DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (FU)

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos. São Paulo, Editora Unesp, 2017. Resenha de: CANDIOTTO, Cesar; OLIVEIRA, Jelson. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3, p.290-292, set./dez., 2019.DOMINGUES, Ivan.

O livro de Ivan Domingues é uma contribuição ímpar para a discussão em torno da formação da “filosofia brasileira”, aquilo que, grosso modo, envolve a existência de autores, de obras e leitores de temas brasileiros ou ligados ao Brasil. Seu horizonte de leitura não é a “narrativa” daquilo que tem acontecido desde o Brasil Colônia até os últimos 50 anos. Antes, ele é apresentado como uma “metafilosofia”, na extensão da natureza reflexiva da filosofia, autorizando-a a tomar a si mesma como objeto e fazer uma reflexão filosófica sobre a filosofia, uma filosofia da filosofia. O background da obra, como já destacou o professor Oswaldo Giacoia Jr., em resenha recente da obra3, é a atuação acadêmica de Ivan na área de Filosofia, algo que não lhe dá apenas legitimidade para escrever o que escreve do jeito como escreve, mas, sobretudo, conhecimento e vigor argumentativo para recontar a história não na perspectiva do passado, mas com os interesses próprios de nosso tempo. Porque conhece de dentro, Ivan pode relatar o pensamento de forma viva e fecunda. Para contar a história, ele suja as mãos, por assim dizer: contamina-se da história, situa-se nela, sai do texto contagiado por ele, tanto quanto nós, seus leitores, empurrados para o pensamento a respeito das perspectivas e para as perguntas sobre o futuro disso que é a tarefa da filosofia em nosso país. Trata-se de uma empreitada que aproxima o epistemólogo do genealogista que se deixa azeitar pela riqueza argumentativa de sua própria trajetória filosófica, cuja pergunta inicial, como é praxe nesses casos, diz respeito à possibilidade e oportunidade de seu objeto: existiria, afinal, uma filosofia no Brasil? E, em caso positivo, qual a sua identidade?

Tal questão ganha renovada importância quando temos em conta a história de outras disciplinas das ciências humanas, como educação, antropologia, ciências sociais e políticas, cuja contribuição para a elaboração de um pensamento no Brasil (que é também, quase sempre, sobre o Brasil) conta com nomes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda, entre tantos outros. Formular a interrogação, como faz Ivan, sobre a filosofia no Brasil, por isso, é colocar-se diante da história como quem olha para as raízes de uma árvore florescida, adivinhando seus frutos, para depois, como Ferreira Gullar, ver que “cresce no fruto/ A árvore nova”.

O objeto principal da obra é a filosofia brasileira, ou, especialmente, o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil que justifique a adjetivação brasileira. Trata-se de uma tentativa exitosa de imprimir às reflexões empreendidas a forma do ensaio filosófico. Fazer filosofia como ensaio e não como narrativa envolve fazer uso da argumentação cuidadosa, da provisoriedade dos resultados, do pensamento não objetual e do risco da tentativa, que inclui erros e acertos. Nesse sentido, o livro segue os rastros metodológicos de Montaigne reafirmados na época contemporânea por Michel Foucault, para o qual a filosofia consiste no exercício do pensamento sobre si mesmo, sendo o ensaio a expressão literária maior desse exercício. Fiel à balança do tempo no qual ele mesmo se pesa, Ivan expressa seu pensamento na forma ensaística como quem recusa a conclusividade fácil, embora também recuse o caminho do meio. O resultado é que seu pensamento age por metástase, contagiando o leitor com o espírito da curiosidade e do interesse que Ivan aciona e pratica na sua melhor forma.

Se a filosofia é um exercício do pensamento, então se trata de sair dela mesma, para tratar sua tentativa de totalização do real. Nesse sentido, Ivan descarta a hegemonia de uma única filosofia sem abrir mão de anunciar linhas e tendências argumentativas, cujos fios servem para costurar a história do pensamento em solo nacional. Essa postura, contudo, implica abrir-se a outras maneiras de pensar, a outros domínios, tais como os da história e da sociologia. Todavia, as considerações históricas, assim também como as sociológicas, fazem parte da argumentação não como objeto de pesquisa, mas como meio e fonte. São fundamentais para a argumentação as considerações sobre a natureza da sociedade brasileira, entre seu passado colonial e o Brasil moderno, entre a sociedade agrário-oligárquica e a urbano-industrial. Tais perspectivas e considerações, contudo, cimentam a estratégia e comparecem no contexto geral da obra como para dar corpo ao desenvolvimento de uma problemática de ordem metafilosófica, que reconhece as condicionalidades nacionais como parte integrante de um pensamento enraizado nas experiências geográficas e históricas da racionalidade filosófica que apareceu na pena de pensadores como Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e tantos outros.

Para cumprir sua tarefa, Ivan Domingues apoia-se na linguística estrutural a partir de dois procedimentos: os métodos in praesentia e in absentia, sendo que o primeiro perscruta “os elementos empíricos e reais (sociológicos, históricos, políticos e culturais) denominados como positividades; e o segundo, os elementos abstratos – especulativos, ideais e virtuais –, voltados para a ordem das ideias ou do pensamento”. Em poucas palavras, trata-se de estabelecer o contraste entre o método histórico da praesentia e o método lógico ou dialético descolado do real empírico, porém considerado mais operativo para desenvolver o argumento. Outro método associado provém da lógica modal, cuja premissa são os chamados “tipos ideais” de Max Weber, a saber, “constructos mentais ou modelos teóricos” que se revelaram essenciais para vencer a opacidade do real empírico e trabalhar os diferentes tipos ou figuras de intelectuais a que o exercício da filosofia se viu ligado em diferentes épocas de sua formação histórica.

Assim, o livro se desenvolve a partir desse eixo metafilosófico e, complementarmente, de uma tentativa de recontar a história intelectual brasileira a partir dos tipos ideais que o autor busca em Max Weber, para caracterizar os cinco intelectuais brasileiros no campo da filosofia, os quais servem muito bem para a compreensão das etapas históricas que orientaram a filosofia brasileira até nossos dias. Tal intuição, revestida de capacidade sintética e, ao mesmo tempo, quase metafórica, oxigena a obra com fecundo e instigante ineditismo interpretativo.

Dessa maneira, a estrutura do livro é delineada a partir de seis passos: [1] o argumento metafilosófico, que acabamos de sumarizar; [2] o passado colonial e seus legados: temos aí o tipo ideal do intelectual orgânico na igreja; [3] Independência, império e república velha: o intelectual estrangeirado; [4] os anos 1930-1960: a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores (departamento de ultramar), a transplantação do scholar e o humanismo intelectual público; [5] os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos ligados aos partidos e às questões nacionais; [6] conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado.

A partir dessa estrutura, o autor situa a atividade filosófica na tensão entre dois aspectos que se complementam entre si: de um lado, essa atividade é uma techné, para não dizer um métier, composto pelo desenvolvimento de certas habilidades e competências, a frequentação e o trabalho dos textos. Pensada desta maneira, a atividade filosófica seria semelhante à do scholar, enfocado na exegese e na história da filosofia, e, nesse sentido, ela não seria diferente de outras áreas, como a da filologia e a da história. De outro lado, a atividade filosófica é um ethos, a saber, uma atividade reflexiva e questionadora da realidade, quando deixa de manter com o real e o empírico a mesma atitude reverencial da ciência. O ethos é o gosto pela discussão, pelo cultivo do espírito crítico, experimental e intuitivo, e, nesse sentido, podemos dizer que a alma desse livro, além de outros elementos importantes, é pensar a questão do ethos do filósofo ou do intelectual brasileiro.

Como se trata de uma tentativa de pensar os legados e perspectivas da filosofia brasileira, o ensaio aposta na estratégia do “paradigma de formação” para identificar o legado e da “pós-formação” para vaticinar as perspectivas. Nesse sentido, Filosofia no Brasil segue os passos dos chamados “pensadores do Brasil” (atente-se que não se trata dos “filósofos do Brasil”), como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Cândido, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Arantes (e est a lista poderia continuar), que evocam em seus títulos e subtítulos esse paradigma da formação.

Para quem conhece outros trabalhos de Ivan Domingues, est e livro é a continuidade de O continente e a Ilha, no qual ele elabora um contraste entre a filosofia continental europeia e a filosofia anglo-saxã, uma mais voltada para a história da filosofia, outra mais próxima da filosofia analítica. Essa dupla face europeia tem tido repercussões na filosofia no Brasil, entre, de um lado, os chamados analíticos e, de outro, aqueles mais dedicados à filosofia e sua história. Filosofia no Brasil indica a fragilidade dessas grandes distinções, mostrando que, mesmo na tradição franco-alemã, há dois caminhos: o de Hegel, que privilegia uma perspectiva histórico-sistemática (“fazer história da filosofia”, como já encontramos em Cassirer), e outra de Foucault, para o qual fazer filosofia é apostar no ensaio, no fragmento e em um canteiro de obras.

A tensão proposta e desenvolvida por Domingues, assim, dá bons frutos, porque na medida em que lê o livro, o leitor situa-se no campo das interdisciplinaridades sem tirar um pé das características filosóficas propriamente ditas, compreendendo a intelligentsia brasileira como um produto controverso e tensional, para o qual pouca gente se dirigiu com a coragem de Ivan, dados os desconfortos que mais intimidaram do que promoveram um debate tão necessário como o que, agora, esse livro evoca – destaque-se o “agora” que dá ao livro uma vocação inédita, mas, sobretudo, o situa no tempo que é o nosso, no qual a filosofia no Brasil se encontra com novos dilemas, ameaçada por antigas mordaças ressuscitadas por certa perseguição aos intelectuais e pelo culto à vulgaridade do pensar, corroído pela assimilação tendenciosa dos modernos meios de comunicação, pelas predisposições fanáticas, pela desinformação e pelas desverdades.

Um livro, assim, sobre a filosofia no Brasil não poderia chegar em hora mais apropriada, quando somos todos convidados a prestar nova atenção à realidade que nos cerca, seus recuos históricos, suas discursividades forjadas pela indústria da desinformação, sua hipérbole de emotivismo que forja e brame narrativas em busca de impacto (leia-se, “likes” e coisas do gênero), sua preguiça diante do pensamento crítico em benefício de um nefasto desejo de ordem, educação moral e cívica. Com seu livro, Ivan Domingues torna o problema novamente atual: de onde viemos e para onde vamos, como filósofos no Brasil? Uma pergunta que, assim, bem formulada, torna-se também deliberadamente perigosa, porque retoma o papel da filosofia como uma espécie de protesto contra a indiferença do pensar. É essa provocação visceral que o leitor dessa obra precisa aceitar, as novas gerações em especial.

Notas

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: [email protected].

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: jelson.oliveira2012@ gmail.com

3 Kriterion, Belo Horizonte, n.140, ago. 2018, p.631-636.

Cesar Candiotto – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

Jelson Oliveira – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia. Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (K)

DOMINGUES Ivan www ufmg br Filosofia no Brasil

DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Unesp, 2017. 561p. Resenha de: GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Kriterion vol.59 no.140 Belo Horizonte May/Aug. 2018.

Em Ivan Domingues um impecável ethos acadêmico transpõe-se também na esfera de sua atuação pública, intervindo no debate político e cultural, no exercício de cargos de representação, nos quais foi responsável por iniciativas decisivas, nos âmbitos do ensino, da pesquisa, da inovação e da extensão. Um protagonismo que levou à criação do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo, grupo interdisciplinar da Universidade Federal Minas Gerais que consolidou rica expertise em biotecnologias e regulações éticas, jurídicas e políticas; mas que também marcou as gestões de Ivan Domingues, que fizeram história, como coordenador de área do conhecimento em instituições como a CAPES e no CNPq. Justifico a recordação desses dados biográficos como necessidade para resgatar o pano de fundo biográfico, intelectual e institucional, de onde emerge a obra ora publicada – um sólido background essencialmente marcado pela epistemologia.

“Filosofia no Brasil” é uma obra em estrita afinação com a trajetória filosófica do autor, e Ivan Domingues não seria o epistemólogo que é, pioneiro entre nós no campo das relações entre filosofia e ciências humanas, se permanecesse num registro unicamente historiográfico. Em vez disso, fiel à sua formação acadêmica, Domingues sintetiza também nessa obra diferentes perspectivas interdisciplinares, consciente de que o problema da filosofia no Brasil se inicia pela problematização de sua própria existência e natureza, assim como por suspeições concernentes à sua relevância.

Em consonância com tais coordenadas, “Filosofia no Brasil” constitui-se num conjunto de ensaios reunindo legados e perspectivas a respeito de um objeto que o próprio livro ajuda a conformar: a filosofia tal como esta se atualizou no Brasil ao longo de uma história distendida do período colonial aos nossos dias. Trata-se de uma obra que se constrói a partir de um vértice metafilosófico, e que, portanto, de modo algum deve ser confundida com um livro de história da filosofia. Nele Ivan Domingues faz uso independente, criativo e teoricamente fecundo do recurso aos tipos ideais, cunhados na Sociologia por Max Weber, para caracterizar as diferentes modalidades nas quais e pelas quais uma racionalidade de tipo propriamente filosófico realizou-se diferencialmente no Brasil, sob a influência de condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais que vincam a realidade brasileira.

Firmada nas bases teóricas e metodológicas que dão sustentação à sua “Filosofia no Brasil”, o ducto argumentativo de Ivan Domingues deixa atrás de si os trilhos desgastados que até então determinaram os rumos nos quais o problema da existência de uma autêntica filosofia no Brasil foi (mal)entendido ao longo de décadas. Além e aquém da alternativa supostamente incontornável que opõe uma filosofia brasileira ou do Brasil a uma filosofia feita no Brasil – evitando a cilada consistente em assumir como ponto de partida da argumentação uma determinada concepção hegemônica de Filosofia, para então descartar a possibilidade de que haja ou tenha havido uma experiência filosófica genuinamente brasileira -, Domingues se esforça por reconstituir as distintas figuras de racionalidade filosófica que se tornaram historicamente efetivas entre nós, seja no quadro de uma sociedade com uma economia de tipo agrário-rural, seja na passagem desse tipo de organização socioeconômica para o modelo urbano-industrial de configuração. Tais mudanças deixam suas marcas nas modalidades diversas em que tem se realizado entre nós a experiência filosófica, e que Ivan Domingues reconstitui com um instrumentário metodológico que leva em conta a natureza da obra, bem como os vínculos que a ligam tanto com a dimensão de sua autoria, como a instância que a produz, assim como com o público ao qual é destinada.

Desse modo, cada um dos ensaios que compõem o livro é consagrado a um dos momentos marcantes da experiência sócio-histórico-econômica brasileira, no interior de cujos marcos culturais vem a configurar-se uma racionalidade filosófica específica – tipicamente brasileira -, que se expressa num ethos filosófico tipificador, a que Ivan Domingues faz corresponder também um tipo de ratio particular. Estes são os legados e perspectivas, reunidos, organizados e interpretados sob uma ótica metafilosófica, que apreende o que neles há de racionalidade filosófica, ao mesmo tempo idiossincrática, tipicamente brasileira, mas como modalização da universalidade própria da filosofia.

Trata-se, então, de ensaios tendo por eixo o cruzamento entre a metafilosofia e a história intelectual, a história da filosofia e a exegese filosófica como fonte, meio e ferramenta, não como tema, problema ou objeto. O verdadeiro objeto, ou o problema do livro, encontra-se situado na confluência entre duas vertentes: uma delas é, como já dito, a vertente metafilosófica, em grande parte lastreada nos embasamentos históricos da filosofia nacional, com recurso às obras de João Cruz Costa, Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e vários outros. A outra é a vertente da história intelectual, história de formação da intelligentia brasileira -dilatada ao longo do livro rumo à história social e cultural, acarretando a incorporação dos chamados pensadores do Brasil, e aqui os interlocutores privilegiados são Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, sem excluir a presença significativa de outras fontes científicas. Trata-se, portanto, de um cruzamento de perspectivas interdisciplinares, articuladas pelo labor rigoroso e metódico do epistemólogo experimentado.

O trabalho propriamente hermenêutico realizado no livro é estruturado com base numa hipótese axial: ela consiste em procurar a experiência filosófica e da intelectualidade lá onde tais experiências normalmente podem ser achadas, mais precisamente, onde elas se encontram objetificadas: a saber, nas instituições, nas revistas e nos livros, largamente evidenciada (a hipótese) no caso do intelectual orgânico da Igreja e do sistema de ensino dos jesuítas, assim como no caso do Scholar e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, além daquela extração enorme saída do Sistema Nacional de Pós-Graduação da CAPES e espalhada hoje por todo o país. Tudo isso, no entanto, sem preocupação de exclusividade, mas consciente da necessidade de manter-se aberto a outras possibilidades e variações, com a consequente exigência de introdução de complementos, contrapontos e hipóteses auxiliares ad hoc.

Com lastro nessas premissas, o recurso metodológico aos tipos ideais de Max Weber torna-se particularmente produtivo, ao permitir o delineamento meticuloso das figuras que constituem o âmago do livro, nas quais se combina tipificação abstrata e periodização histórica: [1] O clérigo colonial, ou o apostolado jesuítico, pautado pela ratio studiorum da Companhia de Jesus. Ao ethos da pedagogia jesuítica para o ensino da filosofia corresponde uma forma de ratio que é a do intelectual orgânico e da Colônia. [2] O intelectual estrangeirado do Império e da República Velha, cujo modelo é o diletante oriundo do universo do direito, e cuja ratio é marcada pelo estilo bacharelesco do intelectual oriundo das então denominadas ‘ciências jurídicas e sociais’, ou seja, do âmbito do Direito. [3] O intelectual do Brasil moderno, cujo modelo é o Scholar, e cuja ratio é haurida no estudo verticalizado e sistemático das obras dos pensadores matriciais da história da filosofia, tal como praticado no trabalho da Missão Francesa na Universidade de São Paulo, desde a fundação do Departamento de Filosofia da USP. A ratio assim constituída é instanciada, hoje, no Homo Qualis, bem como no Homo Lattes. [4] O filósofo profissional e público contemporâneo – fusão do erudito e do intelectual investido de uma missão política, cujas figuras mais emblemáticas na filosofia brasileira são José Arthur Giannotti, Marilena Chauí e Henrique Cláudio de Lima Vaz – o padre Vaz, tal como é mais conhecido. [5] Enfim, o filósofo cosmopolita globalizado, o polímata (de πολυµαθής – que aprendeu muito), o homo universalis, ou o pensador de largos horizontes – figura especulativa e sondagem do futuro.

Se, ao longo de seu percurso, “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas” vai construindo sua identidade diferencial em relação a um mero exercício de historiografia, nem por isso, no entanto, o livro deixa de lançar luzes sobre a história das perspectivas e legados de natureza filosófica que integram a história da intelectualidade brasileira. Por causa disso, o livro guarda um registro de suas parcerias e interlocuções, tanto expressas como tácitas, com segmentos próximos e distantes, como é particularmente o caso da “História da Filosofia do Brasil”, de Paulo Margutti. Por causa disso, Domingues também, de certo modo, coloca-se a questão da filosofia no e do Brasil, ou da filosofia brasileira. E esta, como sabemos, foi, nas últimas décadas, uma vexata quaestio, fortemente marcada por uma atmosfera intelectual de intensa hostilidade e aberto conflito – quase nunca bem formulado, jamais adequadamente compreendido em seus verdadeiros elementos.

Ora, justamente nessa seara, este último livro de Ivan Domingues é, a meu ver, a mais completa e meritória contribuição e o mais bem-sucedido resultado do esforço para formular o pensamento desse conflito, entendendo-se a palavra etimologicamente, como probállō, o ato de lançar ou colocar diante de si o que se tem como questão, assunto ou dificuldade, como condição para descobrir algumas vias de solução. Nesse sentido, “Filosofia no Brasil” marca um momento de enorme importância para a comunidade filosófica brasileira, e isso porque a obra inaugura um novo patamar sobre o qual pode situar-se o debate sobre a filosofia no Brasil, e coloca sólidos alicerces para uma autêntica autocompreensão dos avatares da racionalidade filosófica histórica, tal como realizada ao longo da história do Brasil, incluindo a adequada compreensão de seu presente, bem como com perspectivas abertas sobre o futuro.

Numa apresentação de seu próprio livro, Ivan Domingues comparou a literatura e a filosofia no Brasil, e, nessa comparação, formulou a questão: “a pergunta que fica, portanto, é se um dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Vale a pena refletir sobre essa pergunta à luz de uma outra contribuição notável de Ivan Domingues para a filosofia feita no Brasil. Com isso, chamo a atenção do leitor para a continuidade que existe entre este último livro de Domingues e o anterior: “O Continente e a Ilha”.

Com efeito, também em “O Continente e a Ilha” a operação teórica e metodológica de base consistia em sintetizar perspectivas interdisciplinares, com vigoroso lastro empírico, com o objetivo de encontrar, nessa síntese, um poderoso elemento auxiliar para a contextualização dos fatores determinantes da formação de tradições filosóficas, com seus respectivos estilos intelectuais. Tratava-se então, lá como aqui, de reconstituir um horizonte histórico que se oferecesse como lastro, como âmbito de emergência e matriz para certos tipos de racionalidade filosófica, num gesto que desativa preconceitos arraigados, que alimentam generalidades vagas e reforçam a exterioridade de polarizações irrefletidas, gerando fatores que tanto impedem a situação de verdadeiros problemas, quanto o controle das argumentações.

É assim que “O Continente e a Ilha” mapeia as trilhas da filosofia contemporânea, descobrindo os pontos de aproximação e contato, bem como os de afastamento e confrontação, entre as tradições insulares e continentais. Penso que “Filosofia no Brasil” se vale, e muito, do aprendizado haurido das experiências que conduziram ao livro anterior. Em “O Continente e a Ilha”, a conclusão apontava para a alternativa da “experiência existencial”, para evitar as reduções tanto do logicismo (da tradição analítica) quanto o historicismo (reconstruções contextuais) da hermenêutica continental. Em diálogo com Geroges Canguilhem, Ivan Domingues indicava o “espaço da reflexão” como o terreno próprio da filosofia. Por espaço da reflexão, o autor entende um espaço que é, ao mesmo tempo, existencial, real e virtual, e consiste em quadros abstratos e conceitualizáveis, que organizam ‘as coisas mesmas’, e que remetem sempre à experiência, sendo comparáveis, e, por causa disso, abertos ao diálogo e suscetíveis de discussão. Em “O Continente e a Ilha”, assim como em “Filosofia no Brasil”, avultam tanto os ensaios quanto a importância de remissões a Montaigne – para destacar a potência da imaginação e as virtudes do gênero filosófico-literário dos ensaios. Poderíamos adivinhar aqui uma aproximação entre dois epistemólogos que refletem sobre a tarefa da filosofia num momento particularmente crítico de sua história. Talvez essas duas obras de Domingues pudessem ser lidas como ensaios nascidos dessa condição atual de crise da filosofia.

Refiro-me aqui a um diálogo latente entre Ivan Domingues e Michel Foucault, já que ambos estão de pleno acordo quanto à importância do ensaio na presente atualidade da Filosofia. Tanto é assim que, a respeito do ensaio como gênero filosófico, Michel Foucault escreveu, no segundo volume da “História da Sexualidade 2: o Uso dos Prazeres” (p. 13), o seguinte:

Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O ‘ensaio’ – que é necessário entender com a experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não com a apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ‘ascese’, um exercido de si, no pensamento.1

Ora, sabemos que o ensaio como o corpo vivo da filosofia constitui, em Foucault, um legado que é caudatário, com toda certeza, de Montaigne, mas também remete a seu nietzscheanismo visceral. E o que acontece do lado de Ivan Domingues? Alguma coisa mudou, nesse sentido, do “Continente e a Ilha” para “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas. Ensaios Metafilosóficos” em relação ao presente e ao futuro da filosofia? Seria esse um vislumbre de resposta para a pergunta: será que um “dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Seria esta uma pista que nos remete a um contorno um pouco menos esmaecido desse horizonte por onde deverá transitar, no Brasil, o intelectual cosmopolita?

Referências

FOUCAULT, M. “História da Sexualidade 2: O uso dos Prazeres”. Trad. M. T. C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984. [ Links ]

Oswaldo Giacoia Junior – Universidade Estadual de Campinas. Campinas – SP – Brasil.