Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII – RAMINELLI (RH-USP)

RAMINELLI, Ronald José. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 260p. Resenha de: SOUZA, Priscila de Lima Souza. Nobrezas sem linhagem: a nobilitação na América Ibérica. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

A constituição das nobrezas na América ibérica durante os séculos XVII e XVIII é o tema investigado em Nobrezas do Novo Mundo, livro de autoria de Ronald Raminelli. Publicado no ano de 2015, o trabalho é o resultado de quase uma década de pesquisas parcialmente divulgadas em revistas nacionais e estrangeiras. Um dos destaques do livro é a abordagem comparada do tema, empreendimento pouco comum entre os historiadores brasileiros dedicados ao período colonial. Valendo-se do método da comparação formal, a América espanhola é concebida como parâmetro para problematizar e iluminar as especificidades da nobreza formada na América portuguesa, sendo esta, de fato, o objeto do livro. Os espaços selecionados para a análise são, na América espanhola, os vice-reinos do Peru e da Nova Espanha, cujas capitais concentravam parte significativa da nobreza hispano-americana, e, na América portuguesa, as capitanias de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, notoriamente privilegiadas em relação às demais.

Nas duas últimas décadas, a produção historiográfica sobre a nobreza do Antigo Regime tem aumentado consideravelmente. No interior desse campo de pesquisas, o livro de Ronald Raminelli diferencia-se por ser um estudo que propõe uma sistematização sobre as nobrezas existentes nas sociedades ibero-americanas entre os séculos XVII e XVIII, atentando particularmente para os seus traços constitutivos e para as suas transformações ao longo do tempo. Trabalhos com tal envergadura são menos comuns que os estudos de caráter monográfico e regional. Para o caso da América portuguesa, por exemplo, Ser nobre na colônia, de autoria de Maria Beatriz Nizza da Silva (2005), figurava como uma das únicas obras com essa ambição. Uma advertência feita por Raminelli diz respeito à tendência da historiografia brasileira em associar de modo naturalizado as elites coloniais com a chamada “nobreza da terra”. Contudo, no livro são considerados nobres somente os indivíduos que tiveram o status sancionado pelo poder régio por meio da concessão de títulos de nobreza, foro de fidalgo e hábitos das ordens militares (p. 24).

O autor afirma que a obra é, em primeiro lugar, um balanço da historiografia sobre os nobres americanos. Essa, de fato, é uma das qualidades do estudo, que dialoga com trabalhos clássicos e, principalmente, com a literatura renovada produzida nos últimos anos. Para os espaços da América portuguesa, porém, a pesquisa empírica ganha relevo com a análise de documentação proveniente de arquivos portugueses como o da Torre do Tombo. Nesse quesito, sobressaem as habilitações às ordens militares e ao Santo Ofício, material que permitiu ao autor investigar os trâmites institucionais da nobilitação.

O livro foi estruturado em duas partes, cada uma delas contendo três capítulos. Na primeira, denominada “Variações da nobreza”, o autor sustenta que a nobreza não deve ser concebida como uma condição homogênea, pois os critérios para o seu estabelecimento variavam no espaço e no tempo. Na segunda parte, intitulada “Índios, negros e mulatos em ascensão”, averíguam-se as possibilidades de nobilitação desses grupos sociais e as condições de manutenção da posição alcançada, análise que é circunscrita ao caso da América portuguesa.

Os dois primeiros capítulos apresentam uma temporalidade longa, que vai desde o século XVI até o contexto da segunda metade do século XVIII. Neles, o autor discute a natureza da nobreza americana, atentando particularmente para as suas hierarquias. Para tanto, compara as nobrezas peninsulares com as nobrezas americanas e estas entre si. Em primeiro lugar, sustenta que a nobreza americana se distinguia da nobreza radicada na península Ibérica pelo fato de, ao contrário desta, os seus títulos não serem hereditários. Em segundo lugar, sugere que uma das principais diferenças entre as nobrezas ibero-americanas era a existência da alta nobreza nos espaços espanhóis, segmento integrado por indivíduos que foram condecorados com títulos como os de marquês e conde, os mesmos concedidos à nobreza peninsular. Nos espaços luso-americanos, somente vice-reis e governadores, todos reinóis, ostentavam semelhante honraria. Em terceiro lugar, destaca-se a tese conforme a qual os processos de nobilitação eram mais rigorosos na América espanhola, pois lá se seguia mais estritamente os critérios de qualidade exigidos na Europa. Entre os hispano-americanos, faltas na qualidade – como a impureza de sangue – representavam um grande óbice à nobilitação. Por sua vez, em Portugal e em seus domínios americanos, havia certa flexibilidade na imposição desses critérios, os quais eram relevados em face dos serviços militares prestados à monarquia.

No segundo capítulo, “Nobreza e governo local”, discute-se a relação entre a ocupação de cargos na administração pública e a formação da nobreza americana. Tendo como referência teses consolidadas na historiografia, o autor demonstra que, por meio do monopólio das terras e do poder político exercido a partir dos cabildos e das câmaras municipais, os conquistadores e seus descendentes estabeleceram-se como nobreza local. Por outorgarem privilégios e o status de vecino/cidadão, tais instituições foram essenciais para o enraizamento da nobreza americana. Conforme Raminelli, a manutenção dessa posição ao longo das gerações permitiu ao grupo “consagrar-se como nobreza de sangue” (p. 85). Essa afirmação evidencia a necessidade de problematizar as fronteiras entre a nobreza política – dispensada pelo rei – e a nobreza de linhagem na América ibérica, uma vez que a tese defendida no primeiro capítulo é a de que a nobreza americana não se reproduzia hereditariamente.

O terceiro capítulo, intitulado “Riqueza e mérito”, é dedicado à análise das mudanças nas concepções sobre a nobreza ocorridas ao longo da segunda metade do século XVIII, fenômeno diretamente relacionado ao processo de centralização monárquica. Sugere-se que os critérios para a nobilitação, fundamentados na origem familiar, passaram a ser questionados devido à crescente valorização do mérito individual e da riqueza. O autor salienta que nesse período houve um aumento significativo na concessão de títulos de nobreza para grupos sociais tradicionalmente excluídos do acesso às honras nobiliárquicas, como era o caso dos comerciantes. Estes, valendo-se da prática da venalidade de cargos, títulos e hábitos militares, puderam ingressar na baixa nobreza. Raminelli admite que, se na América espanhola a relação entre riqueza e nobilitação era clara, o mesmo não pode ser afirmado para o caso português, em que a venda de cargos e títulos não constituía recurso comumente empregado (p. 120). Ainda assim, constata que ao longo desse período houve um aumento expressivo na concessão de hábitos das ordens militares em Portugal, tese que, no entanto, carece de dados empíricos para a América portuguesa.

Em “Malogros da nobreza indígena”, o quarto capítulo do livro, analisa-se a trajetória de ascensão social de índios em um recorte temporal compreendido de meados do século XVII até o início da década de 1730. A discussão é centrada na figura de dom Antônio Felipe Camarão e seus descendentes, índios da capitania de Pernambuco recompensados pela Coroa pelos serviços prestados durante as guerras contra os holandeses. Além das patentes militares, foram condecorados com hábitos das ordens militares portuguesas, inserindo-se, desse modo, na nobreza local. Raminelli sugere que a reprodução da nobreza indígena estava diretamente relacionada aos serviços militares prestados em situações de conflito bélico. Assim, com a relativa pacificação no início do século XVIII, as chefias indígenas foram paulatinamente perdendo seu poder de barganha com a Coroa, resultando na desmobilização completa do famoso terço de Camarão no início da década de 1730 e, consequentemente, no malogro de suas estratégias de ascensão social. A história dos corpos militares integrados por indígenas na América portuguesa ainda demanda pesquisas mais sistemáticas. Sabe-se que durante a segunda metade do século XVIII existiram corpos de ordenança e de auxiliares indígenas nas capitanias do norte pertencentes ao Estado do Grão-Pará e Maranhão, mas até o momento ainda são poucos os trabalhos dedicados às suas experiências. A discussão proposta por Raminelli constitui um bom caminho para incentivar novas investigações e problemas, o que permitiria averiguar se o fenômeno constatado por ele era restrito à capitania de Pernambuco ou consistiu em uma tendência de caráter geral.

O capítulo 5, “Militares pretos na Inquisição”, é o único que apresenta uma temporalidade curta, o que é justificado pelo objeto analisado. Nele, acompanha-se a trajetória de dois militares pretos do Recife durante a década de 1740. Esses homens eram integrantes do terço de Henrique Dias e, ao mesmo tempo, de uma fradaria, corporação que reunia características tanto de irmandade leiga como de ordem religiosa. Mesmo com parca atuação na corporação, os dois militares foram acusados de heresia e, por isso, presos e remetidos aos cárceres do Santo Ofício em Portugal. O autor demonstra que, diferentemente dos índios, os militares pretos que participaram das guerras contra os holandeses em meados do século XVII e seus descendentes não foram condecorados com hábitos das ordens militares, embora tivessem recebido promessas nesse sentido. Apesar disso, constituíam uma “elite preta” devido às patentes militares a eles outorgadas. Na perspectiva avançada por Raminelli, o episódio da prisão revela os mecanismos de exclusão social que afetavam os militares pretos em processo de ascensão social, tornando “instável a honra alcançada pela elite preta de Pernambuco” (p. 205). Não obstante a pertinência da interpretação, chama a atenção o dado conforme o qual os dois militares foram absolvidos e suas patentes restituídas, aspecto não problematizado pelo autor. Nesse sentido, seria promissor investir em explicações que considerassem a preservação do terço dos Henriques e de seus oficiais mesmo diante da oposição das elites brancas e do governo local.

Em “Cores, raças e qualidades”, o último capítulo do livro, procura-se entender os fundamentos que impossibilitaram a nobilitação de pretos e mulatos em Portugal e na América portuguesa. A discussão insere-se em um campo de debates polêmico, relacionado ao questionamento da existência de racismo e da ideia de raça em períodos anteriores à emergência das teorias cientificistas de meados do século XIX. Um dos méritos desse capítulo é a tentativa de definir de modo mais preciso a vinculação de pretos e mulatos à ideia de impureza de sangue, dimensão ainda pouco explorada pela historiografia portuguesa e brasileira. Mediante a análise de habilitações para familiares do Santo Ofício, o autor sugere que a falta de limpeza de sangue atribuída aos pretos e mulatos não era de natureza religiosa, como acontecia aos cristãos-novos, mas fundamentada na escravidão. Assim, ter “raça de mulato” remetia diretamente ao passado escravo e a crenças na transmissão hereditária de comportamentos. Diante disso, o autor advoga a pertinência do emprego das noções de raça e racismo para o período colonial, desde que suas particularidades no contexto sejam esclarecidas.

Ao longo do capítulo, sente-se falta de um diálogo mais estreito com a historiografia sobre os espaços hispano-americanos, que conta com uma boa produção de trabalhos que pensam o problema da raça e da limpeza de sangue relacionado aos afrodescendentes. Esse diálogo, tal como efetuado na primeira parte do livro, indubitavelmente enriqueceria ainda mais as discussões desenvolvidas na segunda parte do trabalho. Por outro lado, no que se refere aos impedimentos baseados na cor e na raça, a distinção entre pretos e pardos mereceria um tratamento mais detido. Ao questionar a inexistência da expressão “raça de preto” e a recorrência da “raça de mulato” (p. 237), Raminelli sugere que a condição material dos mulatos estaria na raiz da distinção. Dispondo de uma condição econômica mais abastada, por serem filhos de homens brancos ricos, eles pleiteariam por hábitos militares e familiaturas do Santo Ofício com mais frequência, instigando a concorrência com outros grupos em disputa pelas mesmas honras. Esta seria a origem da “raça de mulato”, um mecanismo empregado para excluí-los das posições sociais de maior prestígio. Embora o autor esclareça que se trata de uma hipótese, pode-se, no entanto, questionar os limites do argumento por centrar a explicação no fator socioeconômico. Seria importante considerar também as diferenças de status entre esses grupos, que tendiam a ser hierarquizados de acordo com a proximidade e o afastamento em relação à escravidão. Como a historiografia tem ressaltado, os pretos normalmente eram associados diretamente à escravidão e os mulatos, por sua vez, poderiam ser libertos ou estar afastados, em algumas gerações, do ascendente cativo. É possível inferir que era precisamente nesta última situação que a “raça de mulato” desempenhava a sua função primordial, qual seja, barrar a ascensão social de indivíduos que não podiam ser diretamente associados à escravidão.

A principal ressalva ao livro de Ronald Raminelli diz respeito ao descompasso entre as temporalidades abordadas na primeira e na segunda parte da obra. Se nos capítulos 1, 2 e 3 a narrativa foi articulada considerando os grandes contextos formativos da nobreza americana, desde o início da conquista até a transição para o século XIX, nos três últimos capítulos, o recorte limita-se ao tempo que vai das guerras contra os holandeses até fins da década de 1740. Conforme exposto no capítulo 3, a segunda metade do século XVIII foi uma época marcada, por um lado, pelo questionamento da primazia do sangue como critério para a condecoração dos súditos e, por outro lado, pela crescente valorização do mérito individual e da riqueza. Ao leitor fica a inquietação acerca do impacto desse quadro de mudanças nas possibilidades de ascensão social disponíveis a pretos, mulatos e indígenas, principalmente no que diz respeito ao ideário da pureza de sangue. Essa lacuna não diminui a importância do livro, que apresenta novos argumentos e complexifica teses já consolidadas. Ademais, Nobrezas do Novo Mundo indica um conjunto de temas ainda pouco explorados pela historiografia, evidenciando a existência de um promissor campo de investigações.

Priscila de Lima Souza – Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento – CORDEIRO (Tempo)

CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015. 360 p.p. Resenha de: REI, Bruno Duarte. Comemorações, ditadura e sociedade: o sesquicentenário da Independência do Brasil (1972). Tempo v.22 no.40 Niterói mai./ago. 2016.

A descoberta e a produção de novas fontes, assim como o surgimento de novos métodos e abordagens teóricas, provocaram a renovação dos estudos sobre a ditadura militar. Versões longamente partilhadas e estereótipos estão sendo superados, ao passo que, na esteira das revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade e de um expressivo crescimento do interesse popular, novas informações não param de vir à tona. Silêncios e esquecimentos estão sendo superados. E temas até então tabus passaram a ser encarados, sem parti pris, por uma nova geração de pesquisadores. Como apontam diversos especialistas, vivenciamos uma mudança geracional. Nessa dinâmica, uma questão tem despertado instigantes debates: o pacto social firmado entre regime militar e sociedade brasileira.

É nesse contexto que veio a público o livro A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, de Janaína Martins Cordeiro (2015). A publicação é derivada de pesquisa desenvolvida, entre 2008 e 2012, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. A tese que resultou no livro trata das relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Demonstra, mais precisamente, como as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno do regime militar.

Cordeiro estruturou seu percurso em nove capítulos. No primeiro, “Funeral de um ditador”, a autora aborda o silenciamento dos apoios que diversos segmentos sociais deram à ditadura militar, fenômeno que, como é sabido, ganhou força na sociedade brasileira junto com a implementação do projeto de abertura política proposto por Geisel. Para Cordeiro, um episódio emblemático do referido fenômeno é o ostracismo ao qual Médici foi relegado. Por meio da análise da repercussão do adoecimento, da morte e do cortejo fúnebre do ex-presidente (1985), a autora explica por que a popularidade obtida por Médici nos anos do “milagre econômico” foi silenciada, chamando a atenção para a importância de tal silenciamento na construção do consenso democrático estabelecido na década de 1980.

O segundo capítulo, “O enterro do imperador foi uma festa”, aprecia outro cortejo fúnebre: o de d. Pedro I – eleito o “grande” herói a ser homenageado durante os festejos do sesquicentenário. Parte da programação das celebrações, o cortejo fúnebre de Pedro ocorreu em um cenário distinto do de Médici. E despertou, de acordo com Cordeiro, sentimentos dessemelhantes aos observados após a morte do ex-presidente. Como demonstra a autora, na ocasião grande parte da sociedade brasileira – deslumbrada com o “milagre econômico” – costumava rememorar com orgulho o passado nacional, associando positivamente Pedro e Médici: o primeiro era lembrado como o responsável pela independência política do Brasil, e o segundo, reconhecido como o comandante da independência econômica.

Em “Uma festa para Tiradentes: os Encontros Cívicos Nacionais e a abertura dos festejos”, terceiro capítulo, conhecemos a mobilização em torno de outro herói nacional. Conforme a autora, embora Pedro tenha sido escolhido o herói “maior” do sesquicentenário, Tiradentes não foi deixado de lado pelo regime militar, que fez uso de diversos elementos associados ao culto de sua figura – como o martírio, o sacrifício em prol da pátria. Como explica Cordeiro, não à toa 21 de abril foi o dia em que ocorreram os Encontros Cívicos Nacionais, que selaram o início oficial dos festejos. Às 18 horas e 30 minutos dessa data, um discurso de abertura pronunciado por Médici foi reproduzido em diversos recantos do país, seguindo-se de cerimônias de hasteamento da bandeira nacional, bem como de diversos eventos artísticos, culturais e esportivos.

O quarto capítulo, “Da solenidade das comemorações à festa do futebol”, investiga a “Taça Independência” – campeonato que contou com a participação de 20 seleções nacionais, número que, como destaca Cordeiro, excedeu em quatro o total de representantes que disputaram a Copa de 1970. A autora demonstra como a “Taça Independência” – evento organizado pela então Confederação Brasileira de Desportos em parceria com a comissão executiva das festividades – constitui-se em um dos elementos reafirmadores do pacto social firmado entre ditadura militar e sociedade brasileira. Além disso, Cordeiro explica como o referido torneio sintetizou não apenas o espírito festivo que permeou as comemorações do sesquicentenário, mas também, de modo geral, os anos do próprio “milagre econômico”.

No quinto capítulo, “D. Pedro I vai ao cinema: ‘Independência ou morte’, as cores do milagre e a memória”, Cordeiro aborda o filme “Independência ou morte” – produzido por Oswaldo Massaini e dirigido por Carlos Coimbra. Segundo a autora, ao contrário do que muitos pensam ainda hoje, a produção cinematográfica – que narra os acontecimentos que levaram à Independência por meio da trajetória de Pedro – não foi uma iniciativa oficial. Tampouco contou com recursos públicos para sua elaboração. Entretanto, como demonstra Cordeiro, “Independência ou morte” foi apropriado pelo regime militar. Inclusive, de acordo com a autora, o filme – talvez em função de seu caráter não oficial – explorou como nenhum outro evento os valores e sentimentos nacionais exaltados ao longo das comemorações do sesquicentenário.

“A Comissão Executiva Central (CEC) entre o consenso e o consentimento” é o título do sexto capítulo. Nessa seção, Cordeiro explica como a CEC, responsável pela execução dos festejos, foi arquitetada por seu líder, o general Antonio Jorge Corrêa, assim como pelos intelectuais de instituições civis que a compunham – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Associação Brasileira de Imprensa, Conselho Federal de Cultura, entre outras. Ademais, a autora demonstra que a referida comissão acumulou uma quantidade expressiva de correspondências, que não eram apenas institucionais. Conforme Cordeiro, grande parte das cartas endereçadas à CEC foram enviadas por populares, o que proporcionou à autora a oportunidade de analisar, também no sexto capítulo, um vasto painel de opiniões de cidadãos comuns sobre as festividades do sesquicentenário.

Em “O sesquicentenário das vozes dissonantes”, sétimo capítulo, Cordeiro aborda um conjunto de opiniões divergentes ao regime militar. A autora alega não ser possível defender uma tese acadêmica sobre o consenso social estabelecido em torno da ditadura militar sem verificar as múltiplas vozes dissonantes também presentes na sociedade brasileira. Embora minoritárias e diversificadas entre si, tais vozes expressavam, segundo Cordeiro, importantes correntes de opinião. Dentro dessa perspectiva, a autora explica por que o estudo das referidas correntes é um aspecto crucial para uma melhor compreensão das complexidades inerentes ao pacto social instituído entre regime militar e sociedade brasileira, tal como o lento processo de abalo desse mesmo pacto a partir da segunda metade da década de 1970.

No oitavo capítulo, “O colorido fim de festa: a apoteose final da ditadura”, Cordeiro analisa alguns eventos associados ao encerramento das celebrações do sesquicentenário – notadamente, as paradas militares de 7 de setembro, um espetáculo de som e luz ocorrido no Museu do Ipiranga e a Feira Brasileira de Exportação: Brasil Export 72. De modo geral, a autora demonstra como é que – por meio da utilização de tais eventos, que contaram com ampla participação popular – a ditadura militar conseguiu estabelecer diálogos com a sociedade brasileira. Para Cordeiro, o escopo central dos referidos diálogos era chamar a atenção, por meio de usos políticos do passado, para o presente considerado favorável – marcado, em grande medida, pelo “milagre econômico”, assim como por uma expectativa otimista em relação ao futuro do país.

Por fim, em “Anos de chumbo ou anos de ouro? Uma história sempre em reconstrução”, nono capítulo, Cordeiro desenvolve um balanço final sobre as relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. A partir da abordagem da oposição “anos de chumbo” versus “anos de ouro”, a autora analisa a complexidade dos comportamentos sociais sob o regime militar. Cordeiro debate, mais especificamente, atitudes como a passividade e a indiferença, que, assim como a colaboração ativa, contribuíram, de acordo com a autora, para a construção do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Ao mesmo tempo, formula reflexões sobre a construção de uma memória social sobre o período do regime militar, lançando luzes sobre determinados mitos, silêncios e esquecimentos.

Ao tomar as comemorações do sesquicentenário como objeto de estudo, Cordeiro nos ajuda a compreender melhor as relações firmadas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Em outras palavras, nos auxilia a pensar o tema a partir de um ângulo de visão que vai além das conhecidas interpretações maniqueístas criadas sobretudo a partir do contexto da redemocratização. E que ainda hoje são bastante reiteradas em alguns espaços de debate político. Como se sabe, tais versões costumam apreender o assunto por meio do estabelecimento de polos antagônicos – Estado repressor versus sociedade vitimizada, colaboradores versus resistentes, bem versus mal, entre outros. A autora demonstra que, mais do que isso, existiu uma “zona cinzenta” – eivada de diversidades e ambivalências – situada entre os polos citados, em que se podem observar variadas formas de se comportar diante do regime militar.

Entre esses comportamentos, é possível verificar, de acordo com Cordeiro, um conjunto de práticas de consentimento em relação à ditadura militar, que, por sua vez, contribuíam para reafirmar o consenso social estabelecido no período. Como exemplo, posso citar, entre diversas outras atitudes analisadas pela autora, a conduta dos torcedores brasileiros durante a “Taça Independência”, que, empolgados com a competição, lotavam as arquibancadas dos estádios nos jogos do “escrete canarinho”. Como explica Cordeiro, esses torcedores compunham, de fato, a mise-en-scène do regime militar, participando ativamente dos festejos oficiais, vestindo o verde e o amarelo, carregando suas bandeiras, cantando o hino e as canções de apoio, ovacionando Médici ao vê-lo na tribuna de hora do estádio.

Dentro desse prisma, Cordeiro defende que, mais do que um mero instrumento de manipulação e controle ideológico, as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Isso nos ajuda a compreender, entre outras coisas, que os brasileiros não eram agentes passivos diante das estratégias de propaganda política promovidas pelo regime militar, que só ganhou força porque, de fato, encontrou resposta na sociedade. Ajuda-nos a compreender também, que, entre a adesão e a resistência, existia uma diversidade de comportamentos sociais que, juntamente com a coerção, a repressão, a propaganda e a censura, contribuíram para a sustentação da ditadura militar ao longo de seus anos de vigência.

De modo geral, Cordeiro trata o regime militar como um produto social. Ou seja, como algo que foi gestado no interior da própria sociedade brasileira. Dessa forma, a autora evidencia as fragilidades de versões longamente partilhadas, como as que defendem que a ditadura militar só foi viável em função das instituições e práticas coercitivas e manipulatórias, ou, então, que a sociedade brasileira foi essencialmente resistente ao regime militar. Indo de encontro a essas versões, Cordeiro demonstra, mais precisamente, como é que, ao longo da ditadura militar, foi formado um consenso social pautado por padrões não democráticos. Consenso esse que, como explica a autora, não foi encarado como algo problemático por grande parte dos cidadãos brasileiros.

Em vista do exposto, ela classifica nossa última ditadura como de caráter “civil-militar”. Nesse ponto, discordo dela. De acordo com o que tem afirmado Carlos Fico, acredito que não é o consentimento ou, até mesmo, o apoio engajado que define a natureza dos eventos da história, mas sim a efetiva participação dos agentes em sua configuração. Nesse sentido, parece-me ser pertinente classificar o golpe de 1964 como de feitio “civil-militar”, pois, além do apoio, ele foi efetivamente dado por civis. Porém, ainda conforme o autor, compreendo que a ditadura subsequente ao golpe foi eminentemente militar. Afinal, como Fico chama a atenção, muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares, justamente porque punham em risco seus projetos de poder. Mas isso é assunto para ser discutido mais detalhadamente em outra oportunidade.

Controvérsias à parte, o que cabe destacar neste momento é que Cordeiro, afinada com a recente renovação dos estudos sobre o regime militar, apresenta análise qualificada e original. A partir da abordagem de aspectos variados das comemorações do sesquicentenário, a autora demonstra como – em um momento conhecido por muitos como “anos de chumbo” – a ditadura militar se apresentou como legítima, sendo, inclusive, capaz de convencer parcelas significativas da sociedade brasileira. Ao percorrer esse caminho, aponta para a necessidade de compreendermos melhor o complexo período do governo Médici: anos de chumbo e, simultaneamente, de ouro, marcados pelos horrores causados por graves violações aos direitos humanos, mas, também, pelos sentimentos de orgulho e otimismo em relação à pátria, que experimentava o “milagre econômico”.

Bruno Duarte Rei – Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Rio de Janeiro- Brasil. E-mail: [email protected].

PÉREZ, Juan Manuel Santana; PÉREZ, German Santana. La pesca en el banco sahariano, : siglos XVII y XVIII. Madri: Catarata, 2014. Resenha de: HONORATO, Cezar Teixeira. Canários e a pesca no banco saariano (séculos XVII e XVIII). Tempo v.22 no.39 Niterói jan./abr. 2016.

Acabo de ter acesso ao livro dos irmãos Santana Pérez, intitulado La pesca en el banco sahariano: siglos XVII y XVIII, que me causou uma agradável surpresa. Primeiramente, por ser um excelente exercício de história global em tempos de pós-modernidade. Em segundo lugar, por ser um tema pouquíssimo estudado: a pesca.

O livro parte de questões gratas à historiografia clássica ao se apoiar nos princípios da Escola dos Analles, em que a influência braudeliana1 é nítida, além dos pressupostos marxianos em suas mais variadas vertentes. Por tais razões, antes de ser um trabalho tão somente monográfico acerca da pesca, nos dá um painel primoroso do Antigo Regime, especialmente na Espanha dos séculos XVII e XVIII.

As grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais do período fluem ao longo do texto, colocando o tema da pesca saariana praticada nas ilhas Canárias no universo mais amplo em que se inseria a região na transição feudal-capitalista, inclusive em termos dos conflitos das monarquias ibéricas acerca do domínio do Atlântico Sul.

Mas talvez a maior contribuição em termos de uma história global esteja na própria estrutura do livro, na qual questões relacionadas com o mundo do trabalho, a dinâmica das empresas, as características das embarcações e da equipagem utilizada nos principais tipos de pesca, as questões geográficas e ecológicas que foram determinantes no avanço da exploração pesqueira na costa saariana desde o período estudado até os dias de hoje se articulam em um único texto.

A pesca, embora seja uma atividade humana existente desde os primórdios e envolvendo um grande número de pessoas, pouco tem sido observada pelos historiadores. Quando muito, atenta-se para os vários tipos de interdição e controles exercidos pelos Estados visando a controlá-la. Base da alimentação da sociedade, especialmente no caso do pescado salgado, movimentava negócios e trabalhadores com o registro de empresas pesqueiras desde o século XVI no arquipélago de Canárias, ganhando força ao longo dos séculos seguintes, objeto de estudo dos autores.

Os autores já apresentam na introdução o quadro geral do período, destacando-se a opção cronológica quando apontam que, no início do século XVII, foram realizadas as últimas incursões dos espanhóis, ainda com traços das cruzadas, especialmente nas ilhas na costa noroeste africana. Já a escolha do final do século XVIII até quando se aprova a Constituição espanhola de 1837 se deve não só à conjuntura mais global como à conclusão dos tratados de paz com os governantes africanos.

Ainda na introdução temos a descrição das principais fontes utilizadas na pesquisa. Nesse ponto, a surpresa é maior pela amplitude de arquivos pesquisados na França, na Inglaterra e, obviamente, nos vários arquivos espanhóis, com destaque para os das ilhas Canárias. A tipologia variada das fontes e as dificuldades de pesquisa inerentes ao trabalho com manuscritos aumenta ainda mais a importância do trabalho.

No primeiro capítulo, logo merecem destaque a análise detalhada do processo de trabalho da pesca com forte influência de uma excelente base antropológica e o cotidiano do trabalho pesqueiro, identificando cada categoria de trabalhadores envolvidos, suas principais tarefas e a remuneração específica de cada uma, mostrando como eram já bastante complexas as relações de produção no setor. A utilização de dados estatísticos acerca das viagens ocorridas no período, dos custos e da remuneração dos trabalhadores, inclusive de sua dieta alimentar durante o período no mar, torna o trabalho uma referência no tema.

O mesmo se pode dizer das empresas, que, após serem identificadas, tiveram um tratamento dos dados acerca de custos e lucros de algumas das excursões pesqueiras, da rede de negócios envolvendo a pesca, da salga, para, finalmente, terem apresentada a comercialização do pescado, culminando com a análise da contabilidade de uma companhia pesqueira, a Santo Domingo, dos primeiros anos do século XIX.

O segundo capítulo surpreende desde o início pelo domínio do conhecimento acerca da geografia do território de Berbería, local do banco saariano, que se localizava desde o Marrocos e o Saara Ocidental até Arguin, o território mais próximo do arquipélago das Canárias e com maior capacidade pesqueira, razão para os conflitos com os portugueses, que também exploravam a região.

Seguindo os autores, pode-se perceber que a costa africana é uma das regiões marítimas mais produtivas do planeta, pela maior quantidade de peixes passíveis de salga em razão de suas características físicas, envolvendo salinidade, temperatura das águas, correntes marítimas etc. para a pesca de merluza, cherne, bogas ou corvinas, ao contrário da pesca litorânea das Canárias, na qual merece destaque a pesca da sardinha.

No terceiro capítulo, após uma densa descrição do banco de Arguin, os autores investem no processo de ocupação/uso da região pesqueira desde o início do século XVI, inclusive com a apreensão de escravos e a questão da pesca pré-industrial na região. Embora discordemos de sua ideia acerca da própria definição de pesca pré-industrial, seus argumentos são bastante convincentes.

Um dos pontos altos do livro está no quarto capítulo, no qual são analisados o consumo e o comércio de pescado durante os séculos XVI e XVIII. Impressionam a acuidade e o ineditismo da questão da dieta alimentar da população – normalmente negligenciada pela historiografia tradicional -, bem como a importância do pescado fresco (o mais caro) ou salgado, além de lagostas e ostras, na complementação proteica da população, chamando a atenção para seu alto consumo entre os mais pobres.

Preparado de várias formas (frito, cozido, assado ou escabeche), o pescado, que era a base da alimentação dos mais pobres – sempre tendo as Canárias como referência -, não tinha muito prestígio entre os mais ricos, que valorizavam a carne, e, embora largamente consumido, nem era muito considerado como nutritivo pela população em geral, por sua leveza e facilidade de digestão.

Ainda nesse capítulo, merece destaque a impressionante análise da comercialização do pescado, os preços praticados e a preocupação da administração em garantir a qualidade das mercadorias que iam à venda e que seriam consumidas pela população, com uma quantidade impressionante de dados estatísticos extraídos das fontes.

Outra parte se abre com a análise da relação entre a produção de sal e as pescarias. A utilização do sal e a secagem do pescado, com destaque para peixes como o bacalhau, eram fundamentais para garantir sua vida útil com qualidade e para que todo o processo de transporte e comercialização não gerasse adulteração na qualidade, mesmo após longas e demoradas viagens.

O que, para um leitor pouco atento, pode parecer uma digressão ao falar da questão do sal desde a Antiguidade, demonstra a profunda erudição dos autores, e mais, como a busca de uma história total é claramente apresentada no livro, demonstrando o quanto era fundamental a utilização do sal na pesca saariana, representando parte considerável dos custos de produção do pescado.

No sexto capítulo, a obra se dedica a analisar a emergência dos discursos da ilustração e sua relação com a pesca no banco saariano. Tais discursos foram fundamentais para a construção de projetos políticos para o setor. Por meio das iniciativas oficiais, dizem os autores, os ilustrados trataram de fomentar a pesca não só nas Canárias, mas em toda a Espanha, embora poucas das medidas surtiram o efeito esperado.

No último capítulo, os autores apontam ainda para novos projetos relacionados com a pesca que se tentou implementar na Espanha como um todo desde o final do século XVIII até o início do seguinte na região saariana. Entre eles, merece destaque a caça à baleia, seguindo o que ocorria em outros países da Europa, fundamental em razão do aumento mundial de seu azeite.

Outro projeto que entra em debate no mesmo período aponta para a preocupação da pesca predatória tanto nas Canárias quanto no banco saariano. A tentativa de proibir “redes de arrasto” com cota de malha pequena foi uma das medidas visando a evitar a diminuição da oferta pesqueira.

Finalmente, nas conclusões, os autores retomam muitas das questões desenvolvidas ao longo do denso texto e apontam a permanência nos dias de hoje de muitas das práticas da pesca e de barcos, em que pese o avanço da grande pesca industrial.

Por todas essas razões, acredito que se trata de um livro fundamental para o entendimento da história das ilhas Canárias, da África saariana, da própria dinâmica da sociedade da transição feudal-capitalista, considerando um tema ainda pouquíssimo estudado entre nós. Trata-se de uma obra madura de professores catedráticos da Universidade de Las Palmas de Gran Canarias. Pois tais razões, não temos dúvida de esse livro já se tornou uma referência fundamental para aqueles que queiram estudar tais assuntos, podendo servir de inspiração para os pesquisadores brasileiros em busca de novos temas e de “maneiras de fazer história”.

1Especialmente BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. Tradução do Ministério da Cultura Francês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. 2 v.

Cezar Teixeira Honorato – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Brasil. E-mail: [email protected].

A piedade dos outros – FRANCO (RH-USP)

FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII. Rio de Janeiro: FGV/FAPERJ, 2014. Resenha de: VENÂNCIO, Renato Pinto. Revista de História (São Paulo) n.172 São Paulo Jan./June 2015.

No Vocabulario portuguez e latino de Raphael Bluteau, publicado em 1712, há um verbete a respeito da compaixão – expressão, aliás, grafada como “compaxam”. Nele, o significado da palavra aparece como sendo “pena, que se sente da pena alheia”. Esta definição revela uma ambiguidade de significados: “pena” expressa “ter piedade”, mas também denota “vivenciar o sofrimento”. Ter compaixão, portanto, é ter piedade do sofrimento alheio. O livro do historiador Renato Franco, A piedade dos outros…,reconstitui a genealogia desses sentimentos, em relação a um aspecto crucial da vida familiar colonial: o abandono de recém-nascidos e bebês em ruas, caminhos, praças, adros de igrejas ou portas de casas de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto.

Nesse universo social, o abandono do filho, por razões morais ou econômicas, constituía um sofrimento, uma “pena”, que comprometia a salvação das almas dos pais e das crianças, uma vez que estas corriam o risco de falecer sem o batismo. No entanto, “ter pena” dessa situação também constituía um extraordinário gesto de misericórdia e de caridade, salvando a alma dos protegidos e dos protetores. Portanto, ao contrário de nosso tempo, o auxílio às crianças abandonadas coloniais não se relacionava às políticas sociais ou às noções de bem estar social como uma dimensão prática de cidadania.

O livro em questão também reafirma a vitalidade dos estudos de história social da família e das situações de desagregação familiar. Esta última dimensão deve muito às pesquisas pioneiras de Maria Luíza Marcílio que introduziu e difundiu no Brasil as técnicas e metodologias da demografia histórica. Renato Franco também se filia a importantes correntes internacionais da história social da família. Desde os anos 1960, esse campo historiográfico foi impactado pelo livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, que traçou um quadro fascinante a respeito da condição da criança na Época Moderna, sugerindo que o sentimento e os valores de nossa época não se aplicam ao passado.

No Brasil, investigações semelhantes a essa começaram a ser registradas nos anos 1980, em grande parte influenciadas, conforme mencionamos, pelas sugestões de pesquisa da demografia histórica. Também cabe ressaltar casos isolados, como o de Gilberto Freyre que, no clássico Casa-grande & senzala (1936), traça um interessante painel da meninice senhorial e escrava, recorrendo a fontes documentais inéditas.

Somam-se a essa historiografia pesquisas oriundas dos estudos de representação, como o clássico The kindness of strangers: the abandonment of children in Western Europe from Late Antiquity to the Renaissance, de John Boswell. O exaustivo estudo de fontes literárias mostrou que o abandono de crianças, sobretudo de recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal prática foi abundantemente registrada na literatura clássica. No final da Idade Média, principalmente após a Peste Negra (1348), o problema se agravou, exigindo uma intervenção das instituições dos burgos e cidades medievais. Em Portugal, antes mesmo da colonização do Brasil, câmaras municipais e hospitais, como as Santas Casas de Misericórdia, começaram a criar formas de auxílio destinadas às crianças abandonadas.

No século XVII, o abandono de crianças também é registrado no ultramar português. Várias câmaras coloniais começam a pagar famílias para acolher os “enjeitados” ou “expostos”, conforme eram denominados na época. Os hospitais, por sua vez, como se registra na Santa Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro (1738), importaram as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e preparados para acolher recém-nascidos abandonados.

A capitania de Minas Gerais não contou com rodas dos expostos, mantendo a tradição do auxílio via câmara ou senado da câmara. Renato Franco apresenta um quadro detalhado da atuação dessa instituição para o caso específico de Vila Rica. No livro A piedade dos outros…, a prática do abandono de crianças é estudada em suas várias dimensões. De fato, o problema era grave. Conforme o próprio autor afirma: “Em Vila Rica, no fim do século [XVIII], cerca de 20% das crianças nascidas livres eram enjeitadas pelos pais” (p. 27).

A leitura do livro também revela que a primeira capital mineira legounos uma das mais ricas coleções de documentos a respeito do abandono de crianças. Uma parte dessa documentação foi produzida pela câmara local, como no caso dos livros de matrícula de expostos. Outras séries fundamentais são provenientes dos arquivos eclesiásticos. As atas batismais das paróquias de Antonio Dias e Nossa Senhora do Pilar contêm, além dos nomes das crianças, os das pessoas que as recolhiam e dos padrinhos, pequenas anotações e reproduções de bilhetes que acompanhavam os bebês. Ao anotarem isso, os padres tornaram-se cronistas da vida cotidiana colonial, conforme pode ser observado no exemplo abaixo:

José, filho de pais incógnitos, que aos vinte e cinco dias do mês de agosto foi achado por José Caetano Pereira e por Caetano da Silva, exposto na rua defronte da porta do Doutor Tomé Inácio da Costa Mascarenhas, com um timamzinho [pequena camisola] usado de baeta [tecido felpudo de lã] vermelha, forrado de tafetá (Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, Vila Rica, 08/09/1756).1

O livro A piedade dos outros… traça o que poderia ser definido como uma história da compaixão como razão do auxílio à infância. Essa experiência, por sua vez, era filtrada pela sociedade escravista que constantemente ameaçava reduzir meninas e meninos enjeitados à condição de escravos.

A atualidade desta pesquisa consiste na visão substancialista do passado, superando o anacronismo através da contextualização precisa de um tipo de auxílio familiar. Enfim, revela-se, assim, que cada época cria suas próprias configurações de proteção à infância. Compreender essa evolução é o melhor caminho para avaliar e refletir a respeito das opções que, no tempo atual, a sociedade brasileira escolhe e implementa.

1VENÂNCIO, Renato Pinto. Mensagens de abandono. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, n. 4, out. 2005, p. 33.

Renato Pinto Venâncio – Pós-doutor pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professor no Departamento de Organização e Tratamento da Informação da Escola de Ciência da Informação. Pesquisador no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científco e Tecnológico – CNPq.

Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil – CORDEIRO (EH)

CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Resenha de: PAULA, Christiane Jalles de. Memória, história e mulheres de direita na ditadura no Brasil. Estudos Históricos, v.25 n.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.

Há uma corrente na historiografia brasileira que propõe a revisão das interpretações sobre o regime militar, e especialmente a da memória construída da resistência da sociedade brasileira à ditadura. Esse movimento tem trazido novos ângulos, fontes e objetos para a compreensão do Brasil no período de 1964 a 1985. O trabalho de Janaína Martins Cordeiro, originalmente dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), alia-se a essa corrente. Como bem realçou Denise Rollemberg no prefácio, um dos seus méritos é que avança ao propor uma interpretação original sobre a atuação de um grupo manifestamente a favor do regime instaurado em 1964: a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde). Por isso mesmo, não surpreende que o trabalho tenha sido agraciado com o Prêmio Pronex/UFF em 2009, que subsidiou sua publicação.

O livro Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil assume dois objetivos. O primeiro é a recuperação da memória das mulheres da Camde, buscando, ao fazê-lo, desmistificar a memória da resistência da sociedade brasileira, uma vez que é inegável a ressonância que os discursos anticomunistas dos grupos de mulheres tiveram em 1964. O outro é entender como esses grupos apoiaram e legitimaram o golpe e a ditadura. Este é o ponto que considero mais instigante e original, uma vez que compartilho da ideia de que só podemos entender um determinado período se nos debruçarmos sobre o jogo social, político e cultural jogado pelos segmentos sociais. O livro nos permite entrever o dinamismo do jogo do qual participaram as mulheres da Camde, embora, é preciso reconhecer, nem sempre as ambiguidades tenham sido sublinhadas, e se tenha tentado, antes, encontrar as coerências do grupo. De toda forma, o livro nos leva a entender, como diz Rosanvallon (2010: 76), “o modo por que os indivíduos e os grupos elaboraram a compreensão de suas situações; os rechaços e as adesões a partir dos quais eles formularam seus objetivos; a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e organizaram o campo de suas ações”.

Organizado em três capítulos, além da introdução e das considerações finais, o livro traz a história da Camde, os valores que forjaram a militância da entidade e, finalmente, a memória elaborada pelas militantes do grupo.

O primeiro capítulo retrata a história da Camde. Nele, a narrativa cronológica é subsumida ao tema da cultura política, o que enriquece a argumentação. Por isso mesmo, o capítulo trata das formas de organização política e das ações empreendidas pelo grupo. Há uma dupla intenção no estudo desses aspectos: compreender a ditadura e o universo simbólico do grupo. A autora nos persuade de que o grupo compartilhava uma cultura política caracteristicamente elitista, udenista, assistencialista e católica.

No capítulo 2 são apresentados os valores que nortearam a organização e a atuação da Camde. Chamando a atenção para como as mulheres do grupo fizeram uso das categorias da esfera privada (mães, esposas e donas de casa) na construção de seus discursos públicos, a autora nos traz um retrato das relações de gênero no Brasil, que mostram ser um elemento fundamental para a compreensão da participação do grupo na cena pública brasileira entre 1962 e 1974.

No capítulo 3 são analisadas as memórias elaboradas pelas militantes da Camde. Seus silêncios, suas recusas e as dificuldades para conseguir entrevistá-las – de 17 mulheres que foram encontradas e contactadas, só quatro se dispuseram a prestar depoimento à autora – expõem a força da construção da memória do silêncio. Partindo da elaboração de Pierre Laborie, para quem o silêncio sobre determinado evento pode estar relacionado à incompreensão no presente de um comportamento do passado, a autora, ao tratar os depoimentos, constrói a teia de adesões e rechaços que marcam a memória e a história de militância das mulheres que estiveram ligadas à Camde.

O trabalho de Janaína Martins Cordeiro suscita muitas questões. Nesta resenha quero chamar atenção para três em especial.

Primeira: como tratar de um grupo de militantes católicos sem considerar a centralidade do catolicismo como “visão de mundo” (Karl Mannheim, 1982), ou seja, entender que o catolicismo estrutura uma série de vivências ou de experiências que, por sua vez, constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos. No trabalho, embora inúmeras vezes o catolicismo seja mencionado, acabou sendo pouco explorado enquanto base comum das vivências e experiências das mulheres da Camde.

Segunda: a democracia é um conceito polissêmico. Então, não seria preciso explicitar o conceito de democracia usado pela Camde? Vale lembrar que o catolicismo, já no século XIX, adotara politicamente a si mesmo como terceira via à democracia liberal e ao socialismo, que, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, passou a ser chamada de “democracia cristã”. Além disso, a “democracia” no catolicismo tem significado diverso daquele difundido pela democracia liberal-representativa. Não é por acaso que tanto o anticomunismo como o antiliberalismo são bases importantes do pensamento político católico.

Terceira: em vários momentos do trabalho o grupo é caracterizado como conservador. Por que não matizar este qualificativo, mostrando que, em algumas conjunturas, o grupo assumiu feição tradicionalista e, em outras, reacionária? Um investimento maior nas diferenças destes conceitos poderia nos dar indícios mais robustos dos porquês de algumas das escolhas e, principalmente, poderia realçar ainda mais as ambiguidades das mulheres da Camde.

Gostaria de finalizar ressaltando que estas considerações só reforçam a qualidade e a originalidade da interpretação. Trata-se de um livro que muito contribui para o atual debate sobre a ditadura no Brasil e que merece leitura atenta.

Referências

MANNHEIM, Karl. Structures of thinking. Collected Works Volume Ten. London: Routledge + Kegan Paul, 1982.         [ Links ]

ROSANVALLON, P. Por uma história conceitual do político. In: Por uma história do político. Tradução de Christian Edward Cyrill Lynch. São Paulo: Alameda, 2010.

Christiane Jalles de Paula – Doutora em ciência política pelo IUPERJ, professora e pesquisadora do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil ([email protected]).

A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica – MALERBA (HH)

MALERBA, Jurandir. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: FGV, 2009, 146 p. Resenha de: HURBY, Hugo. Caminhos da historiografia latino-americana. História da Historiografia, Ouro Preto, n 05, p.212-217, setembro 2010.

O recente livro de Jurandir Malerba atesta o rico momento no qual os historiadores se encontram. Recuperando o que lemos em número recente neste periódico, “a História da Historiografia vai ocupando um espaço cada vez mais importante no ateliê dos historiadores” (GUIMARÃES 2009, p. 258). Espaço assaz fértil de reflexão sobre o nosso próprio métier. O autor é professor com trânsito por várias instituições, pesquisador experiente e escritor/tradutor de difundidos e instigantes trabalhos. A editora é renomada pela qualidade de suas publicações e especial atenção dedicada à História. Momento propício, autoria qualificada e editoração incentivadora reúnem-se em A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica.

Oriundo de pesquisas do autor para compor a volumosa Colección Unesco de Historia General de América Latina (MALERBA 2006a), o livro tem por objetivo refazer os itinerários da historiografia latino-americana, a fim de perceber o processo de mudanças a partir da década de 1960. O intuito de compreender essa trajetória parte de duas premissas: considerar os anos 60 ponto de inflexão da cultura ocidental e não perder de vista as fortes e ambíguas relações que os intelectuais latino-americanos mantêm com os centros hegemônicos, Estados Unidos, Inglaterra e a França.

Pequeno em suas dimensões, o livro é grande na pretensão analítica e pesado nas críticas. Introdutoriamente, o autor nos dá uma ampla visão da historiografia ocidental através do contexto intelectual na “transição paradigmática”, que tem os anos de 1968 e 1989 como dois marcos simbólicos.

De um a outro se observa o paulatino recrudescimento do “pós-estruturalismo” desembocando nas proposições “pós-modernas”. Ressalvados o sincretismo e as imprecisões que tais termos carregam, o autor problematiza dois postulados ligados a essas correntes de pensamento: a teoria da linguagem e a negação do realismo. O texto preliminar fecha com uma questão de suma importância e próxima a muitos pelo impacto nos cursos de graduação de onde somos.

Malerba reflete, com muita propriedade, sobre a presença do marxismo na historiografia latino-americana: aparato teórico, metodológico e ideológico fomentador de forma vivaz do debate a partir da segunda metade do século XX. Aqui inicia a análise crítica do autor sobre trabalhos específicos de intelectuais latino-americanos, nos quais vislumbramos o pulsar da tradição marxista na Argentina, Peru, México, Brasil. Tal tradição criativa e influente, deveras afetada pelas grandes transformações mundiais, passou a sofrer pesadas críticas, suscitando o chamado “pós-marxismo”. Se esses momentos “pós” na América Latina recebem atenção pela perda da referência na totalidade em que se inserem, Malerba aponta, igualmente, para a saudável retomada de uma tradição problematizadora, que mistura os ensinamentos do marxismo mais arejado com os aportes do movimento historiográfico francês dos Annales.

Esse diálogo dos Annales com o marxismo renderia, conforme o autor, o que de melhor se produziu nos últimos 30 anos na historiografia latino-americana nos campos da história econômica e história social. A produção na América Latina, nessas duas modalidades de escrita histórica, é mapeada no primeiro capítulo, intitulado “Décadas de 1970 e 1980”. Nele, o autor nos apresenta o labor de historiadores econômicos no Brasil, Argentina e Chile, ainda na primeira metade do século XX, cujos esforços foram conjugados na Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). A partir dos problemas de desenvolvimento da região, o autor analisa a eclosão de teorias da dependência como pensamento genuinamente formulado por intelectuais latino-americanos para explicar o presente através do passado. A validade de teorias como essas, sob visão macrossocial e histórica, acabaria por sucumbir no cenário acadêmico diante do contexto de fragmentação da “transição paradigmática”.

Ao longo da década de 1970, a História econômica, gradualmente, assumiu grande prestígio e vitalidade. De maneira muito didática, Malerba esquematiza os temas abordados pela história econômica distribuídos nos períodos colonial, nacional e século XX. Destes, o campo da economia colonial foi um dos que mais impulsionou a historiografia econômica na América Latina. Guiados pelo autor, acompanhamos os trabalhos de vários pesquisadores, com destaque para os estudos de história agrária no Brasil. Ainda no primeiro capítulo, o diálogo do marxismo com os Annales nos é mostrado ao seguirmos o itinerário da história social através da pertinente seleção de publicações. A ampliação dos horizontes temáticos da história social deu-se, principalmente, pelas pesquisas sobre escravidão, trabalho e movimentos sociais.

Especificamente sobre a história social do trabalho, para além da constatação de renovação acarretada pelo marxismo britânico, Malerba nos mostra como a abordagem tradicional, concentrada quase exclusivamente nas ideologias das classes trabalhadoras, seus líderes e suas relações formais com os partidos políticos, vai sendo superada. A produção historiográfica sobre a classe operária e o mundo do trabalho na América Latina se altera mediante o impacto das profundas transformações globais. Através da “nova história social”, os pesquisadores passam a enfatizar a diversidade das experiências entre as massas trabalhadoras, fugindo das pretensões generalizantes. Questões de gênero, etnicidade, desenvolvimento da cultura popular, formação de identidades e vida cotidiana (daqueles que não participaram de sindicatos ou partidos políticos de trabalhadores) são exemplos que Malerba nos traz para mostrar a incorporação de leque mais amplo de tópicos na história social do trabalho nesses países.

No período de transição democrática, na década de 1980, os pesquisadores latino-americanos se esmeraram por conhecer o papel de resistência da sociedade civil organizada. O tumultuado momento contribuiu para a força desse campo através do tema dos movimentos sociais. Novas preocupações e objetivos acabaram por transformar a natureza dos movimentos sociais e as relações entre eles (sindicalistas, gays, feministas, ambientalistas). Não obstante tal diversificação, o foco do interesse dos historiadores recaiu sobre as questões de identidade e cultura. No entanto, de forma perspicaz, Malerba mostra como a produção acadêmica passa a adotar postura mais cautelosa do que a celebrativa inicialmente. Posição que, no entanto, ainda não conseguiu afastar a militância das pesquisas.

No segundo capítulo, “Décadas de 1980 e 1990”, Malerba avança na análise tendo a “nova história política” e a “nova história cultural” como dois campos que melhor caracterizam a produção latino-americana nos últimos decênios do século. No primeiro campo, o autor seleciona dois temas de destaque na historiografia. Nas pesquisas sobre a construção do Estado e da Nação na América Latina independente (século XIX) percorremos os estudos na Argentina, México, Colômbia, Peru e Brasil. O movimento de revitalização na história política é observável quando os pesquisadores tornaram mais complexas questões como a emergência de identidades nacionais, ruptura do pacto político entre colônia e metrópole, variedades de federalismos, participação de grupos camponeses e indígenas. Os trabalhos historiográficos sobre os regimes populistas e ditatoriais, igualmente, foram merecedores da atenção dos pesquisadores na história política.

Até então trabalhando com foco nos sujeitos, processos político-partidários e na história do Estado e das elites no poder, as historiografias nacionais começaram a renovar essa abordagem tradicional.

Considerando a “nova história cultural” como outro campo importante de estudos no período, Malerba problematiza o seu próprio advento e caracterização na historiografia. Mais recentemente, segundo o autor, apesar das amplas pretensões, os pesquisadores envolvidos neste campo se identificariam pela referência a um corpo canônico de obras, referências teórico-metodológicas, escolha de certas fontes e uso de “jargão” especializado sobre representações, textualidade, relações de poder, subalternidade e identidades sexuais e raciais, intimidade e privacidade, cultura popular. Se, aparentemente, a agenda do campo está definida, Malerba aponta que sua forma de execução se caracteriza por certa “mestiçagem” na abordagem e “liberdade criadora” na prática para além do receituário prescrito. A pujança da história cultural pode ser percebida nos dois exemplos selecionados pelo autor. Tanto na história do cotidiano e da vida privada, como na de relações de gênero, fica visível o imbricamento desse campo com os demais trabalhados ao longo do livro.

Seguindo a forma clara e didática que acompanha os parágrafos do livro, a parte final comporta importante orientação bibliográfica. Complementa aquelas referências trabalhadas ao longo do texto, indicando sucintamente uma série de trabalhos de pesquisadores em diferentes países, não só latino-americanos. A rica bibliografia apresentada e trabalhada pelo autor nos permite adentrar em balanços historiográficos gerais e regionais, e nas discussões teóricas.

O ensaio de crítica historiográfica de Jurandir Malerba, em sua pretensão de síntese, delineia tendências na historiografia latino-americana ao selecionar publicações de maior representatividade nos campos e momentos historiográficos. Autores, livros e grupos de pesquisas em diversos países da América Latina alicerçam o ensaio como linhas mestras ou tendências majoritárias na historiografia. Linhas ou tendências que se cruzam, mesclam, dialogam através de fronteiras porosas. O caráter seletivo, pois panorâmico, como o próprio autor adverte, fez com que outras vertentes na produção historiográfica não fossem contempladas. Somos precavidos, ainda, para o descompasso entre as trajetórias nas diversas historiografias nacionais, em que os campos escolhidos assumem, em alguns casos, rótulos distintos. Porém, ao final da leitura do livro, ficamos convictos de que os quatro campos selecionados – história econômica, política, social e cultural – são expressivos para mostrar o turbilhão que varreu o ateliê de Clio, a partir da década de 1960, fragilizando teorias, projetos, modelos, métodos, certezas, verdades. E para mostrar também o quanto os profissionais da História, ainda hoje, se encontram afetados por uma transição em aberto.

Diante dessa caminhada pela historiografia latino-americana, em um momento de guinada radical nas formas de se conceber e praticar a história, a análise de Malerba permite enxergarmos, claramente, três questões. Os historiadores latino-americanos reiteraram seu papel de importadores de pensamentos, modismos, pastiches, cópias. As problemáticas “vindas de fora”, típicas de sociedades liberais desenvolvidas, refletiram, muitas vezes, os anseios e as demandas da cultura do pesquisador estrangeiro (latino-americanista) e não necessariamente os dos povos pesquisados. Haveria a hegemonia de uma literatura estrangeira como “substrato teórico da produção local”. Através de “clichês”, avulta a dificuldade dos historiadores em assimilar as reflexões teóricas daquela literatura na orientação de suas pesquisas e na própria construção dos textos. Mas fugindo do “imperialismo científico” ou da “expansão do capitalismo no Terceiro Mundo”, Malerba adverte para a complexidade do intercâmbio acadêmico Norte-Sul. A crescente aproximação dos intelectuais latino- -americanos da intelligentsia nos centros hegemônicos, em especial estadunidense, permitiu a entrada de novos personagens e temáticas na agenda dos pesquisadores. Esse ingresso conduziu a uma sofisticação metodológica ao exigir novos tratamentos para certos tipos de fontes. A segunda questão está na importância do pós-estruturalismo e seus sucedâneos na destruição de “velhas verdades engessadas”. No entanto, contribuíram negativamente para a perda da percepção global da sociedade latino-americana, de sua história e de suas relações com o resto do mundo. O afastamento epistemológico das abordagens holísticas e totalizantes fez diminuir o alcance das “teorias”, fragmentando-as. Por fim, a análise de Malerba indica a premência da democratização da produção e circulação de informações pelo ambiente acadêmico latino-americano para possibilitar a definição de nova agenda para os estudos históricos que atenda aos interesses de seus povos.

Se a proposta do autor não consegue iluminar todo amplo espaço que o título do livro alude, aceitemos o estímulo dado por Malerba a fim de que problematizemos as hipóteses e percepções lançadas, perscrutemos outros campos e a produção dos demais colegas latino-americanos. O importante é não perdermos de vista a abrangência dos estudos históricos, já que a carreira acadêmica nos conduz a questões cada vez mais reduzidas, descoladas muitas vezes do todo. Em razão disso, a leitura dessas sínteses é extremamente importante, não só para o estudante, mas para o próprio pesquisador experimentado que se preocupa em se ver (para se colocar) como integrante de uma disciplina em crise de crescimento.

Para finalizar essa resenha crítica, permito-me lançar quatro indicações suscitadas pela provocante leitura do ensaio. Como exemplos recentes da salutar dinâmica entre os historiadores latino-americanos, lembremo-nos do II Encontro da Rede Internacional Marc Bloch de Estudos Comparados em História (Porto Alegre, outubro de 2008) e do IX Congresso Internacional da Asociación de Historiadores Latinoamericanos y del Caribe (ADHILAC), em maio de 2010, na Colômbia. Esperanças de trocas fecundas, igualmente, estão focadas na nascente Universidade Federal da integração Latino-Americana (UNILA). Outro ponto está na possibilidade de pensarmos, desde já, a trajetória da historiografia latino- -americana na primeira década do século XXI. Somente no Brasil, além da irrigação nesses campos trabalhados por Malerba, tivemos a proliferação de novas “plantações”. Por exemplo, a quantidade de simpósios temáticos nos dois últimos encontros da Associação Nacional de História (ANPUH) é expressiva: 76 em 2007 e 85 em 2009.

Na visada historiográfica pós-muro, para além dos centros citados – Estados Unidos, França e Inglaterra – poderíamos ir além refletindo sobre a relação dos historiadores latino-americanos com os centros de pesquisa alemães e italianos através da pós-graduação e/ou crescente aumento das publicações aqui traduzidas. Por fim, reitero os esforços do professor e pesquisador Jurandir Malerba na problematização da historiografia contemporânea materializados, principalmente, em Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil (MALERBA 2006b), A história escrita (MALERBA 2006c) e Historiografia contemporânea em perspectiva crítica (MALERBA; ROJAS 2007), ao lado dos quais este novo livro sobre a historiografia na América Latina passa a fulgurar.

Bibliografia

GUIMARÃES, L. M. P. Entrevista para Valdei Lopes de Araujo. História da historiografia, 3:237-258, Ouro Preto, set. 2009.

MALERBA, J.; ROJAS, C. A. (org.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: Edusc, 2007.

_____. Nuevas perspectivas y problemas. MARTINS, E. de R.; PEREZ BRIGNOLI, H. (org.). Teoría y metodología en la Historia de América Latina.

Madrid: Trotta, 2006a. p. 63-90. (Colección Unesco de Historia General de América Latina, v. 9) _____. Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil (c. 1980-2002). In: _____. (org.). A independência brasileira, novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006b. p. 19-52.

_____. (org.). A história escrita, teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006c.

Hugo Hruby Doutorando Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) [email protected] Rua Assunção, 395/101 Porto Alegre – RS 91050-130 Brasil.