As várias faces dos feminismos: memória, história, acervos/Acervo/2020

Feminismo anarquista, feminismo negro, feminismo cristão, feminismo islâmico, ecofeminismo, feminismo decolonial (ou descolonial), feminismo latino-americano, feminismo imigrante… Em tempos e espaços diversos, empunhando várias bandeiras de luta, enfrentando violentas críticas e embates, perpassados por tensões teóricas e políticas fragmentadoras, os feminismos estão presentes em todos os continentes e cumprem um papel fundamental na sociedade contemporânea. Mas, para melhor compreendê-los em sua historicidade e complexidade, torna-se cada vez mais necessário refletir sobre a importância da preservação de acervos que guardam as memórias do engajamento feminino em lutas políticas fundamentais pelos direitos das mulheres, contra as discriminações e os preconceitos de gênero, contra a escravidão de africanas(os), contra o racismo e as desigualdades sociais e econômicas, pela democracia, entre muitas outras. Leia Mais

Ensino de História / Tempo / 2006

O dossiê “Ensino de História” foi concebido a partir da crescente importância que as discussões em relação ao tema vêm assumindo nos meios acadêmicos brasileiros e, conseqüentemente, da ampliação de pesquisas nesta área em várias partes do país, embora o número de trabalhos publicados seja ainda bastante restrito. O espaço conquistado na Associação Nacional de História (ANPUH) com a publicação, em 1983, da coletânea Repensando a História, organizada por Marcos Silva, vem-se tornando cada vez mais significativo.

Neste sentido, cabe destacar a importância dos debates e das reflexões que têm tido lugar nos Encontros Nacionais “Perspectivas do Ensino de História” e “Pesquisadores em Ensino de História”. Também podemos mencionar os núcleos e os laboratórios dedicados à área de ensino de História existentes em todo o país. Entre estes, ressaltem-se, por exemplo, o Laboratório de Ensino de História do Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, que, além de promoverem uma série de atividades de ensino, pesquisa e extensão, são responsáveis pela publicação de periódicos especializados.1

Na Universidade Federal Fluminense, o Laboratório de Ensino de História, ligado à Faculdade de Educação, possui uma atuação bastante expressiva na área, através do desenvolvimento de projetos de pesquisa e de extensão e da realização de seminários, onde se discutem, desde meados dos anos 1990, questões fundamentais relacionadas ao aprender / ensinar história.2 É importante mencionar, ainda, a inserção de discussões sobre o ensino de História nos eventos e nas publicações3 patrocinados pelo Núcleo de Pesquisas em História Cultural (NUPEHC-UFF) nos últimos anos.

Mais recentemente, o campo de conhecimento dedicado ao ensino de História ganhou um espaço no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, através da linha de pesquisa “Ensino de História e Saberes Históricos”. Por fim, cabe referir a existência do Grupo de Pesquisa “Oficinas de História”, que, sediado na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, reúne professores / pesquisadores de outras instituições (PUC-RJ, UFRJ, UFF, UFPA), interessados em investigar as concepções e as práticas do ensino de história e refletir sobre elas.

Todos os exemplos aqui apresentados denotam, sem dúvida, sinais de mudanças importantes que, de um lado, indicam um crescente questionamento da perspectiva preconceituosa em relação ao ensino de História e, de outro, apontam o paulatino movimento de professores dos departamentos de história das licenciaturas, no sentido de assumirem a responsabilidade, ao lado dos professores das faculdades ou dos departamentos de educação, na formação de profissionais da área de ensino.

Contudo, é também inquestionável que tais mudanças se vêm operando em ritmo bastante lento e, muitas vezes, de forma muito restrita. Entre as inúmeras dificuldades, é preciso mencionar, primeiramente, a permanência, nos meios universitários, de convicções que hierarquizam pesquisa e ensino, sendo atribuído à primeira o papel de criar / produzir o conhecimento, que caberá ao segundo reproduzir. O ato de ensinar é visto, assim, como mera repetição dos saberes de referência – no nosso caso, a história – por meio de uma linguagem didática e, portanto, simplificada, quase sempre distorcida.

No que se refere a este aspecto, são absolutamente fundamentais as reflexões desenvolvidas pelo Professor Ilmar Rohloff de Mattos no artigo que abre o presente dossiê, intitulado “‘Mas não somente assim!’ Leitores, autores, aulas como texto e o ensino-aprendizagem de História”. Trata-se de uma verdadeira Aula Texto – expressão cunhada pelo próprio autor – que nos conduz a refletir mais profundamente sobre a sala de aula, onde alunos e professores encenam / vivem o processo ensino-aprendizagem, como lugar de produção / criação de conhecimento.

Mas qual seria o papel da formação de professores na construção de um sentido para ensinar / aprender História na educação básica? Este é o assunto central do artigo da Professora Flávia Eloisa Caimi, “Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de História”. Tendo como referência a definição de saber docente, dada por Maurice Tardif, Claude Lessard e Louise Lahye,4 a autora defende a necessidade da “formação do professor reflexivo e investigador da sua prática e dos contextos escolares”.

Constituintes do saber docente, do currículo e do programa são, portanto, lidos e reconstruídos / ressignificados pelos professores em suas reflexões e práticas cotidianas. É dentro desta perspectiva que a Professora Lana Mara de Castro Siman, no artigo “Um programa de História num contexto de mudanças sociopolíticas e paradigmáticas: a voz dos professores”, se propõe a analisar as relações entre “mudança de programa, mudança paradigmática e embates sociopolíticos no ensino de História no Brasil”, a partir do exemplo do programa de História implementado pelo governo do Estado de Minas Gerais, em 1987.

A postura dos professores diante das propostas de mudança curricular é também objeto das preocupações do artigo de Marcelo de Souza Magalhães, intitulado “Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor”. Trata-se de uma reflexão interessante e provocativa sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais, a partir de um breve esboço da trajetória do Ensino Médio no Brasil. As questões suscitadas pela análise do autor servem para iluminar a problemática da formação do professor de História.

O ensino de História e a formação do professor são também o viés da análise desenvolvida por Elio Chaves Flores no artigo “Etnicidade e ensino de História: a matriz cultural africana”. Partindo da hipótese de que “as estruturas curriculares dos cursos de História reproduzem para a educação básica o cânone da mestiçagem”, o autor realiza um estudo das relações entre a pesquisa e o ensino acadêmicos de História e a recente legislação sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, cujos resultados são de grande relevância.

Finalmente, no artigo do Professor Marcos Silva, “Além das coisas e do imediato: cultura material, História imediata e ensino de História”, encontramos novamente a preocupação com os Parâmetros Curriculares Nacionais e, ainda, com as relações entre as pesquisas acadêmicas e o ensino de História. Trata-se de refletir sobre as possibilidades de aprender / ensinar História através das “experiências ligadas à materialidade da Cultura”, bem como das interseções vivas entre passado e presente no âmbito da História imediata.

A viabilização de um dossiê sobre ensino de História na Revista Tempo representa sem dúvida um passo fundamental no sentido de valorizar esta dimensão essencial do conhecimento histórico, ampliando o espaço de seu reconhecimento no mundo acadêmico.5 Tal iniciativa contribui para colocar em xeque posturas que supervalorizam a pesquisa em detrimento do ensino – concebendo-os equivocadamente como elementos dissociáveis. Com esta iniciativa, esperamos, pois, contribuir para que haja o reconhecimento de que o saber docente produz conhecimentos específicos tão legítimos e essenciais quanto os criados nas instituições de pesquisa – fadados, aliás, a uma circulação restrita e estéril, se não chegassem às salas de aula recriados por saberes docentes que, antes de tudo, lhes conferem sentido para além dos muros da academia.

Notas

1. No caso do primeiro, a Revista História e Ensinoe, do segundo, os Cadernos Labepeh.
2. A Revista Ensino de Históriaé uma publicação do LEH-UFF. A iniciativa de criar um espaço especialmente dedicado à área de ensino de história no Departamento de História da UFF, através do Laboratório de Educação em História (LEHIS), infelizmente não teve sucesso.
3. Martha Abreu e Rachel Soihet (orgs.), Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003; e Rachel Soihet, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa (orgs.), Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro, Mauad, 2005.
4. Estes autores definem o saber docente como um saber específico e original, que reúne de forma complexa “os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, os saberes profissionais (compreendendo as ciências da educação e a pedagogia) e os da experiência” (Tardif, M., Lessard, C. e Lahaye, L., “Os professores face ao saber. Esboço de uma problemática do saber docente”, Teoria & Educação, no 4, Porto Alegre, 1991, p. 216).
5. Este fato torna-se ainda mais expressivo num momento em que alguns importantes periódicos de História se negam explicitamente a receber contribuições no âmbito do ensino de História.

Magali Gouveia Engel – Professora do Departamento de História da UFF e do Departamento de Ciências Humanas da UERJ / FFP. E-mail: [email protected]


ENGEL, Magali Gouveia. Apresentação. Tempo. Niterói, v.11, n.21, jun., 2006. Acessar publicação original [DR]

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