Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial – CABRAL (VH)

CABRAL, Diogo de Carvalho. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2014. 536 p. VITAL, André Vasques. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 60, Set./ Dez. 2016.

A História é a ciência dos homens no tempo. Essa noção se inspira nas ideias de Marc Bloch e das primeiras gerações da Escola dos Annales. Trata-se de um lugar-comum que é onipresente na formação dos experientes e dos jovens historiadores. O leitor, após viajar pelos múltiplos fluxos materiais emaranhados, minuciosamente mapeados em Na Presença da Floresta, corre o sério risco de se questionar sobre a atual pertinência de considerar o humano como o único sujeito da História. O livro de Diogo de Carvalho Cabral apresenta uma nova abordagem que rejeita a centralidade do humano na História. Esse trabalho repensa a noção de agência e propõe uma metodologia mais relacional, incluindo os não-humanos como agentes ativos na História por meio de sua presença e materialidade na conformação de processos políticos, sociais, econômicos e culturais. Em meio às dramáticas transformações sociais promovidas por furacões, microorganismos, vetores de doenças e outras entidades direta e indiretamente fortalecidas pelas atuais mudanças climáticas, a obra de Diogo Cabral é um chamado aos historiadores e, principalmente, aos historiadores ambientais, a repensar o papel dos não-humanos na História.

Diogo Cabral, geógrafo e pesquisador do Departamento de Recursos Naturais e Meio Ambiente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, confeccionou sua obra a partir de um amplo diálogo transdisciplinar. História, Geografia, Ecologia e Filosofia, são as principais áreas que se encontram emaranhadas na obra, cuja metodologia tem forte inspiração marxista e latouriana, privilegiando interações, conexões, híbridos e processos de metabolismo social. Cabral mantém, principalmente, um diálogo forte com a História Ambiental, campo ao qual busca contribuir ao aprofundar suas perspectivas teórico-metodológicas. Embora o autor considere Na Presença da Floresta uma obra de síntese, ela contém também uma robusta e diversificada quantidade de fontes primárias que são interpretadas ou reinterpretadas a luz de uma abordagem completamente inovadora.

Em quatro partes divididas em dezessete capítulos, Diogo Cabral analisa o papel da Mata Atlântica na conformação social, cultural e, sobretudo, política e econômica do Brasil colonial. A primeira parte é destinada a análise das técnicas que emergiram das relações, ora tensas, ora colaborativas, ou mesmo conflituosas, entre os neobrasileiros e os múltiplos agentes dentro e fora da Mata Atlântica. Aborda especialmente o papel da floresta, das madeiras, dos animais, dos insetos, do fogo, da cana-de-açucar, das embarcações, do oceano Atlântico, da escravidão indígena e africana, da mandioca e das cidades na formação da colônia. A segunda parte analisa os conflitos políticos advindos da tentativa da Coroa Portuguesa em assegurar o monopólio da exploração e a conservação de espécies arbóreas da Mata Atlântica que eram fundamentais para a construção naval. O autor ressalta que esses conflitos envolveram não só as populações da colônia marginalizadas pelas políticas de conservação florestal e pelo combate ao contrabando, mas também várias espécies florestais e animais que em muitos momentos representaram um entrave a política metropolitana. Na terceira parte, é analisado o sistema econômico colonial, especialmente a exploração madeireira, em comparação com o caso das treze colônias da América do Norte. Para o autor, uma série de fatores biogeográficos dificultou a formação de uma economia de exportação de madeira consistente no Brasil até o século XVIII. No último capítulo, Cabral retoma as conclusões dos capítulos anteriores para analisar as implicações historiográficas e políticas de analisar a Mata Atlântica em um quadro social alargado, ou seja, rejeitando a floresta como palco/cenário, encarando-a como um conjunto de agentes históricos.

O autor está a todo o momento atento às diferentes espacialidades e temporalidades em conexão. A própria Mata Atlântica é composta por múltiplas temporalidades e espacialidades anteriores à chegada dos europeus, condição que ganha maior complexidade na obra com a análise de sua presença na política e economia colonial. A busca por dar conta de quatro séculos de inúmeros processos com uma abordagem horizontal é bastante ousada e reforça a densidade da análise. Contudo, a leitura da obra torna-se mais desafiadora e cansativa: o leitor vai se deparar com uma narrativa muito mais fractal do que linear. Longe de ser um problema, esse tipo de narrativa é um caminho lógico dentro da abordagem escolhida pelo autor.

Cabe ressaltar ainda que Na Presença da Floresta está na contramão de obras que analisam a Mata Atlântica exclusivamente sob o ponto de vista da destruição ambiental, como é o caso do estudo clássico A Ferro e Fogo de Warren Dean. É aqui que o estudo de Diogo Cabral se diferencia das perspectivas, ainda majoritárias dentro do campo da História Ambiental, nas quais a natureza é recurso ou receptáculo/palco das representações e ações humanas. A obra deixa enxadas, navios, fogo, espécies arbóreas, saúvas e etc., “falarem” a partir das fontes, identificando o seu protagonismo na formação social, cultural e também nas tramas políticas e na economia. É uma abordagem relacional, pós-humanista, que desafia o tradicional antropocentrismo arraigado na escrita da história.

Na Presença da Floresta é um livro sobre o passado, mas com vistas no futuro. É uma obra de descolonização do pensamento rumo a uma nova ética relacional. É indicado para historiadores e pessoas, acadêmicas ou não, que entendem que o momento atual exige diferentes proposições e mudanças drásticas: novas formas de pensar, novas formas de ação e novas formas de relação com o radicalmente outro.

André Vasques Vital – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Av. Brasil, 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21.040-360, Brasil, [email protected].

A piedade dos outros – FRANCO (RH-USP)

FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII. Rio de Janeiro: FGV/FAPERJ, 2014. Resenha de: VENÂNCIO, Renato Pinto. Revista de História (São Paulo) n.172 São Paulo Jan./June 2015.

No Vocabulario portuguez e latino de Raphael Bluteau, publicado em 1712, há um verbete a respeito da compaixão – expressão, aliás, grafada como “compaxam”. Nele, o significado da palavra aparece como sendo “pena, que se sente da pena alheia”. Esta definição revela uma ambiguidade de significados: “pena” expressa “ter piedade”, mas também denota “vivenciar o sofrimento”. Ter compaixão, portanto, é ter piedade do sofrimento alheio. O livro do historiador Renato Franco, A piedade dos outros…,reconstitui a genealogia desses sentimentos, em relação a um aspecto crucial da vida familiar colonial: o abandono de recém-nascidos e bebês em ruas, caminhos, praças, adros de igrejas ou portas de casas de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto.

Nesse universo social, o abandono do filho, por razões morais ou econômicas, constituía um sofrimento, uma “pena”, que comprometia a salvação das almas dos pais e das crianças, uma vez que estas corriam o risco de falecer sem o batismo. No entanto, “ter pena” dessa situação também constituía um extraordinário gesto de misericórdia e de caridade, salvando a alma dos protegidos e dos protetores. Portanto, ao contrário de nosso tempo, o auxílio às crianças abandonadas coloniais não se relacionava às políticas sociais ou às noções de bem estar social como uma dimensão prática de cidadania.

O livro em questão também reafirma a vitalidade dos estudos de história social da família e das situações de desagregação familiar. Esta última dimensão deve muito às pesquisas pioneiras de Maria Luíza Marcílio que introduziu e difundiu no Brasil as técnicas e metodologias da demografia histórica. Renato Franco também se filia a importantes correntes internacionais da história social da família. Desde os anos 1960, esse campo historiográfico foi impactado pelo livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, que traçou um quadro fascinante a respeito da condição da criança na Época Moderna, sugerindo que o sentimento e os valores de nossa época não se aplicam ao passado.

No Brasil, investigações semelhantes a essa começaram a ser registradas nos anos 1980, em grande parte influenciadas, conforme mencionamos, pelas sugestões de pesquisa da demografia histórica. Também cabe ressaltar casos isolados, como o de Gilberto Freyre que, no clássico Casa-grande & senzala (1936), traça um interessante painel da meninice senhorial e escrava, recorrendo a fontes documentais inéditas.

Somam-se a essa historiografia pesquisas oriundas dos estudos de representação, como o clássico The kindness of strangers: the abandonment of children in Western Europe from Late Antiquity to the Renaissance, de John Boswell. O exaustivo estudo de fontes literárias mostrou que o abandono de crianças, sobretudo de recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal prática foi abundantemente registrada na literatura clássica. No final da Idade Média, principalmente após a Peste Negra (1348), o problema se agravou, exigindo uma intervenção das instituições dos burgos e cidades medievais. Em Portugal, antes mesmo da colonização do Brasil, câmaras municipais e hospitais, como as Santas Casas de Misericórdia, começaram a criar formas de auxílio destinadas às crianças abandonadas.

No século XVII, o abandono de crianças também é registrado no ultramar português. Várias câmaras coloniais começam a pagar famílias para acolher os “enjeitados” ou “expostos”, conforme eram denominados na época. Os hospitais, por sua vez, como se registra na Santa Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro (1738), importaram as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e preparados para acolher recém-nascidos abandonados.

A capitania de Minas Gerais não contou com rodas dos expostos, mantendo a tradição do auxílio via câmara ou senado da câmara. Renato Franco apresenta um quadro detalhado da atuação dessa instituição para o caso específico de Vila Rica. No livro A piedade dos outros…, a prática do abandono de crianças é estudada em suas várias dimensões. De fato, o problema era grave. Conforme o próprio autor afirma: “Em Vila Rica, no fim do século [XVIII], cerca de 20% das crianças nascidas livres eram enjeitadas pelos pais” (p. 27).

A leitura do livro também revela que a primeira capital mineira legounos uma das mais ricas coleções de documentos a respeito do abandono de crianças. Uma parte dessa documentação foi produzida pela câmara local, como no caso dos livros de matrícula de expostos. Outras séries fundamentais são provenientes dos arquivos eclesiásticos. As atas batismais das paróquias de Antonio Dias e Nossa Senhora do Pilar contêm, além dos nomes das crianças, os das pessoas que as recolhiam e dos padrinhos, pequenas anotações e reproduções de bilhetes que acompanhavam os bebês. Ao anotarem isso, os padres tornaram-se cronistas da vida cotidiana colonial, conforme pode ser observado no exemplo abaixo:

José, filho de pais incógnitos, que aos vinte e cinco dias do mês de agosto foi achado por José Caetano Pereira e por Caetano da Silva, exposto na rua defronte da porta do Doutor Tomé Inácio da Costa Mascarenhas, com um timamzinho [pequena camisola] usado de baeta [tecido felpudo de lã] vermelha, forrado de tafetá (Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, Vila Rica, 08/09/1756).1

O livro A piedade dos outros… traça o que poderia ser definido como uma história da compaixão como razão do auxílio à infância. Essa experiência, por sua vez, era filtrada pela sociedade escravista que constantemente ameaçava reduzir meninas e meninos enjeitados à condição de escravos.

A atualidade desta pesquisa consiste na visão substancialista do passado, superando o anacronismo através da contextualização precisa de um tipo de auxílio familiar. Enfim, revela-se, assim, que cada época cria suas próprias configurações de proteção à infância. Compreender essa evolução é o melhor caminho para avaliar e refletir a respeito das opções que, no tempo atual, a sociedade brasileira escolhe e implementa.

1VENÂNCIO, Renato Pinto. Mensagens de abandono. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, n. 4, out. 2005, p. 33.

Renato Pinto Venâncio – Pós-doutor pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professor no Departamento de Organização e Tratamento da Informação da Escola de Ciência da Informação. Pesquisador no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científco e Tecnológico – CNPq.

O “mundo negro”: relações raciais e a constituição do Movimento Negro contemporâneo no Brasil –  PEREIRA (EH)

PEREIRA, Amilcar Araujo. O “mundo negro”: relações raciais e a constituição do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/Faperj, 2013. 344 p. Resenha de: TRAPP, Rafael Petry. Espectros raciais: uma história do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Estudos Históricos, v.26 n.52 Rio de Janeiro July/Dec. 2013.

Nas duas últimas décadas uma grande discussão pública sobre o racismo tomou corpo no Brasil. Da aprovação da Lei 10.639, de Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, em 2003, aos debates (e embates) em torno no Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, passando pelos inúmeros e polêmicos programas de ação afirmativa, as questões em torno da etnicidade são parte da agenda nacional. Essa inédita conjuntura histórica não pode ser pensada sem se considerar como fundamental a atuação do Movimento Negro brasileiro, que logrou, desde o final dos anos 1970, a desconstrução do mito da democracia racial e a construção de diálogos com o Estado que possibilitaram que o antirracismo se institucionalizasse através de políticas públicas.

O livro de Amilcar Araujo Pereira, originalmente tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), traz à tona novos olhares sobre a difícil e conturbada história do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Trata-se, talvez, da primeira grande tentativa de síntese da história desse movimento social na história republicana brasileira. Fazendo uso de um expressivo cabedal documental, que vai de jornais da Imprensa Negra à história oral, o autor se debruça sobre a história do racismo/antirracismo no século XX.

O objetivo do livro, segundo o autor, é “examinar aspectos da história do movimento negro no Brasil e das trajetórias de algumas de suas principais lideranças” (p. 40). Identificando na questão racial o diferencial desse movimento, o autor parte, no primeiro capítulo, para uma sucinta revisão bibliográfica sobre a construção da ideia de “raça” na modernidade ocidental e alguns de seus reflexos no Brasil. A compreensão desse processo mostra como a ideia de “raça” é datada historicamente e assumiu diferentes significados ao sabor das conjunturas. Essa empresa é fundamental, pois, para além da importância da “questão racial” na história brasileira, “raça” é a categoria em torno da qual o Movimento Negro vai constituir suas perspectivas de solidariedade política e identidade étnica nos anos 1970.

O capítulo seguinte discute a conceituação de Movimento Negro e seus contextos de emergência durante o século XX. Após um breve relato sobre as primeiras organizações negras, como a Frente Negra Brasileira (FNB), da década de 1930, o autor procura estabelecer certas especificidades do Movimento Negro “contemporâneo” em relação aos que o antecederam. Ao contrário da FNB, cujo teor político recaía no assimilacionismo cultural, o movimento contemporâneo se diferenciaria por sua oposição ao mito da “democracia racial” e pela construção de uma identidade política negra. O principal marco nesse sentido é o Movimento Negro Unificado (MNU), surgido em São Paulo, em 1978. O MNU advogava uma revisão do papel do negro na história do Brasil e se opunha frontalmente aos cânones da identidade nacional da mestiçagem e da “harmonia racial”.

Na terceira parte, Pereira busca “refletir sobre as relações entre o movimento negro contemporâneo no Brasil e as influências externas” (p. 144) no eixo Brasil-Estados Unidos-África, analisando essa relação a partir da circulação de referenciais no âmbito do Atlântico Negro. É, possivelmente, o ponto mais importante e original do livro. O olhar retorna à primeira metade do século XX, e nesse momento é analisada uma série de matérias sobre a situação racial brasileira em dois dos mais importantes jornais da Imprensa Negra estadunidense, o The Baltimore Afro-American, de 1896, e o Chicago Defender, de 1905.

O autor mostra, com propriedade, o intenso trânsito de ideias que se constituiu entre ativistas da questão negra dos Estados Unidos e do Brasil, já nos anos 1920, através, por exemplo, das trocas de informações e referenciais entre os jornais O Clarim d’Alvorada Chicago Defender. Além de indicar como a imagem “racial” do Brasil constituía elemento contrastante importante para os negros norte-americanos, percebemos aí as modificações dessa mesma imagem ao longo das décadas nesses jornais nos Estados Unidos. Pereira demonstra que o próprio Movimento Negro norte-americano tinha como elementos importantes a pluralidade e a diversidade de concepções de afirmação cultural e luta política, constituindo-se também a partir de influências externas.

Essa discussão responde, primordialmente, ao já extenso debate sobre a “americanização” do Movimento Negro brasileiro, que se insere, por sua vez, na tradição comparativa de estudos sobre as “relações raciais” no Brasil e nos Estados Unidos. Investindo sobre a assertiva de que o Movimento Negro brasileiro dos anos 1970 não seria mais do que uma “cópia” do norte-americano, e de que teria importado “ideias fora do lugar”, Pereira conclui que “o movimento negro nunca foi apenas receptor”, mas serviu até mesmo como “referencial para outros negros em suas lutas na diáspora” (p. 164). Esse aspecto do Movimento Negro brasileiro enfatiza uma escolha teórica bastante acertada da obra em questão, qual seja, a de pensar as lutas negras sob o signo da transnacionalidade, para além das demarcações materiais, simbólicas e epistêmicas das fronteiras nacionais.

Embora indique por alto com quem está dialogando, o autor traz elementos empíricos novos e dá mais nós no novelo da discussão da “questão racial”, construindo um espaço na historiografia sobre racismo/antirracismo no Brasil. Sob muitos aspectos, o livro é um avanço em relação a outras tentativas de interpretação do Movimento Negro brasileiro, como, por exemplo, a empreendida por Michael Hanchard em seu marcante Orfeu e o poder, de 1994. Em que pese a profundidade da tese de Hanchard, ao contrário deste, Pereira desloca o olhar para o Brasil como um todo e vai além dos apriorismos analíticos de Orfeu e o poder.

Ao demonstrar a complexidade da formação do Movimento Negro contemporâneo, as redes de relações entre os militantes entre si e com o Estado, as múltiplas influências e a criação e usos de uma memória de luta antirracista, o autor consegue, pelo desnudamento da historicidade do Movimento Negro, se resguardar de um espectro analítico subsumido a projetos políticos e engajamentos mais passionais. Esse tipo de abordagem constitui, malgrado sua importância política, grande parte dos trabalhos sobre a questão negra e do racismo/antirracismo no Brasil.

A despeito dos acertos, alguns pontos importantes poderiam ter sido mais bem trabalhados. A interlocução teórica com o conceito de Atlântico Negro, tal como concebido por Paul Gilroy, carece de aprofundamento. Aceita-se a existência desse espaço teórico-metafórico como algo dado, como se as especificidades da experiência negra e antirracista no Brasil não concorressem para tensionar a própria ideia de Atlântico Negro, posto que no livro de Gilroy a história escravista e negra brasileira é praticamente ignorada.

Por outro lado, uma análise de história intelectual da questão racial poderia ter sido incluída para enriquecer o debate. Autores fundamentais como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, entre outros, são parcamente analisados em sua relação com a construção do Movimento Negro contemporâneo. Além disso, um olhar mais atento ao tempo presente ensejaria ao autor inserir-se de maneira mais enfática em debates candentes da contemporaneidade, como a questão da “racialização”, capitaneada pelo Movimento Negro, e seus impactos nas políticas públicas antirracistas.

Rafael Petry Trapp – Mestrando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e bolsista do CNPq ([email protected]).