Antigas sociedades da África Negra | José Rivair Macedo

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José Rivair Macedo | Imagem: UFRGS

A obra Antigas sociedades da África Negra, de José Rivair Macedo, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi publicada no ano de 2021 pela Editora Contexto e já é considerada um clássico e uma leitura recomendada para todos que se interessam pelos estudos africanos, sejam estrangeiros, brasileiros, professores do ensino básico ou superior e público em geral.

Embora Rivair mencione o fato de o texto não possuir uma linguagem didática, mas uma proposta acadêmica com ampla pesquisa bibliográfica e documental, as salas de aula brasileiras, especialmente as localizadas nas periferias, com a maior parte do seu alunado afro-brasileiro, estão prontas para receber esse tipo de trabalho, obviamente quando intermediado pelo docente de educação básica. Os saberes ancestrais, as histórias dos negros na cultura brasileira, como quer o prefácio da obra – que traz inclusive uma canção de Eugênio Alencar, sambista gaúcho e conhecedor das tradições africanas (Rivair, 2021, p. 10) -, estão nesses lugares em que as comunidades afro-brasileiras habitam e aos quais a ciência costuma não olhar. Leia Mais

Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola: século XVII / Mariana F. Bracks

A obra publicada recentemente pela editora Mazza e intitulada “Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola, século XVII” é fruto da dissertação de mestrado defendida pela professora Mariana Bracks Fonseca na Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sob a orientação da professora doutora Marina de Mello e Souza. Com experiência na área de História da África, especialmente História de Angola durante os séculos XVI e XVII, temáticas como o desenvolvimento do tráfico negreiro e a resistência política de personagens africanos, como a rainha Nzinga Mbandi, compõem os principais interesses de pesquisa da autora.

Nas primeiras páginas que compõem a introdução, Mariana Fonseca atenta para o exaltar da rainha Nzinga pelos movimentos políticos como MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Utilizando conceitos como “nação” associado a concepções modernas, ou ainda “luta de classes”, estes movimentos políticos mitificam a rainha como uma personagem símbolo de resistência ao colonialismo português. O texto de Fonseca grifa que essa produção de memória, ou imagem como quer a autora, habita o imaginário angolano contemporâneo.

Como sugere Fonseca, houve exageros interpretativos que fomentam os nacionalismos nos movimentos políticos em Angola. Observando o posicionamento da autora, compreendemos a utilização da imagem de capa, que consiste em uma fotografia da estátua da rainha Nzinga erguida em Luanda no ano de 2015. O maximizar desse sentido de “resistência” cunhado à obra é o objetivo principal, e talvez por isso a escolha da ilustração. O mobiliário urbano luandense possui símbolos que enaltecem personagens históricos como a rainha Nzinga, com o objetivo de construir um ideal calcado em interpretações míticas da história.

A historiadora Mariana Fonseca está atenta a essas problematizações, no entanto, o esforço em ressaltar Nzinga enquanto uma líder tenaz falou mais alto. Isso resulta ao leitor alguns ganhos, como o adentrar por entre as instabilidades políticas de sobas e europeus, as complexidades das flutuações de fronteiras ou as empreitadas igualmente movediças do aliançar dos jagas, bem como discussões acerca da legitimidade do poder feminino do Ndongo, visto que o enfoque da obra de Fonseca são as resistências de Nzinga no século XVII, principalmente entre os anos de 1620 e 1630, quando segundo a autora houve maior oposição aos portugueses.

A rainha Nzinga, Jinga, Ginga ou Njinga habitou muitos escritos em diferentes contextos. Logo, há dificuldades em padronizar uma grafia. Esse problema é recorrente quando se atenta para historicidades das Áfricas nos seiscentos. As fontes documentais utilizadas no trabalho de Fonseca foram escritas por europeus falantes de diferentes línguas, além de difundidas e traduzidas de modo impossível de quantificar. Os escritos do padre Cavazzi e do soldado António Cadornega, e também de Fernão de Souza, fontes amplamente utilizadas pela autora, são um exemplo. Há ainda documentos administrativos advindos da compilação realizada por António Brásio junto ao Monumenta Missionária Africana, que também apresenta grafias não uniformes para designar a insígnia Nzinga.

Fonseca explica que grafa não só Nzinga, mas ainda outros termos como rios e localidades, bem como nomes e insígnias de diferentes personagens como os angolanos convencionam em um kimbudo. Essa decisão, principalmente se o trabalho se afasta temporalmente de uma África contemporânea será sempre arbitrária, como alerta a autora. Traduzir é já trair, e as opções tomadas pelos africanólogos caminham sempre em direção à coerência entre as interpretações das fontes e dos pesquisadores que já abordaram determinada temática.

Para além das fontes documentais, outros escritores também grafam a insígnia Nzinga de diferentes maneiras e constroem rainhas múltiplas em suas obras. Castilhon, Marquês de Sade, Bocage e mais tarde Hegel são exemplos citados brevemente no trabalho de Fonseca. Historiadores como Beatrix Heintze, John Thornton, Joseph Miller, Adriano Parreira e Roy Glasgow também são problematizados quanto as suas “Nzingas” e são substanciais para os estudos sobre essa personagem. Dentre muitos caracteres trabalhados por esses intelectuais, citamos o debruçar sobre um amplo corpus documental e o cruzamento deste, metodologia também empregada por Fonseca.

Mesmo com obras produzidas em contextos e sentidos distintos, como por exemplo, romances, poemas, crônicas e produções historiográficas, a personagem rainha Nzinga ainda é pouco conhecida no Brasil, como os estudos sobre História da África em geral. O livro de Mariana Fonseca não é uma biografia sobre a rainha. Apresenta muitos elementos que podem ser considerados como compondo experiências nominadas pela autora como “uma longa e conturbada trajetória”, caso pensarmos nos movimentos políticos, militares e ainda religiosos, que apesar de costumeiramente os distinguirmos nos seiscentos e regiões adjacentes ao Ndongo, se entrelaçavam em uma instigante tessitura.

O território do Ndongo, nas descrições de Cavazzi e Cadornega, era um território cuja liderança pertencia ao Ngola, ou reis guerreiros, que sabiam confeccionar objetos de metais, facas, lanças e todo o tipo de armamento. Esses utensílios eram muito utilizados nos cotidianos e nas guerras, os artesãos que os fabricavam tinham a estima do povo e em virtude disso foram sendo proclamados pelos régulos como líderes daqueles territórios. A própria insígnia Ngola deriva do modo como designavam objetos de metais. Ngola poderia ser qualquer objeto de metal e, mais tarde, emprestou denominação como uma corruptela aos territórios que os portugueses e demais europeus mercadejavam, ou a Angola.

As supracitadas descrições compõem o capítulo primeiro da obra de Mariana Fonseca. Intitulado “O reino do Ndongo”, proporciona ao leitor acessar informações sobre, por exemplo, a constituição do poder no Ndongo e adjacências. A autora cita os estudos de Joseph Miller como um passo importante para compreensão das genealogias na África Central, bem como as constituições de poder. O autor foi um dos precursores ao afirmar que os termos tidos por nomes próprios, como Ngola Inene ou Ngola a Kiluange, eram na verdade insígnias que distinguiam as escalas de poder.

Miller trouxe novas interpretações às palavras “filho”, “pai”, “irmão”, “casamento”, revelando o caráter metafórico dessas expressões nas genealogias centro-africanas. Pai e filho poderiam revelar relações políticas entre títulos e não biológicas. Talvez, os avultados escritos deixados pelos europeus traduziam o que os mesmos observavam calcados nas suas experiências. Ou seja, explicavam o mundo a partir daquilo que conheciam.

Isso não quer dizer que as fontes escritas são menos credíveis, ao contrário, elas são fundamentais. Podemos exemplificar expondo características dos Jagas que nunca teriam sido conhecidas caso não fosse a interpretação de documentos. Cavazzi frisa a heterogeneidade dos Jagas, descrevendo rituais que eram comuns, como mitos, ritos, juramentos, crenças, formas de moradia e alimentação. Essas descrições maximizam o caráter guerreiro e antropofágico dos bandos Jagas, como o ritual magi a samba, que consistia em jogar um recém-nascido em um caldeirão com ervas, e em um pilão esmagar até virar uma pasta que seria passada no corpo de guerreiros para garantir forças mágicas e imortalidade.

Joseph Miller sugere que esse ritual servia para romper os laços de linhagem que alguns guerreiros poderiam trazer como resquícios de outras sociedades. Os jovens raptados e não iniciados de outros grupos, como os Mbundos, após passarem por esse ritual se desprendiam das regras e costumes do grupo anterior, devendo obediência ao chefe do Kilombo, que nesse contexto era o modo de organização dos Jagas, ou seja, altamente hierarquizado e com funções bem definidas, ou ainda como define Miller: “máquina de guerra”. Para Vancina, os bebês mortos também serviam para garantir a mobilidade das tropas que viviam em guerras permanentes, logo, o infanticídio garantia o progresso das tropas, para além de uma “inovação” nas táticas de guerrilhas.

O capítulo segundo “Angola portuguesa: conquista e resistência” inicia com a problematização da libertação de Paulo Dias de Novais, que permanecera como cativo durante cinco anos, visto que o Ngola interessava-se apenas pelo comércio com os portugueses, pelas sedas e bebidas, e não pela fé que condenava a poligamia. O Ngola com dificuldades em derrotar um soba vizinho liberta Novais para que ele peça reforços a Portugal, segundo descrições de fontes documentais. Para Fonseca, não faz sentido o soberano do Ndongo, um rei poderoso que já conseguira derrotar inclusive o exército do Congo, ter dificuldades em sublevar um reino menor, necessitando o auxílio dos portugueses.

Ao retornar a Portugal, Paulo Dias de Novais planeja uma entrada com armas no Ndongo, já que a tentativa pacífica de levar a fé tardava em mostrar resultados. Os jesuítas fomentavam essa intervenção, e mesmo após o regresso de Novais ao Ndongo, com o mercadejo próspero e as investigações no solo para obtenção de metais, os jesuítas não se contentavam com o comportamento do Ngola. Eis a chama de articulações políticas e dissidências que cunharam conflitos entre os sobas, fundamentais no jogo político da “conquista”, pois para os religiosos mercadejar não bastava.

Isso não significa que a coroa, os jesuítas e Paulo Dias de Novais não fossem parceiros nas empreitadas da “conquista”. Ao contrário, a insistência em propagar a fé católica instrumentalizava a escravização, justificando-a através da necessidade de salvar as almas. Conforme Fonseca, a palavra “resgate” comumente aparece nas fontes documentais, ou seja, os negros seriam resgatados por viverem em meio a rituais pagãos, evitando que perecessem em práticas antropofágicas. Em contrapartida, os religiosos sustentavam o mito da prata e demais riquezas no solo angolano, convencendo a coroa, na altura em mãos dos Áustrias, ou dos Filipes de Espanha, em investir nas expedições. Ganhavam todos, inclusive os sobas, participantes ativos do comerciar com os europeus.

Em resumo, sobre as tentativas de adentrar no território que correspondia aos domínios do Ngola, o capítulo ainda discorre sobre a “Guerra Preta”, que consistia em lutas entre africanos contra africanos, pois o grosso dos exércitos tidos como portugueses eram compostos por diversos grupos de Jagas e forças auxiliares que combatiam contra os exércitos do Ndongo. Fonseca também delineia o comércio em várias feiras, citando a construção de fortalezas e presídios que impulsionavam o colonizar rumo ao interior. Dentre as localidades detalhadas pela autora estão Muxima, Cambambe, Massangano, Ango e Ambaca.

A autora Mariana Fonseca discute amplamente os conflitos que ambicionavam aquelas terras banhadas pelo Kuanza. Em meio às descrições de acontecimentos bélicos, o que chama a atenção no capítulo “Nzinga Mbandi e as guerras pelo Ndongo” são as sofisticadas disputas diplomáticas quando executadas na mão de Nzinga. Uma das cenas que habitou o imaginário local e foi amplamente comentada em fontes documentais, como nos escritos do padre Cavazzi ou do soldado António de Cadornega, bem como em trabalhos historiográficos que problematizam a existência da rainha, ou em romances que recriam e multiplicam as “Nzingas” é o “episódio da cadeira”, como designa Fonseca.

Nzinga se reunira com o governador João Correia de Souza em Luanda, fora mandada como embaixadora do seu irmão, o Ngola. As embaixadas estavam presentes no cenário político dos XVII na África Central, tanto para o trato com o sobas quanto para os portugueses. Cavazzi narra que na ocasião a rainha portava luxuosas vestes, com muitas joias e gemas preciosas. Ao chegar foi oferecido um tapete para sentar-se, enquanto o governador estava acomodado em um trono. No mesmo instante Nzinga chama uma criada e pede que ela fique em uma posição que lembra um acento, com mão e pés no chão. A rainha sentou-se nas costas da súdita e discorreu sobre diversos assuntos, com vivacidade e inteligência, garantindo que o Ndongo continuasse como um estado independente e isento de tributações exigidas pelos portugueses, na ocasião negociadas e refutadas pela rainha.

Talvez o aceite em ser batizada tenha contribuído para o êxito na performance de Nzinga, garantindo sucesso nas negociações que interessavam ao Ndongo. Os historiadores interpretam esse evento com diferentes posições. Mariana Fonseca argumenta que o cristianismo estava notoriamente envolvido com a política do século XVII e a rainha possivelmente compreendia que para obter a paz e sucesso junto aos objetivos do Ngola, necessitaria aceitar a cruz. Apesar do batismo o Ndongo não se tornou cristão, uma vez que o Ngola se recusou em receber o sacramento, pois achou um absurdo que o enviado para batizar-lhe era o filho de uma de suas escravas, enquanto Nzinga, sua irmã, teria sido ungida com toda a pompa e honras do governador.

O quarto e último capítulo segue dissertando sobre as novas terras e os novos aliados persuadidos por Nzinga. O reino de Matamba e as particularidades de um poderio feminino são tecidos através de considerações advindas de autores com ampla pesquisa sobre o tema. A interpretação de documentação escrita continua fortemente, por exemplo, quando a autora questiona a masculinização de Nzinga para a entronização do poder. Fonseca observa essas descrições as alocando como exageradas, pois o interesse, especialmente dos padres, era frisar o quão demoníaco era o comportamento dos Jagas.

John Thornton concluiu que em Matamba, Nzinga conseguira formar um reino que tolerava sua autoridade, pois estava embasada em apoiadores leais, tornando-se um precedente histórico e contribuindo para a legitimação de poderes femininos na África Central. O caso de sua irmã Dona Bárbara, que assume a liderança logo após a morte de Nzinga é um exemplo. Parece que quanto mais o tempo passava, mais a conquista do Ndongo ficava distante para Nzinga, que agora se refugiara em Matamba, acolhendo em seu kilombo milhares de pessoas de diversas etnias, para além dos Jagas, já multiétnicos.

Não há indícios de que Nzinga praticasse a fé cristã, ao contrário, as fontes sempre condenavam seu comportamento tido como promíscuo tanto pelos rituais exercidos pelos Jagas, quanto pelos inúmeros concubinos que mantinha, dentre outras observações que povoam as descrições especialmente dos capuchinhos. Porém, já no final da vida um episódio marcou sua conversão e foi igualmente relatado por religiosos como Cavazzi, que descreve uma batalha contra um poderoso soba, onde o capitão Nzinga-Amona encontra um crucifixo que fora abandonado no mato. Pela noite o capitão sonhou que a cruz rejeitada o reprimia e exprobrava o desprezo para com o rei Cristão.

Segundo Cavazzi, a partir desta feita, Nzinga teria verdadeiramente se convertido. Para o frei Gaeta a rainha entendeu que o crucifixo fora mandado por Deus através das mãos do general como troféu de sua vitória. Na narrativa, Gaeta menciona o “milagre do crucifixo”, onde Deus mostrava que a amava e a convidava para retornar ao catolicismo. Apesar das detalhadas narrativas as fontes não consideram que os reinos vizinhos, Congo, Angola e Dembo estavam todos cristianizados. Com a idade avançada e estabilizada em Matamba, a paz e o fluxo do mercadejar de escravaria seria algo desejável a um líder nessas condições. Os Jagas que a seguiam abandonaram a vida errante e passaram a se dedicar à agricultura e ao comércio, surgindo no norte de Angola a etnia “Jinga”, uma evidência das configurações políticas e influências identitárias da rainha.

Cavazzi relata com entusiasmo as ações de Nzinga, como a fundação de uma nova igreja em Santa Maria de Matamba, às margens do rio Uamba e a duas léguas da antiga capital. Nzinga pessoalmente carregava as pedras para animar os construtores da Igreja, nas missas sentava-se na primeira fila, assistia ajoelhada os cultos e preferia ser chamada pelo nome de batismo: Dona Anna. Parece que seus últimos anos foram marcados por fervor cristão e extravagância da corte. A rainha vestia-se sempre com capricho, com panos feitos de cascas de árvores, semelhantes ao cetim. Em audiências públicas não dispensava a coroa e o cetro, exigindo que seus súditos, principalmente em batalhas, usassem o crucifixo para que fossem enterrados como cristãos.

As memórias produzidas sobre a vida da rainha Nzinga Mbandi nos avultados escritos que a descrevem possibilitam a reconstrução de alguns acontecimentos que envolvem disputas políticas, de territórios e poder, de comércio e fé. Nzinga foi uma personagem ímpar e se destacou em muitos momentos nos contextos dos seiscentos. Com tamanha eloquência, por vezes aparece mitificada em literaturas e até mesmo em trabalhos com cunho historiográfico. O trabalho de Mariana Fonseca rompe com análises simplistas ao apresentar uma dedicada análise das fontes documentais, dialogando com a historiografia sobre o assunto e se posicionando no debate com uma rainha que participou do tráfico de escravos, mas garantiu a “liberdade” para quem a seguia.

O trabalho observa os mandos de uma cristianização europeia, pautando a rainha como resistente a essa “dominação”. Fonseca delineia os portugueses no decorrer de sua obra como inimigos da rainha, por imposição da fé, mas não só, pois as disputas por territórios e mercados igualmente são mencionados pela autora como propulsores dessa resistência. Contudo, essa categoria pode ser repensada dentro do próprio texto da autora, pois descreve minunciosamente as complexas competições, flutuações fronteiriças e interesses dos próprios africanos em mercadejar e obter vantagens com negociações de qualquer natureza.

A obra de Mariana Fonseca seguramente marcará uma etapa importante na historiografia brasileira. Quer isso dizer que jovens pesquisadores se debruçam em entender realidades tão complexas, com personagens tão intrigantes quando a rainha Nzinga Mbandi. Esses trabalhos auxiliam sobremaneira a explicar-nos enquanto brasileiros e descendentes, como quer Alberto da Costa e Silva, de senhores ou de escravos. Pensar a África é também pensar o Brasil, os escravos saídos das margens de lá e embarcados em navios foram capturados e negociados por líderes como a rainha Nzinga, trazendo-a na memória e a ressignificando por essas paragens.

Isso será tema para uma próxima resenha, pois acompanhando o trabalho de Mariana Bracks Fonseca torcemos para que nos brinde com mais uma Nzinga.

Priscila Maria Weber – Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].


FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola: século XVII. Belo Horizonte: Mazza, 2016. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. A Rainha Nzinga Mbandi como personagem-chave nas disputas de poder no Ndongo; África Central, século XVII. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.224-2231, 2016. Acessar publicação original. [IF].

A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento – MUDIMBE (AN)

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde (Portugal), Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 563-568, dez. 2014.

“O mito é um texto que se pode dividir em partes e revelar a experiência humana e a ordem social” (MUDIMBE, 2013, p. 180).

A obra A invenção da África: Gnose, Filosofia e a Ordem do conhecimento1, de Valentin Yves Mudimbe2, caracteriza-se por abranger uma perspectiva historicista que problematiza os conceitos e discursos do que conhecemos como uma África mitificada. As verdades veiculadas por filósofos, antropólogos, missionários religiosos e ideólogos, bem como imagens ocidentalizadas e/ou eurocêntricas, inerentes aos processos de transformações dos vários tipos de conhecimentos, são desconstruídas por Mudimbe pari passu aos padrões imperiais ou coloniais. Para tal empreitada, vale ressaltar as inúmeras referências que compõem um sólido corpus documental utilizado pelo autor em sua investigação, ou seja, estas transitam da filosofia romana ao romantismo alemão. Ou ainda, o questionar e investigar através do termo gnose, cunhado com o intuito de erguer uma arqueologia do(s) sentido(s) do Pensamento Africano.

Para o autor, o sentido, assim como os usos de um conhecimento “africanizado” e a forma como foi orquestrado, ou seja, um sistema de pensamento que emergiu estritamente de questões filosóficas, pode ser observado através dos conteúdos veiculados pelos pensadores que o forjam, ou ainda, através dos sistemas de pensamento que são rotulados como tradicionais e as possíveis relações destes com o conhecimento normativo sobre África. Logo, uma sucessão de epistemes, assim como os procedimentos e as disciplinas possibilitados por elas são responsáveis por atividades históricas que legitimam uma “evolução social” no qual o conhecimento funciona como uma forma de poder. As africanidades seriam um fait, um acontecimento e a sua (re)interpretação crítica abrange uma desmistificação que se calca na argumentação de uma história africana inventada a partir de sua exterioridade.

Essa exterioridade que veste a África de roupagens exóticas é problematizada com as inúmeras missões e alianças que arranjavam um forte compromisso com os interesses religiosos e a política imperial. No entanto, o cerne da problematização presente no texto de Mudimbe concentra-se na análise da experiência colonial, um período ainda contestado e controverso, visto que propiciou novas configurações históricas e possibilidades de novos ícones discursivos acerca das tradições e culturas africanas. Sobre a estruturação colonizadora, o autor a coloca como um sistema dicotômico, com um grande número de oposições paradigmáticas significadas. São elas: as políticas para domesticar nativos; os procedimentos de aquisição, distribuição e exploração de terras nas colônias; e a forma como organizações e os modos de produção foram geridos.

Assim, emergem hipóteses e ações complementares, como o domínio do espaço físico, a reforma das mentes nativas e a integração de histórias econômicas locais segundo uma perspectiva ocidental.

Os conceitos de tradicional versus moderno, oral versus escrito e impresso, ou os sistemas de comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada, economias de subsistências versus economias altamente produtivas, podem ser citados para que exemplifiquemos o modo como o discurso colonizador pregava um salto de uma extremidade considerada subdesenvolvida para outra, considerada desenvolvida. Queremos com isso dizer que houve um lugar epistemológico de invenção de uma África. O colonialismo torna-se um projeto e pode ser pensado como uma duplicação dos discursos ocidentais sobre verdades humanas.

Para que seja possível obter a história de discursos africanos, é importante observar que alterações no interior dos símbolos dominantes não modificaram substancialmente o sentido de conversão da África, mas apenas as políticas para sua expressão ideológica e etnocêntrica. É como se houvesse uma negritude, uma personalidade negra inerente à “civilização africana” que possui símbolos próprios, como a experiência da escravidão e da colonização como sinais dos sofrimentos dos escolhidos por Deus.3 Contudo, à medida que compreendemos o percurso dos discursos e rompemos epistemologicamente com posições essencializadas, podemos questionar, como sugere Mudimbe, quem fala nestes discursos? A partir de que contexto e em que sentido são questões pertinentes? Talvez consigamos responder essas questões com uma reescrita das relações entre etnografia africana e as políticas de conversão.

Desse modo, o texto de A invenção da África traz com pertinência o refletir sobre alguns autores como E. W. Blyden,4 que rejeitava opiniões racistas ou conclusões “científicas” como os estudos de frenologia populares nos oitocentos. Frequentemente cognominado como fundador do nacionalismo africano e do pan-africanismo, Blyden em alguma medida comporta esse papel, visto que descreveu o peso e os inconvenientes das dependências e explorações, apresentando “teses” para a libertação e ressaltando a importância da indigenização do cristianismo e apoio ao Islã. Para Mudimbe, essas propostas políticas, apesar de algum romantismo e inconsistências, fazem parte dos primeiros movimentos esboçados por um homem negro, que aprofundava vantagens de uma estrutura política independente e moderna para o continente.

A obra segue com reflexões que esboçam embates a respeito da legitimação da filosofia africana enquanto um sistema de conhecimento, visto que algumas críticas expõem esse pensée como incapaz de produzir algo que sensatamente seja considerado como filosofia.

A história do conhecimento na África é por vezes desfigurada e dispersa em virtude da sua composição, ou seja, o acessar de documentações para sua constituição por vezes não apenas oferece as respostas, mas as ditam. Além disso, o próprio conjunto do que se considera por conhecimento advém de modelos gregos e romanos, que mesmo ricos paradoxalmente são como todo e qualquer modelo, incompletos. Muitos dos discursos que testemunham o conhecimento sobre a África ainda são aqueles que colocam estas sociedades enquanto incompetentes e não produtoras de seus próprios textos, pois estes não necessariamente se ocupam de uma lógica do escrito (DIAGNE, 2014).

A gnose africana testemunha o valor de um conhecimento que é africano em virtude dos seus promotores, mas que se estende a um território epistemológico ocidental. O que a gnose confirma é uma questão dramática, mas comum, que reflete a sua própria existência ou, como uma questão pode permanecer pertinente? É interessante lembrar que o conhecimento dito africano, na sua variedade e multiplicidade, comporta modalidades africanas expressas em línguas não africanas, ou ainda categorias filosóficas e antropológicas usadas por especialistas europeus veiculadas em línguas africanas. Isso quer dizer que as formas protagonizadas pela antropologia ou pelo estruturalismo marxista onde havia uma lógica original do pensamento trans-histórico inexistem.

As ciências, ou a filosofia, história e antropologia são discursos de conhecimento, logo, discursos de poder e possuem o “[…] projeto de conduzir a consciência do homem à sua condição real, de restituí-la aos conteúdos e formas que lhe conferiram a existência e que nos iludiram nela” (FOUCAULT, 1973, p. 364). Sucintamente, a obra de Mudimbe comporta a análise de algumas teorias e problematizações, como a escrita africana na literatura e na política, propositora de novos horizontes que salientam a alteridade do sujeito e a importância do lugar arqueológico. Ou ainda podemos salientar a negritude, a personalidade negra, e os movimentos pan-africanistas como conhecidas estratégias que postulam lugares.

Contribuições de escolas antropológicas, o nascimento da etnofilosofia, a preocupação com a hermenêutica, ou o repensar do primitivo e da teologia cristã, dividem as ortodoxias que podem ser visibilizadas, por exemplo, com a discussão sobre a Filosofia Bantu, de Tempels ou ainda com as revelações de Marcel Griaule acerca da cosmologia Dogon. A antropologia que descreve “organizações primitivas”, e também programas de controle advindos das estratégias colonialistas, produziu um conhecimento que demandava aprofundamento nas sincronias dessas dinâmicas. Com isso, é plausível considerarmos que os discursos históricos que interpretam uma África mítica são apenas um momento, porém significativo, de uma fase que se caracteriza por uma reinvenção do passado africano, uma necessidade que advém desde a década de 1920.

Notas

1 Editada recentemente no ano de 2013 pelas edições Pedago em parceria com as Edições Mulemba, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, o volume é uma tradução do original em inglês publicado em 1988 pela Indiana University Press.

2 Nascido em Jadotville no ano de 1941, antigo Congo Belga e atualmente República Democrática do Congo, Valentim Yves Mudimbe posicionou seus interesses de pesquisa no campo da fenomenologia e do estruturalismo, com foco nas práticas de linguagens cotidianas. O autor doutorou-se em filosofia pela Catholic University of Louvain em 1970, tornando-se um notável pensador, seja através de suas obras que problematizam o que se conhece como história e cultura africana, ou ainda pela oportunidade de trabalhar em instituições de Paris-Nanterre, Zaire, Stanford, e ainda no Havard College. Mudimbe ocupou cargos como a coordenação do Board of African Philosophy (EUA) e do International African Institute na University of London (Inglaterra), e atualmente é professor da Duke University (EUA). Disponível em: <https://literature.duke.edu/people?Gurl=& Uil=1464&subpage=profile>. Acesso em: 16 jun. 2014 3 “A negritude é o entusiasmo de ser, viver e participar de uma harmonia natural, social e espiritual. Também implica assumir algumas posições políticas básicas: que o colonialismo desprezou os africanos e que, portanto, o fim do colonialismo devia promover a auto-realização dos africanos. (MUDIMBE, 2013, p. 123). “A negritude destaca-se como resultado de múltiplas influências: a Bíblia, livros de antropólogos e escolas intelectuais francesas (simbolismos, romantismo, surrealismo, etc.) legados literários e modelos literários (Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Claudel, St. John Perse, Apolinaire, etc.). Hauser apresenta várias provas das fontes ocidentais da negritude e duvida seriamente da sua autenticidade africana. HAUSER, M. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982, p. 533.” (MUDIMBE, 2013, p. 116) 4 Para informações mais precisas sobre Edward Wilmot Blyden, sugere-se A Virtual Museum of the Life and Work of Blyden. Disponível em: <http://www.columbia.edu/~hcb8/EWB_Museum/Dedication.html>. Acesso em: 30 jun. 2014.

Referências

DIAGNE, Mamoussé. Lógica do Escrito, lógica do Oral: conflicto no centro do arquivo. In: HOUNTONDJI, Paulin J. (Org.). O antigo e o moderno: a produção do saber na África contemporânea. Mangualde; Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2014.

FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1973.

HAUSER, Michel. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982.

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.

Priscila Maria Weber – Doutoranda em História PUCRS – Bolsista CAPES. E-mail: priscilamariaweber @yahoo.com.br.