DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (FU)

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos. São Paulo, Editora Unesp, 2017. Resenha de: CANDIOTTO, Cesar; OLIVEIRA, Jelson. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3, p.290-292, set./dez., 2019.DOMINGUES, Ivan.

O livro de Ivan Domingues é uma contribuição ímpar para a discussão em torno da formação da “filosofia brasileira”, aquilo que, grosso modo, envolve a existência de autores, de obras e leitores de temas brasileiros ou ligados ao Brasil. Seu horizonte de leitura não é a “narrativa” daquilo que tem acontecido desde o Brasil Colônia até os últimos 50 anos. Antes, ele é apresentado como uma “metafilosofia”, na extensão da natureza reflexiva da filosofia, autorizando-a a tomar a si mesma como objeto e fazer uma reflexão filosófica sobre a filosofia, uma filosofia da filosofia. O background da obra, como já destacou o professor Oswaldo Giacoia Jr., em resenha recente da obra3, é a atuação acadêmica de Ivan na área de Filosofia, algo que não lhe dá apenas legitimidade para escrever o que escreve do jeito como escreve, mas, sobretudo, conhecimento e vigor argumentativo para recontar a história não na perspectiva do passado, mas com os interesses próprios de nosso tempo. Porque conhece de dentro, Ivan pode relatar o pensamento de forma viva e fecunda. Para contar a história, ele suja as mãos, por assim dizer: contamina-se da história, situa-se nela, sai do texto contagiado por ele, tanto quanto nós, seus leitores, empurrados para o pensamento a respeito das perspectivas e para as perguntas sobre o futuro disso que é a tarefa da filosofia em nosso país. Trata-se de uma empreitada que aproxima o epistemólogo do genealogista que se deixa azeitar pela riqueza argumentativa de sua própria trajetória filosófica, cuja pergunta inicial, como é praxe nesses casos, diz respeito à possibilidade e oportunidade de seu objeto: existiria, afinal, uma filosofia no Brasil? E, em caso positivo, qual a sua identidade?

Tal questão ganha renovada importância quando temos em conta a história de outras disciplinas das ciências humanas, como educação, antropologia, ciências sociais e políticas, cuja contribuição para a elaboração de um pensamento no Brasil (que é também, quase sempre, sobre o Brasil) conta com nomes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda, entre tantos outros. Formular a interrogação, como faz Ivan, sobre a filosofia no Brasil, por isso, é colocar-se diante da história como quem olha para as raízes de uma árvore florescida, adivinhando seus frutos, para depois, como Ferreira Gullar, ver que “cresce no fruto/ A árvore nova”.

O objeto principal da obra é a filosofia brasileira, ou, especialmente, o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil que justifique a adjetivação brasileira. Trata-se de uma tentativa exitosa de imprimir às reflexões empreendidas a forma do ensaio filosófico. Fazer filosofia como ensaio e não como narrativa envolve fazer uso da argumentação cuidadosa, da provisoriedade dos resultados, do pensamento não objetual e do risco da tentativa, que inclui erros e acertos. Nesse sentido, o livro segue os rastros metodológicos de Montaigne reafirmados na época contemporânea por Michel Foucault, para o qual a filosofia consiste no exercício do pensamento sobre si mesmo, sendo o ensaio a expressão literária maior desse exercício. Fiel à balança do tempo no qual ele mesmo se pesa, Ivan expressa seu pensamento na forma ensaística como quem recusa a conclusividade fácil, embora também recuse o caminho do meio. O resultado é que seu pensamento age por metástase, contagiando o leitor com o espírito da curiosidade e do interesse que Ivan aciona e pratica na sua melhor forma.

Se a filosofia é um exercício do pensamento, então se trata de sair dela mesma, para tratar sua tentativa de totalização do real. Nesse sentido, Ivan descarta a hegemonia de uma única filosofia sem abrir mão de anunciar linhas e tendências argumentativas, cujos fios servem para costurar a história do pensamento em solo nacional. Essa postura, contudo, implica abrir-se a outras maneiras de pensar, a outros domínios, tais como os da história e da sociologia. Todavia, as considerações históricas, assim também como as sociológicas, fazem parte da argumentação não como objeto de pesquisa, mas como meio e fonte. São fundamentais para a argumentação as considerações sobre a natureza da sociedade brasileira, entre seu passado colonial e o Brasil moderno, entre a sociedade agrário-oligárquica e a urbano-industrial. Tais perspectivas e considerações, contudo, cimentam a estratégia e comparecem no contexto geral da obra como para dar corpo ao desenvolvimento de uma problemática de ordem metafilosófica, que reconhece as condicionalidades nacionais como parte integrante de um pensamento enraizado nas experiências geográficas e históricas da racionalidade filosófica que apareceu na pena de pensadores como Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e tantos outros.

Para cumprir sua tarefa, Ivan Domingues apoia-se na linguística estrutural a partir de dois procedimentos: os métodos in praesentia e in absentia, sendo que o primeiro perscruta “os elementos empíricos e reais (sociológicos, históricos, políticos e culturais) denominados como positividades; e o segundo, os elementos abstratos – especulativos, ideais e virtuais –, voltados para a ordem das ideias ou do pensamento”. Em poucas palavras, trata-se de estabelecer o contraste entre o método histórico da praesentia e o método lógico ou dialético descolado do real empírico, porém considerado mais operativo para desenvolver o argumento. Outro método associado provém da lógica modal, cuja premissa são os chamados “tipos ideais” de Max Weber, a saber, “constructos mentais ou modelos teóricos” que se revelaram essenciais para vencer a opacidade do real empírico e trabalhar os diferentes tipos ou figuras de intelectuais a que o exercício da filosofia se viu ligado em diferentes épocas de sua formação histórica.

Assim, o livro se desenvolve a partir desse eixo metafilosófico e, complementarmente, de uma tentativa de recontar a história intelectual brasileira a partir dos tipos ideais que o autor busca em Max Weber, para caracterizar os cinco intelectuais brasileiros no campo da filosofia, os quais servem muito bem para a compreensão das etapas históricas que orientaram a filosofia brasileira até nossos dias. Tal intuição, revestida de capacidade sintética e, ao mesmo tempo, quase metafórica, oxigena a obra com fecundo e instigante ineditismo interpretativo.

Dessa maneira, a estrutura do livro é delineada a partir de seis passos: [1] o argumento metafilosófico, que acabamos de sumarizar; [2] o passado colonial e seus legados: temos aí o tipo ideal do intelectual orgânico na igreja; [3] Independência, império e república velha: o intelectual estrangeirado; [4] os anos 1930-1960: a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores (departamento de ultramar), a transplantação do scholar e o humanismo intelectual público; [5] os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos ligados aos partidos e às questões nacionais; [6] conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado.

A partir dessa estrutura, o autor situa a atividade filosófica na tensão entre dois aspectos que se complementam entre si: de um lado, essa atividade é uma techné, para não dizer um métier, composto pelo desenvolvimento de certas habilidades e competências, a frequentação e o trabalho dos textos. Pensada desta maneira, a atividade filosófica seria semelhante à do scholar, enfocado na exegese e na história da filosofia, e, nesse sentido, ela não seria diferente de outras áreas, como a da filologia e a da história. De outro lado, a atividade filosófica é um ethos, a saber, uma atividade reflexiva e questionadora da realidade, quando deixa de manter com o real e o empírico a mesma atitude reverencial da ciência. O ethos é o gosto pela discussão, pelo cultivo do espírito crítico, experimental e intuitivo, e, nesse sentido, podemos dizer que a alma desse livro, além de outros elementos importantes, é pensar a questão do ethos do filósofo ou do intelectual brasileiro.

Como se trata de uma tentativa de pensar os legados e perspectivas da filosofia brasileira, o ensaio aposta na estratégia do “paradigma de formação” para identificar o legado e da “pós-formação” para vaticinar as perspectivas. Nesse sentido, Filosofia no Brasil segue os passos dos chamados “pensadores do Brasil” (atente-se que não se trata dos “filósofos do Brasil”), como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Cândido, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Arantes (e est a lista poderia continuar), que evocam em seus títulos e subtítulos esse paradigma da formação.

Para quem conhece outros trabalhos de Ivan Domingues, est e livro é a continuidade de O continente e a Ilha, no qual ele elabora um contraste entre a filosofia continental europeia e a filosofia anglo-saxã, uma mais voltada para a história da filosofia, outra mais próxima da filosofia analítica. Essa dupla face europeia tem tido repercussões na filosofia no Brasil, entre, de um lado, os chamados analíticos e, de outro, aqueles mais dedicados à filosofia e sua história. Filosofia no Brasil indica a fragilidade dessas grandes distinções, mostrando que, mesmo na tradição franco-alemã, há dois caminhos: o de Hegel, que privilegia uma perspectiva histórico-sistemática (“fazer história da filosofia”, como já encontramos em Cassirer), e outra de Foucault, para o qual fazer filosofia é apostar no ensaio, no fragmento e em um canteiro de obras.

A tensão proposta e desenvolvida por Domingues, assim, dá bons frutos, porque na medida em que lê o livro, o leitor situa-se no campo das interdisciplinaridades sem tirar um pé das características filosóficas propriamente ditas, compreendendo a intelligentsia brasileira como um produto controverso e tensional, para o qual pouca gente se dirigiu com a coragem de Ivan, dados os desconfortos que mais intimidaram do que promoveram um debate tão necessário como o que, agora, esse livro evoca – destaque-se o “agora” que dá ao livro uma vocação inédita, mas, sobretudo, o situa no tempo que é o nosso, no qual a filosofia no Brasil se encontra com novos dilemas, ameaçada por antigas mordaças ressuscitadas por certa perseguição aos intelectuais e pelo culto à vulgaridade do pensar, corroído pela assimilação tendenciosa dos modernos meios de comunicação, pelas predisposições fanáticas, pela desinformação e pelas desverdades.

Um livro, assim, sobre a filosofia no Brasil não poderia chegar em hora mais apropriada, quando somos todos convidados a prestar nova atenção à realidade que nos cerca, seus recuos históricos, suas discursividades forjadas pela indústria da desinformação, sua hipérbole de emotivismo que forja e brame narrativas em busca de impacto (leia-se, “likes” e coisas do gênero), sua preguiça diante do pensamento crítico em benefício de um nefasto desejo de ordem, educação moral e cívica. Com seu livro, Ivan Domingues torna o problema novamente atual: de onde viemos e para onde vamos, como filósofos no Brasil? Uma pergunta que, assim, bem formulada, torna-se também deliberadamente perigosa, porque retoma o papel da filosofia como uma espécie de protesto contra a indiferença do pensar. É essa provocação visceral que o leitor dessa obra precisa aceitar, as novas gerações em especial.

Notas

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: [email protected].

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: jelson.oliveira2012@ gmail.com

3 Kriterion, Belo Horizonte, n.140, ago. 2018, p.631-636.

Cesar Candiotto – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

Jelson Oliveira – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia. Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (RFA)

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora da Unesp, 2017. Resenha de: PERINE, Marcelo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.30, n.50, p.540-546, maio/ago., 2018.

Um livro de filosofia apresenta especiais dificuldades para ser resenhado porque, segundo Eric Weil, ele só se torna plenamente compreensível na segunda leitura. Resenhar, após a primeira leitura, um livro de filosofia comum segundo subtítulo de ensaios metafilosóficos é particularmente difícil, a começar pelo seu enquadramento no gênero ensaio. Dicionarizado na rubrica literatura, o ensaio é definido no Aurélio como “prosa livre que versa sobre tema específico, sem esgotá-lo, reunindo dissertações menores, menos definitivas que as de um tratado formal, feito em profundidade”. A definição não se aplica rigorosamente aos seis passos que compõem o livro em pauta. Com efeito, a sua prosa, embora verse sobre um tema específico, não é uma prosa livre, mas firmemente atada ao propósito demonstrativo que caracterizou o discurso filosófico desde as suas origens gregas. É verdade que o autor não pretende esgotar o tema vastíssimo expresso no título do livro. O primeiro subtítulo o atesta: legado é, ao mesmo tempo, algo que se recebe e que se transmite; perspectiva é um modo de ver até onde os olhos alcançam, é uma prospectiva, mas é também um sentimento de esperança, uma expectativa. Ademais, o volume reúne dissertações de diferentes dimensões, que não alimentam a pretensão de serem definitivas, como podem ser os tratados formais em alguns campos do saber. A decisão de imprimir às suas reflexões a forma do ensaio filosófico permitiu ao autor escolher “a provisoriedade dos resultados, a aventura do pensamento não objetual e a abertura de picadas ou de caminhos das tentativas, pois ensaiar é tentar, como viu Montaigne, que o inaugurou em filosofia” (p. 2). A escolha se revelou acertada, pois em filosofia a profundidade não se mede pela extensão. Um aforismo de Heráclito é infinitamente mais profundo do que carradas de razões que pululam no tom superior que recentemente ecoou de novo na filosofia, para falar como Kant.

Mas os legados e perspectivas da reflexão sobre o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil se apresentam na forma de ensaios metafilosóficos. Estamos, portanto, diante de um livro de filosofia da filosofia no Brasil, o que acrescenta um segundo nível de dificuldade ao resenhista de primeira leitura, pela eventual necessidade de uma terceira leitura. Não foi o caso! A legitimidade da primeira leitura foi assegurada pelo próprio autor: “[…] entendo que ninguém em filosofia está obrigado a fazer história da filosofia nem a se livrar dela para fazer a verdadeira filosofia: simplesmente, cada um de nós pode tentar ser ‘filósofo por sua conta’, procurando as mais diferentes companhias […]” (p. 28). A senha dada pelo autor autoriza tanto a diversidade de leituras filosóficas como as diferentes perspectivas de compreensão dos legados da história intelectual do Brasil, que é também a história dos intelectuais no Brasil, como parte do grande mosaico da história da cultura, das ideias e da filosofia.

O livro não é de exegese filosófica, nem de historiografia da filosofia. Se algo se pode apreender já na primeira leitura é que o exercício metafilosófico do autor, mesmo tendo percorrido e recorrido ao fio do tempo cronológico para evidenciar legados e ensaiar perspectivas, se configurou como o exercício de escolher aqueles antepassados que lhe permitissem compreender o exercício da filosofia no Brasil. Sem ter a veleidade de “capturar tudo do real empírico e da nossa história”, o interesse do autor pela história produziu “um livro de ensaios sobre as diferentes experiências do filosofar em nossas terras”. A história, portanto, foi tomada pelo autor como “meio e fonte, não como objeto ou objetivo da pesquisa” (p. 3 et seq.).

Seis ensaios filosóficos compõem o livro, “dispostos em passos argumentativos com unidade temática”, dedicando-se o primeiro ao:

delineamento do argumento metafilosófico da filosofia nacional e seus recortes temporais, em que o propósito dos ensaios é debatido e a metodologia justificada, e consagrando-se os cinco restantes a cada um dos recortes e seus temas específicos, em que o núcleo duro da argumentação é apresentado e desenvolvido (p. 10).

O segundo passo analisa “o passado colonial e seus legados: o intelectual orgânico da Igreja”, cujo modelo ou tipo, em sentido quase-weberiano, é o Pe. Antônio Vieira. A necessidade de fornecer o contexto social mais amplo, apoiado em autoridades como Serafim Leite, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, produziu o ensaio mais longo (137 páginas) e mais documentado do volume. O terceiro passo, “Independência, Império e República Velha: o intelectual estrangeirado”, é o segundo em extensão (125 páginas), também amplamente documentado a partir dos autores de referência já citados, aos quais se acrescentam Raymundo Faoro e Celso Furtado, entre outros, e, no que se refere à filosofia e à história das ideias no Brasil, particularmente Cruz Costa. Os intelectuais estrangeirados que tipificam o período são Joaquim Nabuco, Bonifácio de Andrada, Ruy Barbosa e Euclides da Cunha e, na filosofia, Tobias Barreto.

A partir do quarto passo — “Os anos 1930-1960 e a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores, a transplantação do scholar e do humanista intelectual público” — a reflexão do autor perde em extensão (94 páginas), mas ganha em acuidade. O ensaio mostra que o verdadeiro começo da filosofia autônoma no Brasil está ancorado na instauração de um aparato institucional em diferentes níveis: a criação de universidades públicas reais, não apenas nominais, como foi a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, mais tarde renomeada Universidade do Brasil (1937); de universidades católicas, sendo pioneira a PUC-Rio, fundada pelos jesuítas sob a liderança do Pe. Leonel Franca em 1941; de institutos de estudos e pesquisas, como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), criado em 1954; de revistas filosóficas, como a pioneiríssima Kriterion, da UFMG, fundada em 1947 por Arthur Versiani Vellôso, seguida da Revista Brasileira de Filosofia, fundada em 1951 por Miguel Reale, no âmbito do Instituto Brasileiro de Filosofia, assim como a criação de órgãos federais de fomento como a CAPES e o CNPq em 1951, cujos efeitos se mostrarão notórios no próximo passo/ensaio.

Esse período, com sua “galeria de heróis-fundadores” (p. 398), forjou duas novas figuras intelectuais. Amparado no conhecido estudo de Paulo Arantes, o autor desenha a primeira como a do scholar/erudito, gerado pela atuação da Missão Francesa que fez da Faculdade de Filosofia da USP um “Departamento francês de ultramar”. Aproveito a ocasião para sinalizar ao leitor que, ao exemplificar o que seria o erudito virtuose especialista atual na filosofia (p. 416), há uma informação equivocada sobre Francisco Benjamin de Souza Netto, conhecido como Dom Estevão: o ano de seu nascimento é 1937 e até o momento está vivo, embora com a saúde muito debilitada. A segunda figura da intelligentsia brasileira nesse período é a do humanista intelectual público. O autor afirma que “O único filósofo candidato a filósofo brasileiro e intelectual público nos anos 1930-1960 é, no entender de muitos, Álvaro Vieira Pinto” (p. 423). Sobre a controvertida figura do “chefe do departamento de filosofia do Iseb”, que “colocou a filosofia a serviço do projeto nacional-desenvolvimentista” (p. 427), o autor observa que, já no primeiro passo/ensaio do livro em pauta, procurou “remediar a recepção de Álvaro Vieira Pinto, reconhecendo a dureza e a ingratidão de seus pares, além da relevância de suas posteriores contribuições importantes para a inteligência nacional, longe do Iseb, no campo da filosofia da tecnologia” (p. 426). No final do ensaio o autor dá o passo ao quinto passo/ensaio da obra, afirmando que “como no caso do scholar brasileiro, será preciso esperar pelos anos 1960-1970 para que o intelectual público entrasse em cena” (p. 427).

A tarefa do quinto passo/ensaio — “Os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos” — foi realizada com ainda maior concisão pelo autor. Em 72 densas páginas, partindo da grande virada dos anos 1960, quando “a filosofia brasileira finalmente ganha autonomia”, e “diante do fato novo de se estar diante de uma positividade — o sistema de obras filosóficas — e a necessidade de interpretá-la com as lentes e as ferramentas da filosofia”, o autor se vê obrigado a “introduzir algumas modificações no esquema até agora desenvolvido (p. 431). A primeira delas é que o foco não será mais a criação do arcabouço institucional da filosofia, mas a implantação do sistema nacional de pós-graduação por obra da Capes nos anos 1970. Em segundo lugar, a análise comparativa não será mais com as ciências humanas e sociais, mas da filosofia consigo mesma, destacando as mudanças qualitativas e de escala. Não se falará mais de heróis-fundadores, com a única exceção de Oswaldo Porchat (p. 466 et seq.), mas de virtuoses de ofício e, finalmente, “mantido o tema da paisagem filosófica, das matrizes de pensamento e dos principais nomes”, o autor se arriscará a justificar a escolha de três nomes, a saber, Giannotti, Marilena Chaui e padre Vaz, “que lograram ocupar o espaço público ou a cena pública, ao se transformarem em verdadeiros intelectuais públicos” (p. 432).

Permito-me aqui chamar a atenção para uma ausência no elenco de nomes que ilustram as seis “matrizes de pensamento” dos últimos 50 anos, propostas pelo autor (epistemológica, metafísica, histórico-filosófica, exegética, ético-política e cultural). Na matriz exegética, cujos exemplos são José Henrique Santos sobre Hegel, Raul Landim sobre São Tomás e Descartes, Marilena Chaui sobre Espinosa, Ernildo Stein sobre Heidegger, junto com Franklin Leopoldo e seus trabalhos sobre filosofia francesa, Paulo Margutti e seus estudos sobre Wittgenstein, Roberto Machado sobre Foucault e Deleuze, Giacoia e Scarlett sobre Nietzsche e Porchat sobre o ceticismo, penso que seria fazer justiça a Luís Alberto de Boni e a Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, nomeá-los também nesta matriz em reconhecimento ao pioneirismo que exerceram no campo dos estudos de filosofia medieval no Brasil. Carlos Arthur foi, provavelmente, o primeiro brasileiro a obter um PhD em Sciences Médiévales, em 1976, pelo Instituto de Estudos Medievais da Universidade de Montreal no Canadá, e destacou-se em nossa academia não só pela exegese de textos de Tomás de Aquino, Roger Bacon e Galileu, mas também por notáveis traduções de autores medievais. De Boni, doutor em teologia pela Universidade de Münster, sob a orientação do renomado teólogo Johann Baptist Metz, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval e, junto com Carlos Arthur, é dos principais promotores dos estudos filosóficos medievais no Brasil.

Seria ocioso desvelar aqui os fatos e as razões pelos quais o autor indicou padre Vaz, Giannotti e Marilena Chaui como filósofos brasileiros que souberam “unir as perspectivas da ação e do intelecto”, pelos quais a filosofia é levada ao máximo de suas possibilidades como experiência e elaboração da cultura, e por isso mesmo poderá lograr o máximo de relevância social e mesmo política, com todos os riscos que a ação pública comporta para o trabalho intelectual – inclusive a traição da filosofia e o suicídio do intelecto (p. 432).

Com essa instigante sugestão, remeto o leitor às páginas 481-492 em que os fatos e as razões são expostos. Faço uma única observação a essas páginas: quando se desenha, com muita precisão, o perfil de Marilena Chaui como exemplo do intelectual público brasileiro, faltou uma referência ao período em que ela foi Secretária de Cultura do município de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). A menção a esse dado da biografia política da filósofa serviria apenas para, como se dizia antigamente, confirmar o sobredito com mais um exemplo!

O sexto e último passo/ensaio quase deixa transparecer a exaustão do autor após o gigantesco esforço analítico dispendido até então. Em 46 páginas opera uma espécie de sondagem do futuro intitulada “Conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado”. O final do percurso revela que todo o esforço do autor “consistiu em estender para a filosofia o paradigma da formação já em largo uso pelos historiadores, economistas, sociólogos e críticos literários” (p. 506). As conquistas “podem não ter sido muitas ou espetaculares” (p. 511), mas as perspectivas apontam para uma figura de intelectual cosmopolita e globalizado, tipo ideal ainda em construção na filosofia brasileira, cujos traços seriam: [1] “o ascetismo intramundano”, que tem o mundo como campo de ação; [2] “o criticismo” que tem “como aguilhão o sentimento de desconforto provocado por um duplo inconformismo: diante dos males do mundo e diante dos males de seu país”, [3] “a renúncia ao pessoal e aos interesses particulares em favor do engajamento nas causas sociais e coletivas”, [4] “a eleição ou o descortinamento […] da esfera da cultura como campo de ação e de embate do intelectual, tendo como âmbito virtualmente todo o planeta” (p. 548). Segundo o autor, o único brasileiro que cristalizou esse tipo de intelectual foi Machado de Assis. Os seis ensaios metafilosóficos se concluem com uma pergunta que é um desafio e um programa para a filosofia no Brasil: “se já o temos ou tivemos em literatura e em artes, por que não na filosofia e com uma mente privilegiada nascida nestes cantos?” (p. 549).

Tenho informações de que o livro já está sendo preparado para uma segunda edição. Por isso é desnecessário indicar pequenos deslizes de revisão, quase inevitáveis em obra de tal extensão, que certamente serão corrigidos. Para mim, a qualidade da obra e sua inestimável contribuição para a nossa bibliografia filosófica são frutos maduros de um pensador ao qual se pode atribuir a mesma ousadia que ele atribuiu aos experts e aos scholars nesta obra: a ousadia de “correr o risco do pensamento: o risco de pensar, de comparar e de falhar — coisa que ainda nos ameaça e que desde os tempos coloniais nos deixa paralisados e com a mente servilizada” (p. 36).

Marcelo Perine – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Filosofia. E-mail: [email protected]

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Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (K)

DOMINGUES Ivan www ufmg br Filosofia no Brasil

DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Unesp, 2017. 561p. Resenha de: GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Kriterion vol.59 no.140 Belo Horizonte May/Aug. 2018.

Em Ivan Domingues um impecável ethos acadêmico transpõe-se também na esfera de sua atuação pública, intervindo no debate político e cultural, no exercício de cargos de representação, nos quais foi responsável por iniciativas decisivas, nos âmbitos do ensino, da pesquisa, da inovação e da extensão. Um protagonismo que levou à criação do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo, grupo interdisciplinar da Universidade Federal Minas Gerais que consolidou rica expertise em biotecnologias e regulações éticas, jurídicas e políticas; mas que também marcou as gestões de Ivan Domingues, que fizeram história, como coordenador de área do conhecimento em instituições como a CAPES e no CNPq. Justifico a recordação desses dados biográficos como necessidade para resgatar o pano de fundo biográfico, intelectual e institucional, de onde emerge a obra ora publicada – um sólido background essencialmente marcado pela epistemologia.

“Filosofia no Brasil” é uma obra em estrita afinação com a trajetória filosófica do autor, e Ivan Domingues não seria o epistemólogo que é, pioneiro entre nós no campo das relações entre filosofia e ciências humanas, se permanecesse num registro unicamente historiográfico. Em vez disso, fiel à sua formação acadêmica, Domingues sintetiza também nessa obra diferentes perspectivas interdisciplinares, consciente de que o problema da filosofia no Brasil se inicia pela problematização de sua própria existência e natureza, assim como por suspeições concernentes à sua relevância.

Em consonância com tais coordenadas, “Filosofia no Brasil” constitui-se num conjunto de ensaios reunindo legados e perspectivas a respeito de um objeto que o próprio livro ajuda a conformar: a filosofia tal como esta se atualizou no Brasil ao longo de uma história distendida do período colonial aos nossos dias. Trata-se de uma obra que se constrói a partir de um vértice metafilosófico, e que, portanto, de modo algum deve ser confundida com um livro de história da filosofia. Nele Ivan Domingues faz uso independente, criativo e teoricamente fecundo do recurso aos tipos ideais, cunhados na Sociologia por Max Weber, para caracterizar as diferentes modalidades nas quais e pelas quais uma racionalidade de tipo propriamente filosófico realizou-se diferencialmente no Brasil, sob a influência de condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais que vincam a realidade brasileira.

Firmada nas bases teóricas e metodológicas que dão sustentação à sua “Filosofia no Brasil”, o ducto argumentativo de Ivan Domingues deixa atrás de si os trilhos desgastados que até então determinaram os rumos nos quais o problema da existência de uma autêntica filosofia no Brasil foi (mal)entendido ao longo de décadas. Além e aquém da alternativa supostamente incontornável que opõe uma filosofia brasileira ou do Brasil a uma filosofia feita no Brasil – evitando a cilada consistente em assumir como ponto de partida da argumentação uma determinada concepção hegemônica de Filosofia, para então descartar a possibilidade de que haja ou tenha havido uma experiência filosófica genuinamente brasileira -, Domingues se esforça por reconstituir as distintas figuras de racionalidade filosófica que se tornaram historicamente efetivas entre nós, seja no quadro de uma sociedade com uma economia de tipo agrário-rural, seja na passagem desse tipo de organização socioeconômica para o modelo urbano-industrial de configuração. Tais mudanças deixam suas marcas nas modalidades diversas em que tem se realizado entre nós a experiência filosófica, e que Ivan Domingues reconstitui com um instrumentário metodológico que leva em conta a natureza da obra, bem como os vínculos que a ligam tanto com a dimensão de sua autoria, como a instância que a produz, assim como com o público ao qual é destinada.

Desse modo, cada um dos ensaios que compõem o livro é consagrado a um dos momentos marcantes da experiência sócio-histórico-econômica brasileira, no interior de cujos marcos culturais vem a configurar-se uma racionalidade filosófica específica – tipicamente brasileira -, que se expressa num ethos filosófico tipificador, a que Ivan Domingues faz corresponder também um tipo de ratio particular. Estes são os legados e perspectivas, reunidos, organizados e interpretados sob uma ótica metafilosófica, que apreende o que neles há de racionalidade filosófica, ao mesmo tempo idiossincrática, tipicamente brasileira, mas como modalização da universalidade própria da filosofia.

Trata-se, então, de ensaios tendo por eixo o cruzamento entre a metafilosofia e a história intelectual, a história da filosofia e a exegese filosófica como fonte, meio e ferramenta, não como tema, problema ou objeto. O verdadeiro objeto, ou o problema do livro, encontra-se situado na confluência entre duas vertentes: uma delas é, como já dito, a vertente metafilosófica, em grande parte lastreada nos embasamentos históricos da filosofia nacional, com recurso às obras de João Cruz Costa, Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e vários outros. A outra é a vertente da história intelectual, história de formação da intelligentia brasileira -dilatada ao longo do livro rumo à história social e cultural, acarretando a incorporação dos chamados pensadores do Brasil, e aqui os interlocutores privilegiados são Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, sem excluir a presença significativa de outras fontes científicas. Trata-se, portanto, de um cruzamento de perspectivas interdisciplinares, articuladas pelo labor rigoroso e metódico do epistemólogo experimentado.

O trabalho propriamente hermenêutico realizado no livro é estruturado com base numa hipótese axial: ela consiste em procurar a experiência filosófica e da intelectualidade lá onde tais experiências normalmente podem ser achadas, mais precisamente, onde elas se encontram objetificadas: a saber, nas instituições, nas revistas e nos livros, largamente evidenciada (a hipótese) no caso do intelectual orgânico da Igreja e do sistema de ensino dos jesuítas, assim como no caso do Scholar e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, além daquela extração enorme saída do Sistema Nacional de Pós-Graduação da CAPES e espalhada hoje por todo o país. Tudo isso, no entanto, sem preocupação de exclusividade, mas consciente da necessidade de manter-se aberto a outras possibilidades e variações, com a consequente exigência de introdução de complementos, contrapontos e hipóteses auxiliares ad hoc.

Com lastro nessas premissas, o recurso metodológico aos tipos ideais de Max Weber torna-se particularmente produtivo, ao permitir o delineamento meticuloso das figuras que constituem o âmago do livro, nas quais se combina tipificação abstrata e periodização histórica: [1] O clérigo colonial, ou o apostolado jesuítico, pautado pela ratio studiorum da Companhia de Jesus. Ao ethos da pedagogia jesuítica para o ensino da filosofia corresponde uma forma de ratio que é a do intelectual orgânico e da Colônia. [2] O intelectual estrangeirado do Império e da República Velha, cujo modelo é o diletante oriundo do universo do direito, e cuja ratio é marcada pelo estilo bacharelesco do intelectual oriundo das então denominadas ‘ciências jurídicas e sociais’, ou seja, do âmbito do Direito. [3] O intelectual do Brasil moderno, cujo modelo é o Scholar, e cuja ratio é haurida no estudo verticalizado e sistemático das obras dos pensadores matriciais da história da filosofia, tal como praticado no trabalho da Missão Francesa na Universidade de São Paulo, desde a fundação do Departamento de Filosofia da USP. A ratio assim constituída é instanciada, hoje, no Homo Qualis, bem como no Homo Lattes. [4] O filósofo profissional e público contemporâneo – fusão do erudito e do intelectual investido de uma missão política, cujas figuras mais emblemáticas na filosofia brasileira são José Arthur Giannotti, Marilena Chauí e Henrique Cláudio de Lima Vaz – o padre Vaz, tal como é mais conhecido. [5] Enfim, o filósofo cosmopolita globalizado, o polímata (de πολυµαθής – que aprendeu muito), o homo universalis, ou o pensador de largos horizontes – figura especulativa e sondagem do futuro.

Se, ao longo de seu percurso, “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas” vai construindo sua identidade diferencial em relação a um mero exercício de historiografia, nem por isso, no entanto, o livro deixa de lançar luzes sobre a história das perspectivas e legados de natureza filosófica que integram a história da intelectualidade brasileira. Por causa disso, o livro guarda um registro de suas parcerias e interlocuções, tanto expressas como tácitas, com segmentos próximos e distantes, como é particularmente o caso da “História da Filosofia do Brasil”, de Paulo Margutti. Por causa disso, Domingues também, de certo modo, coloca-se a questão da filosofia no e do Brasil, ou da filosofia brasileira. E esta, como sabemos, foi, nas últimas décadas, uma vexata quaestio, fortemente marcada por uma atmosfera intelectual de intensa hostilidade e aberto conflito – quase nunca bem formulado, jamais adequadamente compreendido em seus verdadeiros elementos.

Ora, justamente nessa seara, este último livro de Ivan Domingues é, a meu ver, a mais completa e meritória contribuição e o mais bem-sucedido resultado do esforço para formular o pensamento desse conflito, entendendo-se a palavra etimologicamente, como probállō, o ato de lançar ou colocar diante de si o que se tem como questão, assunto ou dificuldade, como condição para descobrir algumas vias de solução. Nesse sentido, “Filosofia no Brasil” marca um momento de enorme importância para a comunidade filosófica brasileira, e isso porque a obra inaugura um novo patamar sobre o qual pode situar-se o debate sobre a filosofia no Brasil, e coloca sólidos alicerces para uma autêntica autocompreensão dos avatares da racionalidade filosófica histórica, tal como realizada ao longo da história do Brasil, incluindo a adequada compreensão de seu presente, bem como com perspectivas abertas sobre o futuro.

Numa apresentação de seu próprio livro, Ivan Domingues comparou a literatura e a filosofia no Brasil, e, nessa comparação, formulou a questão: “a pergunta que fica, portanto, é se um dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Vale a pena refletir sobre essa pergunta à luz de uma outra contribuição notável de Ivan Domingues para a filosofia feita no Brasil. Com isso, chamo a atenção do leitor para a continuidade que existe entre este último livro de Domingues e o anterior: “O Continente e a Ilha”.

Com efeito, também em “O Continente e a Ilha” a operação teórica e metodológica de base consistia em sintetizar perspectivas interdisciplinares, com vigoroso lastro empírico, com o objetivo de encontrar, nessa síntese, um poderoso elemento auxiliar para a contextualização dos fatores determinantes da formação de tradições filosóficas, com seus respectivos estilos intelectuais. Tratava-se então, lá como aqui, de reconstituir um horizonte histórico que se oferecesse como lastro, como âmbito de emergência e matriz para certos tipos de racionalidade filosófica, num gesto que desativa preconceitos arraigados, que alimentam generalidades vagas e reforçam a exterioridade de polarizações irrefletidas, gerando fatores que tanto impedem a situação de verdadeiros problemas, quanto o controle das argumentações.

É assim que “O Continente e a Ilha” mapeia as trilhas da filosofia contemporânea, descobrindo os pontos de aproximação e contato, bem como os de afastamento e confrontação, entre as tradições insulares e continentais. Penso que “Filosofia no Brasil” se vale, e muito, do aprendizado haurido das experiências que conduziram ao livro anterior. Em “O Continente e a Ilha”, a conclusão apontava para a alternativa da “experiência existencial”, para evitar as reduções tanto do logicismo (da tradição analítica) quanto o historicismo (reconstruções contextuais) da hermenêutica continental. Em diálogo com Geroges Canguilhem, Ivan Domingues indicava o “espaço da reflexão” como o terreno próprio da filosofia. Por espaço da reflexão, o autor entende um espaço que é, ao mesmo tempo, existencial, real e virtual, e consiste em quadros abstratos e conceitualizáveis, que organizam ‘as coisas mesmas’, e que remetem sempre à experiência, sendo comparáveis, e, por causa disso, abertos ao diálogo e suscetíveis de discussão. Em “O Continente e a Ilha”, assim como em “Filosofia no Brasil”, avultam tanto os ensaios quanto a importância de remissões a Montaigne – para destacar a potência da imaginação e as virtudes do gênero filosófico-literário dos ensaios. Poderíamos adivinhar aqui uma aproximação entre dois epistemólogos que refletem sobre a tarefa da filosofia num momento particularmente crítico de sua história. Talvez essas duas obras de Domingues pudessem ser lidas como ensaios nascidos dessa condição atual de crise da filosofia.

Refiro-me aqui a um diálogo latente entre Ivan Domingues e Michel Foucault, já que ambos estão de pleno acordo quanto à importância do ensaio na presente atualidade da Filosofia. Tanto é assim que, a respeito do ensaio como gênero filosófico, Michel Foucault escreveu, no segundo volume da “História da Sexualidade 2: o Uso dos Prazeres” (p. 13), o seguinte:

Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O ‘ensaio’ – que é necessário entender com a experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não com a apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ‘ascese’, um exercido de si, no pensamento.1

Ora, sabemos que o ensaio como o corpo vivo da filosofia constitui, em Foucault, um legado que é caudatário, com toda certeza, de Montaigne, mas também remete a seu nietzscheanismo visceral. E o que acontece do lado de Ivan Domingues? Alguma coisa mudou, nesse sentido, do “Continente e a Ilha” para “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas. Ensaios Metafilosóficos” em relação ao presente e ao futuro da filosofia? Seria esse um vislumbre de resposta para a pergunta: será que um “dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Seria esta uma pista que nos remete a um contorno um pouco menos esmaecido desse horizonte por onde deverá transitar, no Brasil, o intelectual cosmopolita?

Referências

FOUCAULT, M. “História da Sexualidade 2: O uso dos Prazeres”. Trad. M. T. C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984. [ Links ]

Oswaldo Giacoia Junior – Universidade Estadual de Campinas. Campinas – SP – Brasil.

 

Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos – DOMINGUES (SS)

DOMINGUES, Ivan. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Edições Loyola, 2012. Resenha de: SILVA, Evaldo Sampaio da. O grau zero da diferença? Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 3, p. 591-9, 2014.

Quando publicou O grau zero do conhecimento, Ivan Domingues se defrontava admiravelmente com um objeto ao qual iria destinar toda a sua carreira desde então, a saber, o problema da fundamentação das ciências humanas, não por acaso o subtítulo dessa obra inaugural. Oriundo de uma tese de doutorado defendida na Sorbonne, o livro era inspirado por uma senda aberta sobretudo por As palavras e as coisas, cujo autor, Michel Foucault, Domingues teve a oportunidade de acompanhar in loco em dois cursos ministrados no Collège de France. Os cursos, intitulados “Le souci de soi” e “L’usage des plaisirs”, foram ministrados por Foucault, respectivamente, em 1981 e 1983, na cátedra de História dos Sistemas de Pensamento. Em 1982, Domingues também teve a oportunidade, no mesmo Collège de France, de acompanhar o último curso que Claude Lévi-Strauss ministrou, antes de sua aposentadoria, na cátedra de Antropologia social. Mas Domingues (1991) não pretendia simplesmente dar continuidade ao instigante programa de estudos entrevisto por Foucault, senão subvertê-lo em seu próprio solo conceitual ao propor que a noção de episteme – moderna – que surge das investidas genealógicas e arqueológicas do mestre francês não seria apenas uma, mas várias, e que, por isso, quanto às ciências humanas cultivadas entre os séculos XVII e XIX, poderíamos discriminar pelo menos três estratégias discursivas epistemicamente díspares, no caso, a “essencialista”, a “fenomenista” e a “historicista”. A estratégia essencialista se edificaria em torno da metafísica e do método lógico-metafísico (Port Royal) e metafísico-matemático (Spinoza); o discurso fenomenista fora instituído pela física, sobretudo com o método empírico-dedutivo (Montesquieu) e o matemático-experimental (Smith); já a terceira estratégia discursiva viria a lume dos estudos históricos conduzidos pelo método positivo-comparado (Bopp) e dialético-hipotético-dedutivo (Marx). Para justificar tais desconfianças, empreendeu-se ali uma leitura ampla e erudita por áreas como a economia, a linguística, a política e a história. O resultado foi “um ensaio sobre as diferentes formas de pensar que conformaram a Episteme moderna” (Domingues, 1991, p. 9) no qual se buscou explicitar, com base naquelas estratégias discursivas e seus respectivos métodos, o nascimento do “espírito geométrico”, do “espírito positivo” e do “espírito histórico”, os quais representam as distintas e irredutíveis figuras de pensamento que constituíram as ciências humanas no período. Dessas figuras de pensamento, o espírito ou consciência histórica, com sua inclinação relativista e niilista, instauraria uma conjuntura na qual o problema mesmo da fundamentação do conhecimento e, por conseguinte, da fundamentação das ciências humanas, cai em descrédito, sendo preciso doravante pensá-lo em “bases absolutamente novas” (1991, p. 10).

Após alguns trabalhos nos quais aquilatou e repercutiu as conclusões daquela primeira grande investida (por exemplo, O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, de 1996, reeditado posteriormente em francês em 2000), Domingues publica o Epistemologia das ciências humanas, Tomo I: positivismo e hermenêutica, fruto de sua tese de habilitação para o cargo de Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Se a obra O grau zero visava o problema da fundamentação das ciências humanas quando de sua “pré-história” moderna e concluía pela necessidade de uma reconsideração de toda a problemática, chegara o momento oportuno de procurar tal reconsideração nos paradigmas e modelos das ciências do homem no século XX. Nesse ínterim, tratou-se ali das “formas de racionalidade e estratégias discursivas” (Domingues, 2004, p. 17) pelas quais Émile Durkheim (o “positivista”) e Max Weber (o “hermeneuta”) delinearam duas das principais vias das chamadas “ciências sociais” e, por conseguinte, de como a concretização destas contribui decisivamente para repensar a questão fundacional. Obteve-se assim um estudo de fôlego no qual o leitor se depara com duas concepções paralelas de “construtivismo social”, a saber, o projeto durkheimiano para instaurar a sociologia como ciência empírica autônoma, especialmente com seus estudos sobre o suicídio, e o projeto weberiano para fundar a sociologia como uma “ciência compreensiva objetivante”, principalmente com suas pesquisas de sociologia da religião. Mas o fio condutor para tal investigação adveio de “uma pequena e instigante passagem de Lévi-Strauss segundo a qual o grande desafio das ciências humanas é pensar a diferença”, ou seja, conciliar no pensamento fenômenos irredutíveis e por vezes conflitantes. Isto levou o epistemólogo à conjectura de que, no domínio do social, “a diferença é primitiva e a identidade derivada” (cf. Domingues, 2004, p. 22). Por tal conjectura é possível esclarecer, sob nova chave de leitura, por que o primado da categoria de identidade impediu as principais estratégias discursivas (essencialista, fenomenista, historicista) que permearam a pré-história das ciências do homem de responderem apropriadamente ao problema do fundamento e como isso levou essa questão a cair em descrédito. Além disso, auferir as várias maneiras distintas de tratar a diferença, a oposição e a contradição no âmbito do social permite ao epistemólogo enfim pensar o problema da fundamentação das ciências humanas em bases absolutamente novas. Para tanto, cunhou-se um repertório de conceitos e perguntas que lhe permitiram apreciar e comparar as doutrinas daqueles protagonistas das ciências sociais, tais como as chamadas tipologias das formas de racionalidade (que discriminam as articulações dicotômicas, triádicas, ramificadas etc., pelas quais são discutidas a diferença e a diversidade social), o tripé metodológico descrição / explicação / interpretação (que permite ponderar as dificuldades de ajuste entre o discurso, a teoria e a pesquisa empírica), a noção de objetividade nas ciências humanas proposta ou apenas pressuposta pelas abordagens examinadas (e como aquela as conduziu à condenação dos expedientes introspectivos e a tratar os fenômenos sociais como um conjunto de “formas objetivadas”) (2004, p. 17-9). A rigor, essa empreita sequer exigia que um Weber ou um Durkheim se comprometessem inteiramente com a primazia da diferença quanto às ciências do homem, sendo o suficiente que naqueles se encontrassem elementos apropriados para justificar conceitual e historicamente essa orientação.

Com Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos, Domingues alcança o ponto nevrálgico de sua iniciativa epistemológica através de uma leitura abrangente e penetrante do maior antropólogo francês. Previsto inicialmente como o segundo tomo de Epistemologia I – e enfim escrito e publicado de modo independente –, este novo trabalho continua o projeto de refletir sobre a fundamentação das ciências humanas a partir do primado da diferença, porém tomando por objeto uma disciplina em particular, a antropologia, ou, mais precisamente, a antropologia estrutural. Mas por que, após um livro dedicado às estratégias discursivas exemplares das protociências humanas e outro concentrado nas principais abordagens positivistas e hermenêuticas das ciências sociais, Domingues escreve um terceiro ato que consiste em um estudo tão somente da antropologia estrutural de Lévi-Strauss? Em primeiro lugar, porque, como dito, fora uma passagem de Lévi-Strauss que fornecera a gazua para adentrar nas abordagens positivistas e hermenêuticas, sendo ele, portanto, uma referência primordial no percurso ora ensejado. Em segundo lugar, porque, como se verá a seguir, a urdidura do livro pretende mostrar como a antropologia estrutural lévi-straussiana – da qual a análise dos mitos representa o coração selvagem do sistema – parece fornecer ao epistemólogo o caminho mais fecundo, a despeito de seus obstáculos e riscos, para a fundamentação das ciências humanas.

O cerne de Lévi-Strauss e as Américas é composto por uma introdução de caráter programático e metodológico, seis capítulos temáticos e uma breve conclusão. A introdução repõe o problema da fundação das ciências humanas e, se é verdade que em nada contradiz ao programa geral redigido nos prefácios dos trabalhos anteriores, alcança um esclarecimento metódico superior. Novas perguntas sobre a questão fundacional incitam à distinção entre o “fundamento histórico ou arqueológico” (archaios), diacrônico e facultado à história ou sociologia da ciência, e o “fundamento epistemológico ou arquitetônico” (arché), conduzido pela ideia de princípio ou ponto de partida e da alçada da epistemologia da ciência (p. 15). Enquanto a história ou sociologia da ciência estudam as instâncias sancionadoras de um campo disciplinar sobretudo em seus aspectos públicos e institucionais, à epistemologia cabe inquiri-las em função do âmbito conceitual e sincrônico. O exame epistemológico dessas instâncias sancionadoras quando de uma ciência empírica requer uma atenção não apenas para o seu modus cognoscendi, porém igualmente para seu modus operandi (cf. p. 11), uma vez que a coerência interna do discurso precisa ser equilibrada com os procedimentos pelos quais os cientistas levam adiante suas pesquisas e assim constituem seus procedimentos de prova e contraprova. Daí que o problema da fundação das ciências humanas tenha por objeto um discurso científico e não somente proposições ou cadeias linguísticas, o que incita o epistemólogo a adotar uma via alternativa e polêmica àquelas comumente franqueados pela filosofia analítica, o positivismo lógico ou a filosofia da ciência de orientação popperiana. Dissonante ao exame “externalista” das instâncias sancionadoras públicas e institucionais ou às análises “internalistas” das proposições e das cadeias linguísticas, a pergunta pela cientificidade de uma ciência humana conduz a um estudo sobre como a coerência (conceitual) de um campo disciplinar se constitui em meio aos procedimentos pelos quais os próprios cientistas ratificam instâncias sancionadoras (históricas). Uma tal epistemologia histórica e conceitual da ciência se aproxima de autores como Bachelard, Canguilhem, Kuhn e permite refletir tanto o percurso já concluído por Domingues em trabalhos anteriores quanto aquele porvir, a saber, o estudo da cientificidade da antropologia estrutural.

Enquanto metadiscurso, a epistemologia reivindica que seu discurso-objeto tenha obtido certa estabilidade em sua prática teórica e institucional, a despeito de seus antagonismos. Constata-se que “houve um tempo (…) em que a antropologia foi considerada uma disciplina exótica e uma espécie de chiffonière das ciências humanas” e que, posteriormente, “já consolidada e com bastante lastro, a disciplina ganhou aura de prestígio e o status de ciência-piloto das ciências humanas” (p. 18). Que tal prioridade se tenha obtido sobretudo pela contribuição de Lévi-Strauss ratifica que o problema da fundamentação seja então posto em particular para essa disciplina-piloto e sob a perspectiva de seu mais destacado representante. Como nos seus primórdios a antropologia estrutural competia com a antropologia social britânica (cujos principais expoentes eram Malinowski e Radcliffe-Brown) e a antropologia cultural americana (com Boas, Kroeber, Tylor, Löwie e Morgan), dedica-se um primeiro capítulo (“O estruturalismo e as ciências humanas”) a explicar como o paradigma estrutural impactou as ciências humanas e, em particular, a antropologia lévi-straussiana. Retoma-se, inicialmente, a distinção entre a noção de “estrutura”, já registrada em francês desde o século XVI a partir do latim structura, que significava “construir, edificar e erigir (sentido próprio e figurado), e também, desde os tempos romanos, empilhar ou dispor em camadas”, e a noção de “estruturalismo”, que “ao incorporar novas e importantes significações, como disposição, forma, ordem e organização, chega às ciências humanas e sociais” (p. 27-8). Desse modo, pode-se resguardar a anterioridade e independência da noção de estrutura quanto ao estruturalismo, o que permite equilibrar a flutuação semântica deste termo e recontar o seu surgimento por três etapas: a proto-história, que, nos anos 1940, associa correntes díspares e sem relação direta umas com as outras, como a Gestalt, o Círculo linguístico de Praga ou a Escola formalista de Copenhague; a fase histórica, que registra a consolidação e apogeu do paradigma estrutural entre os anos de 1950 e 1980 e teria como marco regulador As estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss, bem como um conjunto de artigos e estudos de Jakobson no campo fonológico e literário; o pós-estruturalismo, cuja origem nos anos 1980 é uma consequência do lento e gradual processo de esgotamento e declínio institucional do paradigma que se seguiu ao “maio de 1968” (cf. p. 30-1). Após diferenciar nessa conjuntura quatro paradigmas estruturalistas (a saber, linguístico, antropológico, psicanalítico e semiótico-literário), Domingues discute como Lévi-Strauss constitui o paradigma antropológico por uma apropriação bastante peculiar da linguística estrutural e como tal apropriação obteve tanto êxito que, em seguida, a própria linguística estrutural será substituída pelo paradigma antropológico, como disciplina modelo e única capaz de conduzir o ambicioso projeto então em voga de unificação das ciências do homem. Para certificar como Lévi-Strauss transpõe para a antropologia os operadores da linguística estrutural, o capítulo reserva suas últimas seções a ilustrar como essa apropriação original ocorre de modo exemplar no estudo das estruturas do parentesco e dos mitos.

Uma vez dilucidado como se desenvolveu o paradigma estrutural a partir da noção mais ampla e anterior de estrutura, bem como se firmou o estruturalismo antropológico com base no paradigma estrutural das ciências humanas, o segundo capítulo, “Lévi-Strauss, a etnologia e a fundação da antropologia estrutural”, revela como o antropólogo francês encontra nos componentes que definem o programa estruturalista das ciências humanas – o “construtivismo epistemológico”, o paradigma da linguagem, o “modelo” e o tripé (metodológico) descrição/explicação/interpretação – uma alternativa às abordagens antropológicas de cunho social e cultural, afastando-se destas a tal ponto que se poderia falar mesmo de uma “refundação” desse campo disciplinar. A originalidade de Lévi-Strauss estaria em retomar temas tradicionais das antropologias concorrentes, tais como a análise do parentesco e da organização social, bem como do mito e das religiões primitivas, sob a hipótese de que “a estrutura será o elemento comum e o traço de união que permitirá ao antropólogo operar o diverso das comunidades humanas, reconhecendo as diferenças que as apartam e as semelhanças que as aproximam” (p. 94). Mais precisamente, em vez de buscar a cientificidade dos estudos do parentesco e dos mitos pelo inventário das gêneses e repertoriar as mudanças que estabelecem as funções das coisas, trata-se antes de “descobrir e evidenciar as estruturas que as abrigam e subjazem à diversidade dos fenômenos”. Como a noção de estrutura se constitui acima de tudo enquanto um sistema de diferenças e oposições, Lévi-Strauss não visará, portanto, a busca por semelhanças e sim “a tarefa de analisar e interpretar as diferenças” (p. 95). Diante de tais procedimentos, pode-se explicar como a antropologia estrutural conquista para a ciência um conjunto de temas até então difusos e mesmo disputados por diversas áreas, dentre os quais os sistemas mitológicos e as representações religiosas dos povos primitivos ocupam lugar de destaque. Enquanto tradicionalmente se recusou aos mitos qualquer racionalidade ou uma suposta racionalidade facultada pela sociedade ou pela natureza, Lévi-Strauss consegue com o paradigma estrutural obter “a chave [para a análise científica] do mito no próprio mito, em cuja base ele vê o trabalho do pensamento simbólico, em um processo que se passa por inteiro no interior do pensamento” (p. 151).

Ao garantir ao mito, ou, melhor dizendo, aos sistemas mitológicos, uma lógica interna que lhes atesta inteligibilidade própria e enfim torná-los objeto de investigação científica, Lévi-Strauss assegura a efetividade das ciências humanas num âmbito no qual até ali qualquer procedimento racional parecia arbitrário e extrínseco. Por isso, o terceiro capítulo, “A análise estrutural dos mitos: vias e variantes”, é decisivo para indicar como a antropologia estrutural tem no exame dos mitos a pedra de toque para a fundamentação das ciências humanas. Trata-se de elucidar em pormenor como LéviStrauss faz “ciência de uma coisa tão disparatada, em que a imaginação e o arbitrário” parecem se impor sobre “a lógica e a regularidade (…) onde imperam o tudo pode e as histórias contadas dão lugar a um verdadeiro breviário da estupidez humana” (p. 139). Após reconstituídas as mais influentes concepções sobre o estatuto do mito desde a Antiguidade até o estruturalismo francês, classificam-se e hierarquizam-se os vários trabalhos de Lévi-Strauss quanto ao tema, reconstituindo-se a intenção e os resultados por ele obtidos em seu itinerário. Para melhor precisar tais intenções e resultados, o quarto capítulo, “Um mito paradigmático: A Gesta de Asdiwal”, toma como exemplar uma série de formulações e reformulações do antropólogo francês em torno de um estudo alentado, inicialmente objeto de um curso proferido na École Pratique. A vantagem epistemológica de tomar a Gesta como paradigma e não, por exemplo, as Mitológicas, principal obra de Lévi-Strauss no estudo dos mitos, deve-se a que aquela, diferente da extrema fragmentação do corpus desta, oferece um mito completo e suas variantes, o que permite ao epistemólogo melhor avaliar a fecundidade e as adversidades da antropologia estrutural. Trata-se, portanto, de uma prioridade arquitetônica, a qual autoriza lançar luz sobre trabalhos historicamente anteriores e até mais relevantes, porém menos fecundos epistemologicamente.

Os quatro primeiros capítulos constituem o primeiro arco do livro, seguindo uma direção que vai do mais geral para o particular – da noção de estrutura ao estruturalismo, do estruturalismo ao estruturalismo nas ciências humanas, deste ao estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss, e deste último a um estudo paradigmático de LéviStrauss, a Gesta. Os capítulos seguintes traçam outro arco no qual se trata de pensar a singularidade archeológica do que fora até aqui obtido, e assim a questão fundacional retorna ao primeiro plano em definitivo. O quinto capítulo, “As dualidades fundadoras da antropologia estrutural: o caso do sistema mitológico ameríndio”, para além das intenções e resultados manifestos pelo antropólogo em seus estudos sobre os sistemas mitológicos, oferece uma interpretação do pensamento lévi-straussiano segundo a qual este opera primordialmente com díades e instala um conjunto de operações binárias, mas também mediações pelas quais incorpora tríades e figuras mistas, extrapolando assim o binarismo inicial e constituindo enfim um “sistema aberto e plural” (p. 255). A hipótese de Domingues é que a maneira pela qual Lévi-Strauss articula essas categorias epistemológicas subjacentes, já avultadas quando do estudo de Weber e Durkheim no Epistemologia I, permite mostrar e justificar a superioridade da antropologia estrutural para “pensar a diferença”, de modo que seu exame oferece, no âmbito epistêmico, as tais novas bases para o problema da fundamentação das ciências humanas.

O sexto capítulo aborda “O impacto da obra de Lévi-Strauss: legados, críticas e caminhos”, complementando as incursões conceituais do capítulo anterior por um balanço das repercussões da antropologia lévi-straussiana, em especial dos principais desafios por ela enfrentados. Nesse ponto, alguns apreciadores e adversários do eminente antropólogo francês são trazidos à baila e suas contribuições avaliadas, as quais auxiliam o epistemólogo na tarefa de indicar os limites e as carências do projeto antropológico-estrutural. Dentre esses, merecem destaque as críticas de filósofos como Claude Lefort, para quem “Lévi-Strauss é um platônico [que] despreza a história e apreende na sociedade regras em vez de comportamentos” (p. 365); Paul Ricouer, segundo o qual Lévi-Strauss “esvazia o sentido dos mitos [e] professa um estranho kantismo” ao “instalar um sistema de categorias sem o sujeito transcendental” (p. 365); e Jacques Derrida, que acusa a antropologia lévi-straussiana de “logocentrismo” (p. 366). Por outro lado, há antropólogos da escola anglo-saxã, como Edmund Leach, para quem os métodos de Lévi-Strauss conduzem para “onde tudo é possível e nada é verdadeiro”, apreciação que é complementada pelo influente Rodney Needham, o qual vê nas categorias que vigoram nas Estruturas elementares do parentesco uma “generalização abusiva” (p. 367-8). Afora o debate mais amplo da obra de Lévi-Strauss, Domingues documenta o conflito especializado para com hipóteses e trabalhos específicos, como o “mito de Édipo” e, obviamente, as Mitológicas e A gesta de Asdiwal.

As virtudes e vícios do projeto antropológico-estrutural dão azo para um balanço final que confirma a fundação da antropologia – e, por conseguinte, das ciências humanas – e aponta os novos desafios que lhe são reservados. Em primeiro lugar, a despeito do fim da “moda estruturalista”, a obra de Lévi-Strauss parece ainda conservar o seu vigor, de modo que Domingues, rejeitando alguns seguidores do mestre francês, como Eduardo Viveiros de Castro, que o leem como um “pós-estruturalista” avant la lettre, defende que Lévi-Strauss manteve-se sempre fiel a sua orientação original, sendo, portanto, um “estruturalista da velha e boa cepa” e, seguramente, o último “epígono” e “fortaleza” do movimento (cf. p. 80). Em segundo lugar, para além dos estudos dos chamados povos primitivos e da temática do selvagem, a antropologia se volta agora para outras linhas de pesquisa, tais como a antropologia simbólica (Geertz), a antropologia da performance ou pragmática (V. Turner), a antropologia desconstrutivista pós-moderna (J. Clifford e G. Marcus) e a antropologia cognitiva (D. Sperber). Sem dúvida essas novas vias também se preocupam em “pensar a diferença”; todavia, parece que aqui há um dissenso quanto ao significado dessa máxima que chega às raias da antonímia. Se para essas antropologias recentes pensar a diferença significa tratar de assuntos e/ou grupos restritos e até marginalizados, para Lévi-Strauss a diferença precisa ser cogitada num âmbito mais primordial. A consequência direta disso é a contraposição consciente que o antropólogo francês entreviu entre seu projeto de “aderir às coisas mesmas” pela busca do “sentido virtual e de posição” e a empreita pós-moderna de perquirir o “sujeito” e o “sentido por trás dos sentidos” (cf. p. 395-6). Para o epistemólogo, essa bifurcação da antropologia – e, por que não dizer, das próprias ciências humanas – encena as variantes pelas quais os pensadores procuraram lidar com a diferença irredutível dos fenômenos humanos. Uma hipótese que Domingues não escancara, mas também não disfarça, é que essas linhas pós-modernas – sobretudo hermenêuticas segundo a avaliação de Lévi-Strauss – descenderiam justamente do abandono da questão fundacional após o advento do espírito histórico, já apresentado no desfecho de O grau zero. Assim, acompanhar a antropologia estrutural lévi-straussiana significaria caminhar junto daquele modo de pensar a diferença que ainda conserva consigo a relevância da questão fundacional.

Lévi-Strauss e as Américas é o desenlace de uma trilogia iniciada com O grau zero do conhecimento e seguida por Epistemologia das ciências humanas. Embora cada um desses trabalhos possa ser lido separadamente, a sua conjunção constitui o audacioso projeto de fundamentação das ciências humanas cumprido por Ivan Domingues nas últimas três décadas. Felizmente, a sensação do leitor não é a do esgotamento, porém a constatação das peças dispostas sobre o tabuleiro à espera de um vindouro lance inaudito. O livro prova que Domingues deixou o melhor para o final. Uma última consideração, talvez extemporânea. Com a consolidação da pesquisa filosófica de pós-graduação no Brasil – da qual o professor Domingues é parte efetiva no plano acadêmico e institucional –, o novo desafio (nem tão novo assim) é consolidar uma produção filosófica local e que ouse desbravar caminhos para além dos cânones da metrópole ideal. Há quem pense que isso significa fazer história da filosofia de pensadores nacionais, tratar de temas ditos “regionais” ou buscar desesperadamente por gêneses “tupiniquins”. Falta aqui alcançar a sagacidade de um Machado de Assis, o qual, numa fórmula célebre, atestara que um pensador pode ser “homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (Assis, 1979, p. 804), espezinhando aqueles que “só reconhecem espírito nacional nas obras que tratam de assunto local” (p. 803). Ora, assim como Lévi-Strauss não deixa de ser francês ao escrever os seus Tristes trópicos, no qual reflete antropologicamente sobre suas experiências com os índios brasileiros, Domingues não deixa de ser brasileiro ao refletir epistemologicamente sobre Lévi-Strauss. Ou seja, tanto como pareceu atual e pertinente aos europeus o que um antropólogo teria a dizer sobre os ameríndios, para nós é atual e pertinente ouvir o que um epistemólogo tem a dizer sobre o olhar antropológico projetado em nossos conterrâneos. A questão, portanto, talvez não seja de base “histórica ou arqueológica” (archaios), mas quem sabe “epistemológica ou arquitetônica” (arché). Nesse sentido, o projeto epistemológico que culmina com Lévi-Strauss e as Américas não estaria também a nos ensinar um caminho para o nosso amor à sabedoria?

Referências

COUTINHO, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. 4v.

ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Coutinho, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. v. 3, p. 801-9.

DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1991.

_____ O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras, 1996.

. _____. Le fil et la trame: refléxions sur le temps et l’histoire. Paris: L’Harmattan, 2000.

_____. Epistemologia das ciências humanas. Tomo I: positivismo e hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004.

_____. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Loyola, 2012.

Evaldo Sampaio da Silva – Departamento de Filosofia. Universidade de Brasília, Brasil. E-mail: [email protected]

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