Gênero, feminismos e relações de poder / Territórios & Fronteiras / 2017

Organizado a partir dos eixos temáticos gênero, feminismos e relações de poder, o presente dossiê tem como orientação aglutinar e divulgar estudos sobre as questões de gênero articuladas à crítica feminista e aos jogos e relações de poder que informam sua construção e naturalização no cotidiano social. O propósito é integrar e ampliar o contemporâneo – e até mesmo acirrado – debate acerca de nossa localização no mundo como pessoas produzidas no / pelo gênero e, ao mesmo tempo, produtoras dele.

A interseccionalidade do gênero com outras dimensões da vida social como raça, etnia, classe, religião, escolaridade, sexualidade, ocupação, região e geração, foram perspectivas e possibilidades abertas às abordagens dos temas. Além disso, definiu-se intencional abertura para sua inscrição em diferentes recortes espaciais e temporais, no que tange ao Brasil e à América Latina. Acrescente-se, nessa ampliação do espectro temático, a inclusão dos feminismos, suas ações e seu aporte teórico como possíveis lentes e chaves de leitura para se apreender a historicidade da dimensão do gênero nas relações sociais. Afinal, foi justamente a crítica feminista que mostrou que os papéis sociais são construídos, que o próprio discurso da “natureza” dos sexos é um artifício e um exercício de poder. E exatamente por isso nos textos do dossiê é possível envontrar não apenas a interseccionalidade operante, mas também uma diversidade de questões e reflexões em torno dos conceitos de poder, violência, gênero, igualdade / diferença e cidadania.

Nessa direção, abre o dossiê Pós-cidadania feminina, artigo em que Ana Maria Colling exercita a crítica feminista ao fazer uma abordagem histórica do conceito ‘cidadania’. Nele, ela se detém na acepção moderna do conceito, a fim de problematizar os dispositivos universais do liberalismo e da República e também as lutas históricas das mulheres pela conquista de direitos civis, políticos e sociais. Ao interrogar as matrizes discursivas – políticas, jurídicas, morais – que fundamentam aquelas representações sociais, inclusive as do feminino, a autora discute as práticas de silenciamento, violência e exclusão produzidas nas teias de construtos e sentidos articulados na sociedade moderna.

A Ditadura Civil-Militar brasileira é o cenário histórico onde circulam sujeitos-objetos do artigo seguinte, Mulheres que foram à luta: relações de gênero e violência na Ditadura Civil Militar brasileira (1964-1985). Nele, Clerismar Aparecido Longo e Eloísa Pereira Barroso discutem as experiências de mulheres militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura civil-militar brasileira de 1964. Baseado em relatos colhidos pela Comissão Nacional da verdade, a partir de memórias subtraídas dos depoimentos, o texto assinala como determinadas relações vivenciadas por essas mulheres com os agentes repressivos nos órgãos do Estado ditatorial estão vincadas pelas demarcações e pela violência de gênero. Trata-se de uma interessante análise de representações do feminino que possibilita conhecer imagens, papéis, valores, normas específicas e parte significativa do imaginário androcêntrico em um passado recente de nossa experiência histórica.

O mesmo espaço e temporalidade, agora tomados através da sintaxe do cinema, como fonte da história, são alvos do artigo de Alcilene Cavalcante Oliveira, A violência de gênero durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) sob as lentes de Ozualdo Candeias. Inspirado na peça de teatro Milagre na Cela (1975), de Jorge Andrade, o longa-metragem de ficção, A Freira e a tortura (1983), mostra a prisão e a tortura de uma freira e a análise proposta no artigo dele se apropria para discutir um tema pouco trabalhado na historiografia brasileira: a violência política e de gênero contra religiosas durante o regime militar no Brasil.

Violência é também tema do artigo seguinte, de Vera Lúcia Puga e Michelle Silva Borges, Violência de Gênero, Justiça Criminal e ressignificações feministas. O ensaio fornece contribuições relevantes acerca dos avanços das práticas feministas, problematizando as incorporações mais ou menos críticas, as negociações e sobretudo as acomodações políticas evidenciadas nas leis, nos discursos da justiça criminal e nas práticas de punição. Em que pese a pressão constante dos movimentos feministas no enfrentamento da questão da violência social marcada pelo gênero, as autoras sugerem que muitas manobras na / da cultura androcêntrica, entre elas a institucionalização do patriarcado e das instâncias cotidianas de poder, exigem a renovação das lutas e a construção dialógica de novos processos de ação e subjetivação das mulheres.

Buscando uma alternativa ou estratégias para enfrentar e superar um cotidiano de violência e desigualdade social, para a autora, Cintia Lima Crescêncio, o humor e o riso produzido por cartunistas mulheres configuram uma maneira singular de ser e estar no mundo. Partindo desse debate, no artigo “Tá rindo de quê?” ou Os limites da teoria Humor Gráfico na Imprensa Feminista do Cone Sul, ela propõe uma reflexão sobre a importância dos discursos feministas e as dificuldades da teoria em explicar o humor gráfico contra-hegemônico produzido por mulheres e publicado em jornais feministas do Brasil, Argentina e Uruguai entre os anos 1970 e 1980.

No esforço de atravessar arenas históricas e historiográficas da violência, agora acerca do Brasil do século XIX, Fabiana Francisca Macena produz uma instigante reflexão a partir da análise de documentos sobre a escravidão no artigo Mulheres cativas nas Minas oitocentistas: experiências de liberdade. Ali, ela destaca crimes perpetrados por cativas da província de Minas Gerais, na segunda metade daquele século, bem como suas articulações e demandas junto à justiça na tentativa de alcançar a liberdade. As fontes, sob essa análise, revelam experiências que sublinham como aquelas cativas, mulheres pobres, negras e pardas, subverteram as imagens da passividade, de simples coadjuvantes ante a violência do cativeiro, e produziram, a partir de suas práticas políticas, efeitos abolicionistas, enfraquecendo a instituição da escravidão.

A questão da violência, da resistência e da exclusão, com base na interseccionalidade de categorias da identidade, reaparece em Bernardina Rich (1872- 1942): uma mulher negra no enfrentamento do racismo em Mato Grosso. O artigo de Ana Maria Marques e Nailza da Costa Barbosa Gomes, construído sobre fontes históricas pouco exploradas, ilumina e redescreve a trajetória de uma mulher negra, cuiabana, para problematizar os marcadores racistas, classistas, sexistas da sociedade mato-grossense do pós-abolição. Através de pesquisa criteriosa, as autoras refletem sobre a experiência da professora em meio às lutas pela emancipação feminina, pelo voto e escolarização das mulheres e às evidências do crescimento quantitativo das mulheres no mercado de trabalho remunerado. Assim, ao retomar criticamente aspectos dessa experiência significativa em relação àquele momento da educação brasileira, repleto de tensões, negociações e conflitos, o artigo desvela o processo da divisão sexual do trabalho docente e das lutas históricas de mulheres, negras e / ou brancas em busca de autonomia, reconhecimento e respeito na / da sociedade brasileira.

O artigo seguinte é um exemplar da crítica feminista sobre a literatura negrobrasileira. Gênero, Feminismo, Poder e Resistência na Contística, artigo de Rubenil da Silva Oliveira, Benedito Ubiratan de Sousa Pinheiro Júnior e Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões, examina a apropriação das categorias conceituais – gênero, feminismo, poder e resistência na contística de autoria negra feminina. Nessa aventura, eles se apropriam dos contos – O tapete voador e Nkala: um relato de bravura, da escritora Cristiane Sobral, que fazem parte do livro O tapete voador (2016), para analisá-los à luz de abordagens teóricas que discutem aquelas categorias, e refletem como tais textos literários abarcam o empoderamento feminino, já que as protagonistas resistem e não se deixam dominar, mesmo que isso lhes custe o emprego ou a vida.

O último artigo do dossiê é Os homens também choram: leituras de masculinidade na arte funerária a partir do caso do pranteador, de Maristela Carneiro. Nele, a autora explora o ato de prantear do homem por meio da abordagem de um exemplar escultórico proveniente da arte funerária paulistana: a obra Lenda Grega, parte do complexo tumular da Família Trevisioli, concebido em 1920 pelo escultor Nicola Rollo (1889-1970) e instalado no Cemitério da Consolação, em São Paulo. Segundo Carneiro, o sentido da morte é tão inescrutável para aqueles que ficam que a dor e o lamento, muitas vezes, são as únicas manifestações possíveis: o pranteador é escolhido como manifestação destes sentimentos. Também chamados pleurants, colocam-se em um lócus particular e transitório, entre a vida e morte. Diante dos túmulos, debruçados em pranteio, estas figuras sinalizam a morte, e tal sensibilidade modelada na arte embaralha e tensiona as representações de masculinidade habituais.

Reunidos no dossiê, embora em pequena amostragem, os artigos são reveladores do amplo espectro de objetos, problemas e abordagens possíveis, que se fazem necessárias, até mesmo urgentes em nossos dias, e exprimem o vigor e a fertilidade analítica da caixa de ferramentas das teorias feministas. Uma característica que deve ser destacada no dossiê é que vários textos aqui apresentados transitam nos caminhos da análise da cultura e da arte, isto é, no campo das representações modeladas na literatura, no cinema e na escultura.

Com efeito, o conjunto apresenta artigos elaborados sob diferentes perspectivas e enfoques, que exibem documentações e estratégias metodológicas próprias, contemplando diferentes temáticas, espacialidades e temporalidades, com um denominador comum: todos têm o gênero, os feminismos e o poder como parâmetros que articulam a narrativa e a (des)construção analítica. Nesta edição, portanto, será possível encontrar histórias de mulheres e de homens figuradas em diferentes escritas, mulheres que lutam, que escrevem, que vivenciam violências, e homens que choram. Também, encontrar questionamentos e críticas aos conceitos, os quais nos permitirão pensar na contribuição destes textos aos estudos de gênero, dos feminismos e das relações de poder.

Esperamos que as / os leitoras / es do dossiê possam desfrutar de tais contribuições e, sobretudo, a partir dessas elaborações, possam discutir, adensar e fomentar o debate que ainda se apresenta relevante e (cada dia mais evidentemente) incontornável para construir uma cultura de igualdade entre os sexos e de respeito às diferenças.

Boa leitura!

Blanca Susana Vega Martínez – Doutora em Humanidades pela Universidad Autónoma de Zacatecas. Professora e pesquisadora na Faculdade de Psicologia e no Instituto de Ciências Educativas da Universidad Autonóma de San Luís Potosí. E-mail: [email protected]

Diva do Couto Gontijo Muniz – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro – Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]


MARTÍNEZ, Blanca Susana Vega; MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.2, dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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