de mais pesquisas sobre a escravidão brasileira que a entenda como parte de uma economia atlântica que envolve não só Portugal e Brasil com todas as suas capitanias, mas também várias regiões do continente africano e outros países da América do Sul.

Em seu livro O tráfico negreiro: uma história humana, Rediker estuda a idade do ouro do tráfico negreiro no atlântico norte, ocorrida entre 1700 e 1808, quando 2/3 do total de escravos africanos foram transportados para as colônias inglesas em navios britânicos e americanos. Seu tema consta justamente de conhecer esses navios e sua composição, procurando saber como viviam as tripulações e os cativos durante a travessia atlântica, até a chegada ao novo mundo para o trabalho nas plantations.

Rediker está profundamente envolvido com o objeto que estuda. É sob a perspectiva de uma história militante que o autor elabora uma minuciosa etnografia do navio negreiro, revelando a verdade cruel que setores dominantes da sociedade inglesa do século XVIII procuravam esconder de si mesmos e da posteridade. Neste sentido, a tortura generalizada e o terror que caracterizaram a prática do tráfico e da escravidão transformaram o navio negreiro, diz o autor, em um navio-fantasma que ainda hoje viaja nas fímbrias da consciência moderna.

Nesta linha, é bastante apropriada a forma como constrói seu livro, descrevendo do primeiro ao último capítulo casos impactantes de castigos, epidemias e crueldades que ocorriam durante a travessia. Os acontecimentos do navio Zong, em 1781, capitaneado por Luke Collingwood, são apenas alguns dos exemplos destacados no livro que, segundo o autor, constituiu-se provavelmente na mais terrível das atrocidades ocorridas ao longo dos 400 anos de história do tráfico.

Quando efetuava a travessia, o capitão Collingwood reuniu os marinheiros para ordenar que os escravos atingidos pela epidemia que assolava o navio fossem atirados ao mar para evitar maiores prejuízos com a morte de muitos outros mais. Apesar da oposição de alguns membros da tripulação, prevaleceu a vontade do capitão e, já na primeira noite, a tripulação atirou ao mar 54 escravos de mãos amarradas. Dois dias depois, outros 42 foram arremessados ao mar e, posteriormente, mais 26. Dez escravos assistiram ao pavoroso espetáculo e atiraram-se ao mar por vontade própria (p. 248).

Todo o drama começava com a construção do navio por uma equipe especializada de trabalhadores dos estaleiros, encomendado pelo comerciante com a tonelagem e as especificações adequadas para tráfico e para o transporte das mercadorias que seriam trocadas por escravos nas feitorias da Costa da África. À construção do navio seguia-se a montagem da tripulação, que envolvia a contratação do capitão, do piloto e também geralmente de um médico. Os marinheiros comuns eram arregimentados pelo capitão do navio, que percorria as tabernas encontrando-os quase sempre bêbados e sem dinheiro. Embora sempre querendo esquivar-se do trabalho nos navios negreiros, acabavam, sem alternativa, assinando contratos enganosos e embarcando para a costa da África.

As várias tribos do continente africano viviam em estado de guerra permanente mesmo antes da chegada dos europeus, e os capitães de navio entravam em contato com as elites negras para adquirir suas presas em troca de armas e outras mercadorias. Por exemplo, em alguns momentos históricos, os fons ou os axantes estendiam seus domínios sobre povos vizinhos. Havia também “guerras permanentes” entre grupos menores, como os conflitos entre os golas e os ibaus. Assim, a maioria dos africanos que se encontravam em navios negreiros teve esse destino porque eles haviam se transformado em prisioneiros de guerra vendidos aos traficantes por chefes de tribos poderosas da África. As guerras ocorriam com muita frequência entre as tribos africanas. Mas muitas vezes elas eram estimuladas pelos traficantes europeus e americanos e começavam assim que um navio negreiro aparecia na costa.

Os comerciantes locais, com a ajuda – e armas – do capitão do navio negreiro, preparavam pequenos destacamentos que eram conduzidos por canoas ao interior do continente para fazer guerra e recolher os escravos, que eram depois vendidos ao financiador da expedição.

Um dos pontos fortes da pesquisa refere-se à parte em que o autor reconstitui o vigoroso movimento abolicionista inglês para conseguir o fim do tráfico de escravos na Inglaterra, cujo pico ocorreu por volta dos anos 1788-1789. A partir de então, esse grupo de homens tomou consciência de que os horrores do tráfico de escravos eram moralmente indefensáveis e essa violência devia ser conhecida em todos os portos africanos de embarque e também nos principais portos e cidades inglesas e americanas.

Rediker reconstitui minuciosamente o movimento dos abolicionistas e reúne farta documentação produzida por aqueles homens em sua intensa militância. Com esse material, consegue desvendar aspectos importantes de toda a cadeia do tráfico, desde o porto de embarque até seu destino final, utilizando-se de pesquisas e depoimentos que os abolicionistas ingleses prestaram ao parlamento britânico, à época do esforço que empreendiam para a cessação do tráfico. Com sua luta, eles conseguiram tornar o navio negreiro uma realidade palpável, por meio da produção de muitos pronunciamentos, palestras, poesias e recursos visuais.

É particularmente notável a luta, a liderança e o trabalho do abolicionista Thomas Clarkson que, junto com seus companheiros, percebeu que o movimento não podia avançar sem provas. Clarkson percorreu as associações comerciais e as alfândegas de Bristol e Liverpool, lá encontrando listas de chamadas pelas quais computou os índices de mortalidade dos escravos, além de nomes de 20 mil marujos, para saber o que acontecera com eles. Reuniu ainda contratos salariais para verificar as condições de trabalho e emprego daquela gente. Mas, acima de tudo, ao trabalhar como um historiador social e adotar uma abordagem baseada na história oral, Clarkson foi ao encontro das pessoas na zona portuária para entrevistá-las.

Seguindo a narrativa de Rediker sobre a luta dos abolicionistas ingleses (viva e bem documentada), é impossível não nos perguntarmos a respeito do caráter relativamente inexpressivo do movimento abolicionista brasileiro, se comparado à luta incomensurável dos ingleses, que acabaram vencendo o lucrativo e tenebroso negócio do tráfico no Atlântico Norte. Se história de tal intensidade existiu no Brasil ela ainda espera, adormecida, por historiadores que a ressuscitem dos empoeirados arquivos brasileiros e portugueses.

Além da documentação produzida pelos abolicionistas, Rediker encontrou inúmeras memórias de capitães de navios negreiros, registros e depoimentos de médicos que faziam parte da tripulação do navio, diários de viagens para a África, bem como depoimentos e biografias de marinheiros comuns. Chama atenção a acuidade com que a documentação é analisada, principalmente quando se trata de registros mais conhecidos, como a biografia do marinheiro comum Olaudah Equiano. Rediker compara os vários estudos já existentes sobre Equiano peneirando eventuais exageros contidos na biografia ou separando o que ali existe de ficção e realidade.

É possível entender o valor informativo e crítico da obra de Rediker não apenas pela farta documentação que conseguiu encontrar, mas também por ter se beneficiado com uma volumosa massa de pesquisas sobre a África produzida por historiadores ingleses e americanos, divulgadas nas últimas três décadas em forma de livros e revistas especializadas.

Da versão atualizada dos trabalhos de David Eltis, Stephen D. Behrendt, David Richardson e Herbert S. Klein, A transatlantic slave trade: a database on CD-ROM, Rediker utilizou-se de dados quantitativos importantes que serviram de complemento e sustentação à documentação de caráter mais qualitativo. Mas seria impossível pensar no êxito dessa empreitada de Rediker sem sua sensibilidade e envolvimento com a causa que abraçou.

José Carlos Barreiro – Professor Titular de História do Brasil do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, UNESP. Av. Dom Antônio, 2.100, Jardim Universitário, CEP 19 806-900, Assis-SP.

La República en Guerra. Contra Franco, Hitler, Mussolini y la hostilidad britânica – VIÑAS (H-Unesp)

VIÑAS, Ángel. La República en Guerra. Contra Franco, Hitler, Mussolini y la hostilidad britânica. Barcelona: Crítica, 2012. 406p. Resenha de: AVILA, Carlos Federico Domínguez. História [Unesp] v.31 no.2 Franca July/Dec. 2012.

O livro de Ángel Viñas é uma síntese de 40 anos de pesquisas sobre a traumática guerra civil espanhola (1936-1939). Após décadas de estudos, investigações e publicações em numerosos países, Viñas entrega aos leitores – especialistas e leigos – uma obra de notável valor intelectual, de altíssima consistência teórico-metodológica e de exemplar transcendência historiográfica.

A guerra civil espanhola foi um dos acontecimentos mais dramáticos do século XX, em particular, e da história contemporânea, em geral. Seu impacto e desdobramentos ainda provocam debates e polêmicas no cotidiano do povo espanhol – eis os casos da recente exoneração do juiz Baltazar Garzón ou da questão separatista da Catalunha – e das dezenas de milhares de espanhóis e descendentes que, logo após a derrota da República, tiveram que se exilar em outros países e continentes, especialmente na França e no México.

A obra de Viñas é particularmente convincente ao estudar a dimensão exógena do conflito – afinal, trata-se de livro de história das relações internacionais. Ao longo de mais de 400 páginas, o historiador espanhol explora documentalmente as convergências e divergências entre as principais potências com vínculos e interesses do devir daquela conflagração. A esse respeito, cumpre mencionar que o livro aborda detalhadamente as percepções, as prioridades e as políticas instituídas pela Alemanha de Hitler, pela Itália de Mussolini, pelo Portugal de Salazar, pela União Soviética de Stalin, pela França de Blum, pelo Reino Unido de Baldwin e de Chamberlain e, em menor medida, também pelos Estados Unidos de Roosevelt e pelo México de Cárdenas. Evidentemente, Berlim, Roma e Lisboa apoiaram de forma alta e crescente o esforço bélico do lado franquista; Moscou e, modestamente, Paris ajudaram o lado republicano-democrático. Outrossim, o livro questiona duramente a atitude ambivalente e, finalmente, favorável ao franquismo, do governo inglês.

A dimensão endógena da guerra civil espanhola é explorada de forma menos intensa. Mesmo assim, personalidades e organizações políticas, sociais e militares de diferentes orientações ideológicas são discutidas com propriedade e equilíbrio. Lembremos que o conflito espanhol foi particularmente complexo ao envolver atores com uma imensa e polarizada diversidade de propostas e alternativas, inclusive os seguintes: socialistas, republicanos, comunistas, falangistas, monarquistas, anarquistas, ruralistas, integristas católicos, regionalistas (catalães e bascos), e militaristas.

E da interconexão das dimensões endógena e exógena da guerra civil surge, vale reiterar, uma obra paradigmática. Em outras palavras, o livro de Viñas é uma obra magistral, e seus resultados são mais que satisfatórios.

Na conta dos aspectos problemáticos ou negativos, mencionem-se fundamentalmente algumas ponderações excessivamente desdenhosas que o autor do livro utiliza para criticar as publicações de autores pós-franquistas. Salvo melhor interpretação, essa tentativa de caçoar ou denegrir o trabalho alheio – mesmo quando se trata de publicações acadêmicas de desafetos – acaba sendo um despropósito.

Em conclusão, a obra de Ángel Viñas é sumamente importante, inclusive para os autores brasileiros. Em consequência, fazemos votos de que esse livro seja eventualmente traduzido para o português. E que sua leitura incentive novas pesquisas de historiadores brasileiros sobre um assunto de grande relevância e, a meu ver, pouco investigado nos arquivos do País.

Carlos Federico Domínguez Avila – Doutor em História das Relações Internacionais, Docente do Mestrado em Ciência Política do Centro Universitário Unieuro e do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília – UNICEUB.

 Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II – CALDEIRA (H-Unesp)

CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011, 335 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.31 no.1 Franca Jan./June 2012.

O objetivo de Rodrigo Coppe Caldeira em Os Baluartes da Tradição é apresentar a atuação e as principais ideias dos bispos brasileiros Antonio de Castro Mayer (1904-1991) e Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) durante o Concílio Vaticano II (1962-1965). Os dois prelados, expoentes do catolicismo conservador e antimoderno no Brasil, encabeçaram, junto com Marcel Lefebvre (1905-1991) e com o apoio de alguns bispos italianos e latino-americanos, a Aliança Conservadora minoritária, que lutou pela manutenção, pode-se assim dizer, de uma Igreja do século XIX no século XX. Uma Igreja de matriz institucional ultramontana e cuja perspectiva integrista apresentava-se irredutível às novidades possíveis de ameaçar a autoridade da tradição eclesiástica fortemente sedimentada.

Em tempos de concordata entre o Brasil e o Vaticano – firmada em novembro de 2008 – e levantamento das excomunhões impostas pela Santa Sé à Fraternidade Sacerdotal São Pio X (janeiro de 2009), que contava entre seus membros com o bispo negacionista Richard Williamson, é oportuno trazer à luz questões que atribulavam os bispos antimodernos mergulhados no acontecimento mais importante do século XX para a Igreja romana.

Embora na Europa seja fecunda a literatura especializada sobre o Concílio II, no Brasil continuam escassos os estudos mais específicos e verticalizados que abordem a participação dos prelados brasileiros no evento, além de serem poucas as reflexões da historiografia sobre as ressonâncias das normativas no período pós-Concílio.

Originalmente uma tese de doutoramento defendida pelo autor na Universidade Federal de Juiz de Fora-MG, o texto de Caldeira dialoga com e complementa estudos de envergadura, como o de José Oscar Beozzo (2005), que construiu interessante prosopografia dos bispos brasileiros envolvidos no Concílio.

Disse-o bem Annibale Zambarbieri (1995) que, num Concílio ecumênico, vicejam tensões, estratégias de luta e disputas por classificações e hegemonias discursivas equivalentes a um parlamento: lugar no qual a astúcia política faria sombra à ética religiosa. A noção de “campo de lutas simbólico-normativas”, empregada por Caldeira, em que duas tendências que disputam espaço num determinado cenário social lutam obstinadamente por certa hegemonia, parece responder adequadamente a essa equivalência. Tal campo de lutas acentuou-se no século XIX, quando o Vaticano I (1869-1870) adquiriu claros contornos de enfrentamento entre maiorias e minorias que eram, e são, comuns às assembleias parlamentares modernas ao institucionalizarem os conflitos sociais. Dentro do modelo que interpreta a história conciliar operando analogias às câmaras políticas cabe, por exemplo, assinalar o estudo do eminente historiador francês Philippe Levillain, publicado pela primeira vez em 1975: La mécanique politique de Vatican II. La majorité et l’unanimité dans un Concile.

O estudo de Caldeira sai em busca da constatação dessas tensões, dividindo-se em duas partes, assim constituídas: a Parte I, composta por quatro capítulos que abordam a época anterior da realização do Concílio e a emergência e consolidação de um catolicismo antimoderno; a Parte II, com cinco capítulos, que discute exclusivamente a atuação e as intervenções dos católicos antimodernos brasileiros no Concílio.

O autor recorre a um amplo universo de acervos documentais para demonstrar os papéis assumidos na minoria conciliar pelos bispos brasileiros: arquivos do Istituto per le Scienze Religione di Bologna, Biblioteca da Obra Social Redentorista Pesquisas Religiosas, fontes oficiais do Concílio, diários e crônicas produzidos no calor do momento, como o são as descrições de Frei Boaventura Kloppenburg (1919-2009) e do teólogo dominicano e futuro cardeal Yves Congar (1904-1995). Todavia, a fonte mais original do estudo talvez seja os arquivos pessoais do bispo Sigaud, localizados em Diamantina (Minas Gerais). Nesse grupo de testemunhos, são identificadas as alianças forjadas entre os religiosos que, em graus diversos, comungavam da mesma constelação de valores tradicionalistas. Caldeira também divulga que a base doutrinária de onde partiu a ação dos bispos antimodernos foi a organização Coetus Internationalis Patrum (Grupo de Padres Internacionais), liderada por Lefebvre ao menos nominalmente e com expressivo protagonismo de Geraldo Sigaud, síntese do antimodernismo religioso brasileiro na segunda metade do século XX.

Os bispos organizados na minoria tradicionalista – ligada às formas clássicas situadas entre o Concílio de Trento e o Vaticano I – defendiam a irredutibilidade da tradição apoiada na compreensão de uma igreja marcadamente antimoderna que, por sua vez, segundo Caldeira, atualizava-se com base em três pilares-chave: a especificidade da Virgem Maria na economia salvífica; o anticomunismo, o antijudaísmo (p. 17). É desses elementos que se desdobram os novos problemas que iriam surgir nos chamados “esquemas”, produzidos pelos padres a fim de deliberarem sobre as relações entre uma Igreja tensionada pelas divisões doutrinárias e um mundo social plural e complexo. No polo oposto aos conservadores se reuniram os bispos e teólogos pertencentes à Aliança Centro-Europeia, composta principalmente por eclesiásticos franceses e alemães desejosos de uma abertura da Igreja para o mundo, sem qualquer precedente até então.

Mas o que é ser antimoderno no contexto do catolicismo institucional? Ou, dito de outra forma, como as históricas bases do antimodernismo católico emergem reativamente nesse momento em que a Igreja romana se empenhava na busca de uma acomodação mínima e moderada com a cultura moderna?

Caldeira reconstitui a experiência antimoderna da Igreja desde a disjunção que a reforma protestante engendrou. Esse seria o movimento que iria inaugurar o paradigma moderno, trazendo “transformações substanciais no panorama político-religioso e também nas consciências dos indivíduos [individualização da fé] ao longo dos tempos” (p. 30). Além da reforma, o autor situa o iluminismo como um movimento que minou a cristandade, acelerando o colapso da visão teocêntrica e reconfigurando a ordem mundana sem a presença da religião; e, por fim, a revolução francesa, o “grande satã” do século XVIII, que gerou um dos frutos mais amargos a ser digerido pela Igreja no século seguinte: o liberalismo.

A alternativa da Igreja decimonônica frente ao avanço da secularização e da laicidade foi uma centralização, que descambou para o centralismo, ou seja, o excesso dogmático e a obsessão por não abrir vias de comunicação com as igrejas locais, tornando absolutas as decisões da burocracia romana e abrindo um conflito com vários Estados nacionais, que derrogaram o princípio da confessionalidade nas suas constituições.

A formação de um catolicismo antimoderno no Brasil foi possível graças à vitalidade assumida na terceira década do século XX pela Igreja que, ao recuperar a herança dos modelos conservadores do século XIX e início do XX, construiu sólidas alianças com o poder político: “Com as mudanças conjunturais que ocorreram com a tomada de poder por Getúlio Vargas, a Igreja passou a uma nova fase na vida pública do país” (p. 93).  O período, chamado de fase de “restauração” católica no país, pareceu estabelecer pontos de contato e fornecer inspiração para o que viria a ser, nas duas décadas após a segunda guerra, uma rede de conservadorismo católico sob a liderança de leigos, como Plínio Correa de Oliveira, líder da TFP, e de religiosos com estreitas relações no plano internacional, como Sigaud e Mayer.

Assim, quando João XXIII foi eleito em 1959 o “papa de transição” e logo anunciou a realização de um concílio, os antimodernos se mobilizaram em torno das principais demandas que os afligiam; como salienta Caldeira:

As matérias que eram caras aos antimodernos e as quais deveriam se empenhar defensivamente contra as ideias introduzidas pela Aliança e seguidas pela maioria eram as seguintes: a liturgia codificada pela tradição, a transmissão imutável da revelação, a inerência das Escrituras, a estrutura hierárquica da Igreja, o primado do catolicismo sobre as outras tradições religiosas, o dever do Estado assumir a moral católica e a moral cristã (p. 131).

Os antimodernos temiam a renovação da Igreja, a promoção da unidade dos cristãos e um aprofundamento das relações da Igreja com o mundo contemporâneo. Essa pauta, reforçada por Paulo VI após o curto papado de João XXIII, seguiu as linhas mestras elaboradas por este último. Neste sentido, o Concílio devia pensar a Igreja em duas direções: ad intra e ad extra (p. 156).

O já mencionado Coetus nasce, segundo Caldeira, entre 1962 e 1964, em razão das expectativas que se transformaram em angústias para os antimodernos. É no interior desse grupo de pressão que também emerge o papel mais visível de Sigaud na condução dos trabalhos, ao ser escolhido – ou se impor – como seu secretário:

[…] os indícios advindos dos arquivos de Sigaud dão a entender que o Grupo de pressão se institucionaliza em outubro de 1964, a partir de algumas iniciativas encabeçadas por Sigaud como a compra de uma impressora rotativa offset, a organização sistemática de reuniões, e a escolha de um porta-voz com o estatus de cardeal, escolha que recaiu sobre o arcebispo de Manila, cardeal Santos (p. 181).

A partir do grupo constituído e da conexão com outras redes tradicionalistas, como o ROC (Romana Colloquia), definem-se as bases de sua atuação, bem como o poder de pressão que terá, tanto nos bastidores quanto nos momentos-chave de deliberação dos “esquemas”. A linha assumida pelo Coetus far-se-á de acordo com os seguintes princípios, que seriam defendidos no resultado final dos textos conciliares: 1) defesa do primado papal e recusa de uma gestão colegiada que pudesse colocar em risco, sobretudo, as hierarquias das igrejas locais diante de “novas teologias”, mas, principalmente, diante do avanço das Conferências Nacionais; 2) negação da liberdade religiosa e da igualdade de direitos para todas as religiões, pois somente a religião verdadeira (a católica) teria o direito de ser professada publicamente (tese defendida por Mayer); 3) manutenção da “tradição” de culpabilidade dos judeus pela morte de Jesus; 4) luta contra a renovação litúrgica, notadamente contra a introdução das línguas nacionais na liturgia da missa; 5) condenação explícita do comunismo e das doutrinas que contradiziam a razão e a experiência comum da humanidade e levavam o homem a decair em sua excelência natural.

Para os antimodernos, o Vaticano II parece ter sido visto como a oportunidade de ratificação do Vaticano I. Repensar a política da Igreja diante do mundo era uma alternativa pouco concebível. “Mundo”, nesse contexto, era uma dimensão divorciada de qualquer injunção ou influência frente à Igreja. Este princípio tendia a desfazer o pressuposto inicial de João XXIII, que desejava, ao longo do Concílio, formular uma concepção doutrinária que desse conta de ajustamentos parcimoniosos e sem rupturas, interna e externamente.

Caldeira, tomando as palavras de Paulo VI no encerramento do Concílio, ratifica a tese de que as possíveis novidades foram contidas ou ganharam a sua “justa proporção”, atendendo aos interesses de minoritários e aliancistas. Desse modo, permanece a questão sobre o aggiornamento: não foi ele mais do que um rearranjo acomodatício ou significou uma renovação excessivamente moderada que os anos de conflitos posteriores denunciariam? Talvez um pouco de cada coisa. Caldeira informa que, malgrado os esforços de Paulo VI na criação de comissões posteriores com o objetivo de preparar instruções que indicariam como aplicar, de modo concreto, o resultado dos debates conciliares, o que predominou foi a interpretação particular das correntes que se formaram, pró e contra suas normativas. Uns, denunciando os excessos, outros, desejosos de avançar no sentido de um “cristianismo de libertação” e dialético. Quanto aos antimodernos, como nota Caldeira, houve o afastamento progressivo de Sigaud em relação a Lefebvre e Mayer. O bispo de Diamantina passou a discordar do radicalismo negativo de ambos, o que teria encaminhado as teses tradicionalistas à marginalidade.

Por causa dessa radicalidade, que chegou ao extremo na década de 80 do século XX com as excomunhões de Lefebvre e Mayer, o autor conclui:

Os grupos conservadores tornaram-se, no imediato pós-Concílio, sempre mais marginais na geografia eclesial, principalmente no Brasil, no qual o avanço de um ‘cristianismo de libertação’, ligado claramente às posições marxistas, levou a Igreja brasileira a ser considerada uma das mais progressistas do mundo (p. 249).

O estudo de Caldeira reafirma a persistência de um estado de crise reconhecido pelo atual papa (Bento XVI) ao declarar que tal estado deve-se, em muito, “à hermenêutica que privilegia a noção de ruptura do evento Conciliar” (p. 250). De fato, o catolicismo é um mundo em crise e, apesar de sua pretensão de homogeneidade, o que permanece do Vaticano II parece configurar um duplo dilema: conciliar a antítese tradição-progresso como tema central da história de uma Igreja católica imersa na modernidade; questionar em que medida existe renovação, ou há vontade de renovação, na Igreja, levando-se em conta o risco de uma ruptura.

Marcos Gonçalves – Doutor em História – Professor Adjunto da Universidade Estadual do Paraná – Campus Paranaguá. Rua Comendador Correia Júnior, 117 – CEP 83203-280 – Paranaguá/PR, E-mail: [email protected].

Guerras e Escritas: a correspondência de Simón Bolívar (1799-1830) – FREDRIGO (H-Unesp)

FREDRIGO, Fabiana de Souza. Guerras e Escritasa correspondência de Simón Bolívar (1799-1830). São Paulo: Ed. UNESP, 2010, 290 p. Resenha de: DULCI, Tereza Maria Spyer. História [Unesp] v.31 no.1 Franca Jan./June 2012.

Simón Bolívar tem lugar cativo na memória política e social da América Latina, inclusive como mito inspirador de diferentes bandeiras político-ideológicas. Por sua vez, as versões históricas em torno das independências hispano-americanas foram construídas a partir dos próprios escritos do “Libertador”, que criou uma identidade de “herói sem fronteiras”.

Em seu livro Guerras e Escritas: a correspondência de Simón Bolívar (1799-1830), publicado pela Editora Unesp, a historiadora Fabiana de Souza Fredrigo, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás, investiga o culto a esse mito. Seu trabalho, que mescla história, memória, literatura e biografia, deu-se a partir da análise das cartas de Bolívar (2.815), buscando identificar os vínculos construídos entre a memória individual, a memória coletiva e a historiografia em torno das independências e de Simón Bolívar.

Sua análise é bastante original, já que utiliza as missivas para buscar a subjetividade de Bolívar e dos diferentes atores históricos que aparecem nas cartas. A historiadora procura apresentar o mundo do general a partir do contexto depreendido das correspondências, sem seguir a cronologia tradicional, pois seu objetivo central é investigar os temas mais relevantes do epistolário, debruçando-se sobre o que se tornou importante para Bolívar no contexto em que vivia.

O que lhe interessa não é compreender por que Bolívar foi escolhido ícone das independências latino-americanas, mas, sim, como ele produziu esta escolha ao criar seu próprio mito. Para a autora, “Simón Bolívar torna-se o Libertador, primeiro, por suas ações e suas palavras, tão valiosas como a espada; segundo, pelo efeito inebriante que o ideal de liberdade produz em meio à memória coletiva” (p. 64).

O livro é composto por três capítulos, ao longo dos quais a historiadora desenvolve a tese de que, ao escrever cartas, o general procurava construir um projeto de memória de si e dos outros (do indivíduo e do seu grupo/do remetente e do destinatário). Bolívar acreditava que suas memórias atingiriam e mobilizariam as gerações futuras, “tinha projetos urgentes em um presente concreto, mas sempre apontava para o futuro, guardião da sua imagem” (p. 47-48).

Para o missivista e seus contemporâneos, a consagração da memória era percebida como sinônimo de posteridade. A autora, ao fazer uma releitura do epistolário, afirma que o culto ao general teve o próprio Bolívar como seu principal arquiteto, já que seu projeto de memória foi construído a partir de uma cuidadosa escolha dos temas, de como escrever sobre eles e da constância das suas cartas. Segundo Fredrigo, em suas correspondências “Bolívar atuou como historiador, quando selecionou, registrou e arquivou os ‘fatos'” (p. 271).

No primeiro capítulo, “As cartas, a história e a memória”, a historiadora desenvolve suas reflexões a partir do cotejo das biografias de Bolívar com as missivas, buscando reconstruir as dimensões históricas do personagem. Ao identificar duas principais fases na vida do general – a das guerras de independência contra a Espanha, permeada de otimismo, e a das guerras civis entre as lideranças que tinham diferentes projetos para a América (o unitarismo de Bolívar versus o federalismo de Santander), carregada de ressentimento e pessimismo – a autora nos propicia um interessante panorama do autoexame feito pelo general em suas cartas, escritas com o objetivo de convencer o interlocutor e edificar o personagem.

Também nesse capítulo, a historiadora se preocupa em discorrer sobre as correspondências (que detêm status de fonte privilegiada) e discutir as relações entre história, memória e epistolário. Ao abordar as particularidades da fonte e analisar como estas foram apropriadas pela historiografia, Fredrigo analisa, com uma grande riqueza de detalhes, não apenas o contexto e a criação do mito, mas também seu estilo de escrita, as especificidades do discurso e a construção narrativa.

A autora traça igualmente um interessante panorama das apropriações do mito bolivariano na Venezuela, onde foi e continua sendo usado para representar a coesão nacional, seja pela elite do século XIX, seja durante a ditadura de Juan Vicente Gomes (1908-1935), ou a partir da revolução chavista e da República Bolivariana. Fredrigo leva o leitor a perceber que a historiografia bolivariana é repleta de anacronismos e que as palavras de Bolívar foram interpretadas por grande parte da historiografia como verdade histórica absoluta, sem crítica às fontes. Além disso, as biografias do general usam os mesmos marcos cronológicos e são geralmente estudos apologéticos. Para a historiadora, tanto as biografias quanto a historiografia, construídas desde sua morte, estabeleceram uma correlação entre a vida de Bolívar e o destino da própria América, como se Bolívar e América Latina formassem “uma só alma” (p. 68).

O segundo capítulo, “Guerra, honra e glória: atos e valores do mundo de Simón Bolívar”, trata da constituição de uma memória particular dentro da memória coletiva, pois as cartas interpretavam o passado e tinham um projeto de futuro. Para a autora, Bolívar, consciente de que produzia memória, buscava atingir seus contemporâneos e as gerações futuras. Por sua análise, vemos que o general e seus pares, a elite criolla, formavam uma “comunidade afetiva” e tinham valores comuns, baseados na “guerra, honra e glória”, valores que eram expressos e cultivados nas cartas, enquanto o povo era excluído dessa comunidade, mesmo que isso contrariasse a simbologia republicana.

Ao tratar dos diferentes atores históricos que aparecem nas missivas, a historiadora apresenta uma valiosa contribuição ao campo das identidades nacionais, demonstrando que estas tiveram de ser construídas no pós-independência para criar uma mesma comunidade de afiliação, “unindo os descendentes dos conquistadores aos descendentes dos conquistados” (p. 122), a partir de uma identidade focada em um projeto estatal republicano, federalista e oligárquico.

Para Fredrigo, Bolívar acreditava que era necessário construir uma narrativa que reforçasse o vínculo entre os criollos e os cidadãos comuns, baseada na humanidade das tropas e nas dificuldades dos campos de batalha. “A guerra, a honra, e a glória”, valores que teriam criado a coesão intraelite, não tiveram o mesmo efeito no povo, por isso Bolívar teria construído lugares de memória simultâneos, para os generais criollos e para os soldados, ao estabelecer uma imagem de si mesmo que reunia, ao mesmo tempo, as figuras de líder e de soldado.

Já o terceiro capítulo, “Construindo a memória da indispensabilidade: o discurso em torno da renúncia e do ressentimento”, se detém na análise da principal estratégia utilizada por Bolívar nas missivas para edificar seu mito, qual seja, a criação de uma “memória da indispensabilidade”. Essa memória foi articulada a partir de um discurso polifônico, fundamentado na evocação da “renúncia” e do “ressentimento”, elaborado pelo general para refutar as acusações de autoritarismo e apego ao poder e para fortalecer a ideia de homem público dedicado incondicionalmente ao povo e à pátria. Para a autora: “É a partir da fusão entre a necessidade de legitimidade, determinada pelo jogo político do presente, e o desejo de memória, delimitado pela perspectiva do futuro, que o missivista constrói e solidifica a memória da indispensabilidade” (p. 190).

Esse capítulo é, certamente, o ponto alto do livro. Nele, ao analisar o epistolário em diálogo com a literatura e a biografia, a historiadora trata do romance de Gabriel García Márquez (GARCÍA MARQUEZ, 1989) e da biografia de Salvador Madriaga (MADRIAGA, 1953). Em ambos os casos, Fredrigo estuda o culto bolivariano e a apropriação que os dois autores fizeram da “memória da indispensabilidade” forjada por Bolívar. A ficção literária e a biografia, embora de formas distintas, acabaram por reiterar a imagem que o general criou de si mesmo para a posteridade.

Assim, a leitura deste livro constitui, sem dúvida, uma rara oportunidade de acompanhar a historiografia bolivariana e a construção deste mito, o cotidiano das tropas e das guerras de independência na América do Sul, bem como os embates entre a elite criolla e o povo.

Referências 

GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. O general em seu labirinto. Rio de Janeiro: Record, 1989.         [ Links ]

MADRIAGA, Salvador. Bolívar: fracaso y esperanza. México: Editorial Hermes, 1953. Tomos I e II.         [ Links ]

Tereza Maria Spyer Dulci – Doutoranda pelo Departamento de História da FFLCH/USP – Av. Prof. Lineu Preste, 338 – Bairro: Cidade Universitária. São Paulo – SP. CEP: 05508-000. E-mail: [email protected].

A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845) – TORRÃO FILHO (H-Unesp)

TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010. 347 p. Resenha de: GAMA, Luciana. Retórica na Pitoresca Confusão da Literatura de Viagem. História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

Ordem para a cidade é o heroísmo dos homens, para o corpo a beleza, para a alma a sabedoria, para o ato a excelência, para o discurso a verdade; o contrário disso é a desordem. E, em relação ao homem, à mulher, ao discurso, à ação, à cidade e ao ato particular é necessário honrar com louvor o digno de louvor e sobre o indigno aplicar censura; pois igual erro e ignorância é censurar as coisas louváveis e louvar as censuráveis.

(Górgias, Elogio de Helena).

Com o intuito de demonstrar como o caráter identitário presente nos relatos dos viajantes franceses e britânicos ocorre nas descrições da cidade Luso Brasileira nos séculos XVIII e XIX (1783-1845) edificando, portanto, o discurso da imagem de duas alteridades – a do construído e a do construtor – uma preocupação se impõe e objetiva a metodologia do livro lançado no ano de 2010 pela HUCITEC/ FAPESP, a saber, decifrar ao leitor como a historicidade da cidade colonial brasileira é moldada por meio da representação textual elaborada por autores como Debret, Maria Graham, Saint-Hilaire, Spix e Martius como Suzannet, Thevenot, Thomas Lindley e Luccock entre outros tantos citados e estudados por Amilcar Torrão em sua obra que, propositada, “não privilegia um ou outro autor, mas propõe uma visão de conjunto, por amostragem” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 34).

Aqui, vamos tratar do primeiro dos cinco capítulos, tendo em vista que é emblemático, fazendo-se, às vezes, de exórdio para a leitura dos subsequentes, já que desenvolve o raro questionamento do uso dos relatos de viagem pela historiografia posterior como descrições do real e do existente, como documentos de fidelidade objetiva. Assim, com bibliografia crítica contemporânea impecável e variada, surge uma confusão pitoresca a respeito das definições sobre o “gênero viático” – ou para usar sua nomenclatura mais usual – sobre o “gênero literatura de viagem”. Demonstrando que o gênero, portanto, possui diversas definições, podemos considerar então, pelas negativas, que o que não está definido, indefinido está: seja por sua especifica pluralidade, seja pela grande força esponjosa que o termo “gênero” adquire quando se trata de uma categoria trans-histórica como a denominada por “literatura de viagem”, que se apresenta melhor como um frango com tudo dentro do que como um gênero propriamente dito.

Ao apontar, por exemplo, que uma das principais características do gênero é a problemática de classificá-lo porque é “enorme a sua diversidade de registros” e ao mesmo tempo “grande sua permeabilidade” o autor toca num ponto nefrálgico e naufragável ao descrevê-lo “do ponto de vista da forma” como “diário de campo, cartas, relato, relatório científico, itinerário, relato de peregrinação; além de suas formas ficcionais em prosa e poesia” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 39). Nefrálgico, porque a literatura de viagem não foi associada hermeneuticamente na sua ascensão moderna com um gênero maior como o épico, por exemplo, que comportava obrigatoriamente dentro de si preceitos do gênero trágico, dos quais dependia para formar seu conceito e suas regras, mesmo que um estudioso de envergadura de Normand Doiron tenha generalizado sua definição para “um gênero literário claramente constituído, ‘ dotado de um estilo, de uma poética e de uma retórica que lhe são próprias'” e instituído com precisão: “a data da constituição do gênero de viagem em 1632, ano da publicação de três relatos importantes, de Champlain, Lejune e Sagard” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 37).

O que ocorre aqui, é que há um mesmo uso para o termo “gênero” para categorias que foram instituídas e, portanto, definidas anterior ao século XVIII pós-iluminista como a Ars dictaminis e os Tratados de Peregrinação, com termos que foram instituídos no fim do século XVIII, começo do XIX, como “ficção” e “literatura”. Naufragável, porque falar em gênero sem discutir o seu estatuto tão caro primeiramente a Platão e Aristóteles e depois em seu revival no século XVI, quando a Poética e a Retórica foram utilizadas para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar e em que são nitidamente demarcadas, não mudando o “tom preceptista a que o tratamento dos gêneros se associava” até o século XVIII (LIMA, 2002, p.258-260). Coloca em primeiro plano o desconhecimento de uma história dos gêneros, em que apenas seus apontamentos históricos nos orientariam para uma discussão que, se fomos nós que paramos não fomos nós que começamos: O que é literatura? O que é história? O que é ficção? O que é verdade histórica? Ou melhor formulando: Como é distinguível num texto o que é ficção do que é história?

A discussão estava em voga, para usar um exemplo próximo, no setecentos português e pode ser encontrada em autores como Cândido Lusitano e Francisco de Mello e Pina, ou, como fundamenta Adma Muhana “para a poética não se colocou a questão da falsidade ou veracidade da história como matéria da poesia porque a matéria da poesia é as ‘coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras’, importando sim, ‘a conveniência entre as coisas narradas e a imitação conduzidas”. Nesse sentido, “a história também é matéria bruta de toda poesia” e “apresenta-se incompatível com a arte da poesia. Do ponto de vista da poesia, natureza é história. Ou seja, o poeta imita pessoas, coisas e eventos, como os que encontra na história. Mas não são os mesmos: a história narra sucessos ocorridos, já singularizados em sua ocorrência, enquanto o poeta narra ‘verossímeis e possíveis’, nunca esgotados em sua possibilidade de ser” (GAMA, 2009, p.12). Ou, como arqueólogos do saber, podemos desenterrar com Hansen a obra Due Dialogi (1564) de Giorgio Gilio, que “inverteu o conhecido preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, uma arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra” (HANSEN, 1994, p.30). Ou podemos, ainda, recordar, quando se trata de Jean- Batiste Debret, que ” A prescrição de um ‘pintor historiador’ que substitui ‘o pintor poeta’ tinha por referência a fala de um papa, Gregório Magno: ‘A pintura é a história do ignorante’, e logo se transferiu para os discursos, visando regular-lhes a persuasão na propaganda fidei” (HANSEN, 1994, p.30).

No primeiro capítulo do livro de Amilcar Torrão, denominado “Imago Mundi”, chega-se a essa inquestionável pergunta – O que é ficção? – por meio da constatação de que literatura de viagem “trata-se de um gênero compósito, fronteiriço, e esse desejo de clareza e veracidade deve-se em muito, à proximidade que esses textos têm com a ficção, uma tensão que permeia toda a sua história e que colocava problemas difíceis de solucionar” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 43). Nesse sentido, a confusão se torna mais e mais pitoresca: a literatura de ficção e a literatura de viagem se utilizam ambas dos mesmos recursos para formar suas verdades e suas mentiras, ou, suas mentiras e verdades não sabendo mais o leitor o que é verdade ou mentira, o que é ficção o que é história, porque uma se utiliza da outra, sem fronteiras claras, em autores como Defoe, Swift, Walter Scott, Chateaubriand ou até mesmo Italo Calvino. Relembrando, Amilcar autor, obviamente discordando de Sylvie Requemora, que para ele organiza uma apresentação esquemática em demasia do tema:

[…] as relações entre literatura de viagem e a ficção são tão estreitas, que Requemora propõe sua periodização para o século XVII. No período de 1600 a 1640, a teoria da imitação prevalece e os romances barrocos imitam os gregos e os relatos de viagem imitam os relatos da Renascença; de 1640 a 1660 passa-se da imitação à história: seria a época do “Grande Romance” e da “viagem literária”; o terceiro período, entre 1650 a 1700, coloca questões de mímesis e de suas significações, por meio do “romance verdadeiro” e da viagem alegórica; e o período de 1670 a 1700, que vê o apogeu das aproximações entre a literatura e a viagem, com o desenvolvimento das viagens imaginárias e utópicas (TORRÃO FILHO, 2010, p.51).

É como colocar um imã próximo a uma bússola: aqui, obviamente, a confusão já fundamentou seus alicerces, mas para torná-la mais nítida e mais confusa há termos em uso como “retórica”, “tópica” “lugares-comuns (topos)”, “descrição”, “textos retóricos”, “repetição descritiva”, “tradição intertextual da viagem”, “procedimentos retóricos”, “retórica do gênero”, “retórica da alteridade”, “convenção retórica”, seja quando o autor vai tratar diretamente do tema ou quando cita os autores por ele estudados.

No entanto, faz-se necessário explicar, aqui, o que o autor está querendo dizer quando usa o termo “retórica”, tendo em vista que o objetivo do autor é “demonstrar como a descrição textual das cidades na literatura de viagem obedece a certas convenções e a uma ‘teoria’ trazida na bagagem do viajante, aos quais o historiador não pode desprezar ao utilizar-se de uma fonte tão rica de informações e, ao mesmo tempo, tão complexa em sua estrutura” (TORRÃO FILHO, 2010, p.89)

Possivelmente, Amilcar Torrão quando diz “retórica” está a se referir ao conjunto de regras que visam à persuasão cuja realização permite convencer o ouvinte do discurso e mais tarde, o leitor da obra, mesmo se aquilo que se pretende inculcar for “falso”. No entanto, também quando escreve “retórica” em seu texto está usando um termo genérico que não se mais sustenta nos dias de hoje como uma palavra metonímica que em seu todo oculta os detalhes de suas partes como técnica, como ensino, como protociência, como uma moral, como uma prática social e uma prática lúdica. (BARTHES, 1975, p. 148). O uso do termo retórica é usado geralmente para significar um discurso falso, diletante e de empirismo grosseiro, que foi muito bem definido e difundido a partir de Locke, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano III”, 10, 34:

[…] nós precisamos admitir que toda arte do discurso (redekunst), todo emprego artístico ou figurado das palavras encontrado pela eloqüência, não servem para nada além de provocar representações incertas, suscitar paixões e, através disso, desorientar (missleiten) o juízo, sendo assim, de fato, uma completa fraude (FONSECA, 1999, p.29).

O sentido de retórica como discurso falso é amplamente utilizado pelo senso comum nos séculos posteriores ao XVIII e nos faz esquecer de considerar o que Roland Barthes delineava como um verdadeiro império, um “Império Retórico” mais vasto e mais tenaz que qualquer outra dominação política, que por suas dimensões e duração, faz malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, a ponto de pôr em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pôde chamar, aliás, de uma história monumental. Lembremos, ainda com Barthes, que a retórica, mesmo com suas variações internas do sistema, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III (BARTHES, 1975, p. 150).

As preceptivas Retórica e Poética aristotélicas, claro está, se fundem a partir da época de Augusto com Ovídio e Horácio e são consagradas pelo vocabulário da Idade Média em que as artes poéticas são artes retóricas e os grandes retóricos são poetas. Esta fusão é capital, segundo Barthes, pois está na origem da ideia de literatura. Dessa retórica aristotélica, continua Barthes, teremos a teoria com o próprio Aristóteles, a prática com Cícero, a pedagogia com Quintiliano e a transformação por generalização com Dionisio de Halicarnasso, Plutarco e o Anônimo do tratado Do Sublime (BARTHES, 1975, p.156).

Assim reconsiderada, podemos redefinir que quando se diz retórica não se fala em uma sistematização pós-iluminista do saber, de um ramo que pertence exclusivamente às letras ou à literatura, mas de uma disciplina que – ensinada no Trivium e Quadrivium – se fundamenta no discurso sobre o discurso seja ele histórico, médico, geográfico, teológico, político, aritmético ou poético.

Podemos, agora, restaurar o uso de termos que nos são caros hoje em dia e lhes devemos respeito: “descrição” (descriptio) e “tópica” (topostopoi). A retórica, quando mutilada, fosse pela queda da disciplina na Universidade de Coimbra do Portugal pombalino e seus domínios ultramarinos no século XVIII, fosse por Jakobson que a reduziu toda aos tropos de metáfora e metonímia no século XIX, deixou rabos de lagartixas se mexendo durante os séculos posteriores e ainda estava fartamente em uso no século XIX e no Brasil, como nos demonstra Roberto Acízelo, em “O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista” (SOUZA, 1999). Essa autonomia caudal distraiu seus predadores enquanto se retirava para algum refúgio onde não poderia mais ser vista nem notada.

Da lagartixa retórica, cujo corpo não pode ser pensado sem suas cinco partes, a techne rhetorike compreende, a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memória; além disso, as três primeiras sobreviveram e alimentaram a retórica até o seu último suspiro no século XVIII e as duas últimas (actio e memória) foram rapidamente sacrificadas. Assim, apenas para resumir, quando estamos falando de tópica, estamos nos referindo a lugares que se referem à inventio de um texto, quando apontamos para uma descrição em um texto estamos nos referindo à dispositio de um texto e, por fim, quando nos referimos a metáforas ou a usos alegóricos, estamos tratando da elocutio.

Quando consideramos uma descrição das ruas de uma cidade num texto de um viajante dos séculos XVIII ou XIX e a deslocamos para fundamentar uma argumentação, estamos desconsiderando sua teleologia, isto é, a sua finalidade que comporta uma causa, que por sua vez, está explícita no prêmio da obra, porque não estamos levando em conta seus mecanismos de invenção e disposição retóricas. O uso do termo “descrição” é recorrente e corrente quando se trata da historiografia da literatura de viagem e é importante que se estabeleça, portanto, que a descrição é uma subdivisão, um elemento da narração (narratio) que, por sua vez, pertence à dispositio, e é codificada em topográfica (lugares), cronográfica (tempo) e prosopográfica (retratos).

Já as tópicas – essas formas vazias comuns a todos os argumentos (e quanto mais vazias, mais comuns) não são os próprios argumentos, mas sim os compartimentos em que são ordenados, são estereótipos, proposições muito repetidas, uma reserva plena, um método de se encontrar os argumentos (quis? quid? ubi?) que pertencem à parte da retórica que diz respeito à inventio, “essa parte da retórica encarregada de fornecer conteúdos ao raciocínio” (BARTHES, 1975, p. 194-197) – são amplamente citadas e demonstradas por Amilcar Torrão em todo o livro: tanto as mapeadas pelos Jesuítas (preguiça, hospitalidade), as da falta de letras (letramento) e as da natureza sã versus os maus costumes (PÉCORA, 2001, p.44) – que vai vigorar nas descrições dos viajantes do XVIII e XIX quando o assunto é levado ao limite pelos autores franceses e britânicos ao discorrerem sobre a “imoralidade, desordem e caos da sociedade e das cidades luso-brasileiras (TORRÃO FILHO, 1995, p.205) – quanto as fundamentadas pelos próprios viajantes, como por exemplo, a do “desleixo das edificações” (TORRÃO FILHO, 1995, p. 196), ou da “cidade suja” como poderemos verificar no capítulo quatro e a “tópica dos ciúmes” que advém da falta de gentileza com os viajantes, uma herança portuguesa, já que por três séculos esconderam “ciumentamente sua principal colônia da cobiça das nações mercantes” (TORRÃO FILHO, 1995, p.114, p.212), ecos de uma condenação à colonização portuguesa.

Uma tópica recorrente e bem explorada por Amilcar Torrão é a da “edênica paisagem exterior”, na chegada às cidades do Rio de Janeiro, Salvador ou Olinda, cuja fruição estanca cidade adentro que é obscura com seus negros e bastante suja (TORRÃO FILHO, 1995, p.250). Alegorizando essas paisagens, inicialmente encantadoras, comparando-as com um “anfiteatro” de Salvador no caso de Tollenare como em Arsène Isabelle, em visita ao Rio Grande do Sul, em 1834, onde a cidade de Porto Alegre é “elevada em anfiteatro”; e também por Debret, em 1816, cujo “quadro textual praticamente ignora a presença de uma cidade na paisagem do Rio de Janeiro”; ou o viajante Lacordaire: o que importa é que essas “serão algumas das imagens mais fortes criadas pela literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro que serão transpostas a todas as cidades luso-brasileiras: sua beleza ilusória, percebida apenas à distância, enquanto a aproximação do viajante, uma apreciação pedestre da cidade, revela a sua mácula e a sua desordem” (TORRÃO FILHO, 1995, p.238).

Podemos transpor essa metáfora da paisagem inicial como um anfiteatro para outra, a saber, de que essa paisagem é um proêmio, um exórdio que não cumpre o que esboça na sua narração, na sua disposição interior, tornando-a, assim, um monstro, um espetáculo horrendo e mal formado aderindo, aqui, à tópica da doutrina da proporção decorosa dos efeitos das obras, o ut pictura poesis horaciano nos versos 361-365: “como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela dez vezes vista, sempre agradará” (HORÁCIO, 1984, p. 109-111).

A paisagem da chegada, portanto, vista de longe, é uma imagem icástica, proporcional ao paradigma do europeu, e a imagem fantástica, a cidade que se adentra, uma deformação ou desproporção da imagem icástica, a cidade de perto, obscura:

[…] a desproporção fantástica pressupõe, mimeticamente, o ponto de vista icástico que a proporciona como desproporção: ela só é fantástica como uma das séries da relação, ou seja, é um efeito, ou um diferencial. Esta relação é objeto de uma arte das desproporções proporcionadas – a cenografia, skenografia– dos tratados de óptica […] Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relação de proporcional/desproporcional – ou de icástico/ fantástico – implica não qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre a correta distância, a distância exata […]. (HANSEN, 2007, p. 183).

A vista do arrazoado disposto acima, fica mais claro o entendimento da tópica da natureza sã, exuberante versus os maus costumes, bem como a alegoria da paisagem da chegada nas cidades como anfiteatro.

É inevitável observar que todas essas tópicas irão repercutir em nossa historiografia até os dias de hoje, com base nas determinações de Von Martius em Como se deve escrever à história do Brasil, em 1847, pelo Instituto Histórico e Geográfico, esquecendo, que são tópicas, muitas delas que remontam as obras de Homero, Ovídio ou Virgilio, suas fontes. Por serem tópicas, se repetem por séculos, em vários textos, garantindo a argumentação. Se, dentro delas, propositadamente (claro está: o domínio das técnicas do império retórico não admite nenhuma inocência discursiva) nomes ou livros são citados metonimicamente, estamos invariavelmente entrando no reinado das “auctoritas”, dos argumentos de autoridade. É a esta rede milenar textual maquinada pela retórica que o autor vai denominar, heroicamente, de “Memória de Biblioteca”. (TORRÃO FILHO, 2010, p.302).

Se chamamos o autor de herói é também porque a impecável bibliografia foi por ele composta, nos fornecendo, assim, a chance de ter acesso a uma bibliografia opulenta traçada e usada em todas as páginas do seu livro que demonstra um intelecto hercúleo. Quero deixar claro que a aparente desordem exposta no primeiro capítulo é decorrente da grandeza da matéria tratada pelo autor ao tentar caminhar com as preceptivas da retórica e da historiografia juntas. Se tal metodologia se torna pitoresca é porque a empreitada é salutar: como “ir a Jerusalém caminhando para Emaús”, capitalizando aqui o empréstimo que João Adolfo Hansen fez de um sermão de Vieira. É como se no itinerário traçado para a hipótese desenvolvida por Amilcar Torrão, ele arranjasse confusão no primeiro porto, na primeira parada, ou tivesse que enfrentar o Gigante Adamastor definitivamente para cruzar o Cabo da Boa Esperança, explicando para confundir, confundindo para esclarecer.

No entanto, o autor optou pelo caminho mais longo que é sempre mais curto que o mais curto para usar uma máxima talmúdica: optou por um trajeto desconhecido ao colocar na sua nau elementos da retórica literária como instrumento de navegação que serão então utilizados nos capítulos posteriores para medir tabus historiográficos da terra ignota: mapear a construção da imagem da cidade luso-brasileira por meio da narração da literatura de viagem e dos viajantes franceses e britânicos, desconstruindo, assim, tópicas e lugares-comuns que emprestamos deles para construir as nossas sobre as nossas cidades, coisa que, de quebra, fornece também uma boa oportunidade, após a leitura de “A Arquitetura da Alteridade: A cidade Luso-Brasileira na Literatura de Viagem”, para que se possa dizer ou escrever com consciência histórico-discursiva que o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo que isso seja inútil, mesmo que seja só uma paisagem, um retrato num prato, ou uma descrição de Maria Graham.

Referências

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Luciana Gama (SHLOMIT OR) – Mestre em Teoria e História Literária – IEL/Unicamp – Doutoranda -Programa de Teoria e História Literária -Universidade Estadual de Campinas – IEL/Unicamp – Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571. CEP 13083-859 -Campinas – São Paulo e no Dept. of Romance and Latin – American Studies – The Hebrew University of Jerusalém-HUJI. Mount Scopus, 91905 – Jerusalem – Israel. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].

De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009. 352 p. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

O professor Laurent Vidal, da Universidade de La Rochelle se debruçou sobre as cidades brasileiras ou luso-brasileiras em diversas publicações – como a nômade Mazagão, que atravessou o Atlântico, deixando o Marrocos onde era o último bastião português, passando por Lisboa e vindo aportar, finalmente, na Amazônia portuguesa em 17691 –, agora nos traz uma leitura de fôlego da construção de Brasília, nas comemorações de seus 50 anos. Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III, em 1995, publicada em francês no ano de 2002 pelo Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine. A primeira e mais evidente qualidade deste trabalho é recuperar o longo período no qual a capital brasileira foi projetada no interior de seu imenso território, desde a Nova Lisboa, que seria a nova sede do novo Reino Unido de uma corte no exílio, até a Brasília de Juscelino Kubitschek, saída do traço da arquitetura moderna diretamente para o planalto central. Além disso, o livro tem a preocupação de colocar uma questão importante, sobretudo no caso de Brasília, que está definida em sua introdução; se com Mazagão Vidal havia se perguntado para que serve uma cidade em suspensão e em trânsito, no caso de Brasília ele questiona: “Para que serve uma cidade quando ela não existe?” Questão que é acrescentada por outra, correlata: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (p. 11). Portanto, este trabalho trata destas duas dimensões fundamentais para a compreensão de Brasília, e de todas as capitais sonhadas e desejadas: a sua dimensão material, com as agruras de sua construção e os resultados urbanísticos de sua efetiva ocupação, mas também a sua dimensão projetiva, imaterial, os projetos realizados ou não, os traços de suas utopias que revelam os desejos, as ambições e os planos por trás de sua construção ou o que vai além de sua redução ao puramente utópico ou técnico, este momento, como define o autor, “intermediário, em que a cidade ainda não possui existência física, mas em que já deixou de ser simplesmente uma visão utópica” (p.11).

No caso de Brasília, cidade capital por definição e por projeto, cabe ainda indagar-se sobre o seu papel na construção de uma memória e uma identidade da nação que ela representa, ou do processo pelo qual “a identidade de uma nação ou de uma comunidade pretende espacializar-se”; o que coloca outra pergunta importante: “quem ou o que produz uma cidade para nela depositar uma memória” (p. 16). Não se trata, portanto, apenas de um projeto de cidade nova, é uma nova capital, e uma capital que deve redefinir o país projetando um Brasil moderno, desenvolvido, interiorizado, correspondendo a um “projeto de sociedade” (p. 18). Uma sociedade até então dividida pela antinomia sertão/litoral, que para muitos impedia o desenvolvimento de todas as suas partes; não por acaso, será a nova cidade chamada de a capital da esperança.

O livro está dividido em sete capítulos, seis dos quais dedicados a projetos para a construção da cidade capital que finalmente faria o sertão vencer a dominância do litoral. O primeiro diz respeito à Nova Lisboa, a cidade que seria construída para substituir o Rio de Janeiro como sede da nova monarquia, num momento no qual havia dúvidas em relação à qualidade da nova corte para assumir o papel de capital, por seu terreno pantanoso, seu clima úmido e cheio de insetos. A decisão de manter a capital no Rio de Janeiro levou a cidade a ser remodelada para adequar-se ao decoro de uma capital real, digna da monarquia portuguesa, reformas que são bastante conhecidas e deram grande parte da feição mais típica da cidade tal como a conhecemos. Entretanto, a necessidade de “interiorização” da capital não desaparece das preocupações geopolíticas e estratégicas, presentes nos projetos de Hipólito José da Costa ou de Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. A grande cidade portuária, para estes autores, não possui as qualidades requeridas a uma verdadeira capital, cuja criação se torna uma exigência de modernização, na qual o autor observa “um deslocamento da representação do espaço construído para o espaço mental, um deslocamento do conceito da cidade, como espaço político, lugar de trocas econômicas e sociais, para seu inverso imaterial, sua idealização” (p. 48).

O capítulo seguinte trata de projeto similar, já agora no âmbito da construção do Estado nacional separado de Portugal, a Cidade Pedrália, indefectível referência ao príncipe, depois imperador, Pedro I, homenagem de seu idealizador, o desconhecido Paulo Ferreira Menezes Palmiro. A nova capital era parte de um projeto de interiorização e povoamento do imenso interior, o “desertão” brasileiro, de José Bonifácio, o Patriarca, bem como uma estratégia para garantia da unidade territorial e a sua consequente definição da nacionalidade brasileira. Não por acaso a sua localização teria como “coluna vertebral”, diz o autor, o rio São Francisco, o rio da unidade nacional para muitos (p. 61). Apesar destes projetos, para Vidal, a permanência do Rio de Janeiro como capital imperial “se inscreve na lógica do projeto geopolítico definido pelo imperador: inserção da jovem nação brasileira no mercado comercial internacional”, com a necessidade de manter a capital num porto e seguindo a política imaginada por João VI, a “vocação do Brasil como nação ‘européia'” (p. 63). Processo coerente com outra interiorização, diferente da projetada aqui na transferência da capital para o sertão, aquela descrita por Silva Dias, o enraizamento de interesses portugueses no Brasil e o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia, sendo a separação com Portugal resultado de um aumento das divergências entre os interesses portugueses no Brasil e o Reino2. É muito mais uma interiorização centrada no Rio de Janeiro, incompatível com a transferência da sede de governo para o interior. Vidal, neste capítulo, recupera o esquecido projeto ilustrado e racional da Cidade Pedrália, de Menezes Palmiro, que pretendia dar corpo a uma ambição social e geopolítica que rompia com os modelos urbanos adotados pelos portugueses até então (p. 70).

O projeto seguinte é Imperatória ou, como diz o título deste terceiro capítulo, o sonho de uma São Petersburgo tropical, seguindo as intermináveis dúvidas em relação à capacidade do Rio de Janeiro em representar bem seu papel de capital. Trata-se do projeto de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que critica justamente o comprometimento das principais cidades brasileiras com o comércio internacional, com a exterioridade, não dando espaço à necessária construção da nacionalidade brasileira, que o Visconde buscou tanto na história quanto num projeto de capital. O interior, o homem do sertão seriam, na visão de Varnhagen, os instrumentos de redenção do país, Minas seria, então, a Castela do Brasil (p. 87). O Visconde de Porto Seguro se insere, ao mesmo tempo, num rompimento com o modelo colonizador português que convive com a sua inserção em seu modelo civilizatório lusitano, que afirma a posição preeminente da população branca no controle do aparelho de Estado. Seu modelo urbanizador vê na cidade não um quadro estático, mas “o local, o motor da modernização. Imperatória é assim a cidade do homem brasileiro reconciliado com a modernidade” (p. 100).

O quarto capítulo/projeto trata de Tiradentes, não a cidade mineira antiga São José Del Rei, mas um projeto republicano para uma nova capital que se torna um dispositivo constitucional na República. Trata-se, para Vidal, de um projeto de mudança que oferece “a possibilidade de planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo” (p. 104). Em 1892, é criada a célebre Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil, dirigida por Luís Cruls, diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, que deveria demarcar a localização da nova capital. Para o autor, a mudança funcionava, para as elites republicanas, como uma forma de “conjurar o medo da cidade, da grande cidade como o Rio que, todo dia, inquieta um pouco mais os republicanos no poder” (p. 124-125). O medo, presente tanto em liberais como em conservadores, de que o crescimento da cidade seja acompanhado pelo direito à cidade, o direito à cidadania. Esta discussão se apoia muito menos no conceito de progresso da nação do que na construção de uma nacionalidade na qual a cidade grande aparece para muitos, como Euclides da Cunha, citado por Vidal, como um espaço demasiadamente cosmopolita, que impõe modelos culturais importados, que não traduzem o espírito brasileiro. Uma capital cosmopolita, nessa visão, não seria uma adequada cabeça da nação, não pensaria o país de acordo com os interesses brasileiros (p. 129). Concepção que teria muita fortuna no meio intelectual e acadêmico, das ideias fora de lugar, importadas, que não estariam aclimatadas à “realidade” e ao espírito nacional. Esta visão da capital se materializa não no Planalto Central e na substituição do Rio de Janeiro, mas pela construção de Belo Horizonte, paralelamente às reformas de Pereira Passos, nova adequação da capital carioca aos desígnios das elites. Em 1930, Teodoro Figueira de Almeida propõe no jornal A Ordem um projeto de nova capital chamado Brasília: a cidade histórica da América, demonstrando, segundo Vidal, um gesto deliberado de tentativa de “reescritura da história” por meio da forma urbana, que poderia materializar o sonho de uma “capital sem povo” (p. 142).

A sequência do trabalho de Vidal nos revela como, no tema da nova capital, perpassou praticamente todos os governos monárquicos ou republicanos. O quinto projeto/capítulo trata do período Vargas, que retoma a discussão sobre a transferência para o centro do Brasil de sua sede de poder. Para Vidal, a instauração do Estado Novo, em 1937, procura estabelecer um Estado verdadeiramente nacional, o que implica uma nova divisão territorial do país, o estabelecimento de uma nova geografia, o que culmina com a criação do IBGE, em 1938. Para o autor, está em processo também, no Brasil deste momento, uma “reavaliação do papel da cidade nas atividades de uma nação”, o que é visível, por exemplo, na construção de Goiânia, cujo plano levaria em conta a dupla natureza da cidade, “lugar de exercício do poder e de atividades econômicas e sociais” (p. 156). Em seu segundo governo, Vargas voltaria ao plano de transferência, criando em 1953 a Comissão de Localização da Nova Capital Federal (CLNCF), de evidente tarefa. Neste momento, gesta-se uma ruptura em relação às anteriores propostas, pois aqui não se trata mais de discutir a criação de uma sede administrativa para o país, mas de “dar coerência a uma sociedade não mais dividida, mas reconciliada em torno de um mesmo projeto de futuro” (p. 174).

Um projeto de futuro reconciliado e unificador parece ser o mote para o definitivo projeto de Brasília, obra capital do governo Juscelino Kubitschek, no feliz título de seu sexto capítulo. Vidal trata, aqui, de feitos conhecidos, dando especial atenção ao contexto histórico da construção de Brasília, bem como ao plano vencedor de Lucio Costa e Niemeyer. A qualidade deste capítulo está justamente na forma como as dimensões políticas e arquitetônicas são analisadas na construção, não apenas de uma cidade, mas da “idéia mesmo de capital”, afirmando um Brasil moderno (p. 202). Ou como ressalta adiante, o concurso de Brasília e a sua construção colocam um problema mais amplo do que a simples construção de uma nova cidade, o da “invenção de um urbanismo político adaptado a uma democracia liberal do século XX” (p. 220). O autor vê a possibilidade de um jogo de ambiguidades entre o projeto político e o projeto social de Brasília, ou uma cidade “esticada entre duas tendências: a ambição igualitária do urbanista e do arquiteto e a ambição liberal do político, tudo isso acobertado pela idéia de modernismo” (p. 240). Ou de uma propensão latina de aspiração à grandeza, audácia e imaginação com uma lógica de disciplina que vem tolher estes impulsos.

De Nova Lisboa a Brasília propõe uma leitura histórica da construção de Brasília não apenas no estabelecimento de uma linhagem cronológica dos diversos projetos e planos de transferência, que pela primeira vez foram tratados em seu conjunto como uma unidade, mas também da representação de uma certa imagem de Brasil, de determinadas expectativas deste gesto fundador da criação de uma capital que coincide com o “batizado” do país e que nasce sob o signo deste gesto tão simples de Lucio Costa em forma de uma cruz que designa o plano piloto, dando-lhe uma feição ao mesmo tempo mítica, mística e moderna. A inauguração de Brasília é um ato fundacional; fundação de uma nação moderna, reconciliada, a marca de uma utopia que o urbanismo moderno muitas vezes sonhou, mas poucas vezes pôde realizar, com toda a esperança e a frustração que envolvem as utopias, tão bem descritas neste trabalho que recupera o longo caminho de invenção de uma capital e de um sonho.

1 VIDAL, Laurent, Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Trad. port. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. Primeira edição francesa de 2005.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.

Amilcar Torrão Filho – Professor Doutor – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, CEP: 05014-901. E-mail: [email protected].

Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888 – GANTÚS (H-Unesp)

GANTÚS, Fausta. Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888. Ciudad de México: El Colégio de México, 2009, 441 p. Resenha de COSTA, Alexandre Andrade da. Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888. História [Unesp] v.30 no.1 Franca Jan./June 2011.

O renovado interesse dos historiadores no que concerne ao estudo das imagens, tema que ganhou novo ânimo devido à transformação ocorrida no campo historiográfico a partir dos anos 1970 e 1980, torna a leitura desta obra, ainda não traduzida, mais que oportuna. Os estudos culturais que, a partir de então, tomaram as diferentes formas de mídia não mais como mecanismo de comprovação de teses previamente estabelecidas mas, principalmente, como fonte primária que poderia contribuir para a compreensão das formas de atuação dos distintos grupos no espaço público, encontraram na iconografia um manancial de problemáticas e questionamentos.

A imprensa, diferentemente do que ocorreu no Brasil, onde só foi permitida no século XIX, esteve presente na história do México desde o século XVI. Todavia, as primeiras caricaturas, tema central do livro, surgiram somente na primeira metade do século XIX, por volta de 1847. A partir de então, elas foram utilizadas pelos diversos periódicos que circulavam na capital, ora para reforçar, ora para minar o poder estabelecido.

A preocupação precípua da autora nas páginas iniciais é explicar a periodicidade e a especificidade do objeto por ela analisado: as caricaturas. No que se refere à primeira questão, o livro trata da imprensa durante a etapa tuxtepecana, de 1876 a 1888, marcada pela chegada do general Porfírio Díaz ao poder.

Fausta Gantús apresenta, no que concerne à singularidade do gênero estudado, uma elaborada apreensão do que significa trabalhar com uma fonte complexa como a caricatura. De acordo com a autora,

[…] la caricatura es aquí un documento fundamental, cuya lectura y desciframiento permite entender la época en estudio observando las dinámicas de los enfrentamientos facciosos por el usufructo del poder y el papel que desempeñaba la prensa como parte de la estrategia de esas luchas entre grupos rivales; igualmente, es un recurso que permite descubrir la forma en que se generaban determinados imaginarios en torno de ciertas personalidades del momento. Asimismo, desde la sátira y el humor, posibilita el análisis de los discursos oficiales y contestarios y el develamiento de los intríngulis políticos (p. 19).

O livro é dividido em sete capítulos, sendo o último reservado às conclusões. No primeiro deles, La caricatura política en la prensa periódica de la Ciudad de México 1876-1888, Gantús insere o leitor nos debates políticos que mobilizaram intelectuais e caricaturistas na luta por um projeto de poder e de país que se utilizaram da imagem para forjar realidades com o fim de produzir e controlar os imaginários coletivos.

Uma questão fundamental discutida pela professora do Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora/México é a recepção desse material pela opinião pública mexicana, assunto problemático nos estudos de história da imprensa em virtude da falta de dados que comprovem como os indivíduos liam ou reagiam a determinados textos ou imagens. As caricaturas demandavam, para serem compreendidas, certo conhecimento das personagens envolvidas e ainda de questões relacionadas ao campo político, à cultura e à sociedade em geral.

Partindo dessa premissa, Gantús atribui dois prováveis níveis de leitura da referida iconografia a partir do capital cultural do leitor: o primeiro era composto por pessoas que se fixavam no sentido imediato da imagem, mais simplista; enquanto o segundo, compunha-se daqueles esclarecidos e engajados, que apreendiam as sutilezas e as mensagens implícitas que a imagem trazia a partir de sua visão de mundo.

No segundo capítulo, intitulado Los caricaturistas: trazos que dibujan filias y fobias, a autora discute o papel dos responsáveis pela criação dos desenhos que tinham por objetivo forjar realidades. Os caricaturistas mexicanos do século XIX eram homens de pouco dinheiro, sem reconhecimento social (diferentemente do que ocorria com os outros profissionais que trabalhavam em periódicos) que, compondo um grupo heterogêneo, tinham os traços determinados pelos proprietários dos órgãos aos quais se associavam. A autora elencou os nomes do “seleto grupo de engenhosas armas” (p. 106) e seus respectivos periódicos o que denota a preocupação em traçar um perfil do local de onde publicavam e de seus temas diletos.

Entre os citados, Gantús confere destaque a Daniel Cabrera, responsável pelas maiores críticas a Porfírio Díaz e preso inúmeras vezes, como consequência. Ele assinava suas obras com o pseudônimo Fígaro e, assim como o restante dos caricaturistas que tinham na figura presidencial seu principal tema, dedicou-se a dissecar as relações da cúpula do poder mexicano nesse início da profissionalização da profissão.

A relação entre o poder, os símbolos que o constituem e os governantes foi a temática discorrida no capítulo três, De la proclama tuxtepecana a la idea del ‘hombre necesario’. La construcción de imaginarios a través de la caricatura política. A autora utilizou os conceitos de Maurice Agulhon para demonstrar que diferentemente dos símbolos que conferiam poder e status aos goverantes, “[…] la caricatura se vale de los mismos recursos que avalan al poder pero para enfrentarlo y cuestionarlo”, (p.150).

As análises dos significados conferidos à cadeira presidencial, objeto de desejo, e da espada do general Porfírio Díaz, símbolo polissêmico, constituem o cerne do capítulo no qual Gantús descreve as caricaturas com um rigor metodológico substancial demonstrando como elas serviram aos críticos do governo porfirista. Uma vez na presidência, ao suceder Lerdo de Tejada, Díaz foi mostrado pelos caricaturistas como

[…] una persona de escaso brillo intelectual y un usurpador ambicioso; o lo que es lo mismo como un hombre ignorante, en algunos casos casi se le representaba como un tonto, y un tirano y así se le pintaba de manera franca y explícita (p. 190).

A Constituição do México não permitia a reeleição, projeto pelo qual Díaz se batera antes da chegada ao poder. Assim, uma vez concluído seu mandato, o general tratou de afiançar a candidatura de um aliado no intuito de que este último lhe devolvesse a cadeira, no quadriênio posterior. Esse aliado foi Manuel Gonzáles, “su compadre” (p. 195) que deu continuidade às políticas repressoras ao campo jornalístico.

Intitulado Las políticas de Lerdo, Díaz y Gonzalez en torno a la prensa, o quarto capítulo denota o esforço da autora em tecer uma análise comparativa dos governos dos três presidentes mexicanos no que se relaciona às mídias e às práticas repressoras. A partir dessa diretiva, Fausta Gantús conclui que havia uma permanência de disposições contrárias à liberdade de expressão iniciadas com Lerdo de Tejada, que enviou à prisão inúmeros jornalistas, e teve como corolário as sanções aplicadas por Díaz, que em um só dia emitiu ordens para que fossem presos redatores de sete publicações diferentes.

O governo ainda estimulou a criação de outros periódicos que combatessem os da oposição propugnando que a imprensa se combate a partir da própria imprensa, além de impedir que os dissidentes tivessem acesso ao papel, praxe no que se referia às relações entre a mídia impressa e o poder.

As ações governamentais regulatórias são demarcadas no capítulo cinco, Los marcos legal y jurídico para la instrumentación de una política de censura. El triunfo del gobierno sobre la prensa, no qual Gantús delineia que medidas foram implementadas e de onde elas emanaram. O governo mobilizou sua força na Câmara e no Senado para, sob o manto da legalidade, remover os obstáculos que o impedia de obter o comando da (in)formação da população mexicana.

Ambas as casas, pilares do regime democrático, concordaram em modificar um ponto específico do sétimo artigo da Constituição que sustentava a liberdade de expressão. A principal alteração ocorreu nas garantias que os acusados detinham quando sujeitos a um processo: ao invés de haver um foro próprio para os supostos delitos, a emenda de Díaz propunha que eles fossem julgados por tribunais comuns. Ainda no governo de Manuel Gonzáles, o projeto foi aprovado.

Quando Porfírio Díaz retornou ao poder, os mecanismos de censura estavam já instalados e seu papel foi o de impor aos inimigos a força da lei. Vários periódicos deixaram de circular vítimas da “psicologia”, mote das explanações propostas no penúltimo capítulo, ‘La psicología’ o la revancha de la prensa con caricaturas. Entre el recurso legal represivo y la estrategia contestataria, 1885-1888. Nele, há a discussão sobre o destacado papel que os juízes teriam no que se referia à repressão aos crimes de imprensa. De acordo com a autora,

Con base en el análisis de los alegatos legales, podemos definir a la función psicológica como la facultad que dejaba al arbitrio de los jueces la estimación de posibles motivaciones e intenciones que pudieran primar detrás de determinados actos y, en circunstancias particulares, conferirles carácter delictivo (p. 337).

Ao atuar dessa maneira, o juiz seria capaz de ‘captar una realidad más profunda’ (p. 347), uma vez que, ao submeter o periódico, o texto ou a caricatura, que eram, em si, as evidências dos crimes, ele inferiria as intenções dos autores num processo que Gantús compara ao descrito por Carlo Ginzburg quando este autor trata do paradigma indiciário e da busca por sinais, rastros, fios que remeteriam o leitor atento ao detalhe perdido.

Não obstante as tentativas de coerção, Gantús recordou que a caricatura cumpriu seu papel. Por meio dos trabalhos dos artistas do traço, a autora

[…] encontró los espacios para elaborar un discurso de cuestionamiento que hiciera frente a las políticas gubernamentales tendientes a censurar y limitar la libertad de imprenta, cobijadas al amparo de un marco legal y jurídico que permitía la represión sin menoscabar la legitimidad del régimen (p. 383).

Nas Reflexiones finales, a autora retoma as premissas essenciais que discutiu ao longo da obra, a saber: a metodologia de trabalho com as fontes iconográficas, a relação conturbada entre a imprensa e o governo mexicano. A despeito das emendas constitucionais e das violências que emanavam do poder Executivo, as críticas se fizeram presentes durante todo o governo de Díaz o que evidencia que as tentativas de instalar um regime que controle totalmente a mídia, apesar de recorrente na América Latina, é natimorta: sempre há resistências.

Este livro, em virtude das brilhantes ilações advindas da interpretação das caricaturas, da rigorosa sistematização das diversificadas fontes apresentadas em tabelas e gráficos e da pertinente bibliografia que serve de esteio às análises, contribui de maneira efetiva para o debate acerca das fontes iconográficas em história dialogando com distintas abordagens que se vinculam, concomitantemente, à História Política e à História Cultural.

Alexandre Andrade da Costa – Doutorando em História – Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Avenida Dom Antônio, 2100 Parque Universitário 19806-900 – Assis, SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960). Paris: Éditions Flammarion, 2009, 254p. Resenha de: LEMES, Fernando Lobo. Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960). História [Unesp] v.30 no.1 Franca Jan./June 2011.

Constantinopla, Bizâncio e Istambul. Nomes diferentes para uma mesma cidade que ocupou, sucessivamente, a posição de capital de três grandes impérios: o romano, o bizantino e o otomano. Guardadas as devidas especificidades, a cidade do Rio de Janeiro também atravessou o tempo, através de um percurso que lhe emprestou uma feição muito particular: capital e ponto de convergência no centro-sul da América, no contexto do Império português, posteriormente, capital do Império e, mais tarde, capital e espaço de gestação da nova ordem republicana. Preservando sempre o mesmo nome, atravessou três grandes momentos da história do Brasil, sempre na posição privilegiada conferida pelo status de cidade-capital. Contudo, em 20 de abril de 1960, o Rio de Janeiro vive um acontecimento decisivo: a partir deste dia, não será mais a capital do Brasil. Os elementos que lhe conferem a condição de capital abandonam a cidade para se instalar em Brasília, novo símbolo da modernidade brasileira.

É sobre este evento particular que mergulha Laurent Vidal. Tomando o acontecimento como uma espécie de cruzamento de itinerários possíveis, o autor delineia uma narrativa que revela de forma surpreendente as expressões e os gestos dos atores que viveram aquele momento na cidade do Rio de Janeiro: as encenações elaboradas pelas elites políticas, os testemunhos dos cidadãos comuns e as palavras dos poetas, marcados por sentimentos e emoções que compunham a crônica de uma despedida anunciada.

A mobilidade das capitais ou sedes de governos foram registradas com certa frequência na história das cidades. Assim, desde os Impérios da Antiguidade às dinastias medievais europeias, o nomadismo de imperadores e monarcas sempre dificultou a identificação de suas capitais a uma cidade específica. Na história do Brasil, a transferência de capitais de uma cidade para outra, foi uma constante. Basta lembrar a mudança da capital, sede do vice-reinado, da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Mais tarde, seguindo uma tendência cada vez mais rara, este fenômeno se multiplica sobre o território nacional: as capitais das províncias do Piauí e Sergipe são transferidas, respectivamente, da cidade de Oeiras para Teresina, em 1852, e de São Cristóvão para Aracajú, em 1855. Em Minas Gerais, Ouro Preto perde seu estatuto de capital para Belo Horizonte, em 1897. Em Goiás, a capital é transferida de Vila Boa para Goiânia, inaugurada em 1942.

Embora frequente na história, a transferência do poder político (e das instituições que o acompanham) de uma cidade para outra nunca foi objeto de uma encenação especial. Da mesma forma, mesmo que alguma manifestação tenha sido organizada nestas ocasiões, jamais foi singular o suficiente para atrair a atenção dos contemporâneos ou de historiadores. Reside aqui um dos méritos da obra de Laurent Vidal: sua originalidade.

Les larmes de Rio constitui-se, certamente, na primeira referência, na historiografia das cidades, que não se detém apenas na avaliação da transferência institucional dos poderes políticos de uma cidade para outra. Mais que isso, trata-se de um estudo inédito que elege como objeto o momento da retirada dos aparatos políticos institucionais, lançando luzes sobre as estratégias utilizadas para a transferência das instituições que legitimam e revestem a cidade de sua condição de capital. Por meio de uma análise refinada pelos recursos metodológicos que utiliza, Laurent Vidal traz à superfície de suas reflexões os efeitos e as especificidades que fazem deste fenômeno um acontecimento singular e excepcional.

O interesse e o ponto de vista adotados pelo autor têm implicações mais amplas para a historiografia, pois fazem deste episódio um caminho privilegiado para observar as relações entre cidade e poder, a partir de um viés absolutamente inovador: abandonando a perspectiva positiva que aproxima cidade e poder, comumente associada às narrativas de fundação de cidades e das entradas triunfais (que já mobilizaram vasta literatura), Laurent Vidal lança um outro olhar sobre o tema, privilegiando o aspecto do distanciamento entre a cidade e o poder, consagrando como ponto de inflexão o momento em que o poder deixa a cidade. O maior mérito, contudo, desta perspectiva, que insiste em desvendar os laços e as conexões que se desfazem, pondo em evidência um processo fatal de separação, é apresentar a cidade como espaço de predileção do político, reatando, ao mesmo tempo, o seu vínculo indissolúvel, pois é no espaço real e virtual da cidade que se afirma o poder político.

Mas esta separação entre o político e a cidade implica sobretudo numa passagem: o poder federal deixa o Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, o antigo Distrito Federal deve desaparecer para dar nascimento a uma nova capital. A passagem do poder do Rio a Brasília. Não se trata, no entanto, de um simples traslado das instituições existentes no Distrito Federal. Afinal, a capital não é apenas o lugar de concentração dos órgãos da administração que constituem a natureza visível do poder político, é também um reservatório de forças de ordem espiritual. Neste sentido, a autoridade e a natureza do poder que legitima a cidade enquanto capital informa, antes de tudo, a existência de elementos e dados imateriais. É isto, exatamente, que estimula o esforço de Vidal.

Para além das provas materiais da transferência da capital, é necessário apontar os indícios e os efeitos do deslocamento deste poder imaterial, promovendo uma imersão no mundo dos sentimentos e emoções, perseguindo a ressonância dos acontecimentos no universo afetivo e sensível dos protagonistas. Em meio a uma confusão de sentimentos, as lágrimas são perceptíveis nos olhos da população do Rio. Assim, para emergir à superfície da história, o acontecimento deve se realizar no interior de percepções diversificadas e simultâneas que reenviam ao domínio dos afetos. Na narrativa de Laurent Vidal, a emoção parece constitui-se em um dos componentes da inteligência, onde os afetos assumem papel fundamental1.

Mas passagens deste tipo, como lembra o autor, são sempre acompanhadas de cerimoniais bem definidos. Na Roma Antiga, por exemplo, havia mesmo um deus que as governava: Janus, o deus de duas faces, uma voltada para o futuro e outra para o passado, deus dos começos e das passagens, da mudança e da transição, guardião dos cruzamentos, que abre e fecha as portas, vigia as entradas e as saídas. Coincidentemente, ao presidir a passagem do poder do Rio para Brasília, é esta a função que deve assumir Juscelino Kubitschek. É por isso que a despedida do Rio de Janeiro não poderia se limitar a um simples adeus. A morte de uma capital federal implica um luto cuja dimensão pouco banal o grande maestro da mudança tinha perfeita consciência. Era preciso velar pela passagem, afastando os fantasmas das incertezas e preencher os vazios deixados pela partida anunciada do poder.

Assim, a morte iminente da capital nacional seria acompanhada pelo anúncio do nascimento de outra capital: a do Estado da Guanabara. À ausência de um poder corresponderia a emergência de novas instâncias políticas. Contudo, como o destino não tem a pretensão de submeter rigorosamente os acontecimentos, deixa sempre um espaço vazio, uma margem de indefinição entre os episódios2, um inventário aberto de possibilidades. Por isso, seria Juscelino Kubistchek, presidente da república e idealizador de Brasília, encarregado de pacificar esta passagem, este momento incerto, organizando os cerimoniais da transferência da capital como um drama antigo, atuando, ao mesmo tempo, como autor, diretor e ator principal.

Fazendo do drama um mecanismo que permite compartimentar a trama vivida naquele 20 de abril, Vidal não despreza as dimensões sociais e a diversidade dos grupos existentes. De fato, percebe que o drama vivido pelos atores é entrecortado por uma situação de conflito que opõe, na malha dos tempos múltiplos da experiência coletiva, as várias figuras da vida social a um obstáculo comum3. Produzido socialmente, o acontecimento é apropriado de modos diferentes pelo conjunto dos grupos sociais, multiplicando leituras, sentimentos e percepções.

As variadas leituras do evento presentes nos discursos, nas falas e testemunhos, revelam, por outro lado, um outro recurso inovador utilizado pelo autor: uma sociologia da espera4. Neste episódio anunciado e vivido previamente, como é o caso da construção de Brasília e da transferência da capital federal, o estatuto do acontecimento existe antes mesmo que ele se produza de fato, levando o presente que se desenrola aos olhos dos indivíduos a estar subordinado ao futuro. Assim, o horizonte da espera também faz parte das lógicas mentais e organiza parte significativa do acontecimento5. Neste caso, o lapso de tempo que separa o anúncio e os preparativos para a mudança da capital e sua transferência propriamente dita é revestido de uma essência muito particular: descolado de uma cronologia ordinária, este intervalo se diferencia por um ritmo e uma amplitude própria. Portanto, este tempo de espera excita os atores, produz representações carregadas de sentidos, estimula esperanças, projetos, angústias, medos e inquietações. Estas emoções que afloram neste tempo virtual, ainda não realizado, são tomadas pelo autor como um horizonte da experiência dos agentes do drama, enquanto termômetro que permite medir a temperatura dos sentimentos coletivos na cidade.

Do nosso ponto de vista, é a arquitetura do acontecimento que parece sustentar o empreendimento de Laurent Vidal. Sua narrativa parte do pressuposto que o acontecimento tem uma duração que ultrapassa a simples temporalidade dos fatos que o constituem, como se o olhar do autor atravessasse longitudinalmente a cena, expondo o acontecimento em toda a sua riqueza e complexidade, pensando “através” das coisas e dos casos. Deixando nas estantes toda uma bibliografia que prega que a história é uma continuidade que se desdobra num tempo homogêneo, o autor parece denunciar o tempo vivido na história enquanto uma catarata de tempos6, em que múltiplas temporalidades coexistem e constituem uma mesma trama, interferindo nas percepções possíveis do atores.

Neste caso, num primeiro momento, o acontecimento aparece carregado de percepções e sensibilidades gestadas antes mesmo de sua plena efetivação. Em seguida, no interior do tempo peculiar ao evento propriamente dito, os agentes que o produzem ou a ele estão submetidos o fazem num contexto temporal e histórico que contém ao mesmo tempo seu passado, sua genealogia, sua forma presente e suas visões do futuro. Desta forma, seguindo a trilha deixada por Laurent Vidal e inspirados pelas ponderações de Arlette Farge, vemos que o acontecimento apenas pode ser definido a partir de um sistema complexo de temporalidades7.

Proposta de tal envergadura será, certamente, muito apreciada entre historiadores europeus e brasileiros que assistem, atualmente, ao advento de novas vias que se abrem à história social das cidades. Os novos trilhos para história urbana do Brasil devem provocar estudos mais atentos à multiplicidade dos tempos e dos ritmos sociais, colocando no centro das atenções dos pesquisadores os pontos e contrapontos das identidades e as incertezas das configurações socioespaciais na cidade8Les larmes de Rio confere ao autor outros dois méritos indiscutíveis: primeiro, como guia que indica um caminho a seguir por entre as trilhas renovadas da história das cidades. Segundo, como autor que nos convida para um passeio incontornável por entre os traços, indícios e pistas deixados pelos protagonistas que viveram o último dia do Rio como capital federal.

Esta saída do poder político da cidade é narrada em duas partes principais. A primeira, “Quando o poder deixa a cidade”, divide-se em oito capítulos que, após apresentar os atores principais, eleva as cortinas para descrever o cenário de uma separação dramática. Em quatro atos, desvenda a profundidade dos gestos e palavras utilizados por Juscelino Kubitschek, agentes políticos e a grande imprensa, cujo objetivo visa desfazer os laços complexos que ligam a cidade aos organismos que lhe conferem o estatuto de capital. Na segunda parte, intitulada “Poétique de L’événement”, dividida em quatro capítulos, o autor dialoga com as fontes históricas e os protagonistas da época buscando pôr em evidência as diversas leituras realizadas pelos contemporâneos. Oferecendo a palavra aos poetas, explora seus testemunhos e suas imagens, mesclando suas intuições com as emoções suscitadas pela proximidade do evento anunciado. Assim, procura esboçar o que denomina poétique de l’événement, método ou maneira para se construir um caminho o mais próximo possível do acontecimento, visando desvelar não o seu sentido, mas o modo como ele nos afeta. Se é da obra dos poetas que nascem as primeiras lágrimas do Rio, após a partida da capital serão eles os profetas que anunciarão a ressurreição de uma cidade renovada. Mas esta é apenas uma entre as leituras possíveis do livro de Laurent Vidal. Les larmes de Rio certamente vai estimular outras interpretações na medida em que o leitor aceitar o desafio de revisitar este momento crucial para a história da cidade maravilhosa.

Notas

1 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu’est-ce qu’un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010, p. 6.         [ Links ]

2 Yves-Marie Berce, “Conclusion : vide du pouvoir. Nouvelle légitimité”. In: Histoire, économie et société. 1991, 10e année, nº 1. Le concept de révolution. pp. 23-25.         [ Links ]

3 Jean Duvignaud, Introduction à la sociologie, Gallimard, Paris, 1966, p. 77.         [ Links ]

4 Laurent Vidal, Mazagão, la ville que traverssa l’Atlantique. Du Maroc à l’Amazonie (1769-1783). Aubier, Paris, 2005.         [ Links ]

5 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire », op. cit., p. 6.         [ Links ]

6 Expressão que emprestamos de Siegfried Kracauer. Siegfried Kracauer, L’histoire. Des avant-dernières choses. Stock, Paris, 2006, p. 272.         [ Links ]

7 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu’est-ce qu’un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010.         [ Links ]

8 Laurent Vidal, “Os ‘trilhos’ da história do Brasil urbano”. In: Ler História, nº 48, 2005, pp. 75-85. Aqui, p. 85.         [ Links ]

Fernando Lobo Lemes – Doutorando em História. IHEAL – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine Université Sorbonne Nouvelle/Paris 3 [email protected].

Historiadores chilenos frente al bicentenario – PARENTINI (H-Unesp)

PARENTINI, Luís Carlos (Comp.). Historiadores chilenos frente al bicentenario. Santiago de Chile: Comisión Bicentenario, 2008, 535 p. Resenha de: MARTIN, Lara. História [Unesp] v.29 no.1 Franca  2010.

A pocos años de celebrar los doscientos años de vida independiente en diversos países de América Latina, en Chile los historiadores tempranamente se están haciendo parte de dicha conmemoración. Como era de esperar, desde una visión crítica analizan el pasado nacional, no sin cierta visión diagnosticadora del tiempo presente que bien hace recordar las palabras de Bloch y Febvre en cuanto a que los seguidores de Clío son hombres de su tiempo.

Invitados por el etnohistoriador Luis Carlos Parentini, más de setenta historiadores a lo largo de quinientas treinta y cinco páginas reflexionan sobre Chile en perspectiva histórica. La vitalidad de la historiografía chilena es una de las principales características que el libro presenta demostrado en que historiadores de distintas generaciones y casas de estudio del país y extranjero, surcan ideas y problemas, generando discusiones y soluciones sobre la historia chilena. Desde la historia de las ideas, pasando por la historia de la educación, social, económica, indígena, sensibilidades, género, cultural y política, hasta llegar a la antigua y medieval, van dando forma a un libro que representa el perfil de un rubro del saber que particularmente en Chile ha tenido una larga tradición.

En el prólogo escrito por Parentini, se dan a conocer ideas bastante singulares que hacen recordar empresas similares desarrolladas en Francia con motivos del bicentenario de la toma de la Bastilla y en Hispanoamérica con los quinientos años del descubrimiento. Si bien, se reconocen hechos como aquellos, el compilador profundiza la situación para nuestro caso en el sentido de promover una conciencia entre los historiadores sobre el papel que cumplen en la sociedad contemporánea, considerando que están frente a una difícil situación en que prevalece la información inmediata y fugaz en beneficio de lo actual, por sobre el desarrollo de la memoria que tiene vocación de traspasar el momentum. Del mismo modo, en clave de redención, se pueden leer espacios de profunda convicción de la necesaria y compleja labor que la historiografía chilena ha tenido en la construcción de la nación. Como dice, es la oportunidad de hacer un “mea culpa en cuanto a las voluntarias omisiones, tergiversaciones y exageraciones en la que muchas veces se cayó para satisfacer ciertas necesidades de Estado o grupos de interés a lo largo de doscientos años (PARENTINI, 2008, p.15-16). Esto no necesariamente sitúa al libro en una plataforma del metadiscurso acerca del pasado, sino en una prueba de auto reconocimiento sobre la sensibilidad y cuidado con que se debe laborar acerca del pasado de una sociedad y que, muchas veces, en países como los hispanoamericanos han sido desplazados en beneficio de las circunstancias políticas.

El libro es inaugurado por las plumas de los ocho premios nacionales de historia laureados hasta el 2006 que, como pater familias, reflexionan sobre el oficio de historiar y la concepción que tienen del pasado a partir de sus especialidades. Se debe recordar, que dichos textos fueron escritos para presentarlos oralmente en un seminario que se realizó el año 2006 en la sala de lectura del Archivo Nacional, de ahí su particular redacción y estilo. En los textos, la reflexión académica de años de experiencia inunda cada una de las líneas de desarrollo de las exposiciones. Nos detendremos brevemente en dos.

Ricardo Krebs en “Pensamos nuestro Chile” y Sergio Villalobos con “Nuestro pasado desde la reflexión” son señeras muestras de una larga tradición de la historiografía chilena de la segunda mitad del siglo XX en que conviven, en forma espiral, teorías y abordajes, problematizaciones e interpretaciones del pasado nacional. La conocida categorización científica que ha propuesto Krebs para la historia, basándose en los sustentos teóricos de la férrea formación germana que obtuvo en la primera mitad del XX, comparte con el reconocido afrancesamiento metodológico de Villalobos que caracterizó la formación de la segunda mitad del XX, uniformidades y objetivación de la sociedad chilena. En aquel sentido, a pesar de los enfoques disímiles hay una concordancia en algunos temas. Por ejemplo, ambos apuntan que en el país prevalece, por sobre diferencias, un alto grado de homogeneidad de la población destacando la preeminencia heredada de la cultura judeocristiana occidental como posibilitadora del éxito y posición del Chile actual en el escenario internacional. Ambos aplauden que lo símil, sustentado en fuertes instituciones, permitió la estabilidad y disciplinamiento de la sociedad en relación a sus contrapartes vecinas. Ambos establecen casi un vitalismo orgánico de la nación chilena sustentada en las formas geográficas y características socioculturales permitiéndoles mirar con optimismo el futuro de su país. Ambos, finalmente, con sus argumentos demuestran que son los precursores de dos de las tres grandes escuelas de la segunda mitad del siglo XX y que, a través de la formación universitaria, han propagado y consolidado sus perspectivas históricas en un sin fin de derivaciones temáticas.

En relación a la transversalidad del libro, lo interesante es que junto con realizar un análisis de la historia de Chile desde múltiples perspectivas; en el fondo, se muestra una radiografía de la actual historiografía chilena, convirtiendo al texto en una fuente histórica en si misma. El triunfo de annales entre la formación de los historiadores por sobre tradiciones como la inglesa, italiana y estadounidense, se demuestra desde un primer momento, posicionándose como la escuela de mayor influencia y vigencia de la historiografía chilena del cambio de siglo XX-XXI. La prevalencia de análisis de larga duración enmarcada en los grandes procesos, aderezada por la serie de conceptos y técnicas narrativas que se repiten una y otra vez en los distintos ensayos, se convierten en prueba irrefutable. En aquella dimensión, fácilmente se pueden rastrear genealogías que vinculan a maestro y discípulo, y corrientes teóricas de cómo historiar distintos objetos de estudio.

En su conjunto, los ensayos son una policromía de temas y calidades. Sobre los temas no nos detendremos pues ya adelantamos algo al comienzo. Lo que sí nos interesa rescatar es que una cantidad no despreciable de las contribuciones tienen un exacerbado diálogo con el tiempo presente o, si se quiere, con lo contingente. No queremos hacer un juicio de ello, sino sólo constatarlo. Artículos como los de Gómez, Lacoste, Millar, Pinto, entre otros, demuestran tal situación, recordándonos que sus lecturas de los intelectuales del centenario no pasaron desapercibidas. Claro que la postura de los historiadores del bicentenario no cae en la desesperada efervescencia de la narrativa de la década del 1900.

Si hiciésemos una analogía del libro con un perfil orográfico, sería la mejor forma de intentar definir la disímil calidad de los ensayos. Hay algunos que alcanzan alturas de gran notabilidad; interesantes en sus cuestionamientos y proposiciones, abordando desde otra perspectiva temas que se han considerado canónicamente sólo desde un punto de vista. Mientras que otros, decaen en abruptas quebradas; rayando en un simplismo sustantivo, tal vez producto de apresuradas horas de redacción, escritura por cumplimiento o no sopesar la importancia del producto final. En fin, la variedad da para todo: artículos débiles de hombres consagrados comparten espacio con ensayos meticulosos de aprendices clíonautas; como textos de calidad firmados por destacados, se alternan con decadentes líneas de historiadores que recién comienzan.

Cualquier persona que lee este libro notará inmediatamente la gran cantidad de participantes, lo cual es loable para el compilador por su organización y un gran esfuerzo editorial de la Comisión Bicentenario. Pero también cabe preguntarse ¿qué pasó con los historiadores ausentes? Consagrados como el recientemente fallecido Gonzalo Vial y otros brillaron por su ausencia. Más todavía, resulta extraña su no participación cuando personas como Vial han sido gravitantes para el desarrollo de la historiografía chilena proponiendo nuevos temas e interpretaciones de gran autonomía, levantando polvo a penas enuncian tan sólo una idea. Tal vez, una segunda edición con nuevos autores subsane la ausencia de prohombres y mujeres que no aparecieron en este volumen.

En relación a la estructura física del libro, es un texto bien logrado; sin errores que se noten a simple vista. Sus dimensiones, considerando que cobija más de setenta textos, no pasa desapercibida. Más, cuando en la portada aparecen en pleno los premios nacionales de historia que participaron en el encuentro ya mencionado del 2006, resguardando sus espaldas el Palacio de la Moneda en dos tiempos: uno retratado por Gay y otro que representa la renovada fachada tras la intervención arquitectónica de la explanada sur. Historiadores chilenos frente al bicentenario es un libro recomendable para todo lector que se interesa en el estudio de la historia y más para quienes deseen saber los actuales temas que interesan a los especialistas del pasado.

Martín Lara – Ayudante Docente – Instituto de Historia – PUC-Chile – Pontificia Universidad Católica de Chile – Av. Libertador Bernardo O’Higgins, 340, CEP: 3542000, Santiago, Chile. E-mail: [email protected].

O crime do restaurante chinês – FAUSTO (H-Unesp)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 246 p. Resenha de: PEREIRA, Vantuil. Uma “outra” São Paulo da década de 1930. História [Unesp] v.29 no.1 Franca  2010.

A década de 1930 sempre exerceu certo enlevo para quem estuda a História do Brasil Contemporâneo. Em grande medida, a Revolução de 1930 pautou tanto as ações políticas, quanto as ações acadêmicas. Assim, no campo acadêmico, olhar para aquele decênio significa tentar compreender fenômenos como o populismo, o estudo das “modernas” formas de fazer política, o estilo constituinte dos partidos contemporâneos.

É resultado deste período a estruturação daquilo que Wanderley Guilherme dos Santos denominara “cidadania regulada”, isto é, uma inserção social controlada pelo Estado, no qual os direitos inerentes de cidadania são constituídos de forma parciais e com uma clara intenção homeopáticas.

A essa época consta também os traços ou resquícios de um tempo não muito distante. Pertencem a mesma década as principais formulações racistas e autoritárias, expressas na eugenia ou na proposição de que não haveria um sentimento de povo no Brasil, apenas visões parciais e localistas. Por seu turno, a sociedade não estaria preparada para o exercício político; não estava acostumada com instituições democráticas. Do mesmo modo, o pensamento científico ganhava terreno, ampliando suas relações socais concretas.

Diferentemente de verificar como um Estado autoritário impactou na vida de um militante comunista ou sindicalista, esta historiografia deixa de olhar como estas instituições impactaram no cotidiano das pessoas comuns. Embora as ideias racistas não tivessem sido introduzidas no Brasil naquela época, foi em 30 que as discussões raciais ganharam terreno. Elas resultaram de uma articulação entre a academia e a vida cotidiana da população através dos aparelhos repressivos que, mediado pelo Estado, interferiram no dia-a-dia da população.

Ao lançar vistas para os anos de 1930, tem-se pelo menos dois outros aspectos instigantes. O primeiro se refere a uma preocupação principal com a construção do edifício e as bases do Estado moderno nacional, seja pelo viés industrial e urbano, seja pelo pensamento político e jurídico daí emanado. Em segundo lugar, dá-se ênfase a compreensão do fenômeno político que foi Getulio Vargas, uma espécie de mito moderno o qual, ao longo das décadas seguintes à sua chegada ao poder, acabou por instituir uma espécie de paradigma político e social na história recente do país.

Desse modo, frequentemente a história política dos anos 30 esteve às voltas com as narrativas das grandes personalidades que, obviamente, não se restringiam à persona de Getúlio, podendo-se falar em figuras como Gustavo Capanema, Juarez Távora, Francisco Campos, etc. Portanto, tratar-se-ia de um enfoque histórico a partir dos grandes homens ou, no mais das vezes, de uma história política renovada que procurava construir uma releitura das ações, padrões políticos, mentalidades e culturas políticas dentro de uma lógica motivada “pelo alto”.

Raros são os estudos deste período que versam sobre a compreensão do mundo das camadas populares, dos homens e mulheres comuns, embora sejam tocados pela construção do Estado, pelos discursos de Getúlio Vargas e toda carga simbólica que ele representara. Ao mesmo tempo, podemos perguntar como a urbanização acelerada, o fortalecimento e consolidação de uma opinião pública, calcada no rádio, moldaram as vidas ou como esses elementos repercutiram no cotidiano da gente comum, pois coadjuvado com a imprensa escrita, irradiavam valores de um “novo” momento nacional.

Em grande medida, a impossibilidade de se alcançar os impactos das transformações daquela década se deveu, por um lado, pela própria perspectiva histórica de valorização da história política tradicional, pela resistência em ver na gente comum uma cultura ou capacidade de reação às ações do Estado. Por outro lado, inexistiam métodos capazes de perceber tais nuances específicas das camadas sociais mais pobres.

Esses limites começam a ser quebrados no Brasil a partir da década de 1980 quando, sob influência da micro-história, ocorre uma junção das análises com a eleição do cotidiano como campo de observação com o enfoque sociocultural. A preocupação aqui está em examinar como a classe operária (e não seus dirigentes) é formada, ou como ocorrem resistências populares a partir de uma “outra historia”. O cotidiano é visto a partir do contraditório, revela tensões, desconexões aparentes, conflitos com os poderes e das resistências a esses poderes.

Henrique Espada (2006) argumentaria que seria importante o historiador olhar com atenção para as paisagens que aparentemente não se transformam. Sugere-se, portanto, que se tome, se não um procedimento, ao menos a qualidade de uma observação ou de uma perspectiva frente aos objetos da análise. Assim, a metodologia ou as fontes disponíveis para se chegar às pessoas comuns não são as mesmas que para se compreender o modo de pensar das grandes personalidades.

Como afirmavam E. P. Thompson, George Rudé e Eric Hobsbawm, as pessoas comuns – quase que invariavelmente -, não deixaram documentos escritos para a posteridade e não tinham arquivos disponíveis para guardar as suas memórias. Dessa forma, um procedimento para auscultar este segmento social se faz através de um tratamento intensivo das fontes, ao seu modo peculiar de ler os indícios, isto é, a atenção do historiador deverá ser redobrada, ele deve estar atento a todos os detalhes, aos não ditos. Em diversas oportunidades ele está trabalhando ao nível das trajetórias individuais, da realidade cotidiana e de ardis recorrentes nas extensas redes de pequenos poderes onde os atores sociais se revelam em toda a sua humanidade.

Ao valer-se da metodologia e do enfoque micro-histórico, O crime do restaurante chinês de Boris Fausto, vem cobrir parte desta lacuna do período do Estado Novo. O autor traz contribuições valiosas para o entendimento do modo de pensar e de como as pessoas comuns sobreviviam no interior de uma cidade de São Paulo em transformação.

O autor se relaciona com a micro-história ao considerar aspectos determinantes daquela metodologia, tais como a redução da observação do historiador. Fausto não se preocupa em tratar, por exemplo do Estado como ente privilegiado, ele busca apreciar ações humanas e significados que passam despercebidos quando se lida com grandes quadros

Do mesmo modo, para dar consubstanciação à sua proposta, ele concentra sua escala em pessoas comuns e não em grandes personagens, buscando ouvir suas vozes. Aqui, entra um terceiro elemento, pois há uma preocupação em extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão sociocultural relevante.

Embora reconheça que sua obra possa ser lida como uma “boa história”, Fausto marcará sua posição de historiador ao revelar dois aspectos imprescindíveis de seu trabalho. Embora apele para o recurso da narrativa, contraria a história das grandes estruturas, sem se confundir com o estilo das narrativas tradicionais, predominantes no século XIX. E, por fim, mas não menos importante, situa sua obra no terreno da história, o que significa apoiar-se nas fontes, delimitando assim, claramente, a obra ficcional.

No último ponto, Fausto retoma alguns ensinamentos de Carlo Ginzburg e suas preocupações em distinguir seu modo de construção narrativo da corrente que propugna por um ataque cético à cientificidade das narrações históricas (GINZBURG, 2007, p.10-13). Afirma que as narrações históricas não falariam da realidade, mas sim de quem as construiu. O crime do restaurante chinês tem um estilo preferencial pela narrativa, admite Fausto, mas não a narrativa ficcional, pois a trama se apoia em fontes históricas, conclui o autor.

Em seu lugar, Fausto atuará mais como um camponês arando um terreno árido, procurará se situar mais como um “vasculhador” de testemunhos históricos a contrapelo, como Walter Benjamin sugeria, isto é, contra as intenções de quem os produziu.

Uma das grandes forças de O crime do restaurante chinês é que sua escala de observação é reduzida. Vários personagens são pessoas comuns, invisíveis no plano dos grandes acontecimentos, que não figuram na galeria dos grandes mitos da história nacional. Contudo, dentro da proposta micro-histórica, o modo de pensar, as vidas e as interações das pessoas comuns servem para inseri-las em um amplo contexto social que serve como chaves de entendimento de ângulos ignorados do contexto da época. São “fachos de luz, capazes de alcançar lugares escuros de uma sala que a luminária do teto não alcança”, dir-nos-ia Boris Fausto.

O autor argumenta que a problemática só poderá ser entendida se compreender o contexto geral em que a vida das pessoas está envolvida. Assim, ele situará suas análises ao longo da repercussão do próprio crime do restaurante chinês, isto é, na São Paulo da década de 1930, ou, com maior incidência, nos anos que vão de 1938 a 1942. Naquele momento, a cidade não era a megalópole dos dias atuais. Todavia, ela já vivia os problemas dos grandes centros urbanos, sobretudo se considerarmos que nela já habitavam mais de 1 milhão de pessoas. Os vestígios do passado insistiam em não desaparecer, ainda que os meios de informação estivessem bastante disseminados, pela via dos jornais e das emissoras de rádio, que alcançavam não só a classe média como setores das classes populares. Outro aspecto da cidade era a presença de uma multiplicidade étnica, em grande medida resultante da imigração em massa de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX. “Em meados dos anos 1930, nela conviviam imigrantes e seus descendentes, velhos paulistanos em crescente minoria e migrantes internos que começavam a chegar em grande número, de Minas Gerais e do Nordeste” (FAUSTO, 2009, p.10).

Fausto reconhece que a obra está envolta de elementos de sua própria memória, pois parte do que ele retira dos relatos e da narrativa é decorrente das lembranças da sua infância, do carnaval de 1938, dos encontros familiares, das desgraças, etc. A memória reconstruída por Fausto é como uma fotografia de sua infância. O que foi lembrado é interessante na medida em que nos revela parte da trama.

O escritor admite que na sua memória “ficaram apenas as imagens do último carnaval [em família], do mistério sem rosto da morte da minha mãe. Ficaram também as imagens do crime do restaurante chinês, na versão em que Arias de Oliveira era considerado o autor da chacina” (FAUSTO, 2009, p.217), motivadas pelas cenas estampadas nos jornais, pelos comentários repercutindo o massacre.

No presente, ocorre um confronto entre o historiador e sua memória. A memória reconstruída do autor procura não o julgamento, mas a compreensão daquelas cenas, a partir das evidências, das fontes. O “juiz” transforma-se em historiador. Lembrar agora pode ser visto não como algo inocente, pois, olhando por trás dos ombros do delegado e nas tintas da imprensa que repercutia o crime, fica consciente de que, a autoridade depositada nestas instituições são elas mesmas apenas vozes contraditórias que se juntam ao processo.

As cenas que atormentavam um pequeno menino não deixavam de ser as da exposição de uma memória coletiva. As percepções de Boris Fausto, ainda que aparentemente passem à margem dos acontecimentos daqueles anos, implicam nas tramas que circundavam a sociedade: o crime, o futebol, o carnaval, as leituras que a imprensa construía sobre os envolvidos nos acontecimentos do carnaval de 1938 e a primária ideia de justiça.

O crime do restaurante chinês é uma chave de abertura dos caminhos mais amplos, seja ele o funcionamento do aparelho policial e judiciário – aqui estariam ausentes o uso da força como mecanismo de dominação e a obtenção da confissão do acusado negro Arias de Oliveira – , ou os novos mecanismos propugnados pela ciência criminológica, auxiliada pela psicologia e pelas técnicas desenvolvidas pelo professor positivista italiano Cesare Lombroso. Portanto, recorrentemente, estão contidas as teorias racistas, que procuravam demonstrar os tipos de homens capazes de cometer crimes e, consequentemente, a discussão da natureza da criminalidade e do perfil dos infratores.

Dividido em 16 capítulos curtos e objetivos, o livro é de fácil compreensão e acessibilidade (tanto para um leitor leigo quanto para um acadêmico). A obra conta o desenrolar do crime (ou chacina, como afirma o autor) do restaurante chinês, ocorrido no carnaval de 1938. No morticínio morreram o proprietário do restaurante, sua mulher e dois empregados do casal. Auxiliado pela riqueza de detalhes produzidos por jornais como o Estado de São PauloFolha da Manhã e Correio Paulistano, Fausto constrói a trama procurando problematizar e relativizar cada detalhe do crime. Coadjuvado pela imprensa, será na friúra do inquérito policial que ele procurará reconstruir a personalidade de todos os envolvidos. Contudo, o que o mundo da chacina revela, ao contrário de um mundo glamourizado, é a vida de “migrantes pobres, analfabetos ou semianalfabetos”, alguns que com esforço vinham escalando alguns degraus da ascensão social (FAUSTO, 2009, p.41-43).

Seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos – que permite a compreensão do desenrolar dos acontecimentos -, não deixa de tocar nas intrigas e emaranhados que envolvem a trama, desde a existência de uma possível máfia chinesa, passando pela contrariedade de familiares do proprietário do restaurante chinês, as pressões “desatinadas” da imprensa sensacionalista, a busca pelos culpados, chegando ao negro Arias de Oliveira – o acusado de ter cometido o crime do restaurante chinês.

No ínterim da narrativa, Fausto percebe uma disputa política envolvendo, de um lado, a polícia que, pressionada pela repercussão popular de um grande crime, isto é, episódio que se destaca pela exuberância sangrenta, por envolver paixões amorosas, na importância dos protagonistas, ou por tudo isso junto (FAUSTO, 2009, p.39) que, na atualidade, se encontra banalizado não só pela generalização dos acontecimentos, mas, sobretudo, pela capacidade da imprensa em torná-los corriqueiros. De outro lado, ao chegar ao preto Arias, a ação da polícia desencadeia uma ação por parte da chamada burguesia “de cor”, responsável por atividades culturais e pela criação de entidades como a Frente Negra Brasileira, que se propunha a lutar contra a discriminação racial. A Frente se colocara na defesa de Arias de Oliveira, evitando que ele ficasse desamparado ou nas mãos de um defensor público. Entra em cena, o jovem advogado Paulo Lauro, importante para as três absolvições que Arias receberia ao longo de três anos.

Ao lermos O crime do restaurante chinês, a riqueza de fotografias nos transporta para os acontecimentos, permite que nos envolvamos cada vez mais na trama. Ao nos depararmos com a acusação de Arias de Oliveira, perguntamo-nos a cada momento qual será o desfecho dos acontecimentos.

O que podemos antecipar é que Arias de Oliveira volta à obscuridade, sem que o crime deixe de figurar na memória coletiva da cidade de São Paulo. Ele é memória coletiva para os militantes negros.

Do mesmo modo, pode ser compreendido como uma memória não rememorada de mil outros “Arias de Oliveira” que não tiveram o mesmo destino de se verem fora das prisões e suas vidas transformadas pelas agruras da justiça. Diante deste possível desfecho, fica cada vez mais provocativo pensarmos o potencial da construção historiográfica a partir de homens e de mulheres comuns que foram impactados pela nova ordem de coisas, pela ética do trabalho, pelo racismo, pela exclusão disseminada a partir da consolidação do capitalismo no Brasil, na São Paulo que era o seu exemplo mais concreto já a partir da década de 1920.

O livro de Boris Fausto é uma obra que contempla um jeito novo de fazer história: não perde a perspectiva de se construir conhecimento. Articula a relação entre o contar uma boa história (científica, porque baseada nas fontes) e uma outra (narrativa), ao gosto do leitor comum, que procura os prazeres de uma boa estória.

Vantuil Pereira – Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – UFRJ – Univ. Federal do Rio de Janeiro – Av. Pasteur, 250, CEP: 22290-240, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

Memoria e Identidad – CANDAU (H-Unesp)

CANDAU, Joel. Memoria e Identidad. Buenos Aires: Ediciones Del Sol, 2008, 208 p. (Título Original “Mémoire e Identité”, Traducción Eduardo Rinesi). Resenha de: SILVA, Wilton C. L. História [Unesp] v.29 no.1 Franca  2010.

Joel Candau é professor de Antropologia na Universidade de Nice-Sophia, na França, e coordenador do LASMIC (Laboratório de Antropologia e Sociologia Memória, Identidade e Cognição Social), onde desenvolve estudos sobre antropologia sensorial e cognitiva, antropologia da cooperação e abordagens naturalistas nas ciências sociais.

Embora inédito no Brasil, publicou Anthropologie de la mémoire (1996), Mémoire et identité (1998), ambos com tradução para o espanhol em edição argentina (em 2001 e 2002 respectivamente), e Mémoire et expériences olfactives: Anthropologie d’un savoir-faire sensorial (2000), entre outros.

Neste ensaio (Memória e Identidade) o autor revisita algumas das ideias expostas no Anthropologie de la Memoiré, sobre as relações entre memória e identidade, quando afirma que

não pode haver identidade sem memória (assim como lembrança e esquecimento) porque somente esta permite a auto-consciência da duração. […] Por outro lado, não pode haver memória sem identidade, pois o estabelecimento de relações entre estados sucessivos do sujeito é impossível se este não tem a priori um conhecimento de que esta cadeia de sequências temporais pode ter significado para ele.

Memória e Identidade são ideias centrais nas teorias clássicas das ciências humanas e sociais, presentes em reflexões de diferentes áreas e orientações teóricas como nas análises da memória e/ou da identidade por autores tão diferentes quanto Henri Bérgson, Pierre Nora, Michel Maffesoli, Jacques Le Goff, Maurice Halbwachs, Gerard Namer, e Phillipe Áries, Norbert Elias, Paul Connerton, Erving Goffman, Stuart Hall, Paolo Montersperelli, Paul Ricoeur, entre outros.

O trabalho de Joel Candau enfrenta o desafio de refletir sobre algumas dessas contribuições e propor o enriquecimento das relações entre esses dois temas, que sofrem constantes reavaliações e redimensionamentos, em um amplo diálogo com diferentes áreas do conhecimento, sendo que as obras de Maurice Halbwachs (A Memória Coletiva) e Pierre Nora (Les Lieux de mémoire) ocupam certa centralidade em sua reflexão ao longo de todo o texto.

O antropólogo francês estrutura o seu texto em oito partes, compostas por uma introdução, seis capítulos e uma conclusão, nos quais as relações entre individual e coletivo, orgânico e cultural, lembrança e esquecimento, construção e transmissão, unidade e fragmentação, da memória e da identidade são discutidas.

Já na introdução são explicitadas “algumas ideias simples” que estariam presentes “ad nauseam” em diversas publicações sobre os temas da memória e/ou da identidade: 1) os conceitos de memória e identidade são fundamentais nas ciências humanas e sociais, 2) existe um certo consenso de que a identidade é uma construção social, permanentemente redefinida em uma relação dialógica com o outro, 3) também existe um certo consenso de que a memória é uma reconstrução continuamente atualizada do passado, 4) o “mnemotropismo” (a obsessão pelos “lugares da memória”) está diretamente relacionado a diferentes fatores como a crise das certezas do presente, a diluição das identidades e ao desaparecimento de referenciais, e 5) memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas.

A justificativa para o ensaio, e a busca de sua originalidade, se dá justamente pela proposta de um enfoque antropológico sobre o tema, no qual identidade e memória são abordadas em uma perspectiva social e cultural com destaque para as interrelações entre o individual e o coletivo no compartilhamento de práticas, crenças, representações e lembranças.

O primeiro capítulo se dedica ao mapeamento de conceitos e questões ontológicas fundamentais do campo, assim como as relações entre indivíduo e coletividade, se recusando a aceitar de forma acríticas as “fórmulas consagradas” pelas abordagens “holistas” das noções de memória e identidade coletiva.

Em uma abordagem antropológica da memória, em diálogo com seu livro de 1996, Candau estabelece uma classificação taxiológica de sua dimensão individual em três níveis:

1) memória de baixo nível ou protomemória, composta pelo saber e pela experiência mais profundos e mais compartilhados pelos membros de uma sociedade e que se inserem na categoria de memória procedimental (repetitiva ou hábito) de Bérgson, socialmente compartilhada e fruto das primeiras socializações;

2) memória de alto nível ou memória de lembranças (ou de reconhecimento), que incorpora vivências, saberes, crenças, sentimentos e sensações, podendo contar com extensões artificiais ou suportes de memória; e

3) a metamemória, ou seja, tanto a representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, quanto aquilo que fala sobre ela, em uma dinâmica de ligação entre o indivíduo e seu passado, como uma memória reivindicada.

Enquanto o primeiro e o segundo nível dependem da faculdade de memorização, o terceiro é uma representação sobre essa faculdade. Justamente por essa característica ser uma enunciação, é a única dimensão compartilhada de forma intersubjetiva, enquanto memória coletiva, ou seja, produção social de alguns acerca de heranças supostamente comuns aos membros de um determinado grupo.

Candau chama a atenção para o fato de que enquanto a dimensão individual desse nível se relaciona à constatação de uma capacidade comprovada – memorizar – a dimensão coletiva se refere à atribuição de uma comunidade hipotética.

Essa mesma dimensão metafórica, enquanto representação, encontra-se no conceito de identidade, tanto cultural quanto coletiva, uma vez que as noções de semelhante, similitude ou pertencimento também são atribuídas. Embora reconheça a existência de similitudes a partir da protomemória, essa dimensão apresenta duas objeções: a expressão identidade em realidade pode projetar na forma de totalidade aspectos que seriam apenas majoritários, e as estratégias identitárias de qualquer grupo envolveriam um jogo complexo muito mais amplo do que a exibição passiva de um conjunto de hábitos incorporados.

De certa forma tais perspectivas afirmadas pelo autor situam sua análise dentro de uma abordagem situacional da identidade, na qual esta é construída a partir de relações, reações e interações sociais das quais emergem visões de mundo e sentimentos de pertencimento.

Assim, sua análise não aceita os malabarismos retóricos “holistas” que tendem a afirmar, a priori, através de termos, expressões e figuras totalizantes supostos conjuntos estáveis, duráveis e homogêneos de indivíduos e representações como realidades empíricas, embora os aceite como instrumento analítico (ou como “configurações narrativas”, segundo Ricoeur).

No segundo capítulo a questão privilegiada são as diferentes formas de construção e reconstrução da memória e da identidade no nível individual, da “mnemogênese” à “memogênese”.

A relação entre identidade e memória coloca de forma clara que a identidade se manifesta como um relato, um discurso autoreferenciado que se projeta como uma totalidade significante, em uma convergência entre curiosidade e “anamnesis”, alicerçada sobre três bases: a natureza do acontecimento recordado, o contexto sincrônico do acontecimento e o contexto sincrônico da rememoração.

Tais processos que se manifestam na esfera coletiva, a qual surge na confluência das imagens e da linguagem, são responsáveis por totalizações existenciais. Elas permitem tanto a manutenção de memórias fortes, que buscam criar marcas sólidas que vêm reforçar sentimentos de origem, historicidade e pertencimento, quanto em memórias fracas, que se diluem e fragmentam conforme as identidades se transformam ou novas identidades se afirmam.

No terceiro capítulo o autor relaciona as formas de apropriação da memória com uma domesticação do tempo a partir de uma estruturação fundada na origem e no acontecimento. A partir de abordagens filosóficas e antropológicas sobre a temporalidade o autor reafirma a multiplicidade de tempos sociais como questão fundamental para a compreensão da memória.

Nessa perspectiva relativista discute as formas de apreensão e representação das temporalidades, relacionando esses processos com as ideias de “tempo profundo” e “memória larga”, as práticas de mensuração, os tempos privados e os tempos anônimos, vinculados aos seus conceitos de memória forte e memória fraca.

Entre o quarto e o sexto capítulo são elencadas algumas formas de passagem entre as formas individuais e coletivas da memória e da identidade, assinalando os processos de transmissão e recebimento, fundação e construção, assim como de esgotamento e desmoronamento.

A partir do mito de Teuth, o deus egípcio que apresentou a escrita a Thamus (Amon), Candau discute nesses capítulos finais as possibilidades da “hypomnésis”, recordação do banal pela sua conservação, e as dificuldades da “anamnésis”, a manutenção da memória, contrastando a obsessão “mnemotropista” da sociedade contemporânea com a glorificação do presente e da simultaneidade.

A distinção entre a reprodução e a invenção da tradição, identificada como dinâmicas protomemorialistas e memorialistas, permitiria, segundo o autor, uma mudança de uma construção social de uma tradição “tradicionante”, legitimadora no presente, para uma tradição “tradicionada”, uma referência objetivada.

É nesses capítulos que a questão do patrimônio ganha centralidade, na qual este é reconhecido como uma relação que envolve mais uma afiliação do que filiação, uma materialidade que é mais reivindicada que herdada, assim como menos comunitária que conflitiva.

Em uma época de “mnemotropismo” deve-se manter uma ênfase crítica em relação às concepções holistas do patrimonialismo, que demonstram uma perspectiva performática dos textos e discursos da memória, quando buscam favorecer e valorizar o arcaísmo a celebração do passado, o fundamentalismo cultural, o mito da autenticidade e o fantasma da pureza, a representação estereotipada do pertencimento, a reificação das diferenças, as complacências comunitárias, um relativismo patrimonial sem limites, e as multiplas formas de nostalgia e paixões identitárias.

O reconhecimento de estruturas de memória individual e coletivas que se tornam vagas, numerosas e complexas, com múltiplos processos de aquisição e assimilação não exclui a compreensão de novos processos nos quais as grandes memórias desaparecem ou são destruídas. Mas outras memórias densas e numerosas são elaboradas, com igual força, fundamentando identidades em recomposição – embora a quimera da homogeneidade de memórias e identidades deva ser rechaçada tanto no passado quanto no presente.

Assim, o texto tenta se equilibrar entre a compreensão dos jogos da memória e da identidade, assim como dar conta das ambiguidades desse jogo e de seu dimensionamento, ao reconhecer, ao mesmo tempo, tanto a sua importância como a amplitude de forças sociais e culturais, múltiplas e complexas, que não são necessariamente memorialistas ou identitárias.

Referências 

CANDAU, Joel. Antropologia de La Memória. Buenos Aires: Nueva Vision, 2002.         [ Links ]

____. Anthropologie de la Mémoire. Paris: PUF, 1996.         [ Links ]

____. Mémoire et Identité. Paris: PUF, 1998.         [ Links ]

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. S. Paulo: Vértice, 1990.         [ Links ]

NORA, Pierre. Les lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1984.         [ Links ]

RICOEUR, Paul; FRANÇOIS, Alain. A Memoria, A Historia, O Esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2008.         [ Links ]

Wilton C. L. Silva – Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].

A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII – XAVIER (H-Unesp)

XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Em A invenção de Goa, Ângela Barreto Xavier discute a experiência monárquica portuguesa no sul da Índia como um processo de tensões, confrontos e acomodações entre colonizadores e colonizados entre os séculos XVI e XVII.

As quase 500 páginas de sua consistente pesquisa em arquivos de Portugal, Itália e Índia, resultado de sua tese de doutorado defendida no Instituto Universitário Europeu, estão divididas em sete capítulos.

A narrativa, construída através da interpretação de documentação administrativa, jesuítica e do Santo Ofício articula o projeto e as ações imperativas do colonizador com as de criação e resistência dos colonizados. Dos capítulos 1 ao 4, são apresentados e discutidos os êxitos da presença portuguesa nas aldeias de Goa, através da aliança que existiu entre a Coroa e as ordens missionárias jesuíticas e franciscanas. A ação criativa e a resistência sutil e violenta das populações indianas às imposições da ordem metropolitana são tratadas entre os capítulos 5 e 7.

O primeiro capítulo, intitulado “Reforma do reino, reforma no império” critica a tese da historiografia portuguesa que defende a crise e decadência do império asiático português no período 1530-40 e discute uma das diretrizes metodológicas do livro de que o fortalecimento do aparelho político-administrativo do reinado de D. João III serviu para implantar um modelo de relacionamento político mais imperativo no Estado da Índia.

Uma aliança político-religiosa, comum em várias unidades políticas européias da época, teria conservado o poder imperial e promovido a cristianização das sociedades coloniais, substituindo antigas ligações sociais comunitárias e horizontais por laços verticais próprios da relação súditos e autoridades.

Para Ângela Xavier, o traçado político centralizado do Estado da Índia envolveu a conversão e evangelização sistemática das populações locais. No Reino, estaria ganhando evidência o modelo imperial romano, desenhado em suas paredes e cantado por poetas e cronistas.

Este primeiro capítulo é concluído com a idéia de que os territórios do que seria Goa foram os primeiros a experimentar esta atitude centralizadora e imperial, através da constituição de tombos, forais e da implantação de redes de fortificação.

Em “Traças para a conversão”, capítulo seguinte, a ação conjunta entre Monarquia e Igreja aparece através dos projetos de evangelização sustentados pela Coroa e implantados por missionários jesuítas e franciscanos.

Para evitar a islamização do território e combater as práticas religiosas tradicionais, houve a catequização pelo medo, com a introdução da Inquisição, a perseguição à religiosidade tradicional e a promoção da separação física entre cristãos e não convertidos. A ordem religiosa local foi destruída fisicamente e em seu lugar foram edificadas instituições cristãs, como a Confraria da Santa Fé, o seminário e colégio homônimos, a Casa dos catecúmenos.

Vários mecanismos de persuasão também foram implantados, como a construção de edifícios de culto cristão, o aperfeiçoamento da formação dos convertidos locais e do clero, a concessão de privilégios para convencer os indianos à conversão – como restrição do exercício de alguns ofícios apenas aos cristãos – concessão de terras em mercê aos convertidos, atribuição de capacidades jurídicas e autonomia econômica às mulheres convertidas – algo impensável na ordem social em que nasceram.

Mas, como escreveu a autora, entre portugueses estabelecidos localmente – os casados – e entre os brâmanes – .o grupo da elite local -, existiram vozes contrárias ao processo de conversão dos indianos.

O dilema histórico português de dividir poderes e fazer alianças para erguer um Império é discutido no capítulo 3, “Novos templos e novos sacerdotes”. A Companhia de Jesus e os franciscanos receberam da Coroa portuguesa e conquistaram junto às elites locais tamanho poder político, econômico, administrativo e judicial que, segundo a autora, quando o Estado da Índia vivia uma situação de fragilidade financeira, os conventos estavam acumulados de bens materiais, o que interferia nos índices demográficos e de fecundidade local por atraírem os habitantes das aldeias.

Mesmo os êxitos do trabalho missionário de intervenção nos costumes, na estrutura das famílias, na rotina de trabalho, na festas, na concepção de tempo e organização do espaço físico das comunidades locais e na implantação de uma estrutura de vigilância, punição e premiação, não impediram que a Monarquia portuguesa, a partir do século XVII, entrasse em atrito com os párocos locais e regulares e procurasse diminuir os amplos poderes alcançados pelas ordens missionárias.

Tarefa difícil, sabendo-se que, como mostra o capítulo 4, foram a Igreja e as ordens missionárias que forneceram os dispositivos essenciais da cristianização, base de sustentação do Império. Através da articulação confraria-misericórdia-colégio-hospital, franciscanos e jesuítas, nas suas diferentes concepções, interferiram na sensibilidade e na formação goesa. A caridade, educação, pregação, comunhão e confissão eram vistas como formas de ampliação do rebanho cristão.

O capítulo 5 inventaria os comportamentos dos agentes cristãos e das populações das aldeias da ilha de Chorão em relação à conversão e cristianização. Do lado dos convertidos, destacam-se o pragmatismo, visando tirar proveito da nova ordem em termos hierárquicos, ascensão, preservação do status e obtenção de privilégios.

Parcelas da população local convertiam-se, mas continuavam praticando clandestinamente sacrifícios e rituais próprios da sua tradição. A população local também protagonizou fugas e rebeliões, recebendo como resposta dos religiosos a aplicação da violência aos que recusavam a conversão, e a gratificação aos que aderiam ao cristianismo.

Em outros povoamentos locais, especialmente os da periferia de Goa, a resistência ocorria através da violência explícita, com assassinatos rituais de jesuítas e motins, como demonstra o capítulo 6. A autora pondera, contudo, que o prestígio e o poder alcançado por muitos destes missionários deu-lhes autoridade para promover estas manifestações de franca oposição à Coroa portuguesa.

O capítulo 7 incursiona pelo campo da memória histórica das elites nativas, mostrando como, na disputa pela condição de intermediador entre ordem imperial e local, elas se apropriaram e aplicaram à sua história o discurso de honra e nobreza do colonizador.

Um dos aspectos mais positivos da obra é a recuperação que faz da centralidade política da Coroa portuguesa, evidenciando-a, ao mesmo tempo em que esta abordagem não implica em desconsiderar o desenvolvimento político das populações e territórios que fizeram parte desta monarquia.

No conjunto da historiografia portuguesa que vem problematizando questões relativas ao estado e ao poder, este livro representa a revisão da imagem de Império descerebrado, surgida a partir do tipo de leitura que foi feita das pesquisas e interpretações realizadas por Antonio Manoel Hespanha para o século XVII1.

Dentre as várias contribuições do livro nesse aspecto, merece ser destacado que a própria existência de instâncias institucionais de comunicação e arbitragem nas partes de Goa, como o Conselho Ultramarino e os tribunais da inquisição, e o uso que a elite colonial fazia deles para petições, requerimentos e julgamentos denota a condição de árbitro legítimo que os colonos – casados ou elite local – da Índia atribuíam à Coroa portuguesa.

Das várias partes territoriais que compuseram a monarquia portuguesa, no atlântico ou no índico, nada funcionou desvinculado de um eixo central, como demonstra a própria malha institucional, administrativa ou fiscal, que unia e fazia funcionar estas partes.

A resistência e os processos autônomos existiram, como bem interpreta a autora, e ainda assim tiveram consistências muito diferentes num mesmo território, como no caso de Goa ou das aldeias em seus arredores, ambiente de conflitos mais intensos contra o projeto de cristianização da Coroa e dos missionários.

Dentre os que investigaram a história da Índia, o livro de Ângela Xavier avança porque não se restringiu a compreender a centralidade de Goa, como fez Catarina Madeira Santos ou Luis Filipe Thomaz, mas voltou-se para o que chama de “Goa rural” (p. 20), para as aldeias ao seu redor, que ao consentirem viver sobre o poder da Coroa portuguesa, refizeram sua própria identidade, participaram e asseguraram a existência da monarquia.

Recusando a abordagem orientalista presente em muitos trabalhos de origem indiana, a autora focaliza a população local da Índia, especialmente as elites, mostrando seu papel ativo na construção da ordem monárquica.

Diante desta abordagem, ao invés de um cortejo de ações violentas do colonialismo português ou de resistência goesa, o leitor se vê diante de uma realidade mais criativa, ativa, que faz uso de uma sociedade e cria relações novas, sem abolir a tradição e a partir das oportunidades abertas pela condição de colônia de uma metrópole portuguesa.

Esse quadro às vezes parece em desacordo com o vocabulário da autora, que poderia ter buscado expressões mais ponderadas. Hegemonia passa uma idéia de supremacia e totalidade que não corresponde ao tipo de interpretação que a obra faz da ação colonizadora. Neste caso, a idéia de presença, usada por Russell-Wood, ajusta-se mais à experiência monárquica e colonial portuguesa2. Ainda não é clara a expressão “economia de poderes” (p. 274). Embora a autora já a tenha usado em outro texto, escrito com Antonio Manoel Hespanha3, tal expressão merecia no livro uma nota explicativa.

Mais do que uma sólida investigação e reflexão sobre identidades, poderes e culturas, A invenção de Goa é uma ferramenta teórico-metodológica para os pesquisadores da Monarquia portuguesa. Sua leitura promete munir os interessados nas problemáticas monárquicas modernas de diretrizes para conceituações mais equilibradas da relação entre as várias porções territoriais da monarquia portuguesa e em outros campos, como o da história econômica e administrativa.

Notas

1 Hespanha, A. M. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal, século XVII. Coimbra, Liv. Almendina, 1994. Na historiografia crítica destaco apenas Monteiro, Nuno Gonçalo. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a D. Rodrigo. Texto a ser publicado no Brasil e gentilmente cedido pelo autor para uma leitura prévia. °

2 Russell-Wood, A. J. R. The Portuguese empire: 1415-1808. A world on the movie. Baltimoreand London, The Johns Hopkins University Press, 1992, pp. 21-22.

3 Xavier, Ângela Barreto e Hespanha, António Manoel. In: As redes clientelares. In: Hespanha, António Manuel. História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, 1992, pp.381-394.

Denise A. Soares de Moura – Professora Doutora – Departamento de História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP – 14409-160 – Franca – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

 

Telling Children about the Past. An interdisciplinary perspective – GALANIDOU; DOMASNES (H-Unesp)

GALANIDOU, Nena; DOMMASNES, Liv Helga. (Eds). Telling Children about the Past. An interdisciplinary perspective. Ann Arbor, IMP, 2007, 324 p. Resenha de: FUNARI, Raquel dos Santos. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

O ensino de História é uma prática interdisciplinar, como sabem aqueles que estão em sala de aula. Este livro acadêmico procura dar conta dessa necessária interação de matérias, quando se procura tratar do passado com as crianças. O volume divide-se em quatro partes: 1. Perspectivas cognitivas e psicológicas; 2. Mídia impressa e digital; 3. Museus e sítios culturais; 4. Escolas e salas de aula. Os autores provêm dos Estados Unidos, França, Grécia, Grã-Bretanha, Noruega, Brasil, Romênia e Espanha, mais da metade dos quais são do sexo feminino. Tanto no mundo, como no Brasil, a maioria dos historiadores, dos professores de Histórias, educadores de museus, editores e redatores de revistas dedicadas ao passado é constituída de mulheres. A História é contada no feminino!

As organizadoras do volume começam por explicar o uso da expressão “contar o passado”, pois consideram que se trata de uma comunicação de ida e volta, termo menos autoritário que o tradicional “ensinar”. O livro começa por mostrar como os desenvolvimentos cognitivos fazem com que as crianças experimentem o passado como presente. Patricia J. Bauer detalha esta especificidade das mentes infantis. Na mesma linha, Robyn Fiovush relaciona a construção autobiográfica infantil e a pesquisa das reminiscências familiares (a famosa “árvore genealógica”). Alan Costall e Ann Richards tratam da representação do passado por imagens.

O estudo da mídia, como meio de narrar o passado para as crianças, merece destaque, a começar pelos filmes dos estúdios Disney, por Helaine Silverman. Maria Economou volta-se para o uso de jogos eletrônicos sobre o passado, enquanto Nena Gelanidou estuda os relatos sobre as origens humanos e o paleolítico nos livros infantis ilustrados. Os museus e os sítios arqueológicos aparecem como contextos para historietas maravilhosas, segundo Christos Boulotis. As exposições em museus servem para que Andromache Gazi produza um quadro, muito original e instrutivo, sobre como montar uma exposição histórica para crianças. A leitura deste capítulo seria muito importante para todos os que trabalham em museus históricos voltados para crianças. A partir de um estudo de caso, Lauren E. Talalay e Todd Gerring mostram como a mumificação egípcia poder atrair as crianças para um conhecimento original do Egito antigo. Os casos do Brasil e da Romênia, referentes à História nas escolas e em museus, mostram como nem sempre se identificam com uma visão elitista do passado, assim como a importância de um discurso e uma narrativa ao gosto infantil.

A publicação deste volume constitui parte de um movimento mais amplo, em direção a um ensino de História mais preocupado com as necessidades e interesses das crianças. A experiência na sala de aula, nos museus, nas editoras, constitui elemento central para o sabor realista e fecundo deste livro. Os capítulos partem de experiências cotidianas, da vivência prolongada e fertilizadora, no ensino de História. São estudos de caso, sempre bem fundamentados na teoria, mas também atentos aos desafios da prática e do convívio e interação com as crianças. Vale, por fim, lembrar o caráter interdisciplinar das iniciativas, pois contar o passado é uma tarefa multifacetada. Reflexões interdisciplinares como esta serão também bem vindas em nosso país.

Raquel dos Santos Funari – Doutora pelo Programa de Pós-graduação em História – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UNICAMP – 13081-970 – Campinas – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras – SIMIONI (H-Unesp)

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2008, 360p., ISBN 8531410754. Resenha de: FANINI, Michele Asmar. Nem excepcionais, nem amadoras: Artistas Profissionais. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Tese de doutorado elaborada por Ana Paula Cavalcanti Simioni, ora convertida em livro, Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras preenche uma importante lacuna nos estudos sobre a sociologia da arte brasileira, e não apenas em virtude do original recorte estabelecido pela autora mas, sobretudo, pela riqueza das fontes compulsadas, que garantiram seu criterioso encaminhamento.

Como o próprio título sugere, o livro apresenta como fio condutor a investigação acerca das possibilidades de profissionalização feminina na esfera das “belas artes” brasileira, em sua fase acadêmica, mais precisamente, durante o período que enfeixa os anos de 1884 e 1922. De saída, é possível notar que o recorte temporal se define como um contraponto à “tendência a se desqualificar tudo o que fosse anterior ao modernismo paulista” (p.23), i.e., à artificialidade daquelas disposições responsáveis pela transformação do entresséculos em alvo privilegiado de um processo intenso de deslegitimação encetadas, por sua fase subseqüente, a saber, a modernista (MICELI, 1977; PASSIANI, 2003). Além disso, as datas que delimitam o intervalo em tela correspondem a acontecimentos em nada fortuitos: o ponto de partida, 1884, é o ano em que a artista plástica Abigail de Andrade é agraciada com a medalha de ouro em duas, das cinco obras que exibe na Exposição Geral (p. 206), enquanto o ano de 1922 não apenas representa, simbolicamente, o ocaso do academicismo, com a Semana de Arte Moderna, como assiste à consagração de Georgina de Albuquerque no gênero artístico que ocupava o topo da escala hierárquica acadêmica, até então marcadamente masculino, qual seja, a pintura de história (p.286-287).

Mais propriamente, a construção do objeto de investigação se processa a partir da constatação da existência de uma incongruência entre, de um lado, as canônicas presenças de artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral em nosso “panteão estético” e, de outro, a aparente ausência de antecessoras de semelhante “quilate” na história da arte brasileira imediatamente pregressa, tanto na pintura quanto na escultura. Uma vez diagnosticada tal “descontinuidade”, Ana Paula Cavalcanti Simioni considera improcedente a existência de tão celebrados nomes em nosso cenário modernista, sem que houvesse uma tradição anterior de mulheres artistas que os justificasse. Portanto, a hipótese da autora erige-se sobre tal desconfiança, e acena para a necessidade de problematização da presença destas renomadas artistas como “casos isolados”: elas seriam, antes disso, parte de uma memória pouco conhecida e, tal como comprova, artificialmente obnubilada pelos sujeitos responsáveis por sua “escrita” (críticos e historiadores da arte, museólogos, curadores).

A acertada aposta em tal incoerência conduz Simioni a desbravar aqueles espaços “intencionalmente esquecidos” pela história da pintura no Brasil, procedendo à desconstrução da imagem de “mulheres excepcionais”, que as artistas modernistas em questão exemplarmente recendem. A problematização desta “terminologia de supervalorização de uma minoria” deixa evidente a existência de uma pronunciada relação entre seu estratégico manejo e a enviesada construção do cânone artístico, edificado sobre grandes “lacunas historiográficas” (p.36), ficando relegadas à sombra importantes presenças femininas da tradição artística anterior ao modernismo, encobertas pelo cintilante véu da autoritária excepcionalidade.

O cenário, por excelência, da análise, não poderia ser outro, senão o Rio de Janeiro, e por fatores multifários, relacionados à posição privilegiada que a cidade ocupava no circuito da produção estética nacional, o que se deve ao fato de ter sediado a Imperial Academia de Belas Artes e sua sucessora republicana, a Escola Nacional de Belas Artes, espaço de formação artística prestigiado, que não só monopolizava o principal canal de exposição de arte acadêmica, o salão anual, como atuava na subvenção de artistas, na promoção de cerimônias de premiação etc. Contudo, a influência da França, principal pólo de difusão cultural do período, não haveria de ser negligenciada em um estudo desta envergadura. Levando isto em conta, e sem perder de vista seu foco de interesse, Simioni expande seu recorte, de modo a contemplar o impacto da Académie Julian, escola privada inaugurada em 1867 por Rodolf Julian (1839-1907), internacionalmente reconhecida, no processo de formação das artistas brasileiras.

Conciliando um ambiente “bem freqüentado”, ou seja, exclusivamente composto por mulheres de recursos, a um rigor técnico comparável ao da EBA [École de Beaux-Arts], a escola [Académie Julian] tornou-se um sucesso universal, atraindo jovens de todo o mundo para seus quadros. E as mulheres eram um excelente negócio na medida em que pagavam o dobro para uma formação quase equivalente à dos colegas (p. 156).

Para comprovar e fundamentar suas suposições iniciais, a autora recorre a acervos públicos e particulares do Brasil e da França, detendo-se especialmente em dicionários e nos catálogos de Exposições Gerais de Belas-Artes e dos Salões Nacionais de Belas-Artes, vindo a identificar entre eles uma notável dissonância. Com efeito, o mergulho nos “desvãos” documentais lhe revelou a não-correspondência entre os nomes registrados nos dicionários, que atestavam a quase ausência de artistas brasileiras no período estudado, e os referidos catálogos, que bradavam a impressionante cifra de mais de duzentas expositoras. O acesso a tais fontes lhe facultou a elaboração de um “Campo das Mulheres”, formado por um contingente significativo de artistas do sexo feminino, que expuseram seus trabalhos e obtiveram algum tipo de reconhecimento nas artes plásticas. Tal empreitada deixa evidente que a “ausência” de artistas plásticas profissionais no entresséculos passava ao largo de sua inexistência de fato.

Com o intuito de iluminar os modos pelos quais os obstáculos à profissionalização artística foram enfrentados por “mulheres concretas“, que “conseguiram driblar tais impeditivos e se afirmarem como artistas no pleno sentido do termo” (p. 197), a autora dedica um dos capítulos a um conjunto emblemático de pintoras e escultoras, selecionado em função da densidade da documentação que sobre elas encontrou. São elas: Abigail de Andrade, Berthe Worms, Julieta de França, Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto e Georgina de Albuquerque. Aliás, o critério adotado pela pesquisadora para a escolha das artistas evidencia, por si só, se tratar apenas da “ponta de um iceberg”, i.e., de uma amostra, em meio a tantas outras trajetórias artísticas eclipsadas pelos registros historiográficos.

Para além das idiossincrasias que individualizam cada percurso analisado, todos eles convergem, ao traduzirem “formas surdas de transgressão” e de reação às impossibilitações concretas de profissionalização artística experimentadas pelas mulheres do entresséculos. Tais reconstruções evidenciam, paradigmaticamente, as incursões destas pintoras e escultoras no campo artístico como uma espécie de resposta às práticas culturais e ao ramerrão teórico de apelo cientificista embebido em correntes teóricas deterministas e positivistas então em voga, detidamente analisadas pela autora no capítulo inaugural, que apreendiam as mulheres como seres “essencialmente inferiores aos homens“. Simioni mostra que esta assimetria, ao se espraiar para o campo artístico, aparecia cristalizada em certo “rótulo de convenção”, mais propriamente em uma classificação que não apenas estabelecia uma hierarquia entre os artistas em função do sexo ao qual pertenciam mas, e sobretudo, situava as mulheres em uma posição desvantajosa neste “sistema de reputações“, arbitrariamente as desautorizando: trata-se da pecha de “amadora”, que “assombrava como um fantasma a produção artística das mulheres em sua totalidade” (p. 43), opondo-se frontalmente ao termo “profissional”, qualificativo este recorrentemente empregado para nomear os artistas do sexo masculino (p.37).

A simples menção de amadoras englobava vários significados: como o de que se tratava de pessoas sem um adequado conhecimento das regras do ofício, carentes de formação; além disso, acreditava-se que elas não buscavam na arte um modo de sustento, mas um simples passatempo. Evidentemente essa era uma categoria relacional, cujo uso presumia uma comparação, nem sempre explícita, mas sempre presente, com os artistas homens. Eles, os profissionais, detinham a formação adequada, o conhecimento suficiente, o respaldo institucional para, com as artes, exercerem o ofício de modo a conquistarem dinheiro, fama e glória. Para eles a arte era um empreendimento sério, uma profissão; para elas, um refinamento do espírito (p. 301).

Afigurando-se, pois, como uma “regalia” masculina, a profissionalização nas artes plásticas traduzia um processo marcadamente excludente, do qual inúmeras artistas foram deixadas de fora, seja porque tiveram suas obras inadvertidamente inscritas nos tímidos limites do amadorismo ou, o que dá no mesmo, rebaixadas à categoria de prática diletante. Neste espaço perpassado por categorias impregnadas pelas lógicas de gênero, às artistas não “agraciadas” com o epíteto de “excepcionais”, portanto, à grande e esmagadora maioria, era reservada como inescapável fortuna “a vala comum do esquecimento coletivo”.

Simioni ilustra muito bem esta situação, ao pôr em tela uma das mais contundentes barreiras com as quais as mulheres do período se deparavam ao objetivarem a profissionalização artística: o acesso às aulas de pintura a partir de modelo vivo que, no Brasil, apenas lhes foi autorizada em 1897 (embora tardia, esta data antecede o acesso feminino ao nu, se comparada às academias de arte européias). Sendo o domínio das representações do corpo humano exigência fundamental para uma formação consistente – em conformidade com os moldes academicistas – e, por conseguinte, para a obtenção de renome artístico, as mulheres que, durante séculos, foram alijadas desta modalidade essencial de conhecimento (vale dizer, por questões morais que recaíam sobre a pudicícia), encontraram-se não apenas em indiscutível desvantagem se comparadas a seus pares, como esteticamente desautorizadas. Tendo isto em vista, não é de se estranhar a exígua presença das mesmas em um espaço cujas formas de obtenção de prestígio apareciam atreladas às prerrogativas de gênero. Nas palavras da autora,

o acesso ao modelo vivo era absolutamente indispensável à formação de um artista acadêmico. A ênfase da discussão feminista em torno da exclusão do mundo artístico está, justamente, neste ponto: as artistas mulheres foram impedidas de conhecer e dominar, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as principais etapas de formação do ‘gênio’ artístico na medida em que o acesso ao nu lhes foi vetado por ser considerado imoral. Afirmam as historiadoras que sem o controle dos meios de expressão simbólicos característicos daquele fazer artístico, as mulheres foram relegadas a toda sorte de pinturas vistas como ‘menores’, as quais não exigiam o completo domínio da representação do corpo humano e, também demandavam menos preparo físico e intelectual. De sorte que se montava um círculo vicioso: as artes menores passavam a ser vistas como adequadas às inábeis mulheres e, toda a arte feita por mulheres, era colocada entre aspas, rotulada como menor (p. 110).

Em linhas gerais, Profissão Artista nos brinda com uma rica e minuciosa exploração dos mais variados óbices que se impunham àquelas mulheres que almejavam fazer carreira no restrito “espaço dos possíveis” do universo acadêmico brasileiro, em um período duramente refratário à presença feminina. Em uma abordagem despida de qualquer ar triunfalista, o livro todo revela a preocupação da autora com a “arte produzida por mulheres”, sem ceder à tentação de enxergá-la pela lente reducionista e simplificadora de um “feminino universal” que, na análise, é substituído pela apreensão da “feminilidade” como discurso produzido social e historicamente. Neste processo de desmistificação de essencializações, nos são apresentados os mais diversos mecanismos por meio dos quais

as artistas acadêmicas permaneceram por muito tempo nas sombras e suas obras sofreram uma dupla desvalorização. Como muitas produções do período, inclusive as masculinas, padeceram das conseqüências do legado modernista, que com seu crivo impiedoso desmereceu tudo o que lhe era anterior, salvo o Barroco, cujas obras foram por eles alçadas como genuinamente nacionais. Além disso, por serem vistas em sua época como artistas “menores”, deixaram menos rastros do que os colegas masculinos bem-sucedidos; a pecha do amadorismo, essa invenção do século XIX, inibiu por muito tempo estudos sobre suas produções (p.303).

As discussões encaminhadas e também ilustradas por meio de trajetórias concretas evidenciam, para além das formas possíveis de superação da sina reservada às mulheres que aventuravam seguir carreira naqueles espaços tradicionalmente androcêntricos, a porção individual das “ousadias discretas” (p.287) por elas agenciadas, para que conseguissem subverter as posições desvantajosas em que se encontravam, tirando partido de adequadas conjugações entre “o nível educacional, a habilidade técnica, o capital social, as parcerias afetivas, a sagacidade pessoal” (p. 26), elementos capazes de lhes facultar maiores ou menores possibilidades de êxito no exercício da “profissão artista”.

Um trabalho de restituição de “ausências” como este não pode passar despercebido!

Michele Asmar Fanini – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – FFLCH – Universidade de São Paulo – USP – 05508-030 – São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Mussolini e a ascensão do fascismo – SASSOON (H-Unesp)

SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do fascismo. Trad. De Clovis Marques. São Paulo: Agir, 2009, 200 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Em obra traduzida recentemente ao português, o sociólogo Michael Mann concluiu pela impossibilidade política de reaparecimento vigoroso do fascismo. A não ser pela eclosão dispersa de agrupamentos neofascistas na Europa Ocidental que teriam como princípio de ação o antiimigrantismo, Mann enumerou alguns fatores que desmotivam uma revitalização acentuada de tais movimentos.1

Parece-nos, no entanto, que o fascínio pelo tema é contínuo devido à preocupação crescente de historiadores e demais cientistas sociais, em estabelecerem marcos conceituais cada vez mais precisos para estudá-lo, classificando-o não somente dentro do seu contexto imediato de referência histórica, isto é, entre o fim das duas guerras mundiais do século passado, e, sim, como uma categoria ampla e de permeabilidade sócio-histórica significativa. Esta dupla razão tem implicado em que as interpretações sobre o fascismo sejam conduzidas pela originalidade na análise dos materiais e nas descrições tipológicas do fenômeno, consolidando-se daí, conteúdos de alcance multidisciplinar.

Não se cogitaria da mesma forma, em uma retomada pura e simples dos estudos sobre o fascismo que viesse a suprir apenas ambições intelectuais, se tomarmos em consideração os argumentos ainda presentes de Renzo De Felice, eminente historiador do fascismo e também, biógrafo de Mussolini. 2 Em meados da década de 1970, Renzo De Felice produziu uma clássica revisão historiográfica do fenômeno, e explicou que as primeiras tentativas de interpretação do fascismo correram contemporâneas a ele e seguiram o processo de sua afirmação. Segundo De Felice, foi apenas por breve período e imediatamente após a segunda guerra que a cultura européia, esgotada com um problema trágico que se queria esquecer e encerrar optou por um distanciamento de curta duração.3 A angustiante necessidade de entender o fascismo e suas variantes de ação e representação, sua violência, rituais e manifestações regionalizadas, fez com que o tema voltasse a ser objeto de indagações com renovada intensidade já no início dos anos 1960.

Desse modo, ao contrário de recuar, ou de ser eclipsada por modismos, a historiografia do fascismo exibe uma notável tendência de avanço e adensamento analítico constatada por recentes traduções que são recepcionadas em nosso meio.

Mussolini e a ascensão do fascismo, estudo de Donald Sassoon, professor de História Comparada da Europa na Universidade de Londres, se constitui como exemplo de excelente síntese de história política sobre a elevação do fascismo a regime político na Itália, berço do movimento.

Numa análise envolvente, ágil e de fôlego, Sassoon traça um painel conjuntural de uma Itália pós primeira guerra sendo rapidamente engolfada pelo fascismo. É dentro desse contexto que o autor estabelece o debate sobre as questões centrais, divididas em cinco capítulos de uma uniformidade ímpar. Sassoon está menos preocupado em investigar as razões de consolidação de uma ditadura e suas raízes intelectuais e ideológicas, ou nem sequer é atraído em saber por que Mussolini conseguiu manter-se durante vinte anos como Chefe de um Estado totalitário. A questão consiste em saber por que Mussolini chegou ao poder, ou seja, o motivo, considerando-se as circunstâncias relatadas, de um líder de um partido eleitoralmente impopular, sem apoio nacional nem controle dos militares, ser nomeado primeiro-ministro e receber o beneplácito da monarquia e de outras fontes de poder social.

Atento a esse problema,Sassoon se empenha em relativizar certos mitos legitimadores do fascismo. Um deles é a lendária “marcha sobre Roma”, de outubro de 1922; o outro é a suposta penetração eleitoral dos fascistas. Neste segundo aspecto, embora o número de adeptos e militantes do fascismo viesse aumentando de forma constante nos primeiros anos da década de 1920, chegando em maio de 1922 a aproximados 322 mil membros, o fascismo nunca se caracterizou por ser uma força eleitoral antes da tomada do poder. Pressionado entre os dois maiores partidos italianos da época, o PPI (Partito Populare Italiano, católico) e o Partido Socialista, representante dos trabalhadores urbanos e da nova intelligentsia, o movimento fascista teve que recorrer a alianças. Reiterando os argumentos enunciados pelos estudos de Robert Paris e Stanley Payne,4 Sassoon indica que foi a aproximação com liberais e nacionalistas de direita o elemento favorável ao crescimento do fascismo:

Em termos eleitorais, o fascismo não fora um grande sucesso. A primeira eleição de que participaram, em 1919, revelou-se um desastre. (…) Os fascistas saíram-se um pouco melhor na eleição de maio de 1921, mas só porque estavam integrados ao blocco nazionale de Giolitti, juntamente com liberais e nacionalistas de direita. Não se pode dizer que Mussolini fora levado irresistivelmente ao poder numa onda de apoio eleitoral (p. 18-19).

A superestimação da “marcha sobre Roma” também é alvo da crítica de Sassoon. Pontuada de fina ironia, a descrição do autor sugere que a linguagem de Mussolini e seus acólitos para justificarem a chegada ao poder pintava um quadro de sublevação e celebrava a violência revolucionária. Impressões falsas que se legitimaram através das duas décadas do regime, destroçando a lembrança de que Mussolini fora designado primeiro ministro dentro de um quadro de legalidade constitucional, malgrado a crise política e econômica atravessada pela Itália no início dos anos 1920.

Neste sentido, é sombrio constatar com Sassoon, que boa parte do programa preliminar fascista visando recuperar e estabilizar a Itália depois da tremenda crise gerada pela primeira guerra, tinha pontos assemelhados, para mais ou para menos, com alguns itens do conteúdo programático de correntes liberais e socialistas. O autor assinala que o programa dos fasci não era abertamente de direita, pois encampava uma série de reivindicações que fugiam aos programas nitidamente conservadores, como, por exemplo: extensão do sufrágio às mulheres, recuo da idade de voto para 18 anos, abolição do Senado, salário mínimo, jornada de trabalho de 8 horas, representação dos trabalhadores nas empresas, imposto sobre a riqueza, confisco de bens da Igreja, imposto especial sobre os lucros da guerra (p. 63-64).

Dois substanciais fatores combinados ajudam a explicar, segundo Sassoon, a razão de ter o poder caído nas mãos dos fascistas: os resultados insatisfatórios da primeira guerra, e as fragilidades históricas do sistema parlamentar italiano.

Considerada uma potência imperialista de segunda classe no começo do século XX, a Itália aderiu à primeira guerra como aliada de franceses e britânicos por injunções e pressões dos entusiastas intervencionistas a favor do conflito, e pela promessa de futuras compensações financeiras e territoriais estabelecidas pelo Tratado de Londres, assinado em 1915. Tão logo encerrado o conflito, produziu-se um descontentamento generalizado em razão de o verdadeiro espólio de guerra recebido estar muito aquém das expectativas italianas. Esta herança mal digerida pelos promotores da presença italiana no conflito foi resumida pelo poeta D’Annunzio em poema no qual aludia à “vitória mutilada”, e à humilhação sofrida por toda uma geração de jovens combatentes. Sassoon explicita que os beneficiários da guerra foram os grupos que formavam o grande triângulo industrial da Itália: Ansaldo (aço), Fiat (veículos), Pirelli (borracha). Enquanto a indústria italiana mostrava-se, como sempre, dependente do governo que era o seu principal comprador, o Estado se escorava nos bancos credores e nos impostos dos contribuintes para equilibrar seus orçamentos. Por seu lado, as associações de veteranos de guerra, além da construção de forte sentimento de comunidade, exigiam mais espaço político, e reconhecimento pelos sacrifícios que a experiência de violência e brutalidade de uma guerra tinham representado: “O número de baixas italianas na Grande Guerra foi muito alto: 650 mil mortos e um milhão de feridos” (p. 46).

Já, as debilidades do sistema parlamentar italiano são detectadas por Sassoon como algo enraizado na cultura política italiana, pelo menos, desde o processo de unificação na segunda metade do século XIX. Sem partidos fortes e estabelecidos, e com uma monarquia que pouco sensibilizava a audiência pública, o Estado italiano era, por conseguinte, um Estado fraco. O parlamento era basicamente uma arena em que os representantes dos interesses fundiários e os industriais entravam permanentemente em disputa em torno de cada lei ou medida financeira:

Da noite para o dia, adversários podiam ser transformados em aliados mediante suborno direto ou indireto – razão da designação pejorativa “transformismo” ser aplicada ao sistema. (…) Desenvolveu-se um sistema de “clientelismo”, no qual os políticos prometiam empregos aos eleitores e seguidores, proteção e um constante fluxo de dinheiro público. Esse tipo de proteção pessoal dificultou o desenvolvimento de partidos políticos modernos e centralizados (p. 71-72).

O avanço do fascismo foi projetado, justamente, nesse quadro crônico de crise social e política em desdobramento. As primeiras percepções sobre o que era o fascismo foram casuais, fortuitas, e críticos antifascistas do futuro próximo, como os líderes comunistas Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti apenas faziam menção breve sobre a violência dos fascistas, e, provavelmente, não viam nele, uma real possibilidade de vir a se tornar uma força política estável e candidata à governabilidade.

Através do emprego da violência, o fascismo foi gradativamente angariando adeptos nas zonas rurais e nas classes médias urbanas. Ao eleger o antiesquerdismo e o antisocialismo como fontes de todas as mazelas da Itália, Sassoon sublinha que o fascismo destruiu em pouco menos de dois anos a estrutura institucional do socialismo italiano. A uma velocidade que ninguém poderia ter previsto, descortinou-se aos proprietários de terras a perspectiva de ver o odiado sindicalismo rural liquidado por um movimento, o de Mussolini, que parecia mais capaz de representar suas aspirações de longo prazo: a defesa da propriedade privada, uma política externa nacionalista e a realização de obras públicas para fomentar a economia rural.

Ministros como o velho líder liberal Giollitti, e mais tarde Nitti, foram reiteradamente demonizados pagando o preço da excessiva concentração nas necessidades do setor industrial: “Relegados, os proprietários fundiários das províncias do norte e do centro contra-atacavam, tendo como arma principal os esquadrões do fascismo” (p. 103).

Sassoon reconhece que uma das grandes forças internas do fascismo foi seu expressivo contingente de jovens, sistematicamente propagandeado por Mussolini. Esta força também se materializou na base social do eleitorado fascista constituído por esmagadora maioria do sexo masculino. A juventude fascista enxergava a si como vanguarda imbuída de uma missão épica germinada na experiência dos conflitos, batalhas e da ruína da primeira guerra. Tal demografia juvenil, aliás, é fundamental para percebermos que a ideologia do fascismo, longe de ser difusa ou marcada pela assimetria, era sedutora por estabelecer fronteiras claras no discurso que reforçava as antinomias novo / velho, moderno / arcaico. O fascismo anunciava a construção do homem novo, apropriava-se das filosofias vitalistas e voluntaristas da época, opondo-se à direita tradicional, mais fiel aos valores conservantistas.

Sassoon pretendeu capturar o inusitado do acontecimento fascista a partir da cumplicidade construída pelo conjunto das elites italianas, que por sua posição de visceral antisocialismo preferiu fortalecer o que julgava ser um “mal menor”, e temendo por suas posições consolidadas em face de possíveis avanços de socialistas e comunistas, não aceitaria que a Itália fosse um espelho dos recentes acontecimentos na Rússia. Segundo o autor, essas elites pretendiam transformar Mussolini em “criatura”. As questões que as preocupavam eram a governabilidade e a “ordem pública”, e Mussolini, que pouco tempo antes era apenas uma figura secundária e inexperiente na cena política, num momento estratégico apareceu como o “instrumento” a garantir a tranquilidade dos industriais, não atrapalhar os proprietários rurais, apascentar os sindicatos.

O estudo de Sassoon nos esclarece que a ascensão de Mussolini ao posto de primeiro ministro se não foi recebida com entusiasmo por algumas correntes políticas que, naquele momento, comungavam de projetos aparentados com o fascismo, pelo menos, recebeu desses mesmos setores uma adesão implícita, tornando-os ainda mais cúmplices, seja por omissão deliberada, seja por engajamento escancarado: “Assim, quando Mussolini assumiu, ouviu-se um coro de aprovação, oscilando entre o franco entusiasmo (os nacionalistas e a direita em geral) e a aceitação resignada do fato como um mal necessário (os liberais)” (p. 145). Isto é, antes Mussolini, do que a esquerda.

Embora a conciliação com a Igreja tenha representado uma árdua tarefa para os fascistas, ela se realizou plenamente em fevereiro de 1929. Neste ano, o Estado italiano selou a paz com o Vaticano assinando a Concordata e pondo fim à “questão romana” que se arrastava desde a unificação nas décadas de 1860/70. O acordo reconhecia a soberania do Vaticano, estabelecia indenizações a serem pagas à Igreja pelas perdas sofridas em 1870, reconhecia o catolicismo como “religião de Estado”, determinava o ensino da doutrina católica em todas as escolas oficiais: “Não surpreende que o papa Pio XI considerasse Mussolini o homem ‘que a Providência nos enviou'” (p. 152).

A contínua rediscussão do fenômeno fascista seja como evento historicamente localizado, ou como “grande unidade de análise”, como bem posicionou Francisco C. Teixeira da Silva,5 encontra no estudo de Donald Sassoon um respaldo bibliográfico e metodológico de inegável contribuição. A partir de suas análises, os estudiosos motivados pelo tema podemos localizar hipóteses de trabalho, e insights reflexivos para (re) construir discursos derivativos e / ou elementos comparativos do fascismo. Além do que, podem-se estabelecer pontos de contato entre as múltiplas clientelas filofascistas que agem na cenografia política da contemporaneidade. Não obstante, sobre o fascismo, ou em relação ao que vem sendo chamado de neofascismo, devemos guiar-nos sempre pelas dúvidas e desconfianças quanto aos modelos teóricos que fecham a questão sobre os setores supostamente restritos que abraçam unicamente uma das possíveis tendências do fenômeno.

Notas

1 Dentre os fatores que o autor cita como potentes inibidores dos fascismos estão: 1) a democracia liberal consolidada em toda Europa ocidental; 2) a União Européia, cuja exigência de democracia é um pré-requisito para a entrada dos países pretendentes. Cf. MANN, Michael. Fascistas. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.

2 Cf. DE FELICE, Renzo. Mussolini il rivoluzionario 1883-1920. Turim: Einaudi, 1965. Cf. _____. Mussolini il fascista. La conquista del potere 1921-1925. Turim: Einaudi: 1966.

3 Renzo de Felice também alude a certa inércia intelectual relacionada às três interpretações que se cristalizaram a partir da década de 1920: a liberal, a radical e a marxista. Essa cristalização teria impedido que os estudos a respeito do fascismo não somente deixassem de avançar para novos problemas, como também teria gerado posições acomodatícias por satisfazer adeptos das três correntes, num período marcado pela extrema ideologização da cultura política. Cf. DE FELICE, Renzo. Explicar o fascismo. Lisboa: Edições 70, 1977.

4 Cf. PARIS, Robert. As origens do fascismo. Tradução de Elisabete Perez. São Paulo: Perspectiva, 1993. Cf. PAYNE, Stanley G. El fascismo. Traductor: Fernando Santos Fontela. Madrid: Alianza Editorial, 2006.

5 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os fascismos. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste. (Orgs.). O século XX. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras. 4. ed. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Marcos Gonçalves – Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas – Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá – FAFIPAR – Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – 83203-280 – Paranaguá – PR – Brasil. E-mail: [email protected].

s religiões que o mundo esqueceu. Como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses – FUNARI (H-Unesp)

FUNARI, Pedro Paulo Abreu (Org). As religiões que o mundo esqueceu. Como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses. São Paulo: Contexto, 2009, 216 p., ISBN 978-857244-4316. Resenha de: MARQUETTI, Flávia Regina. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Um livro essencial, esta é a definição da obra organizada pelo professor Pedro Paulo Abreu Funari, que conta com diversos colaboradores nesta proposta de apresentar um painel das diversas formas religiosas que a Antiguidade conheceu. Como o próprio organizador enuncia na introdução: ‘a experiência religiosa, junto à capacidade de produzir e transmitir cultura, é a marca mais distintiva da humanidade’ e ter acesso às diversas formas deste conhecimento religioso é um privilégio de poucos, que agora se torna mais democrático.

A proposta dos autores e organizador é bastante clara e didática, apresentar, ao público leigo, algumas informações básicas e essenciais sobre as religiões de diversas culturas da Antiguidade. O livro é composto por treze capítulos alusivos às principais culturas antigas: egípcios, sumérios, gregos, romanos, gnósticos, arianistas, persas, celtas, vikings, albigenses, maias, astecas e índios, cada qual sob responsabilidade de um especialista na área. Os capítulos apresentam um padrão estrutural bastante interessante, que permite ao leitor confrontar as informações e ir construindo relações entre as diversas formas religiosas apresentadas, estabelecendo parâmetros importantes entre elas. Em todos observa-se uma delimitação espaço-temporal da sociedade e da cultura na qual a religião era praticada, seguida de informações sobre as concepções religiosas e míticas, das práticas religiosas, das formas assumidas pelos ritos e oferendas, da composição de seus cleros, locais de culto, etc. finalizando com uma pequena bibliografia sobre o tema. A cada abertura de capítulo encontra-se uma imagem significativa para o mesmo e um breve texto sobre a divindade principal do panteão, sobre sua concepção de mundo ou mesmo sobre os conflitos internos da estrutura religiosa. A abordagem teórica respeita os postulados da antropologia, da arqueologia e da história, sempre contemplando as relações entre práxis, sociedade e a religião.

Além dos capítulos específicos, o livro apresenta ainda informações sobre as iconografias utilizadas na obra e uma breve biografia dos autores de cada capítulo. Ricamente ilustrada, trazendo imagens, símbolos, objetos de culto, manuscritos, a obra fornece ainda subsídios para o reconhecimento da arte de cada um dos povos, instigando o leitor a um aprofundamento neste rico universo das religiões esquecidas pelo mundo. Outra grande qualidade deste livro é a linguagem acessível, clara, que torna o texto agradável e envolvente.

Composta visando um público não iniciado, As religiões que o mundo esqueceu, com certeza, vai atrair o interesse também dos iniciados, uma vez que poucos dentre nós tem esta noção clara e abrangente sobre todas as religiões abordadas. Portanto, uma obra essencial para aqueles que querem se iniciar nos estudos das religiões antigas ou para aqueles que pesquisam e gostam do tema.

Flávia Regina Marquetti – Doutora em Letras pela FCLAR/UNESP. Pesquisadora do LINCEU – UNESP e do Núcleo de Estudos Estratégicos – NEE/UNICAMP. E-mail: [email protected].

Siegfried Kracauer. Penseur de l´histoire – DESPOIX et. al (H-Unesp)

DESPOIX, Philippe; SCHÖTTLER, Peter (Orgs). Siegfried Kracauer. Penseur de l´histoire. Paris: Maison des Sciences de L´Homme, 2008, 254p., ISBN 2763783430. Resenha de: MACHADO, Carlos Eduardo. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

O livro pretende articular um diálogo entre historiadores, filósofos, teóricos da literatura e especialistas de cinema sobre teoria e escrita da história, tendo como ponto de partida o último trabalho de Kracauer – History. The Last Things Before the Last. Kracauer foi um intelectual incomum, sociólogo, romancista, crítico de cinema e das medias, etnólogo das metrópoles, deixando uma vasta obra multiforme – uma figura de proa da intelectualidade de esquerda da chamada República de Weimar. Era amigo de Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, entre outros, e como todos eles foi também obrigado a se exilar com a ascensão de Hitler ao poder no início de 1933 – aquele que descreve o “asilo dos sem-teto”, os cine-teatros em “O culto da distração” e os bulevares como “pátria dos sem pátria”, no livro sobre Offenbach, torna-se ele próprio um exterritorial, um “apátrida transcendental” (Lukács) ou conforme a figura alegórica que, antes de desaparecer, peregrina pelas épocas: Ahasver, o judeu errante, que Kracauer evoca no cap. 6 de History. O historiador que, partindo do presente, se imiscui no passado e estranha (verfremmt)) ambos.

Uma das máximas de History: “a história das idéias é a história de mal-entendidos” (History. The Last Things Before The Last. New York: Oxford University Press, 1995, p.7 – 1. ed. 1969). Disso Kracauer sempre foi muito consciente, pois, sobretudo, sua última produção realizada no exílio americano, de 1941 a 1966, gerou e tem gerado uma sucessão de equívocos. Por exemplo, De Caligari a Hitler (1947), obra em que analisa a produção cinematográfica alemã entre guerras – praticamente durante décadas seu único livro conhecido fora do mundo alemão e mesmo lá – não passa de uma mera interpretação supostamente “teleológica” da vida cultural da República de Weimar, que põe à mostra um estilo “engessado” de escrita ao escrever em inglês ou que sua Theory of Film (1961) é inatual, pois não considera o filme a cores ou que também não consegue ver além do neo-realismo italiano, para não falar que o seu livro póstumo representaria uma ruptura com sua produção intelectual anterior, sobretudo com a obra de Marx. Basta ler a Introdução à History para dissipar, de súbito, todos esses mal-entendidos. Pois, nela Kracauer pontua a continuidade entre sua produção à época em que era editor cultural do Frankfurter Zeitung (1921-1933), citando seu ensaio de 1927, “A fotografia”, e suas reflexões incompletas desenvolvidas em História. Antes das últimas coisas.

O livro organizado por Philippe Despoix e Peter Schöttler é uma iniciativa que tenta colocar por terra os jargões que se criaram em torno da obra de Kracauer e de inseri-lo no debate historiográfico-cultural de língua francesa, dando continuidade à discussão iniciada em Culture de masse et modernité. Siegfried Kracauer, sociologue, critique, écrivain (2001) – organizado pelo mesmo Despoix e Nia Perivolaropoulou. São onze ensaios no total que pretendo chamar a atenção para algumas das contribuições. Antes de tudo, todos os autores são uníssonos sobre o desconhecimento da obra de Kracauer no mundo acadêmico – e não apenas nas universidades francesas, diga-se de passagem – sobretudo em relação à sua discussão sobre a tradição historiográfica alemã, francesa e inglesa. Como destaca os organizadores na Introdução: “Apesar de uma forte representação da historiografia francesa, em particular por meio de Marc Bloch e da atualidade de sua temática, o livro de Kracauer não foi lido no meio acadêmico francófono” (p.6) A coletânea coincide com a tradução francesa de History (L´Histoire. Des avant-denière choses. Paris: Stock, 2006).

1. Despoix traça um paralelo engenhoso entre história e as mídias fotográfica e cinematográfica na reflexão de Kracauer, no ensaio: “Uma outra história?”, por meio de cinco proposições: 1. “todo documento é vestígio físico do passado” (p17); 2. “o lado de fora do arquivo enquanto o ‘fora de campo’ fotográfico” (18); 3. “a antinomia entre ‘grande plano’ e ‘plano conjunto'”(p.19);4. “o episódio (fílmico) como modo apropriado da narrativa histórica” (p.20); 5. “o paradoxo da empatia e da alienação”. Em seguida compara esse texto-fragmento de 1966 com o filme de Antonioni do mesmo ano, Blow up, ou seja, o trabalho do historiador, seu esforço em “fazer o documento falar”, com o do fotógrafo no filme que descobre, torna visível, um crime por meio de ampliações sucessivas de um negativo – trabalho de detive, um palimpsesto.

2. Peter Schöttler é o autor de “O historiador entre objetivismo e subjetivismo”, uma das melhores contribuições dessa coletânia, faz uma instigante aproximação entre Kracauer e Marc Bloch. Começa indagando sobre a dificuldade de ler History, ou seja, a dificuldade em responder, afinal o livro é direcionado a quem? Aos historiadores? Aos filósofos? A quem afinal? Extremamente interessante é o diálogo que reconstrói entre Kracauer e o autor de Apologie de l´histoire, é a partir dele que formula, elegendo a fotografia como um modo de percepção sutil e produtiva, a teoria da “passividade ativa” do processo fotográfico, comparando com o trabalho do historiador em relação às suas fontes, evocando a técnica da “clicagem automática” (déclencheur automatique) como aquele máximo de objetivismo na aproximação subjetiva do real. (Cf.85). É de Marc Bloch também a expressão “o tátil das palavras” (tact des mots), aquela “característica da última fase do trabalho do historiador” (p.89). Aquele átimo, em que o historiador vislumbra elementos utópicos “antes das últimas coisas”, ao encontrar, conforme se lê na última frase de History,“a terra incógnitanuma vala comum entre países que nos são familiares” (p.90)

3. Jean-Luis Leutrat mostra que Theory of FilmHistoryformam um díptico: “O diptico de Kracauer, ou como ser presente na sua própria ausência”. O próprio Kracauer enfatiza que o segundo livro é um prolongamento do primeiro. Como ressalta Leutrat: O primeiro, que é um livro sobre cinema, fala muito de fotografia, o segundo, pelo menos por meio de certos nomes de sua referência (Proust, Tolstoi, Griffith, Valéry ou Kafka…), não é uma obra ‘ortodoxa’ sobre a História à época de sua publicação” (p. 211). Para Kracauer história e imagem estão imbricadas e Leutrat faz uma aproximação inusitada entre Kracauer, Gogard e Grifftith: “Kracauer e Godard são próximos igualmente pela utilização de fragmentos como fonte. Kracauer para compreender a ‘lei dos níveis’ que comanda o vai e vem entre micro e macrohistória e se refere a um exemplo extraído de Theory, aquele grande plano das mãos da atriz Mãe Marsh no filme de D. W. Griffith Intolerance” (p. 222). O tema da tensão dialética entre micro e macro história é retomado também no ensaio de Carlo Ginzburg, “Detalhes, grandes planos, micro-análise” (Ver também GINZBURG, C. O fio e os rastros. São Paulo: Cia das Letras, 2007, 231-248).

4. O ensaio de Christian Delage, “Kracauer, o Museum of Modern Arte a propaganda nazi” lança luz sobre aspectos pouco discutidos e conhecidos de sua obra, que é sua analise da propaganda e dos cine-jornais nazistas à época da II Guerra. “Quando de seu exílio em Paris – observa Delage -” Siegfried Kracauer recebeu no dia 3 de maio de 1937 uma carta de Horkheimer que lhe chama atenção sobre a criação recente da cinemateca do Museu de Arte Moderna de New York, e lhe encoraja, sobretudo por meio de Meyer Shapiro, a tomar conhecimento de sua coleção de filmes e a entrar em contato com Íris Barry que era a responsável” (p.188). Graças a este contato que Kracauer pode finalmente obter visto para ir em 1941 para os Estados Unidos e realizar sua paciente pesquisa sobre os filmes de ficção e dos noticiários de Guerra nazistas, parte deste material foi publicado em anexo ao Caligari a Htitler. Delage pontua também o modo de análise de Kracauer: “uma análise estrutural que parte da visão dos filmes de seu corpuse não de um esquema semiológico abstrato. O filme de propaganda nazista se lhe apresenta constituído de três modos de expressão: ‘o comentário -compreendendo por sua vez as expressões verbais e as constatações ocasionais’; ‘ a imagem -compreendendo a realidade da câmara e os numerosos mapas’; ‘o som -composto de efeitos sonoros e a música, e incluindo canções” (p.202)

5. Por último não podemos deixar de chamar atenção sobre dois estudiosos pioneiros da obra de Kracauer na França, Nia Perivolaropoulou e Olivier Agard. Nia em seu ensaio, “O Jacques Offenbachde Kracauer. Biografia, história e cinema”, discute uma faceta pouco conhecida (o de roteirista) do autor de Jacques Offenbach e a Paris de sua época(1937), que é o roteiro que Kracauer escreveu para a filmagem de algumas passagens de seu livro, roteiro de humor incomum que infelizmente nunca foi filmado. Agard, por seu lado, mostra como história e auto-biografia se entrelaçam no pensamento de Kracauer: “Os elementos de autobiografia intelectual em History“. Colaboram também neste volume com contribuições importantes: Sabina Loriga, Jacob Tanner, Walter Moser, Bertrand Muller.

O livro é sem dúvida muito instigante para se compreender o universo intelectual de Kracauer, a relação entre imagem fotográfica e história, a tensão entre micro e macrohistória, a dialética entre tempo físico e história etc. Uma boa oportunidade para elucidar, também àqueles leitores mais curiosos, os comentários críticos de Kracauer desenvolvidos em History – e o presente livro é excelente contribuição de precisão cartográfica nesta direção -, sobre a concepção de história em autores como Hegel, Marx e Benjamin entre outros, e registrar a originalidade deste outsider.

Carlos Eduardo J. Machado – Professor Doutor do Departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras – FCL – UNESP – Campus de Assis – 19806-900 – Assis – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

acetas do Império na História: conceitos e métodos – DORÉ et. al (H-Unesp)

DORÉ, A.; LIMA, L. F. S.; SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: HUCITEC, 2008, 314 p. Resenha de: LUZ, Guilherme Amaral. Lugares do Império e o Império Portugues. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Quase não parecem fortuitas algumas das coincidências impressas nesta resenha: um professor de universidade do interior de Minas Gerais, com formação na UNICAMP, apresentando, em revista da UNESP, um livro de professores da Federal do Paraná sobre o tema do Império, que tem como foco inegável o caso português entre fins do século XV e início do XIX. A coincidência básica aqui expressa está na aparente ausência de lugares institucionais brasileiros que, ao longo das últimas décadas, assumiram centralidade na proposição do problema: USP, UFF e UFRJ. O acaso, aqui, parece sintoma de um fenômeno duplo: primeiro, da dimensão ampliada que a problemática do Império vem ganhando no interior das preocupações de historiadores da “colônia” ou da “América portuguesa” em todo Brasil; segundo, para não deixarmos de fora um pouco de pimenta (especiaria tão apreciada pelos “nossos” antigos navegadores), do próprio “imperialismo” que alguns programas de pós-graduação na área exercem sobre todo o país, espalhando seus “rebentos” para todo canto… O primeiro fenômeno é o que me importa comentar, o segundo é fabulação irônica, com vistas a atrair a atenção do leitor, ainda que a custo de não conquistar a sua benevolência.

Mas não é só brasileira a preocupação com os Impérios e, nem tampouco, é exclusivamente do Império português que trata o livro Facetas do Império na História. Seu próprio título indica a hipótese de que a história, nas mais diversas áreas espaciais e recortes temporais, apresentou várias formas de um fenômeno capaz de ser abarcado pela noção de Império. O subtítulo do livro – conceitos e métodos – sugere, por sua vez, o objetivo mais específico visado: pensar a própria conceituação deste fenômeno, propondo formas de lê-lo historicamente sem riscos de uniformizações sociologizantes ou, por outro lado, de atomizações nominalistas. É nesta perspectiva que se entende a escolha do texto de Maurice Douverger (“O Conceito de Império”) como abertura para o livro. Escrito na década de 1970, esse texto visava apresentar um outro livro que publicava conferências apresentadas em um colóquio na França sobre a temática e no qual o conceito de Império era buscado por meio do cruzamento de realidades históricas variadas e distantes entre si no espaço e no tempo, sem, contudo, reduzi-las a uma essência idêntica. Com esta proposta, o livro organizado por Doré, Lima e Silva identifica-se, buscando abranger espaços-tempos que começam na paradigmática experiência imperial romana, passando pela sua translatio medieval e moderna, chegam aos Estados Ibéricos do século XVI (com sua renovatio), detêm-se em Portugal entre os séculos XV e XIX e terminam nas definições mais contemporâneas de Imperialismo. O livro não se furta, ainda, de reservar espaços para a consideração de dimensões historiográficas do conceito, mapeando suas tradições nas historiografias alemã (com os casos de Ranke e de Burkhardt) e francesa (nas Ciências Humanas).

O evidente foco no Império português é praticamente confessado, entretanto, no livro. Um dos seus índices mais claros está na escolha do segundo texto “clássico” a abrir a obra: “A idéia imperial manuelina”, de Luís Filipe Thomaz. Neste texto, o historiador português praticamente oferece ocasião ou insights para análises da sociogênese (para usarmos um termo dos preferidos de Norbert Elias) do Império português. No seu texto, Thomaz realiza um belo ensaio de explicação histórica, articulando as estratégias da expansão ultramarina portuguesa no reinado de D. Manuel com noções explícitas ou implícitas relativas ao poder imperial que circulavam em fins da Idade Média. Para o autor, a articulação dessas noções, na política manuelina, gerou uma concepção própria de Império que, sendo medieval em sua base cultural e teológico-política, tornou-se moderna em sua estratégia, desdobrada “em escala quase planetária”. Na sua base, segundo Thomaz, articulam-se três componentes básicos: a aparência de guerra santa, o ecletismo cultural na tradição da Reconquista e o messianismo. No seu interior, os objetivos espirituais e materiais da expansão não se separariam. Pensando-se como providencialmente eleito por Deus para a recuperação de Jerusalém, o estabelecimento da paz perpétua e para a reforma da Igreja, o “imperador” português buscava realizar seus intuitos por meio da conquista dos mares e das rotas de comércio. Ou seja, pela via “de uma cruzada pela pimenta e não mais pelo Santo Sepulcro” (THOMAZ, 2008: 101-102).

Com o ensaio de Thomaz, dialoga de maneira interessante o capítulo de Ana Paula Vosne Martins, sobre o tema imperial em Carlos V. Vejamos como conclui a autora sobre o herdeiro espanhol dos Habsburgos:

Como um cavaleiro de Cristo ele procurou por meio da ação política renovar o império e fundar a República Cristã, ideário cavalheiresco, medieval e também humanista. Por outro lado, não podemos esquecer que para atingir estes objetivos nobres e cristãos Carlos foi um príncipe moderno, sustentando suas ações no racionalismo político (MARTINS, 2008: 223).

Percebe-se, tanto no D. Manuel, de Thomaz, quanto no Carlos V, de Martins, que a questão central relativa aos impérios ibéricos está colocada na combinação de objetivos fundados na tradição teológico-política cristã “medieval” com meios “modernos” de buscar sua consecução. Colocado desta maneira, o problema revela-se bem mais opaco do que se poderia supor. Isso porque, ao se tratar de império, o que se combina aqui são conteúdos por vezes bastante opostos tais como o universalismo cristão de uma imperatoria potestas e a soberania absoluta de uma monarquia moderna. Nisso não deixa de tocar o texto de Luís Filipe Silvério Lima que lembra que, no século XVII português, as formulações de Vieira sobre o Quinto Império se davam no interior de

monarquias definidas (e não de uma idéia geral de império), de um espaço de conquistas e expansão (e não de uma noção hipotética de orbe como espaço da comunidade cristã ou de reconquista de uma Jerusalém perdida), e mais importante, se afirmavam como execução (consumação) completa da soberania, ou seja, o ideal imperial (e o ‘horizonte de perspectiva’ que tinham a partir de suas esperanças) estava ligado ao exercício absoluto e soberano do poder” (LIMA, 2008: 254-255).

Ora, se é verdade, como já fora postulado, que a chave do império permitiria uma abordagem menos insuficiente do que a bipolaridade metrópole/colônia na consideração da história da América portuguesa, a partir da complexidade que o conceito de império assume na “modernidade ibérica”, torna-se necessário refinar conceitualmente o que se entendia naquela época pelo termo império e o que podemos disso tomar, por extensão. A ele, não se pode simplesmente associar concepções romanas, tardo-antigas e carolíngias como necessariamente válidas em longa duração, bem como não se pode projetar pré-concepções derivadas do imperialismo de épocas mais recentes do capitalismo industrial. Há que se reconhecer, nele, as particularidades e as transformações que passa a assumir em cada espaço datado. Assim, mesmo ao longo da história da América portuguesa, o conceito de império pode não significar a mesma coisa do início ao fim, como de certo não significou.

É bem esse tipo de alerta que Facetas do Império na História traz ao público. Conceitos e métodos, mobilizados no plural, supõem exatamente a necessidade de reflexão sobre a diversidade de fenômenos que se recobrem pela noção aparente e enganosamente auto-explicativa de “império”. O livro não busca cercar todo o campo que a noção abrange e confessa sua própria limitação neste sentido. O que faz é ensaiar maneiras de olhar para impérios, sejam aqueles que assim se autodenominaram ou que foram denominados por outros. No caso português, entre os séculos XV e XVIII, a autodenominação e a conceituação a posteriori de “império” nem sempre coincidem em sentidos. Talvez aqui, muito sutilmente, resida o sabor especial do livro, instigando novas abordagens menos viciadas sobre a questão.

Referências

THOMAZ, L. F. A idéia imperial manuelina. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 39-104.         [ Links ]

MARTINS, A. P. V. Milles Christianus: Carlos V e o tema imperial. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 212-223.         [ Links ]

LIMA, L. F. S. Os nomes do império no século XVII: reflexão historiográfica e aproximações para uma história do conceito. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 244-256.         [ Links ]

Guilherme Amaral Luz – Professor Doutor – Instituto de História – Universidade Federal de Uberlândia – UFU – 38.400-902 – Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: [email protected].

Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: Metamorfoses de uma festa (1923-1938) – SILVA (H-Unesp)

SILVA, Zélia Lopes. Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: Metamorfoses de uma festa (1923-1938). São Paulo: Editora UNESP; Londrina: Eduel, 2009, 304p. Resenha de: BARREIRO, José Carlos. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Nas últimas décadas, o carnaval brasileiro tem sido objeto de reflexão por parte de antropólogos, historiadores e estudiosos em geral devotados à temática da cultura. Contudo, a bibliografia sobre o tema é ainda surpreendentemente restrita, razão pela qual o livro de Zélia Lopes da Silva sobre o carnaval paulista nas décadas de 20 e 30 surge em boa hora. Sempre mobilizada para o tema do carnaval e de todo o seu universo simbólico arrebatador, a decisão da autora de enveredar-se por este caminho surgiu ainda quando realizava pesquisas para sua tese de doutoramento sobre os anos 1930. Zélia percebeu, através da documentação analisada, que havia naqueles anos um profundo interesse dos contemporâneos pelo carnaval. Tal interesse vinculava-se, dentre outros aspectos, ao debate em curso, iniciado nos anos 1920, entre segmentos intelectuais preocupados com a identidade do país, que discutiam sobre as conveniências ou não da institucionalização e nacionalização do carnaval. A autora, então, não teve dúvida em relação à pertinência do tema e desenvolveu-o como tese de livre-docência, transformado-a agora em livro editado pela Edunesp/Eduel.

A escassez de bibliografia sobre o tema já justifica por si um estudo desta natureza, principalmente em se tratando do carnaval de São Paulo, sobre o qual as pesquisas são ainda mais escassas. Mas não é somente aqui que reside o credito principal a ser atribuído ao trabalho de Zélia. A densa documentação, árduamente trabalhada e interpretada pela autora desperta no leitor especializado um grande interesse, sobretudo quanto ao método interpretativo aplicado na análise do material iconográfico – telas de pintores, caricaturas, capas de revistas e fotografias. Já na introdução do livro, as análises e interpretações da caricatura “Carnaval” de Belmonte e a representação de Sátiro, semideus, habitante das florestas e companheiro inseparável de Dionísio, extraídas das revistas A Cigarra, de 1923, e Fon Fon, de 1927, dão mostras do trabalho que será desenvolvido ao longo de todo o livro. Estas experiências são recentes no âmbito da historiografia, e, via de regra, as imagens aparecem nos trabalhos apenas como ilustração. É preciso advertir, contudo, que o trabalho especializado da análise de densa documentação escrita e iconográfica, envolvendo a aplicação de conceitos e métodos específicos não é empecilho para o leitor não especializado. A concepção gráfica, a farta ilustração colorida, a fluidez do texto e a beleza das imagens desvelam aspectos instigantes da festa símbolo do Brasil, que poderão ser usufruídas de forma muito prazerosa, independentemente do interesse pelo método historiográfico aplicado para a análise do objeto.

Vale a pena destacar pelo menos duas circunstâncias que valorizam sobremaneira o livro de Zélia. Primeira, a análise da festa popular carnavalesca não está dissociada das configurações sociais e políticas mais amplas vividas pela sociedade brasileira da época. De fato, o tenso quadro político e social vivido pelo Brasil naqueles tempos precisou ser levado em consideração, para que o carnaval da época pudesse ser entendido em suas verdadeiras dimensões. Lembremos que as balizas cronológicas definidas pela autora para seu estudo, que se circunscreveram aos anos de 1923 a 1938, envolveram situações delicadas do ponto de vista político. Os anos de 1923 inauguraram o governo de Artur Bernardes, que tomou posse sob os ruídos militares de 1922. Embora sufocados, esses motins alteraram a rotina dos folguedos carnavalescos de 1923, impondo regras duras aos foliões e maior controle ao seu movimento. Os foliões de 1938 também sofreram as sequelas do golpe de estado de 1937, que não censurou apenas os órgãos de imprensa, mas igualmente a “circulação livre” dos possíveis pândegos que conformaram a efetividade dos festejos do carnaval. Em decorrência, o ano de 1938 marcou certo refluxo do carnaval em São Paulo, notadamente o de rua. As drásticas medidas que foram tomadas pelas autoridades de Segurança Pública cercearam a movimentação dos foliões que, para caírem na folia, teriam de se submeter às rígidas exigências e proibições acionadas por essas autoridades.

A segunda circunstância que merece destaque no livro refere-se ao fato de que as reflexões vão muito além das afirmações que viraram lugar-comum em vários estudos sobre o carnaval, analisado quase sempre sob o prisma da dicotomia carnaval de elite versus carnaval popular. A autora enfrenta complicações analíticas mostrando que o carnaval paulista define-se através de múltiplos cenários e influências além de criações e redefinições de espaços diversificados de sociabilidade. Isto implica a ausência de fronteiras rígidas entre as características da festa praticada por segmentos populares e aquela praticada pelos setores mais elitizados da sociedade. De fato, do ponto de vista dos espaços ocupados, os palcos das festanças carnavalescas nem sempre eram os mesmos para os dois segmentos. Mas isso não impedia que em alguns momentos houvesse a inserção de segmentos populares nos circuitos do carnaval elegante, assim como, da mesma forma, os segmentos das elites frequentavam os redutos do carnaval popular de rua. O carnaval do Brás é um exemplo típico desse embaralhamento, que acabava por produzir mútuas influências. É claro que esse processo não foi linear, e, tampouco, isento de tensões. Pesadas interdições recaíam duramente sobre as sociedades e blocos populares, cobrando, além da obrigatoriedade do registro oficial, que seus membros devessem ser revistados mesmo antes da saída às ruas, ainda na sede de suas entidades. Nesse sentido, as regras gerais nem sempre tiveram uma aplicação universal, uma vez que tais cuidados não foram extensivos às sociedades carnavalescas elegantes.

Enfim, apesar das rígidas e frequentes intervenções oficiais, principalmente sobre os blocos populares, é preciso considerar, diz Zélia, que a desobediência por parte dos foliões nunca deixou de fazer parte do acontecer carnavalesco. As ruas eram teimosamente invadidas por grupos, blocos e mascarados, mesmo que tivessem que se sujeitar às rígidas imposições legais ou simplesmente desobedecer a elas.

Apesar disso, intervenções oficiais no sentido de estabelecer um modelo único para o carnaval destruíram algumas de suas formas espontâneas, principalmente através de medidas acionadas pelo Estado no início dos anos 1930, abrindo caminho para o modelo do carnaval/show exibido em diversos espaços públicos.

José Carlos Barreiro – Professor Doutor – Departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – 19806-900 – Assis – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

História | UNESP | 2003

Historia UNESP 2

História (São Paulo) é (Assis/Franca, [2003]-) um dos mais antigos periódicos acadêmicos publicados pela UNESP e também uma das mais antigas revistas de história que circulam no Brasil. A revista surgiu em 1982, após a fusão de dois periódicos no campo: Anais de História , publicado pela Escola Assis de Filosofia, Ciências e Artes da Linguagem, e Estudos Históricos , publicado pela Escola Marília de Filosofia, Ciências e Artes da Linguagem. O primeiro circulou entre 1969 e 1977, atingindo 9 edições; e o último, criado em 1963, alcançou 16 edições antes de ser descontinuado em 1977.

A partir de 1990, a revista começou a ser publicada pelos dois programas de pós-graduação em História da UNESP, localizados nas cidades de Franca e Assis. Em 2006, após mais de uma década de experiência, com o objetivo de otimizar o trabalho da revista e alcançar um nível de qualidade superior, os programas optaram por encerrar duas outras publicações que até então eram mantidas separadamente, a saber, o periódico Pós-História , pertencente à o Programa de Pós-Graduação em História em Assis e Estudos de História , publicado pelo Programa de Pós-Graduação em História em Franca.

Desde 2007, a História (São Paulo) a revista passou a ser o periódico oficial dos Programas de Pós-Graduação em História da UNESP. Também a partir de 2007, a revista, que já há algum tempo foi incluída em vários índices internacionais, começou a circular exclusivamente pela mídia digital, o que levou a uma expansão e diversificação significativa de seu público.

A revista publica pelo menos dois dossiês anuais e recebe textos para suas demais seções em fluxo contínuo. O título a ser usado em bibliografias, notas de rodapé, referências e legendas bibliográficas é História (São Paulo).

Periodicidade anual.

Acesso livre.

ISSN 0101-9074 (Impresso)

ISSN 1980-4369 (Online)

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